A Lei de Responsabilidade Fiscal e o Poder Legislativo Federal

Propaganda
A Lei de Responsabilidade Fiscal e o Poder Legislativo Federal
PEDRO NOVAIS | WÉDER DE OLIVEIRA
A
Lei de Responsabilidade Fiscal é uma lei desde a apresentação de seu antepro-
jeto, ao longo de sua apreciação pelas Casas do Poder Legislativo Federal e ainda
depois de introduzida no mundo jurídico, político e econômico brasileiro, esteve cercada de acalorados discursos retóricos de ambos os lados: dos que a apóiam, saudada como “um marco histórico”, “uma revolução nas finanças públicas”, “um código de
conduta para os administradores públicos”, como o que faltava para “moralizar” a
Administração Pública; dos que a contestam, que a entendem como um ato de subserviência ao FMI e aos interesses internacionais, como a institucionalização e a
imposição a Estados e municípios da atual política econômica “fiscalista”, que privilegia o pagamento de juros em detrimento dos gastos sociais.
O objetivo fundamental é instituir um conjunto de normas de finanças públicas
(como consta do texto da lei, ou de direito financeiro, como corrigem alguns juristas) para que a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios não incorram
em desequilíbrios orçamentários e endividamento excessivos, e assim administrem
com prudência suas despesas, valorizem e aumentem suas receitas, de modo que
a dívida do setor público possa ser mantida sobre controle. A LRF, portanto, dirigese muito mais à atuação do Poder Executivo, em especial ao Poder Executivo
Federal. No entanto, como instituições políticas e legislativas, os Poderes
Legislativos adquirem importância fundamental para o alcance dos objetivos
pretendidos com essa lei complementar.
As implicações da LRF para as Casas do Poder Legislativo Federal
Responsabilidade Fiscal, ao instituir normas mais objetivas sobre essa questão
Como órgãos administrativos e orçamentários, o Senado Federal e a Câmara dos
(cumprimento da meta de resultado primário), cerne do planejamento fiscal e das pro-
Deputados serão, na essência1 alcançadas pelas normas que tratam: da limitação de
jeções de controle da dívida pública, componentes da política econômica do governo
empenho e movimentação financeira; da criação, expansão ou aperfeiçoamento de
federal, faz chegar o esforço de contenção de despesas até o Poder Legislativo, tam-
ação governamental que acarrete aumento de despesa; da criação ou aumento de
bém ao Judiciário e ao Ministério Público.
despesas obrigatórias de caráter continuado; da criação, extensão ou majoração de
benefício ou serviço da seguridade social; das despesas com pessoal; da assunção de
2
obrigações no final do mandato ; do Relatório de Gestão Fiscal; do limite temporário
A imprescindibilidade da atuação legislativa
para a eficácia da Lei de Responsabilidade Fiscal
A LRF traz implicações significativas para o Poder Legislativo Federal de ordem
para as despesas com serviços de terceiros.
Em termos numéricos, não são muitos, portanto, os artigos com incidência direta
administrativa e orçamentária. Mas é na esfera política e no seio do processo legislati-
sobre as Casas do Poder Legislativo3, enquanto órgãos administrativos e orçamen-
vo que se espera devam advir as mais profundas mudanças, não apenas de procedi-
tários. Contudo, tal constatação não permite presumir que a influência da LRF nesse
mento, mas, principalmente, culturais. A efetiva aplicação da LRF e sua transformação
aspecto seja pouco significativa. Primeiramente, porque a expansão e a melhoria das
em realidade está umbilicalmente ligada ao Poder Legislativo, e mais ainda ao Federal.
atividades desempenhadas não só pelo Poder Legislativo, mas também pelo Poder
Os exemplos a seguir embasam essa avaliação:
Judiciário e pelo Ministério Público4, pela natureza intrínseca das funções dessas insti-
• Ponto vital para formulação da política econômica, do planejamento orçamentário
tuições, envolve aumento de despesas com pessoal, e a LRF regula até excessiva-
e das demais políticas públicas, a fixação de metas fiscais (principalmente superávit
mente, a administração dessas despesas, estipulando condicionantes muito rígidas.
