REVISTA ÂMBITO JURÍDICO ® O dolo como indiferença em face da lesão ao bem jurídico na teoria de Engisch O dolo a partir da teoria finalista da ação, e, diante do afastamento da deliberada intenção de praticar conduta delituosa exurge o Dolo Eventual, que, superficialmente, pode ser identificado com a possibilidade de assunção do risco de atingir certo resultado. Trata Celso Delmanto, que o dolo eventual, uma das espécies de dolo indireto ocorre quando “o agente, conscientemente, admite e aceita o risco de produzir o resultado”. Diante desta classificação, podemos considerar a posição do dolo eventual como confusa à conduta praticada na espécie da culpa consciente, visto que a simples admissão e o aceite podem ser provenientes de negligência, imprudência ou imperícia por parte do agente. Entretanto, apesar da proximidade da conduta, o reflexo penal da ação dolosa é equiparado à conseqüência punitiva resultante de prática ilícita dolosa direta. O dolo se verifica na tipificação objetiva determinada pela realização de uma finalidade. Razão pela qual atende a toda atitude interna e emocional do sujeito ante o fato. Vale observar que, quando a finalidade dirige-se diretamente para a produção do fim típico que se concretiza, apresenta-se o dolo direto. Quando, porém, nos depararmos com a produção de um resultado típico, concomitante, que é meio previsível pela vontade realizadora, apresenta-se nitidamente dolo eventual. Diferente se apresenta do dolo direto de conseqüências necessárias descrito anteriormente, onde o resultado secundário não é previsível, mas certo. A crítica sobre a admissibilidade do dolo eventual é manifestada no sentido de que na ação sustentada pelo conteúdo do querer final (teoria finalista da ação), não será possível incluir-se no tipo aquilo que somente é previsto, mas não querido pelo agente que apenas consente, aprova ou anui as conseqüências. Magalhães Noronha refere, simplificando as diferenças de dolo direto e dolo eventual, “que o primeiro é à vontade por causa do resultado; o outro é à vontade apesar do resultado.” Todavia, a aplicabilidade do dolo eventual se garante pela verificação concomitante da assunção do risco, previsibilidade do perigo, confirmação de uma vontade inerente à ação, a qual é determinada pela anuência ou indiferença em relação ao resultado típico concretizado. Nos termos do inciso I, do artigo 18, do Código Penal, se verifica crime doloso quando se assume o risco de produzir o resultado. A dúvida para a aplicação do dolo eventual se localiza na verificação desta assunção de risco, que deverá revelar-se nos meios optados pelo agente bem como, principalmente, na grande probabilidade, de alcançar o resultado assumido. De todo modo o dolo eventual contém os elementos constitutivos da ação dolosa, quais sejam, o elemento cognitivo: descritivo, determinado pelos meios secundários utilizados na obtenção do resultado principal; normativo, pela reprovabilidade psicossocial e desses meios utilizados. Ainda, no plano volitivo, é manifesta a voluntária intenção de assumir o risco de produzir o resultado. Conjuntamente com a consciência, esta assunção do risco constitui o aceite e assentimento sobre o resultado previsível cuja probabilidade de ocorrência era grande. Engisch encontrou a diferença entre dolo e culpa consciente no fato de que quem age com o dolo ou deseja o resultado, ou é indiferente a seu respeito Engisch, [1930], 186 e ss. Também a expressão “indiferente” pode ser utilizada tanto em sentido descritivo quanto normativo. Em sentido psicológico-descritivo, dizer que alguém é indiferente em relação a determinado fato significa que, para essa pessoa, vale o mesmo que o fato seja verdadeiro ou que ele seja falso. Essa expressão não significa que o fato seja valorizado como positivo ou negativo em qualquer sentido. Já em sentido normativo, e com o sentido de um reproche, a expressão “indiferente” é utilizada quando se diz que alguém se comportou de modo indiferente em relação a determinação fato. Tal pressupõe que o fato tenha sido valorado de modo positivo ou negativo, daí decorrendo exigências éticas ou jurídicas em relação ao comportamento da pessoa envolvida. Com tal sentido, dizer que alguém foi indiferente em relação a um fato qualquer significa que ela violou de modo grosseiro tal norma, decorrente do fato e da valoração deste. Indiferente em sentido psicológico e em sentido normativo não precisa coincidir. Por exemplo, a tia que, por avareza insuperável, nega à sobrinha a ajuda financeira urgentemente necessária, comporta-se