Atos ilícitos, abuso de Direito e responsabilidade Sílvio de Salvo

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Atos ilícitos, abuso de Direito e
responsabilidade
Sílvio de Salvo Venosa
Direito Civil - Parte Geral
۩. Responsabilidade civil, responsabilidade
contratual e extracontratual
Quando o agente pratica ato volitivo, quer especificamente
para atingir efeitos jurídicos, quer não, estamos no campo já estudado
dos negócios jurídicos.
Se o agente dos negócios e atos jurídicos, por ação ou
omissão, pratica ato contra o Direito, com ou sem intenção manifesta de
prejudicar, mas ocasiona prejuízo, dano a outrem, estamos no campo dos
atos ilícitos. O ato ilícito pode constituir-se de ato único, ou de série de
atos, ou de conduta ilícita.
A ação ou omissão ilícita pode acarretar dano indenizável.
Essa mesma conduta pode ser punível no campo penal.
Embora o ato ilícito, ontologicamente, tenha entendimento
único, pode receber punição civil e penal, como, por exemplo, quando há
lesões corporais. O Direito Penal pune o autor das lesões corporais com
pena privativa de liberdade, além de outras sanções na ordem criminal. O
interesse de punir, no campo penal, é social, coletivo. Pouco importa para
o Direito Penal que não tenha havido prejuízo patrimonial, pois é direito
punitivo ou repressivo por excelência. As razões ontológicas e axiológicas
das punições aplicadas nesse campo são objeto do estudo da Sociologia
e da Política Criminal.
Para nós, no Direito Civil, importa saber quais os reflexos
dessa conduta ilícita. No crime de lesões corporais, a vítima pode ter
sofrido prejuízos, tais como despesas hospitalares, faltas ao trabalho e
até prejuízos de ordem moral, se foi submetido à chacota social, se tiver
ficado com cicatriz que prejudique seu trânsito social. No campo civil, só
interessa o ato ilícito à medida que exista dano a ser indenizado. O Direito
Civil, embora tenha compartimentos não patrimoniais, como os direitos de
família puros, é essencialmente patrimonial. Quando se fala da existência
de ato ilícito no campo privado, o que se tem em vista é exclusivamente a
reparação do dano, a recomposição patrimonial.
Quando se condena o agente causador de lesões corporais a
pagar determinada quantia à vítima, objetiva-se o reequilíbrio patrimonial,
desestabilizado pela conduta do causador do dano. Não há, no campo
civil, em princípio, ao contrário do que vulgarmente podemos pensar,
sentido de "punir o culpado", mas o de se indenizar a vítima. Essa última
afirmação, quase um dogma no passado, tem sofrido modificações
modernamente, pois muito da indenização de dano exclusivamente moral
possui uma conotação primordialmente punitiva, como veremos em
nossos estudos nesse campo.
No campo penal, há série de condutas denominadas típicas,
descritas na lei, que se constituem nos crimes ou delitos. Quando alguém
pratica alguma dessas condutas, insere-se na esfera penal. O ato ilícito
no campo penal, portanto, é denominado crime ou delito. A terminologia
ato ilícito é reservada, no sentido específico, para o campo civil, daí se
falar em responsabilidade civil.
Em matéria de responsabilidade civil, havia artigo no Código
Civil de 1916 a fundamentar a indenização não derivada de contrato: "Art.
159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou
imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a
reparar o dano."
O atual Código, no dispositivo equivalente, refere-se ao dano
moral, presente expressamente na Constituição de 1988: "Aquele que,
por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito
e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
ilícito" (art. 186).
Desses dispositivos decorrem todas as conseqüências
atinentes à responsabilidade extracontratual entre nós. Na
responsabilidade extracontratual, também denominada aquiliana, em
razão de sua origem romana, não preexiste um contrato. É o caso de
alguém que ocasiona acidente de trânsito agindo com culpa e provocando
prejuízo indenizável. Antes do acidente, não havia relação contratual ou
negocial alguma. Tal fato difere do que ocorre no descumprimento, ou
cumprimento defeituoso, de um contrato no qual a culpa decorre de
vínculo contratual. Por vezes, não será fácil definir se a responsabilidade
é contratual ou não.
