inserção externa e vulnerabilidade da economia brasileira no

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Os anos Lula: contribuições para
um balanço crítico 2003-2010.
Rio de Janeiro: Ed. Garamond,
2010, p. 109-131.
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA
ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
Marcelo Dias Carcanholo
A herança maldita dos anos 90 e a campanha presidencial de 2002
Sabe-se que a estratégia neoliberal propugna dois objetivos como metas de
uma administração econômica dita responsável. O primeiro é a estabilização
macroeconômica com foco na inflação e nas contas públicas, enquanto o
segundo é a obtenção de um ambiente econômico pró-mercado, que incentive
a maior concorrência entre os capitais e a livre iniciativa para a retomada dos
investimentos e do crescimento econômico.
O Consenso de Washington nada mais foi do que um receituário de
políticas que procuravam atingir esses objetivos. Em relação ao primeiro, não
importa muito se a política de estabilização implementada tivesse um cunho
mais ortodoxo, com restrição da demanda agregada, ou heterodoxo, com
contenção/administração de algum preço-chave,1 desde que a estabilização
fosse conseguida. Quanto ao segundo, a construção de uma economia de
mercado baseada na livre iniciativa seria garantida pelas reformas estruturais,
isto é, pela desregulamentação e abertura dos mercados.
Esta estratégia neoliberal, no Brasil, começa a ser implementada de forma
mais sustentada após a eleição de Fernando Collor, que assume em 1990, mas
perpassa toda a década, durante os governos de Itamar Franco (1992-1994) e
Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002).
Do ponto de vista da estabilização, a estratégia neoliberal pareceu ser exitosa
no país ao menos no que se refere ao controle inflacionário. As taxas anuais de
1 Durante os anos 90, foi muito comum, principalmente na América Latina, a adoção de regimes de câmbio (quase) fixos,
dentro de políticas de estabilização com âncora cambial.
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
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inflação, que alcançaram quatro dígitos em 1994, passaram a apresentar dois
dígitos já no ano seguinte, e apenas um em 1996.2 As contas públicas, ainda que
apenas no conceito primário, que não inclui o pagamento do serviço da dívida
pública, também melhoraram.3
Pareceria que a experiência neoliberal no Brasil dos anos 90 fora um
sucesso. Era assim, inclusive, que muitos defensores de suas ideias costumavam
argumentar. Entretanto, se olharmos os resultados macroeconômicos mais
gerais, a conclusão é oposta. A taxa média de crescimento da economia durante
os anos 90 foi de 1,78%, inferior aos 2,2% dos anos 80. A taxa de investimento
como proporção do PIB foi de 15,9% na última década, contra 17,7% na anterior.
As taxas de desemprego subiram sistematicamente ao longo do período, saindo
de 3,3% em 1989 para 7,6% em 1999, segundo as estimativas menos rigorosas.
Em janeiro de 1999 ocorre a crise cambial que dá fim ao regime de câmbio
quase-fixo, operante desde 1994.
Em termos distributivos, o resultado tampouco foi muito animador.
A distribuição da renda piorou no período basicamente por três razões: (i)
desestruturação do mercado de trabalho levou a uma mudança na estrutura
ocupacional caracterizada pelo aumento na participação dos desempregados,
trabalhadores por conta própria, não assalariados e trabalhadores sem registro;
(ii) piora da distribuição funcional da renda;4 e, (iii) concentração da riqueza,
isto é, da propriedade dos ativos da economia.5 Quais as razões desse pífio
resultado?
A implementação da estratégia neoliberal implicou, além de uma política
de estabilização restritiva, a promoção de reformas estruturais pró-mercado que,
dentre outras coisas, incluíam um amplo e intenso processo de abertura externa
tanto do ponto de vista comercial (eliminação de barreiras não tarifárias; redução
da tarifa média sobre importações; diminuição da dispersão tarifária), quanto
do ponto de vista financeiro. A liberalização e abertura financeiras significaram
o aumento da facilidade com que os residentes do país podiam adquirir ativos
e passivos expressos em moeda estrangeira e os não residentes podiam operar
2 O IGP-DI (Índice Geral de Preços, segundo a disponibilidade interna) mostrou uma inflação de 2406,8% em 1994, 67,5%
em 1995 e 9,34% em 1996. Em 1998, esse índice mostrou uma inflação anual de apenas 1,7%.
3 Excetuando os anos de 1996 e 1997, o período 1990-2000 caracterizou-se pela obtenção de superávits primários
substanciais.
4 Em 1994, 32% do PIB era composto pela massa de salários. No final da década, em 1999, essa proporção era de apenas
26,5%.
5 Em 1989, os 1% mais ricos da população possuíam 53,07% da riqueza brasileira, o que cresceu para 56,45% em 1999.
110
| Os anos Lula - Contribuições para um balanço crítico 2003-2010
nos mercados financeiros domésticos. Os impactos deste processo foram os
aumentos da concentração e desnacionalização no mercado financeiro, a redução
da participação das instituições financeiras públicas, a forte participação dos
bancos universais e o crescimento mais do que proporcional do mercado de
títulos, se comparado ao de crédito bancário.
Do ponto de vista das contas externas, esse processo de abertura implicou
uma elevação estrutural da necessidade de financiamento externo, aumentando a
dependência dos fluxos externos para o fechamento do balanço de pagamentos,
e da vulnerabilidade externa da economia.
Ao longo dos anos 90, a dívida externa brasileira cresceu 108%, o passivo
externo líquido6 195,7%, o serviço da dívida externa (pagamento de juros e
amortizações) 160%, o serviço do passivo externo (serviço da dívida mais
remessa de lucros e dividendos) 132%, o estoque da dívida pública,7 entre 1994
e 1998, subiu 572%, e os juros pagos por essa dívida, no mesmo período, 415%.
O crescimento dos passivos externos chegou a um ponto tal que o fluxo
de capitais não continuou financiando a rolagem dessas dívidas, o que levou à
crise cambial de 1999, resultando em uma desvalorização acumulada, no mês
de janeiro desse ano, de 64,08% e em uma perda de reservas internacionais, no
primeiro trimestre desse ano, de US$ 10,75 bilhões.
Após esse colapso, a política cambial é alterada, sendo regida por
um regime flutuante, com a atuação do Banco Central para estabilizar as
flutuações da cotação, e a política monetária passa a seguir um regime de metas
inflacionárias, de forma que a taxa de juros é administrada para conter possíveis
pressões inflacionárias, principalmente por choques de demanda. Essas
diretrizes de política econômica, aliadas a uma política fiscal de obtenção de
megassuperávits primários, basicamente para pagar o serviço da dívida pública,
são a característica da política econômica brasileira desde então.