primário e montante da dívida consolidada da União em proporção do PIB) passa pelo
Depois, porque todos os artigos citados inserem-se no rol dos principais e sobre os
crivo do Poder Legislativo Federal, quando da aprovação da Lei de Diretrizes
quais os debates acerca da interpretação e aplicação são mais intensos, de modo que
Orçamentárias. A fixação de um superávit primário de 3% ou de 1,5% do PIB significa
também no Poder Legislativo Federal um difícil trabalho de análise e definição de pro-
uma prioridade maior ou menor para a manutenção da relação dívida? PIB; pode sig-
cedimentos para o cumprimento da LRF será necessário.
nificar a alocação de menos ou mais recursos para investimentos; significa adotar uma
No que se refere à despesa de pessoal, por estarem as Casas do Poder Legislativo abaixo
do limite permanente, estão obrigadas a manterem essa despesa limitada até o ano 2003,
ou outra política de governo.
•
O alcance da meta de resultado primário se dará segundo regras a serem esta-
ao percentual, em termos de receita corrente líquida, verificado em 1999, acrescido de 10%.
belecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias; o quinhão que caberá a cada Poder con-
Outro dispositivo com repercussões importantes e inovadoras no âmbito do Poder
tingenciar, a definição de critérios para efetivar a limitação de empenho e movimen-
Legislativo é o que trata da limitação de empenho e movimentação financeira. A Lei de
tação financeira, a definição das despesas que não poderão ser objeto de limitação,
conforme prevê o art.9º, § 3º, por decorrerem de obrigações constitucionais e legais
mente atendidos aos projetos em andamento e contempladas as despesas de conser-
ou por estarem expressamente ressalvadas, são todas questões fundamentais a serem
vação do patrimônio público. Esse dispositivo carece de uma definição da expressão
ano a ano discutidas e decididas no âmbito do Poder Legislativo, que também discipli-
“adequadamente atendidos” sem o quê não terá eficácia na sua finalidade de minimizar
5
nará o cumprimento do art. 9º
•
o desperdício de recursos públicos em obras inacabadas ou de duração quase infindável.
A fixação de limites para a dívida consolidada, para a dívida mobiliária e para o
montante e as condições para a realização de operações de crédito dos Estados e
Comentários Finais
municípios é atribuição privativa do Senado Federal, independe do Poder Executivo.
A Câmara dos Deputados e o Senado Federal brasileiro, como órgãos administra-
Um limite menor significa maior restrição orçamentária e afeta diretamente a política
tivos e orçamentários também se defrontam com dificuldades para a aplicação da LRF,
orçamentária dos Estados e municípios. Um Senado mais sensível à pressão dos
em virtude da pouca maturidade alcançada na compreensão dos dispositivos aqui
governadores e prefeitos pode redefinir limites e fixar outros mais elásticos e assim
apresentados. Mas pode-se dizer, no âmbito da Câmara dos Deputados, que a LRF se
permitir que o aumento da dívida possa financiar mais investimento.
encontra razoavelmente bem difundida entre os técnicos que exercem funções de
• As repercussões orçamentárias da criação, expansão e aperfeiçoamento de ações
governamentais das quais decorra aumento de despesa, da criação ou aumento de
direção ou assessoramento, os quais têm a necessária consciência dos atos que precisam ser analisados face ao que dispõe a LRF.
despesas obrigatórias de caráter continuado ou da criação, expansão ou majoração de
No âmbito institucional, O Poder Legislativo Federal tem funcionado também como
benefício ou serviço da seguridade social (art.24)6 devem ser analisadas durante o
uma caixa de ressonância das manifestações de governadores, prefeitos e membros
processo de produção de leis e na discussão do processo orçamentário brasileiro.
do Poder Judiciário sobre a LRF: contra ou a favor. É notório que muitos problemas exis-
Caberá ao Parlamento legislar sobre a participação popular nos processos de
tem, e de natureza variada, os quais devem ser enfrentados com bom senso, adequa-
elaboração e discussão dos orçamentos, planos e leis de diretrizes orçamentárias,
da análise técnico-jurídica e reflexão política. Os acalorados debates retóricos estão
assunto praticamente esquecido nas discussões sobre a implantação da LRF. Mas cabe
dando lugar a instigantes discussões fundadas nos aspectos técnicos, operacionais e
também ao Poder Executivo adotar práticas com esse mesmo objetivo durante a elab-
jurídicos. As soluções para os diversos problemas interpretativos e operacionais para
oração da proposta orçamentária.
aplicação da LRF advirão de proposições legislativas dos diversos entes da Federação7;
•
•
Cabe ao Poder Legislativo adotar procedimentos para análise e fiscalização dos
projetos de concessão de benefícios tributários.
