inserção externa e vulnerabilidade da economia brasileira

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Inserção externa e vulnerabilidade da Economia brasileira no governo Lula
Marcelo Dias Carcanholo1
Ideas Centrales de la Ponencia: Neoliberalismo; alternativas; governo Lula; vulnerabilidade econômica; inserção externa.
Resumo: Este trabalho pretende argumentar que o governo Lula não é uma alternativa real frente às experiências neoliberais que o precederam.
Em termos mais gerais, procura-se demonstrar que o neoliberalismo, mais do que um mero receituário de política econômica, é uma concepção
específica de desenvolvimento. Segundo ela, a estabilização macroeconômica seria uma pré-condição para a retomada do desenvolvimento na
América Latina, independentemente do caráter das políticas econômicas que garantissem essa estabilização. Além disso, as chamadas reformas
estruturais pró-mercado garantiriam o desenvolvimento. O governo Lula não só não rompeu com essas premissas da estratégia neoliberal de
desenvolvimento como as aprofundou, tanto no discurso e manutenção da estabilidade a qualquer custo, quanto na intensificação das reformas.
Especificamente, do ponto de vista da abertura externa, pretende-se também argumentar que essa intensificação elevou a vulnerabilidade externa
estrutural da economia.
1
Professor Adjunto da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense
1- A herança maldita dos anos 90 e a campanha presidencial de 2002
Sabe-se que a estratégia neoliberal propugna, como metas de uma administração econômica dita responsável, dois objetivos. O primeiro é
a estabilização macroeconômica da inflação e das contas públicas, enquanto o segundo é a obtenção de um ambiente econômico pró-mercado,
que incentive a maior concorrência entre os capitais e a livre iniciativa para a retomada dos investimentos e do crescimento econômico. O
Consenso de Washington nada mais foi do que um receituário de políticas que procuravam atingir esses objetivos. Em relação ao primeiro, não
importa muito se a política de estabilização implementada tivesse um cunho mais ortodoxo ou heterodoxo2. Quanto ao segundo, a construção de
uma economia de mercado, baseada na livre iniciativa, seria garantida pelas reformas estruturais, isto é, pela desregulamentação e abertura dos
mercados.
Esta estratégia neoliberal, no Brasil, começa a ser implementada de forma mais sustentada após a eleição de Fernando Collor (19901992), mas perpassa toda a década, durante os governos de Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002)3.
Do ponto de vista da estabilização, a estratégia neoliberal pareceu ser exitosa no país. As taxas anuais de inflação, que alcançaram quatro
dígitos em 1994, passaram a apresentar dois dígitos já no ano seguinte, e apenas um em 1996 4. As contas públicas, ainda que apenas no conceito
primário, que não inclui o pagamento do serviço da dívida pública, também melhoraram5.
Pareceria que a experiência neoliberal no Brasil dos anos 90 fora um sucesso. Entretanto, se olharmos os resultados macroeconômicos
mais gerais, a conclusão é oposta. A taxa média de crescimento da economia durante os anos 90 foi de 1,78%, inferior aos 2,2% dos anos 80. A
taxa de investimento como proporção do PIB foi de 15,9% na última década, contra 17,7% na anterior. As taxas de desemprego subiram
sistematicamente ao longo do período, saindo de 3,3% em 1989 para 7,6% em 1999, segundo as estimativas menos rigorosas. Em janeiro de
1999 ocorre a crise cambial que dá fim ao regime de câmbio quase-fixo, operante desde 1994.
2
Durante os anos 90, foi muito comum, principalmente na América Latina, a adoção de regimes de câmbio (quase) fixos, dentro de políticas de estabilização com âncora
cambial.
3
Uma boa análise da implementação da estratégia neoliberal de desenvolvimento no Brasil, desde seus condicionantes político-ideológicos até a fundamentação teórica da
mesma e as sucessivas conjunturas pode ser encontrada em Filgueiras (2000). Carneiro (2002) também é uma boa referência para o assunto, mas seu tratamento é menos
abrangente, não deixando clara, por exemplo, a relação do Plano Real e a sua inserção em uma estratégia neoliberal de desenvolvimento.
4
O IGP-DI (índice geral de preços, segundo a disponibilidade interna) mostrou uma inflação de 2406,8% em 1994, 67,5% em 1995 e 9,34% em 1996. Em 1998 esse índice
mostrou uma inflação anual de apenas 1,7%.
5
Excetuando os anos de 1996 e 1997, o período 1990-2000 se caracterizou pela obtenção de superávits primários substanciais.
Em termos distributivos o resultado tampouco foi muito animador. A distribuição da renda piorou basicamente por três razões: (i) a
desestruturação do mercado de trabalho levou a uma mudança na estrutura ocupacional; (ii) piora da distribuição funcional da renda6; e, (iii)
concentração da riqueza, isto é, da propriedade dos ativos da economia7. Quais as razões desse pífio resultado?