Os defensores da estratégia neoliberal passaram a defender essa “correção
de instrumentos” na política econômica, mantendo a estratégia de abertura e
6 O passivo externo líquido se define pelo estoque da dívida externa bruta adicionado do estoque do investimento externo no
país (direto e de portfólio) e descontado dos ativos externos que o país possui.
7 A relação do estoque da dívida pública com o setor externo se dá pelo fato de que as taxas de juros, que determinam o
crescimento desse estoque, possuem um piso para o seu valor em função da necessidade de atração de capitais externos para
o fechamento do balanço de pagamentos. Por outro lado, a obrigação de esterilização dos capitais entrantes, dada a política
de estabilização com âncora cambial, levava diretamente a uma elevação do estoque da dívida pública. Nesse sentido, este
último também compõe um indicador da vulnerabilidade externa da economia.
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
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desregulamentação dos mercados como a solução para os problemas do país.
Entretanto, a dívida líquida do setor público continuou crescendo (chegando a
US$ 624 bilhões em 2001), o passivo externo líquido manteve sua trajetória (o
serviço desse passivo atingiu US$ 43,7 bilhões em 2000) e a balança comercial
só obteve resultados positivos em 2001, um pouco por conta dos efeitos da
desvalorização do câmbio pós-crise, mas muito mais em razão do crescimento
da economia mundial, que elevou a demanda pelas commodities exportadas
pelo país.
Assim, a mudança do regime cambial e monetário, após a crise de 1999,
não modificou a característica estrutural da economia brasileira. A piora da
situação social, como decorrência desse quadro, e a crescente insatisfação
popular deram o tom da campanha para as eleições presidenciais de 2002. O
discurso das principais candidaturas postulantes dava ênfase à promoção do
capital nacional produtivo, recuperando as taxas de crescimento da economia
e os níveis de emprego, em detrimento da acumulação financeira que vinha
sendo a característica do país. O curioso é que esse discurso era enfatizado
tanto pelo principal candidato oposicionista como pelo candidato da situação.
Isto significava, implicitamente, o reconhecimento do fracasso do governo
anterior para oferecer as promessas da estratégia neoliberal de retomada do
crescimento e do desenvolvimento do país, não porque não tivesse executado
essa estratégia, ao contrário, justamente porque a aplicou rigorosamente.
A vitória do candidato Lula parecia trazer consigo as esperanças, não
apenas no Brasil, mas no restante da América Latina, de que a hegemonia
neoliberal começaria a declinar. O novo governo assume no início de 2003
tendo que equacionar duas coisas: a chamada herança maldita do governo
anterior, definida pelas armadilhas construídas pelo processo de abertura e
desregulamentação da economia, e que produziram os resultados pífios dos anos
90 e início do século XXI, e a expectativa popular de mudança na estratégia de
desenvolvimento.
O “novo” governo Lula: mais do mesmo
Muito se fala hoje sobre a suposta traição do governo Lula, que, depois de
eleito, não teria cumprido com as esperanças de rompimento com a estratégia
neoliberal e teria se resignado ante o pensamento único.
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| Os anos Lula - Contribuições para um balanço crítico 2003-2010
Entretanto, a economia política do governo Lula podia ser antevista
já durante a campanha eleitoral. Em meados de 2002, durante a campanha
presidencial, a candidatura de Lula lança a Carta ao povo brasileiro, na
qual se compromete a manter todos os contratos estabelecidos na economia,
sinalizando para a manutenção da política econômica nos mesmos moldes. Em
agosto de 2002, o ainda governo de Fernando Henrique Cardoso assina um
acordo com o FMI dando garantias de manutenção da política econômica. Esse
acordo teve uma revisão em março de 2003, já no governo Lula, mantendo
as garantias. A sinalização dada pela Carta ao “povo” brasileiro não poderia
ser mais clara: o governo Lula acatou o acordo, e tudo o que está implícito
nele, como a manutenção do regime de metas inflacionárias, a política de
megassuperávits fiscais primários para pagar o crescente serviço da dívida
pública, a manutenção do grau e da profundidade das reformas neoliberais
realizadas até então, assim como a implementação de novas reformas ainda
inconclusas, como a da previdência, a trabalhista e a sindical.
Eleito o governo Lula, rompe-se com a estratégia neoliberal de
desenvolvimento, indo na direção contrária da sinalização dada durante a
campanha? Pelo contrário, ele cumpre o que prometeu. Mantém-se o discurso –
e a prática – da estabilidade macroeconômica como precondição para qualquer
política de mais longo prazo. As reformas estruturais pró-mercado, incluindo a
liberalização comercial, financeira e produtiva, não apenas são mantidas como
aprofundadas em seu governo.
No que se refere à liberalização financeira, por exemplo, em março de 2005
foram aprovadas a unificação do mercado cambial (flutuante e livre), a extinção
da Conta de Não residentes (CC-5), o que facilita a remessa de recursos para o
exterior, e a dilatação dos prazos para a cobertura cambial das exportações. A
unificação do mercado cambial é uma das etapas defendidas pelo argumento da
sequência ótima de abertura, conforme proposto pelo Consenso de Washington.
Segundo este, a unificação permitira a não discriminação entre exportadores e
importadores. A extinção das contas CC-5, por sua vez, eliminou os limites para
que pessoas físicas e jurídicas (inclusive residentes) convertessem reais em
dólares, facilitando a saída de recursos, aprofundando a liberalização cambial.
Já a dilatação dos prazos para a cobertura cambial das exportações significou
que os exportadores puderam manter suas receitas em dólares (30% do total)
no exterior, apontando para o fim da obrigação de converter as receitas em
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
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dólares para moeda nacional, ao mesmo tempo em que lhes permite atuar no
mercado especulativo de câmbio no ínterim entre o recebimento dos dólares e
sua eventual transformação em reais.
Em fevereiro de 2006, o governo ainda sancionou uma medida provisória
(MP 281) que concedia incentivos fiscais aos investidores estrangeiros para
a aquisição de títulos da dívida pública interna. Sob o pretexto de melhorar
a rolagem da dívida pública interna, essa medida acabou por aprofundar a
conexão entre a dinâmica da entrada de recursos externos e a do crescimento
da dívida pública.
Do ponto de vista comercial-produtivo, também se percebe a manutenção
da lógica liberalizante. Em termos de reestruturação produtiva, mantémse a mesma lógica do governo anterior. Mesmo quando feitos anúncios
de programas de investimento pelo governo, grande parte deles estava na
dependência do setor privado e/ou de empresas estatais com atuação e lógica
não muito diferentes daquelas que embasam as decisões privadas. Para isso, os
exemplos das Parcerias Público-Privadas (PPP´s), o Programa de Aceleração
do Crescimento 1 (PAC 1) e o Programa de Aceleração do Crescimento 2 (PAC
2) – este último anunciado quando grande parte do primeiro nem tinha sido
concluída – são os mais notórios.