• Compete ao Poder Legislativo, juntamente com o Poder Executivo, na discussão da
de normatizações dos Tribunais de Contas, dentro de sua esfera de competência; de
atos da própria Administração; e, em alguns casos, sem dúvida alguma, só o Poder
Judiciário dirimirá as questões sobre interpretação e aplicação.
Lei de Diretrizes Orçamentárias fazer valer dispositivo da LRF que estabelece que a Lei
Aos detentores de mandato e os administradores dos escalões superiores de todos
Orçamentária e de créditos adicionais só incluirão novos projetos depois de adequada-
os Poderes, aos quais cabe a tarefa de delinear o planejamento das ações governa-
mentais e decidir sobre as formas de financiá-las, não devem ficar alheios ao aprofun-
NOTAS
damento dessas discussões. Devem ser os primeiros a buscar o correto conhecimento
1. Obviamente outras normas têm, ou poderão vir a ter, num aprofundamento das análises, implicações diretas ou indiretas
das regras, princípios e limitações impostas pela nova lei, superando superficialidade
das informações propagadas pela mídia, e, aí sem, conduzir o processo para efetivamente cumprir o que a LRF realmente determina, discutir a apresentar formas de aprimorar suas virtudes e corrigir seus defeitos.
para o Poder Legislativo
2. As disposições do art.42 devem ser analisadas à luz de condições específicas dos Poderes Legislativo e Judiciário e do
Ministério Público.
3. Neste artigo, nas referências ao Poder Legislativo, não se inclui os Tribunais de Contas.
4. De outro lado é notório que em muitos Estados e municípios, os Poderes Legislativos gastam mais do que seria razoável com
pessoal e excedem os limites previstos na LRF.
Ao Parlamento cabe papel fundamental nesse processo, tanto como órgãos admi-
5. Esse dispositivo contribuirá para promover a discussão política da repartição do esforço de contenção de despesas, quando
nistrativos, quanto como componentes de um dos Poderes da República, no cumpri-
a elaboração e cumprimento dos orçamentos, enfim, com as finanças públicas. Essa regra inovadora de controle da execução
mento das atribuições e prerrogativas que lhe competem: a aplicação da lei ao proces-
necessário e ampliar o envolvimento de todos os Poderes com o controle da geração de despesas, a arrecadação de receitas,
orçamentária é um dos pontos fortes da Lei de Responsabilidade Fiscal. Se de um lado todos os Poderes e o Ministério
Público devem se solidarizar no processo de viabilização do alcance de metas, de outro o Poder Executivo, que elabora as
so legislativo; a produção de normas que complementem a LRF e que promovam a
projeções e reestimativas de receitas e executa a maior parte do orçamento da União, também se submete a regras, seja na
necessária adaptação do ciclo e do processo orçamentário; o exercício de sua função
6. Os artigos 17 e 24 foram objeto de acirrados debates durante a tramitação do projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal na
fiscalizadora dos atos do Poder Executivo, principalmente neste momento; a tomada
Câmara dos Deputados devido à rigidez que se vislumbrava iria impor às despesas sociais e de pessoal, a ponto de torná-los
da liderança natural e histórica que sempre exerceu sobre Estados e municípios na
absorção de mudanças culturais. De antemão, pode-se afirmar, não será um papel fácil
de ser desempenhado num curto espaço de tempo
fixação do montante da limitação de empenho seja da definição das despesas a serem contidas.
inexeqüíveis, e afetariam as discussões e tramitações de projetos no âmbito do Poder Legislativo. Aprovados, continuam a
provocar polêmicas, pois há inúmeras situações, inclusive no âmbito administrativo, sobre as quais pairam dúvidas se estão
ou não sujeitas ao cumprimento das exigências desses artigos.
7. Constituição Federal, Art.24 – "Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre I – direito
tributário, financeiro [...]
§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
PEDRO NOVAIS | Deputado Federal pelo Estado do Maranhão | relator do projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal na Câmara dos Deputados.
WÉDER DE OLIVEIRA | Consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados.
Download