indiferentemente em sentido normativo em fase da infelicidade da sobrinha. Tal não exclui, porém, que ela lamente com sinceridade a situação da sobrinha, ou seja, que ela não seja, de modo algum, indiferente em sentido descritivo-psicológico. O capitalista que deixa seus empregados arruinarem a própria saúde em troca de um salário de fome comporta-se com indiferença, em sentido normativo, em relação a situação, ainda que ele esteja sinceramente revoltado com as mais condições sociais de seu país e lute politicamente por uma revolução comunista. Ao defender-se da acusação de que sua teoria partiria de uma culpabilidade pelo caráter, sublinha Engisch que, por indiferença, compreende ele um “dado psíquico concreto” (Engisch [1939], 198). Tal descrição do estado psicológico de quem age dolosamente tem ao menos uma vantagem em comparação com a teoria da vontade, a teoria da aprovação e a teoria do levar a sério, que é a da clareza. Talvez seja esse o motivo de que se tenha formulado justamente contra a teoria da indiferença a objeção de que ela implique um direito penal de ânimo (SK Rudolphi § 16 nm. 39; Roxin AT/1 12/37 e 34; Wessels/Beulke AT nm. 218). È verdade, porém, que, tomada em termos absolutos, tal objeção se justifica também em fase da teoria de Engisch, pois tampouco ele caracteriza qual a relação entre o comportamento do autor e o “dado psíquico concreto” da indiferença. Ele não pode utilizar-se da fórmula de Frank para definir o conteúdo de tal relação pelo simples motivo de ser um de seus críticos mais sagazes (Engisch, op. Cit., 194 e ss.). È por isso que ele recorre à formação só como um “instrumento heurístico para a verificação da indiferença absoluta” (Engisch op. Cit., 198). Ou seja, a elementar da indiferença, que deve distinguir dolo e culpa, permanece também em Engisch um momento psíquico meramente acessório ao fato. Uma verificação positiva da indiferença é exigida por Engisch unicamente na zona intermédia da probabilidade de realização do tipo reconhecida pelo autor. Se a probabilidade é reduzida, haverá sempre culpa, se a probabilidade é grande, então, independentemente da verificação da indiferença, haverá dolo; uma teoria combinatória similar é defendida por Schroeder (LK-Schroeder § 16nm. 93). Tal posicionamento é justificado por Engisch mediante a alegação de que “ em caso de conseqüências antijurídicas almejadas, tidas como certas ou bastante prováveis, o autor já manifestou in concreto a sua indiferença relativa” (Engisch op. Cit. 198), fazendo referência especialmente a um defensor da teoria da probabilidade, a saber, Grossmann. Essa indiferença manifestada é indiferença no sentido normativo descrito (nm. 63), mas não em sentido descritivo-psicológico. Exatamente da mesma maneira que a teoria da vontade e a teoria da aprovação, também a teoria da indiferença parece de uma confusão conceitual, entre um conceito normativo e um descritivo. Nos casos unívocos, ou seja, nos casos de reduzida ou de grande probabilidade, é o conceito normativo da indiferença atuada que delimita e justifica a decisão por dolo ou por culpa. Nos casos limite de média probabilidade, é o conceito descritivo-psicológico da indiferença sentida que deve possibilitar a decisão. Por meio da negação ou da afirmação da tal indiferença sentida torna-se essa decisão algo formalmente unívoco; o problema é que, na prática, ela quase nunca conseguirá ser tomada de modo unívoco. Mais: o preço de tal univocidade é quem o conceito da indiferença sentida - que, em princípio, não se justifica e, nos casos claros, reconhecidamente carece de qualquer significado passa a ser, nos casos duvidosos, o fiel da balança. Referências BRUNO. Aníbal. Direito Penal, tomo 2º, 4ª edição. Rio de Janeiro : Forense, l978. COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Comentários ao Código Penal. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 1996. DELMANTO, Celso – Código Penal Comentado – Rio de Janeiro: Renovar, 2000. ENGISCH, Karl. Untersuchungen uber Vorsatz und Fahrlassigkeit im Strafrecht. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, tomo II. Rio de Janeiro : Revista Forense, 1955. LUISI, Luiz. O tipo penal e a teoria finalista da ação. Dissertação. Faculdade de Direito da UFRS. NORONHA, E. M. Direito Penal, atualizada por Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha. São Paulo: Saraiva, 1997. PIERANGELI, José Henrique. Escritos jurídico-penais. 2ª edição. São Paulo : RT, 1999. WELZEL, Hans. El nuevo sistema del Derecho Penal. Tradução espanhola de José Cerezo Mir. Barcelona: Ariel, 1964.