No que se refere à atuação do país nos foros de negociação internacional,
é inegável que grande parte da argumentação do Brasil é a da promoção
dos negócios, de aprofundamento das relações comerciais entre as distintas
economias; até para os países subdesenvolvidos tem-se apresentado a famigerada
“solução” convencional de “mais comércio”. A ideia é de que grande parte
dos problemas dos países periféricos se dá por conta do grau de proteção das
economias avançadas. Este fato inegável dá um falso substrato para a promoção
do livre-comércio como se isso fosse garantia para o desenvolvimento das
economias atrasadas.
A manutenção do grau de abertura comercial e, portanto, da reestruturação
produtiva que lhe é consequente, promoveram, ao longo do governo Lula,
a elevação da dependência do mercado externo como centro dinâmico da
economia brasileira (exportações como forma de escoamento da produção,
isto é, realização do valor produzido e importações como a única maneira
de garantir boa parte dos suprimentos e bens de capital necessários para a
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| Os anos Lula - Contribuições para um balanço crítico 2003-2010
produção interna). Isto em que pese toda a propaganda oficial sobre a promoção
do mercado interno. Por outro lado, isso implicou a acentuação do processo de
reprimarização das exportações, o que, como veremos, também leva à elevação
da vulnerabilidade externa estrutural da economia brasileira.
Com tudo isso, são mantidos os dois pilares da estratégia neoliberal do
Consenso de Washington, isto é, a estabilização macroeconômica como
precondição e as reformas pró-mercado para a retomada dos investimentos
privados. Mesmo assim, mantida a estratégia conservadora de desenvolvimento,
existiria a possibilidade de que fosse alterada a instrumentalização da política
econômica ortodoxa. Nesse campo, o que faz o governo? Nada. Ou melhor,
assim como na estratégia de desenvolvimento, o mesmo que antes.
Portanto, em termos de instrumentalização da política econômica,
o governo Lula defendeu a manutenção dos megassuperávits primários,
explicitamente pelo controle dos gastos públicos e, de alguma maneira, na
expansão da arrecadação como forma de manter sustentável a relação da
dívida pública diante do PIB. Do ponto de vista da política monetária, foi
mantido o regime de metas inflacionárias, ou seja, a administração das taxas
básicas de juros foi submetida ao gerenciamento das pressões inflacionárias,
não importando o impacto que pudessem ter sobre a restrição da atividade
econômica.8
Do ponto de vista da política cambial, também se mantém o regime herdado
do governo anterior. A determinação da taxa de câmbio segue um esquema
de flutuação suja, ou seja, o mercado cambial determina o valor da moeda
nacional em relação à moeda conversível, e o Banco Central atua no mercado,
ora comprando, ora vendendo, de forma a tentar manter essa flutuação da taxa
de câmbio segundo os parâmetros que lhe parecem convenientes.
Algumas interpretações oficialistas reconhecem essa manutenção da
estratégia neoliberal de desenvolvimento e das políticas fiscal, monetária e
cambial, mas sustentam que a política comercial foi modificada. De fato, a
balança comercial volta a ser superavitária a partir de 2001, depois de sete anos
deficitária. Entretanto, isso não se deve a uma mudança na política comercial
8 Aliás, a perspectiva teórica da análise ortodoxa que fundamenta a política econômica do governo Lula é a do novo
classicismo, segundo o qual a demanda agregada não interfere na determinação da atividade econômica, que é definida
única e exclusivamente pela oferta agregada. O que a demanda faz, segundo esta teoria, no máximo, é definir o nível geral de
preços. Daí que a única função do Banco Central, de preferência independente, seja o controle de preços.
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
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do governo, que, aliás, manteve o elevado grau de abertura comercial herdado
dos anos 90.
Em primeiro lugar, note-se que essa reversão na balança comercial começa
a ocorrer ainda no governo FHC e, portanto, não seria um “mérito” exclusivo
do governo Lula. Em segundo lugar, a reversão dos saldos deficitários na
balança comercial se deve a outros fatores: (i) consequência defasada da
desvalorização da taxa de câmbio, que vem desde a crise cambial de 1999; (ii)
nova desvalorização do câmbio em função de incertezas durante a campanha
eleitoral de 2002; (iii) volta do crescimento da economia mundial, que permite
a expansão do volume das exportações, assim como uma alta substancial do
preço das commodities, principal conjunto de produtos de exportação do país;
e (iv) momento de alta no ciclo de liquidez internacional, o que propicia uma
baixa nas taxas de juros internacionais e, portanto, de elevação na demanda das
nossas exportações.
Antes de ser consequência de uma política comercial mais ativa, o
resultado da balança comercial reflete muito mais a sorte que o governo Lula
experimentou de um ambiente externo favorável. Isto é, antes de mostrar uma
ruptura com a estratégia neoliberal do governo anterior, a obtenção de saldos
positivos na balança comercial, a partir de determinado momento, reflete,
como veremos, justamente o grau de dependência da economia brasileira frente
aos movimentos dos mercados internacionais, fruto da inserção internacional
passiva das duas últimas décadas.
Razões apontadas para a política de “mais do mesmo” e os problemas
estruturais
Por que o governo Lula não rompeu nem com a estratégia neoliberal
de desenvolvimento, nem com a política econômica ortodoxa? As respostas
dadas a essa pergunta por parte dos defensores do governo possuem diferentes
matizes.
Os mais fundamentalistas aceitam o argumento de que nada foi
modificado no novo governo simplesmente porque não poderia ser. Não há
uma outra estratégia alternativa de desenvolvimento, nem tampouco outra
forma de macroeconomia. Só existe uma política econômica correta (ajuste
fiscal, com regime de metas inflacionárias, regime de câmbio flutuante e livre
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| Os anos Lula - Contribuições para um balanço crítico 2003-2010
mobilidade de capitais). Trata-se da aceitação mais conservadora possível do
lema thatcheriano do TINA (there is no alternative). Segundo este raciocínio,
os únicos ajustes possíveis estão no campo da microeconomia, no sentido
de fornecer regras mais claras e um ambiente propício para a retomada dos
investimentos privados. Nada mais conservador do que isso.