A implementação da estratégia neoliberal implicou, além de uma política de estabilização restritiva, a promoção de reformas estruturais
pró-mercado que, dentre outras coisas, incluíam um intenso processo de abertura externa, tanto do ponto de vista comercial quanto do ponto de
vista financeiro. A abertura financeira significou o aumento da facilidade com que os residentes do país podiam adquirir ativos e passivos
expressos em moeda estrangeira e os não-residentes podiam operar nos mercados financeiros domésticos. Do ponto de vista das contas externas,
esse processo de abertura implicou uma elevação estrutural da necessidade de financiamento externo, aumentando a dependência dos fluxos
externos para o fechamento do balanço de pagamentos, e da vulnerabilidade externa da economia.
Ao longo dos anos 90, a dívida externa brasileira cresceu 108%, o passivo externo líquido8 195,7%, o serviço da dívida externa 160%, o
serviço do passivo externo 132%, o estoque da dívida pública9, entre 1994 e 1998, subiu 572%, e os juros pagos por essa dívida, no mesmo
período, 415%.
O crescimento dos passivos externos chegou a um ponto tal que o fluxo de capitais não continuou financiando a rolagem dessas dívidas, o
que levou à crise cambial de 1999.
Após esse colapso, a política cambial é alterada, sendo regida por um regime flutuante com a atuação do Banco Central para estabilizar as
flutuações da cotação, e a política monetária passa a seguir um regime de metas inflacionárias. Essas diretrizes de política econômica, aliadas a
uma política fiscal de obtenção de superávits primários, basicamente para pagar o serviço da dívida pública, são a característica da política
econômica brasileira desde então.
Os defensores da estratégia neoliberal passaram a defender essa “correção de instrumentos”, mantendo a estratégia de abertura e
desregulamentação dos mercados, como a solução para os problemas do país. Entretanto, a dívida líquida do setor público continuou crescendo
(chegando a US$ 624 bilhões em 2001), o passivo externo líquido manteve sua trajetória (o seu serviço atingiu US$ 43,7 bilhões em 2000), e a
balança comercial só obteve resultados positivos em 2001, um pouco por conta dos efeitos da desvalorização do câmbio pós-crise, mas muito
mais em razão do crescimento da economia mundial que elevou a demanda pelas commodities exportadas pelo país.
6
Em 1994, 32% do PIB era composto pela massa de salários. No final da década, em 1999, essa proporção era de apenas 26,5%.
Em 1989 os 1% mais ricos da população possuíam 53,07% da riqueza brasileira, o que cresceu para 56,45% em 1999 (Carcanholo, 2005, cap. III).
8
O passivo externo líquido se define pelo estoque da dívida externa bruta adicionado do estoque do investimento externo no país (direto e de portfolio) e descontado dos
ativos externos que o país possui.
7
Assim, a mudança do regime cambial e monetário, após a crise de 1999, não modificou a característica estrutural da economia brasileira.
A piora da situação social, como decorrência desse quadro, e a crescente insatisfação popular deram o tom da campanha para as eleições
presidenciais de 2002. O discurso das principais candidaturas postulantes dava ênfase à promoção do capital nacional produtivo, recuperando as
taxas de crescimento da economia e os níveis de emprego, em detrimento da acumulação financeira que vinha sendo a característica do país. O
curioso é que esse discurso era enfatizado tanto pelo principal candidato oposicionista como pelo candidato da situação.
A vitória do candidato Lula parecia trazer consigo as esperanças, não apenas no Brasil, mas no restante da América Latina, de que a
hegemonia neoliberal começasse a declinar. O novo governo assume no início de 2003 tendo que equacionar duas coisas: a chamada herança
maldita do governo anterior, definida pelas armadilhas construídas pelo processo de abertura e desregulamentação da economia, e que
produziram os resultados pífios dos anos 90 e início do século XXI, e a expectativa popular de mudança na estratégia de desenvolvimento.
2- O “novo” governo Lula: mais do mesmo
Muito se fala hoje sobre a suposta traição do governo Lula que, depois de eleito, não teria cumprido com as esperanças de rompimento
com a estratégia neoliberal, e teria se resignado frente ao pensamento único. Entretanto, a economia política do governo Lula podia ser antevista
já durante a campanha eleitoral10. Em meados de 2002, durante a campanha presidencial, a candidatura de Lula lança a Carta ao Povo Brasileiro
(Silva, 2002), na qual se compromete a manter todos os contratos estabelecidos na economia, e sinalizando para a manutenção da política
econômica nos mesmos moldes. Em agosto de 2002, o ainda governo de Fernando Henrique Cardoso assina um acordo com o FMI, dando
garantias de manutenção da política econômica. Esse acordo teve uma revisão em março de 2003, já no governo Lula, mantendo as garantias.