O ato ilícito, portanto, tanto pode decorrer de contrato como de
relação extracontratual. O dispositivo que regulava a responsabilidade
contratual estava no art. 1.056 do Código Civil anterior: "Não cumprindo a
obrigação, ou deixando de cumpri-la pelo modo e no tempo devidos,
responde o devedor por perdas e danos."
O atual Código atualiza esse conceito no art. 389: "Não
cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais
juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente
estabelecidos, e honorários de advogado."
A ilicitude cominada no art. 186 (antigo, art. 159) do Código diz
respeito à infringência de norma legal, à violação de um dever de
conduta, por dolo ou culpa, que tenha como resultado prejuízo de outrem.
A infração à norma pode sofrer reprimenda penal, consistente
em pena corporal ou multa, correlatamente a indenização civil, ou tãosomente indenização civil, caso a norma violada não tenha cunho penal.
O art. 186 (antigo, art. 159) de nosso Código menciona tanto o
dolo como a culpa, assim considerados no campo penal. Fala o
dispositivo em "ação ou omissão voluntária". O Código Penal define dolo
como a situação em que o agente quer o resultado ou assume o risco de
produzi-lo (art. 18, I). No dolo específico, o agente quer o resultado direta
ou indiretamente. No dolo eventual, especificado no dispositivo penal
(quando o agente assume o risco de produzir o resultado), o agente
pratica o ato sem querer propriamente certo resultado; quando, porém, de
forma implícita, aquiesce com ele, tolerando-o, estará agindo com dolo
eventual.
A culpa, segundo o mesmo art. 186, vem estatuída pela
expressão negligência ou imprudência. O Código Penal, no art. 18,
acrescenta a imperícia. Na conduta culposa, há sempre ato voluntário
determinante do resultado involuntário. O agente não prevê o resultado,
mas há previsibilidade do evento, isto é, o evento, objetivamente visto, é
previsível. O agente, portanto, não prevê o resultado; se o previsse e
praticasse a conduta, a situação se configuraria como dolo. Quando o
resultado é imprevisível, não há culpa; o ato entra para o campo do caso
fortuito e da força maior, e não há indenização alguma.
Quando se fala em culpa no campo civil, englobam-se ambas
as noções distinguidas no art. 186, ou seja, a culpa civil abarca tanto o
dolo quanto a culpa, estritamente falando. Ainda para fins de indenização,
uma vez fixada a existência de culpa do agente, no campo civil, pouco
importa tenha havido dolo ou culpa, pois a indenização poderá ser pedida
em ambas as situações. Também não há, em princípio, graduação na
fixação da indenização, tendo em vista o dolo, mais grave, ou a culpa,
menos grave. No entanto, deve ser lembrado o art. 944, parágrafo único
do Código de 2002, o qual permite ao juiz reduzir eqüitativamente a
indenização, se houver expressiva desproporção entre a gravidade da
culpa e o dano. Sobre o tema inovador em nosso ordenamento,
voltaremos quando do estudo da responsabilidade civil (vol. IV).
O que importa na responsabilidade civil é a fixação de um
quantum para reequilibrar o patrimônio atingido. Não se trata, portanto, de
punição. O Direito Penal é punitivo, e na fixação da pena, sem dúvida, o
juiz atenderá, entre outros fatores, à intensidade da culpa ou do dolo para
aplicar a pena mais adequada.
Outro ponto deve ser destacado: no Direito Penal, o ato ilícito,
o crime, é de definição estrita, atendendo-se ao princípio do nulla poena
sine lege. Só haverá responsabilidade penal se for violada a norma
compendiada na lei. Por outro lado, a responsabilidade civil emerge do
simples fato do prejuízo, que igualmente viola o equilíbrio social, mas cuja
reparação ocorre em benefício da vítima. Por conseguinte, as situações
de responsabilidade civil são mais numerosas, pois independem de
definição típica da lei.
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