Existem, entretanto, aqueles mais pragmáticos. Estes asseguram que a
manutenção da política é apenas uma estratégia para assegurar a credibilidade
dos mercados, e, uma vez assegurada esta, poder-se-ia implementar as mudanças
requeridas por um projeto mais alternativo.9 O que este argumento desconsidera
é que não existe uma garantia de credibilidade; os mercados não fornecem algo
como um certificado para isso. O compromisso com a credibilidade é um moto
perpetuo, já que, no primeiro momento em que essa relação de compromisso for
quebrada, a credibilidade é rompida, sendo exigida novamente a manutenção
da política demandada pelo tal mercado. Embora mais pragmático, esse tipo de
argumento acaba caindo também, por uma imposição da lógica compromissocredibilidade, na presumida inexistência de alternativas.
Um outro tipo de argumento é aquele que defende a importância da herança
maldita, isto é, dos problemas econômicos graves que foram herdados pelo
governo Lula. Trata-se, em nossa opinião, do argumento mais sério, ainda que
também equivocado. De fato, o governo de Fernando Henrique Cardoso deixou
armadilhas econômicas e problemas estruturais gravíssimos. O argumento aqui
é de que não haveria como mudar a política econômica por conta dessa herança
deixada pelo governo anterior. As armadilhas ainda estariam armadas e com
seus efeitos potencializados. Que armadilhas são essas, quais os seus efeitos e
possíveis alternativas?
Antes de tratar disso, é inescapável fazer uma pergunta para os defensores
deste tipo de argumento. Se esses problemas estruturais herdados do governo
anterior são tão graves e as armadilhas estavam prontas para explodir, o que será
que construiu e desenvolveu estas armadilhas? Nenhum defensor mais ardoroso
do governo Lula contestaria a resposta de que a causa é a estratégia e a política
econômicas implementadas pelos governos anteriores. Ora, mas se elas foram
9 Alguns dos que pensam assim utilizaram esta argumentação para a campanha de reeleição do governo Lula em 2006. O
primeiro governo seria a fase de garantia dessa credibilidade. O segundo, sim, é que seria o das mudanças tão almejadas.
Como o segundo governo Lula tampouco mostrou essa alteração de rumo, pode ser que esse mantra seja repetido novamente
agora, para a campanha da candidata apoiada pelo presidente.
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
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mantidas pelo novo governo, como se espera que os problemas sejam resolvidos
e as armadilhas desmontadas? Mantidas a estratégia e a política, essas armadilhas
só podem ser intensificadas, potencializando seus possíveis efeitos críticos, assim
como elevando o custo de ruptura com essa lógica que foi mantida.
Essas armadilhas estão relacionadas ao processo de abertura externa
(comercial e financeira) que caracteriza o projeto neoliberal. Esse processo
leva, como se viu na América Latina nos anos 90, a uma enorme dependência
dos fluxos de capitais externos para o fechamento das contas do balanço de
pagamentos, dentro de um ambiente em que o sistema financeiro internacional
é instável. A isto se chama fragilidade financeira das contas externas. Por outro
lado, esse processo também promove o aumento da vulnerabilidade externa
dessas economias, no sentido de que reduz a capacidade das mesmas para
resistir/combater os choques externos que ocorram, dentro do contexto de
fragilidade financeira.
A abertura comercial, de um lado, promove dois efeitos. O primeiro,
em associação com uma conjuntural valorização cambial, é a construção de
elevados déficits comerciais, que precisam ser financiados. O segundo, de uma
forma mais estrutural, promoveria uma espécie de processo de substituição de
importações às avessas, isto é, o fato dos produtos importados ficarem mais
baratos que os de produção nacional por um determinado tempo leva à quebra
das empresas nacionais que produziam esses produtos. Quando a economia
retomar, de alguma forma, o crescimento da sua atividade e demandar esses
produtos, não há alternativa a não ser importá-los. Isso ocorreu e vem ocorrendo
na economia brasileira, dentro do setor de produtos intermediários e de bens de
capital. Tanto um efeito como o outro mostram como a abertura comercial leva
ao aumento estrutural da necessidade de financiamento externo, em função do
maior crescimento estrutural das importações.
Por outro lado, a abertura financeira promoveu o crescimento dos
empréstimos diretos (para o setor privado e público) e a entrada de capital
externo. Se, do ponto de vista do curto prazo, isto pode ser positivo, pois
financia as contas negativas das transações correntes, implica a elevação do
passivo externo líquido e, portanto, o crescimento do serviço desse passivo em
momentos posteriores, o que significa também o aumento da necessidade do
financiamento externo para o futuro.
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A restrição externa estrutural para o crescimento é a primeira armadilha que
essa inserção externa passiva produz. A vulnerabilidade externa, representada
no caráter estrutural do crescimento da necessidade de financiamento externo,
coloca a obrigatoriedade de uma taxa de juros interna muito maior do que as
internacionais como forma de garantir o fluxo de capitais que possibilitem
o fechamento das contas. Este piso para a taxa de juros interna é um limite
estrutural para o crescimento da economia.
A segunda armadilha é a armadilha financeira das contas externas e, de
certa forma, já está clara. O crescimento do déficit em transações correntes,
colocado estruturalmente pelo processo de abertura externa, leva ao aumento do
passivo externo em virtude da maior entrada de recursos para financiar aquele
déficit. Entretanto, isso implica o maior pagamento do serviço deste passivo, o
que volta a elevar o déficit da balança de serviços, gerando um círculo vicioso
de endividamento externo.
Por outro lado, as altas taxas de juros, necessárias para o fechamento das
contas externas, implicam o aumento do serviço da dívida pública, que necessita
ser refinanciado. Esse refinanciamento foi – e continua sendo – realizado,
em maiores proporções, via novo endividamento, ou seja, por intermédio de
lançamento de novos papéis de dívida pública. A conclusão é que se produz
uma armadilha fiscal, definida pelo aumento tanto do estoque da dívida pública
como do seu serviço.
A quarta e última armadilha diz respeito ao processo de stop and go
que caracteriza a economia a partir dos anos 90 e que definiu as oscilações
conjunturais da atividade econômica. Se, por alguma eventualidade, esse nível
de atividade crescesse, isso implicaria um aumento da renda que, por sua vez,
levaria à elevação da demanda por importações e, portanto, do déficit das
transações correntes. A necessidade de financiar este déficit com capital externo
obriga o aumento das taxas internas de juros, o que aborta aquele ensaio inicial
de crescimento econômico.
Estas armadilhas, produzidas pela estratégia neoliberal de desenvolvimento,
baseada no processo de abertura externa, explicariam o quadro medíocre
do desempenho da economia brasileira até 2002. É a herança maldita dos
governos anteriores para o governo Lula. Este último, como se viu, opta pela
continuidade. O que se deve esperar? Que estas armadilhas não tenham sido
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
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resolvidas e, pior, tenham aumentado a potencialidade de desestabilização que
possuem. Entretanto, a vulnerabilidade externa Lula parece ter melhorado no
governo. É o que mostra a tabela 1, com os indicadores de vulnerabilidade
externa conjuntural10 para o período entre 1994-2009.
Tabela 1 – Indicadores de vulnerabilidade externa conjuntural (1994-2006)
Ano
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
Serviço da
dívida externa
/ exportações
(%)
38,2
44,5
54,7
72,6
87,4
126,5
88,6
84,9
82,7
72,5
53,7
55,8
41,4
32,4
19,0
28,6
Dívida
externa total
/ PIB (%)
26,3
21,7
22,3
23,7
28,4
42,0
36,0
37,9
41,8
38,8
30,3
19,2
15,9
14,1
12,1
12,6
Dívida
externa total
líquida / PIB
(%)
15,3
12,2
12,1
15,2
20,9
32,5
28,4
29,4
32,7
27,3
20,4
11,5
7,0
- 0,9
- 1,7
- 3,9
Reservas
internacionais
/ dívida total
(%)
27,1
33,9
34,7
27,2
19,9
16,1
15,2
17,1
18,0
22,9
26,3
31,7
49,8
93,3
97,7
120,3
Dívida
externa total /
exportações
3,3
3,3
3,6
3,6
4,4
4,7
3,9
3,6
3,5
2,9
2,1
1,4
1,3
1,2
1,0
1,3
Dívida
externa total
líquida /
exportações
1,9
1,9
2,0
2,3
3,2
3,6
3,1
2,8
2,7
2,1
1,4
0,9
0,5
- 0,1
- 0,1
- 0,4
Fonte: Banco Central do Brasil, Boletim do BC, Suplemento Estatístico (disponível em: www.bcb.gov.br).
Percebe-se em todos esses indicadores a piora significativa da economia
brasileira no período 1994-1999, o que explica todos os resultados pífios obtidos
nesse período. Já para o período entre 1999-2002, o final do governo FHC, parece
haver certa melhora nos indicadores. Todos esses indicadores também mostram
melhora durante o governo Lula, o que, aliás, foi constantemente propagandeado
não só pelos defensores do governo, mas pelos seus representantes.
Além disso, a economia teria voltado a crescer. Em 2004, esse crescimento
atingiu 5,7%, em 2005 cerca de 3% e 3,7% em 2006, acima dos valores médios
obtidos pelo governo anterior. Não bastasse isso, do ponto de vista das contas
externas, os problemas pareciam resolvidos, como observado na tabela 2. Os
déficits em transações correntes são revertidos a partir de 2003, mantendo o
superávit até 2007. Ter-se-ia, assim, resolvido os problemas estruturais da
economia. Ao menos esse era o discurso oficial.
10 A chamada vulnerabilidade externa conjuntural é dada pelas opções de política econômica que se tem para enfrentar os
choques externos e os custos em que uma determinada economia incorre nesse enfrentamento. A vulnerabilidade externa
estrutural, por sua vez, está relacionada justamente aos processos de desregulamentação e liberalização comercial, produtiva,
tecnológica e financeira. Ainda que os indicadores conjunturais reflitam de alguma forma os problemas estruturais, eles
também são afetados, como veremos, por movimentos mais conjunturais, em especial os movimentos positivos ou negativos
do cenário externo.
120
| Os anos Lula - Contribuições para um balanço crítico 2003-2010
Tabela 2 – Transações correntes 1995-2009 (US$ bilhões)
Ano
Balança comercial
Serviços e rendas
Transferências
Saldo
% do PIB
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
-3,5
-5,6
-6,7
-6,6
-1,2
-0,7
2,7
13,1
24,8
33,6
44,7
46,2
40,3
24,8
25,3
-18,5
-20,3
-25,5
-28,3
-25,8
-25,0
-27,5
-23,1
-23,5
-25,2
-34,1
-36,8
-42,5
-57,2
-53,0
3,6
2,4
1,8
1,5
1,7
1,5
1,6
2,4
2,9
3,3
3,6
4,3
4,0
4,2
3,2
-18,4
-23,5
-30,4
-33,4
-25,3
-24,2
-23,2
-7,6
4,2
11,7
14,2
13,7
1,5
-28,2
-24,3
-3,0
-3,8
-4,3
-4,8
-4,0
-4,6
-1,7
0,8
1,9
1,8
1,4
0,1
-1,7
-1,5
Fonte: Banco Central do Brasil, Boletim do BC, Suplemento Estatístico (disponível em: www.bcb.gov.br).
Isso, entretanto, é mera aparência. Em primeiro lugar, a armadilha fiscal
continua presente. A dívida líquida do setor público, que era de R$ 153,2
bilhões em 1994 e, em 2002, ao final do governo de Fernando Henrique
Cardoso, chegou a R$ 881,1 bilhões, atinge R$ 1.067,4 bilhões em 2006 e R$
1.378,1 bilhões em 2009, e a sua parcela interna aumentou sua participação de
37,5% do PIB em 2002 para 47,6% do PIB em 2006, chegando a 59,4% no final
de 2009. Para o primeiro mês de 2010, o próprio Banco Central estima que a
dívida interna do setor público chegou a 60% do PIB.11
A armadilha fiscal permanece. Isto é um fato, mas não em razão dos gastos
públicos primários, que, aliás, sempre foram inferiores às receitas do governo. O
problema da dívida pública permanece justamente pelas razões que conformam
a armadilha fiscal. Altas taxas de juros, combinadas com o lançamento de títulos
da dívida pública pelo governo como forma de contrabalançar a forte entrada
de capital externo, que tende a expandir a oferta monetária interna para além
daquilo programado no regime de metas inflacionárias. Consequentemente,
a dívida pública interna explode durante o governo Lula, chegando a R$
1.897,642 bilhões em janeiro de 2010.
Mas, dizem os defensores do lulismo, pelo menos as outras três armadilhas
estariam resolvidas. O processo de stop and go não ocorreria mais justamente
11 O Governo não se furta a divulgar que a sua dívida externa líquida (total menos o estoque de reservas internacionais)
passou a ser negativa em 2006 (no total de R$ 63,5 bilhões), mas não reconhece que, na verdade, sua dívida total apenas
mudou de composição, passando a possuir um maior peso da parcela interna.
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
| 121
porque a armadilha da restrição externa estrutural ao crescimento foi, supostamente,
desarmada. E esta última foi resolvida tendo em vista a quebra do círculo vicioso
nas contas externas. De fato, como visto, as contas externas melhoraram muito
no período 2002-2006. Por quê? Por alguma medida proativa do novo governo?
Não, pois este fez exatamente o que o anterior fazia. A melhora das contas
externas só ocorreu por uma eventualidade conjuntural dos seguintes fatores:
(i) alta no ciclo de liquidez internacional, o que reduz as taxas internacionais
de juros, proporcionando um crescimento da economia mundial e uma redução
no risco-país,12 que embasa o fluxo de capitais externos; (ii) forte crescimento
da economia chinesa, que importa os produtos justamente que preponderam
na pauta de exportações da economia brasileira; (iii) crescimento do preço das
commodities, predominantes na estrutura exportadora do país. Qual destas razões
se deve a alguma medida do governo brasileiro? Nenhuma. É tudo fruto de um
cenário externo extremamente favorável, que propiciou o forte crescimento das
exportações, a reversão no déficit da balança comercial e de transações correntes
e o acúmulo de reservas internacionais que permitiram, dentre outras coisas, o
pagamento antecipado de um montante da dívida com organismos internacionais.
É isso que explica a redução dos indicadores exibidos na tabela 1. Trata-se de
uma conjuntura externa favorável; nada além disso.
Essa melhora dos indicadores de vulnerabilidade externa é meramente
conjuntural. O que ocorreu com a estrutura e, portanto, com a razão última
dessas armadilhas? Se o governo faz exatamente o que se fazia antes, essa
estrutura não pode ter mudado. Ao contrário, intensificou-se. Três pontos
ilustram isso. O primeiro é o aprofundamento da reestruturação industrial, fruto
do processo de abertura comercial, que jogou a economia brasileira dentro de
uma lógica muito próxima àquela das economias primário-exportadoras, que
caracterizou a nossa região antes dos processos de substituição de importações.
Não há dúvida quanto a isso. A economia brasileira voltou a ser extremamente
dependente das exportações para a sua dinâmica, e essas exportações são,
em sua grande maioria, exportações de produtos primários e/ou baseados em
recursos naturais.
12 A redução do risco-país é apresentada pelo Governo como a maior prova de que este conseguiu a tal credibilidade
dos mercados que tanto perseguiu com o seu compromisso de manutenção das políticas anteriores. O que o Governo,
deliberadamente, omite é que os indicadores de risco-país caíram para todas as economias do mundo, justamente em razão
da alta do ciclo de liquidez internacional, de forma que o Brasil manteve sua posição relativa ante as outras economias. Não
há nenhum mérito do Governo nesse resultado, a não ser a sorte de governar o país em um momento conjuntural de alívio
do cenário externo.
122
| Os anos Lula - Contribuições para um balanço crítico 2003-2010
Tabela 3 - Exportações por categoria de produto (% do total) – anos selecionados
Categoria
Produtos primários
Manufaturas baseadas em recursos naturais
Manufaturas de baixa tecnologia
Manufaturas de média tecnologia
Manufaturas de alta tecnologia
Outras transações
Total
1990
28,09
25,90
14,71
25,67
4,31
1,33
100,00
1995
23,86
29,58
14,37
26,52
3,49
2,18
100,00
2000
23,86
23,74
12,11
25,13
12,45
2,70
100,00
Fonte: Sistema Interactivo Gráfico de Datos de Comércio Internacional (SIGCI) – Cepal (disponível em: www.eclac.org).
A tabela 3 mostra as exportações por categoria de produto para 1990,
1995 e 2000. Percebe-se claramente que em 1995 as exportações brasileiras
tinham como maior componente produtos baseados em recursos naturais e de
média tecnologia. Em função do processo de reestruturação produtiva que leva
à substituição de importações às avessas, vê-se já em 2000 a mudança desse
perfil, com as exportações de produtos primários superando as exportações de
manufaturas baseadas em recursos naturais.
O gráfico 1 mostra esse processo de reprimarização das exportações
brasileiras, fruto da estratégia neoliberal de desenvolvimento, mantida
e aprofundada pelo governo Lula. Em 2004, os produtos primários já
representavam 30,66% do total das nossas exportações, e o segundo colocado
nesse ranking eram as manufaturas de média tecnologia, com 27,36%. O
processo se aprofunda, com os produtos primários passando a 33,45% em 2007
e a 38,26% do total de exportações em 2008.
Gráfico 1: Exportações por categoria de produto (% do total) – 2004/2008
Fonte: Sistema Interactivo Gráfico de Datos de Comércio Internacional (SIGCI) – Cepal (disponível em: www.eclac.org).
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
| 123
Dessa forma, a manutenção do padrão de inserção comercial regressiva no
governo Lula aprofundou o processo de reprimarização das exportações. Não
só a economia brasileira passou a depender cada vez mais das oscilações dos
mercados externos para a demanda da sua produção interna, como o componente
primário das exportações se acentuou. As oscilações de demanda e preço dos
produtos primários – notoriamente mais bruscas – no mercado internacional
contribuem também para a maior vulnerabilidade da economia brasileira.
Um segundo ponto que deve ser destacado nessa aparente melhora dos
indicadores no período 2002-2006 é o fato de que, em que pese a melhora
conjuntural dos mercados externos, um componente estrutural foi acentuando
seu desequilíbrio nesse período. A conta de serviços e renda teve o seu déficit
aumentado em todo momento. Sai de um rombo de US$ 23,1 bilhões em 2002
para US$ 36,8 bilhões em 2006. Por que isso? Justamente porque durante a
fase positiva do cenário externo, além do crescimento da demanda por nossas
exportações, as reservas internacionais cresciam em razão da forte entrada
de recursos externos, muito em consequência da alta no ciclo de liquidez
internacional e das elevadas taxas domésticas de juros. Esses recursos entrantes
acresciam o estoque do passivo externo, que redunda, em períodos posteriores,
em elevação do serviço desse passivo (juros, amortizações, remessa de lucros
e dividendos, pagamento de royalties etc.). Trata-se de uma elevação estrutural
de um desequilíbrio de fluxo em razão de um desequilíbrio de estoque. Em
suma, mais um elemento na elevação da vulnerabilidade externa estrutural da
economia brasileira. E se é estrutural, isso significa que, quando da reversão
do cenário externo amplamente favorável no período 2002-2006, isto é,
quando a balança comercial reverter seus resultados positivos, estes déficits
estruturalmente crescentes da conta serviços e rendas manifestarão novamente
a armadilha das contas financeiras.
Por último, além do cenário externo favorável, é preciso considerar
também que a retomada do crescimento da economia brasileira no período
2002-2006 foi aparente. De fato, do ponto de vista dos números absolutos, as
taxas médias cresceram em relação a períodos anteriores. Mas, o que ocorreu
com o mundo? Cresceu também. No período entre 2003 e 2006, a economia
mundial cresceu em média 4,9%, enquanto a economia brasileira cresceu 3,3%
em média. A conclusão é que o hiato entre o crescimento da economia mundial
e a brasileira se elevou, isto é, a distância entre a economia brasileira e a média
124
| Os anos Lula - Contribuições para um balanço crítico 2003-2010
da economia mundial se elevou, no período, em 1,6%. Houve um retrocesso,
do ponto de vista da economia mundial, e não um avanço. Trata-se, ao contrário
do que pensam os defensores do lulismo, de um período recessivo, e não de
crescimento.13
O período 2002-2006 – e, de alguma maneira, uma parte de 2007 também
– significou, portanto, uma melhora dos indicadores de vulnerabilidade externa
por uma única razão. O cenário externo foi o mais bem visto em décadas na
economia mundial. Em primeiro lugar, a alta no ciclo de liquidez internacional
levou tanto a uma ampliação da entrada de recursos externos em todas suas
formas, como a uma baixa considerável das taxas de juros internacionais, o que
deu margem para a redução dos juros domésticos, ainda que esse movimento
tenha sido muito retardado na economia brasileira. Em segundo lugar, o
crescimento da economia mundial levou a uma elevação da demanda por
nossas exportações, favorecidas também pelo forte crescimento do preço das
commodities, principal produto exportado. Por último, a forte entrada de capital
externo permitiu que essa fase favorável fosse acompanhada de valorização
cambial e, portanto, sem impactos inflacionários maiores para o crescimento
da economia.
O governo Lula foi beneficiado no período 2002-2006 por uma conjuntura
externa extremamente favorável e, dado o grau de dependência da economia
brasileira – aprofundado com a manutenção/ampliação do processo de abertura
externa –, viu seus indicadores conjunturais de vulnerabilidade externa
melhorarem. Mas esse cenário externo se alterou.
Transformação do cenário externo e manifestação da vulnerabilidade
externa estrutural
Apesar da vociferação inicial do governo brasileiro, a crise atingiu
diretamente o desempenho da economia, e não por acaso. Como visto, o
governo Lula não modificou substancialmente nada do que se fazia em termos
de estratégia de desenvolvimento e política econômica do governo anterior. As
13 A “sabedoria” econômica tradicional costuma associar recessão a taxas de crescimento negativas, desconhecendo
completamente que os movimentos cíclicos de uma economia ocorrem em torno de uma tendência de crescimento. Assim,
qualquer resultado positivo na taxa de crescimento do PIB é tido como algo benéfico, não importando a trajetória que esta
taxa vinha apresentando no passado – de forma que mesmo uma taxa positiva de crescimento pode significar recessão, se esta
taxa for menor do que as anteriormente apresentadas –, nem muito menos o que ocorre com a média da economia mundial.
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
| 125
reformas estruturais de liberalização, abertura e desregulamentação não foram
revertidas. Ao contrário, em alguns casos, foram aprofundadas, mantendo a
estratégia neoliberal de desenvolvimento, em específico o alto grau de abertura
externa da economia, o que majora a dependência e vulnerabilidade externa
estrutural da economia.
Relacionado a isso, a instrumentalização da política econômica tampouco
se alterou em sua essência. A política fiscal continuou tendo como objetivo
a obtenção de elevadíssimos superávits primários. A política monetária
continuou com a sua meta inflacionária e operação conservadora. Quanto à
taxa de câmbio, ainda que não estejamos mais em um sistema de bandas
cambiais, o Banco Central atua de forma a não deixar a taxa de câmbio superar
um determinado patamar-teto e nem descer abaixo de um nível-piso. Ou seja,
ainda que não preanunciada, a atuação do Banco Central continua referendada
em bandas que, pelo seu próprio comportamento, são de conhecimento do
mercado.
Se nem a estratégia de desenvolvimento, nem a política econômica
do governo Lula são distintas do período anterior, a reversão do cenário
externo – até então favorável ao desempenho da economia sob tutela do
novo governo – voltou a demonstrar a vulnerabilidade externa estrutural
da economia, fruto da manutenção e do aprofundamento da estratégia. Ou
seja, em resumo, o período 2002-2006 representou um cenário externo
extremamente favorável justamente a partir do momento em que assumia
o novo governo; e isso tudo sem que ele tenha feito nada para isso. Não há
outra palavra para descrever o acontecimento que não sorte. A crise que se
abateu sobre a economia mundial a partir de 2007/2008 veio justamente
modificar essa maré de sorte.
A reversão do cenário internacional significou a volta dos problemas
no balanço de pagamentos basicamente por duas razões: desaceleração do
crescimento das exportações, em função da recessão mundial, que diminui a
demanda por nossos produtos; e redução dos preços das commodities, tanto
pela recessão mundial como, principalmente, pela desvalorização do capital
fictício aplicado na especulação dentro do mercado futuro de commodities.
Isso significa que a vulnerabilidade externa estrutural tende a se manifestar
novamente na piora das contas externas.
126
| Os anos Lula - Contribuições para um balanço crítico 2003-2010
Já em 2007 os resultados positivos na balança comercial começam a
ser revertidos, com a redução do superávit de US$ 46,2 bilhões, em 2006,
para US$ 40,3 bilhões no ano seguinte, como mostra a tabela 2. Esse
resultado na balança comercial já é insuficiente para fazer frente ao déficit
em serviços e rendas, que em 2007 atingiu US$ 42,5 bilhões. O saldo em
transações correntes só foi ligeiramente positivo nesse ano por conta das
transferências. Mas já em 2008 a redução ainda maior do saldo na balança
comercial (US$ 25,3 bilhões), somado a um déficit de US$ 57,2 bilhões em
serviços e rendas, insuficientemente coberto pelas transferências (US$ 4,2
bilhões), leva a um déficit em transações correntes que chega a 1,7% do PIB.
A necessidade estrutural de financiamento externo para o fechamento do
balanço de pagamentos volta a se manifestar. Ao contrário do que se pode
imaginar, a responsabilidade do problema não pode ser atribuída à ocorrência
de choques exógenos, como se nada pudesse ser feito a respeito; e isso por
maior que tenham sido as consequências da crise econômica mundial a partir
de 2007/2008.
Como visto, os problemas estruturais e as armadilhas produzidas/
aceleradas pelo aprofundamento da inserção externa passiva da economia
brasileira construíram uma situação que eleva a fragilidade das contas
externas e, portanto, da vulnerabilidade da economia a esses choques. Quanto
maior a dependência da economia diante das oscilações da conjuntura
internacional, maiores serão os impactos internos das reversões cíclicas na
economia mundial.
O impacto da crise mundial nas contas externas é ainda agravado pela
dinâmica de atração de investimentos externos de curto prazo e de natureza
especulativa, que se fazem necessários para o fechamento do balanço de
pagamentos. Ainda que as taxas de juros internacionais estivessem em queda –
uma tentativa dos governos centrais de minorar os impactos da crise no mundo
– nesse ambiente de aprofundamento da incerteza, desenvolveu-se uma maior
aversão ao risco, fazendo com que os capitais exijam um maior diferencial
de juros para aplicar nas economias periféricas. O que ocorreu na economia
brasileira no novo cenário de crise na economia mundial é que as taxas de
juros domésticas caem, mas em menor proporção em relação à queda nos países
centrais.
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
| 127
Gráfico 2 – Spread entre a taxa de juros Selic e os fed funds
(pontos percentuais ao ano) – dez/07 a out/09
Fonte: Banco Central do Brasil (disponível em: www.bcb.gov.br).
O que o gráfico 2 mostra é a diferença entre a taxa de juros doméstica,
representada pela Selic, e a taxa de juros internacional, representada pela taxa
dos federal funds. Os primeiros sinais da crise mundial aparecem ainda em
2006, no mercado subprime americano, mas é só a partir de 2007/2008 que
ela expande os seus efeitos para o restante da economia. As taxas de juros
americanas começam a cair no início de 2008, enquanto o Banco Central
brasileiro mantém sua postura conservadora, elevando as taxas domésticas
até o final de 2008. Só a partir de 2009 os juros internos começam a cair. Isso
explica o forte movimento de elevação do spread entre os juros domésticos
e os externos, no gráfico 2, até o início de 2009. Depois disso, essa diferença
começa a cair em razão dos juros externos atingirem um piso na baixa,
chegando a patamares inferiores a 0,5% ao ano em todo o período desde
setembro de 2008. O atraso do Banco Central brasileiro em acompanhar os
movimentos internacionais de redução nos juros como forma de aliviar os
efeitos da crise só fez elevar a margem que incentiva uma maior entrada de
capital externo de curto prazo.
128
| Os anos Lula - Contribuições para um balanço crítico 2003-2010
Gráfico 3 – Taxa de câmbio real (R$/US$) – dez./07 a out./09
Fonte: Banco Central do Brasil (disponível em: www.bcb.gov.br).
Uma das consequências disso pode ser vista no gráfico 3, que mostra a
evolução da taxa de câmbio real para o período entre dezembro de 2007 e
outubro de 2009. O que se vê, justamente, é um movimento de valorização
cambial só interrompido no final de 2008, justamente o momento mais agudo
da crise mundial, quando tivemos uma forte reversão dos fluxos de capitais.
Depois disso, a partir de março de 2009, a tendência à valorização cambial volta
a se manifestar, justamente pela elevada diferença entre os juros domésticos e
os externos, que, apesar de se reduzir em 2009, chega a outubro desse ano em
patamares similares ao momento pré-crise, quando a valorização do câmbio já
se fazia presente.
Assim, depois da crise mundial, os juros internos caíram mais lentamente
que os juros internacionais, elevando o spread de valorização para os ativos
domésticos, incentivando a maior entrada de capital e levando à nova
valorização do câmbio, o que aprofunda os problemas estruturais nas contas
externas. Isto por um lado. Por outro, percebe-se que a forte entrada dos
capitais de curto prazo – necessários para o financiamento das contas externas
novamente deficitárias – recoloca a dinâmica de instabilidade e crise cambial.
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
| 129
Alguns analistas já chegam até a falar em bolha financeira sendo formada na
economia brasileira. Isto significa que enquanto as expectativas de valorização
cambial se mantiverem – e forem sancionadas – o fluxo de capital externo
permanece, o que realimenta a valorização cambial. Qualquer novo refluxo no
ciclo de liquidez internacional e assistiremos a uma nova crise cambial, o que,
mais uma vez, demonstra a elevação da vulnerabilidade da economia brasileira
no período.
O que o início de 2010, ano eleitoral, nos mostra só confirma essa tendência.
Em fevereiro o balanço de pagamentos registrou um superávit de US$ 741
milhões, e as transações correntes foram deficitárias em US$ 3,3 bilhões
(acumulando um déficit de US$ 28,1 bilhões em 12 meses), o equivalente a
1,66% do PIB. Esse resultado para as transações correntes é o pior para um
mês de fevereiro desde 1947. O problema estrutural é agravado pela piora no
déficit de serviços nesse mês (US$ 2,1 bilhões), 131,6% superior ao mesmo
mês de 2009, e pela remessa líquida de rendas em US$ 1,8 bilhão. O superávit
no balanço de pagamentos de fevereiro só foi possível pela entrada líquida na
conta financeira de US$ 4 bilhões. A dívida externa total estimada nesse mês
de fevereiro de 2010 atingiu US$ 203 bilhões, US$ 4,8 bilhões a mais do que o
contabilizado no final de 2009.
Para o mês de março, os dados divulgados no início de abril mostram que
a taxa de crescimento das importações supera a das exportações. A primeira
chegou a 50%, comparando o mesmo mês do ano passado, e o volume total de
importações chegou a US$ 15,059 bilhões. As exportações atingiram em março
US$ 15,727 bilhões, um valor 33% superior ao mesmo mês de um ano atrás. O
saldo comercial de US$ 668 milhões representa uma queda de 62% em relação
ao ano passado, confirmando que o recrudescimento do cenário externo repõe
os problemas estruturais nas contas externas da economia brasileira.
A previsão do próprio Banco Central, em 22/03/2010, para o ano de 2010
é de que o déficit em transações correntes atinja US$ 49 bilhões. A previsão de
ingresso de investimento direto estrangeiro é de US$ 45 bilhões, valor inferior
ao saldo que tem que ser coberto nas transações correntes. Isso significa que o
fechamento das contas externas em 2010 dependerá, novamente, do ingresso
de capitais de curto prazo, extremamente voláteis e suscetíveis às oscilações da
conjuntura internacional. Isso significa uma maior vulnerabilidade externa do
130
| Os anos Lula - Contribuições para um balanço crítico 2003-2010
país frente a essas oscilações. Esse resultado se deve basicamente à elevação
estrutural do déficit em serviços e rendas e ao aumento das importações.
A conclusão é que os problemas estruturais e as armadilhas do processo
de abertura e liberalização externa da economia brasileira se mantêm durante
o governo Lula. A fase de aparente melhoria entre 2002 e 2007 não se deveu
a uma mudança/ruptura desse governo ante as estratégias do período anterior.
Ao contrário, este governo não só manteve, como aprofundou a estratégia
neoliberal de desenvolvimento no que tange à sua inserção externa. Nada mais
natural que a vulnerabilidade externa estrutural volte a se manifestar justamente
no momento em que o cenário externo amplamente favorável se desfez.
INSERÇÃO EXTERNA E VULNERABILIDADE DA ECONOMIA BRASILEIRA NO GOVERNO LULA
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