Eleito o governo Lula, rompe-se com a estratégia neoliberal de desenvolvimento, indo na direção contrária da sinalização dada durante a
campanha? Pelo contrário, ele cumpre o que prometeu. Mantem-se o discurso – e a prática – da estabilidade macroeconômica como pré-condição
9
A relação do estoque da dívida pública com o setor externo se dá pelo fato de que as taxas de juros, que determinam o crescimento desse estoque, possuem um piso para o
seu valor em função da necessidade de atração de capitais externos para o fechamento do balanço de pagamentos. Por outro lado, a obrigação de esterilização dos capitais
entrantes, dada a política de estabilização com âncora cambial, levava diretamente a uma elevação do estoque da dívida pública. Nesse sentido, este último também compõe
um indicador da vulnerabilidade externa da economia.
10
Uma boa apresentação crítica das possibilidades e limites da política econômica e da estratégia de desenvolvimento no início do governo Lula pode ser encontrada na
coletânea organizada por Paula (2003). Em Paula (2005) essa análise já incorpora as primeiras sinalizações concretas de manutenção da estratégia neoliberal de
desenvolvimento no governo Lula.
para qualquer política de mais longo prazo. As reformas estruturais pró-mercado, incluindo a liberalização comercial, financeira e produtiva, não
apenas são mantidas como aprofundadas em seu governo11.
Com isso, são mantidos os dois pilares da estratégia neoliberal do Consenso de Washington, isto é, a estabilização macroeconômica como
pré-condição e as reformas pró-mercado para a retomada dos investimentos privados. Mesmo assim, mantida a estratégia conservadora de
desenvolvimento, existiria a possibilidade de que fosse alterada a instrumentalização da política econômica ortodoxa. Nesse campo, o que faz o
governo? Nada. Ou melhor, assim como na estratégia de desenvolvimento, o mesmo que antes.
Portanto, em termos de instrumentalização da política econômica, o governo Lula defendeu a manutenção dos superávits primários,
explicitamente pelo controle dos gastos públicos e, de alguma maneira, na expansão da arrecadação como forma de manter sustentável a relação
da dívida pública frente ao PIB. Do ponto de vista da política monetária, foi mantido o regime de metas inflacionárias 12. Do ponto de vista da
política cambial, também mantem-se o regime herdado do governo anterior. A determinação da taxa de câmbio segue um esquema de flutuação
suja, ou seja, o mercado cambial determina o valor da moeda nacional, em relação à moeda conversível, e o Banco Central atua no mercado, ora
comprando, ora vendendo, de forma a tentar manter essa flutuação da taxa de câmbio segundo os parâmetros que lhe parecem conveniente.
Algumas interpretações oficialistas reconhecem essa manutenção da estratégia neoliberal de desenvolvimento e das políticas fiscal,
monetária e cambial, mas sustentam que a política comercial foi modificada. De fato, a balança comercial volta a ser superavitária a partir de
2001, depois de sete anos deficitária. Entretanto, isso não se deve a uma mudança na política comercial do governo que, aliás, manteve o elevado
grau de abertura comercial herdado dos anos 90.
Em primeiro lugar, note-se que essa reversão na balança comercial começa a ocorrer ainda no governo FHC e, portanto, não seria um
“mérito” exclusivo do governo Lula. Em segundo lugar, a reversão dos saldos deficitários na balança comercial se deve a outros fatores: (i)
conseqüência defasada da desvalorização da taxa de câmbio, que vem desde a crise cambial de 1999; (ii) nova desvalorização do câmbio em
função de incertezas durante a campanha eleitoral de 2002; (iii) volta do crescimento da economia mundial que permite a expansão do volume
das exportações, assim como uma alta substancial do preço das commodities, principal conjunto de produtos de exportação do país; e (iv)
momento de alta no ciclo de liquidez internacional, o que propicia uma baixa nas taxas de juros internacionais e, portanto, de elevação na
demanda das nossas exportações.
11
A melhor caracterização da economia política do governo Lula se encontra em Filgueiras e Gonçalves (2007).
Aliás, a perspectiva teórica da análise ortodoxa que fundamenta a política econômica do governo Lula é a do novo-classicismo, segundo o qual a demanda agregada não
interfere na determinação da atividade econômica, que é definida única e exclusivamente pela oferta agregada. O que a demanda faz, segundo esta teoria, no máximo, é
definir o nível geral de preços. Daí que a única função do Banco Central, de preferência independente, seja o controle de preços (Barbosa, 1992).
12
Antes de ser conseqüência de uma política comercial mais ativa, o resultado da balança comercial reflete muito mais a sorte que o
governo Lula experimentou de um ambiente externo favorável. Isto é, antes de mostrar uma ruptura com a estratégia neoliberal do governo
anterior, a obtenção de saldos positivos na balança comercial, a partir de determinado momento, reflete, como veremos, justamente o grau de
dependência da economia brasileira frente aos movimentos dos mercados internacionais, fruto da inserção internacional passiva das duas últimas
décadas.
3 – Razões apontadas para a política de “mais do mesmo” e os problemas estruturais
Por que o governo Lula não rompeu nem com a estratégia neoliberal de desenvolvimento, e nem com a política econômica ortodoxa? As
respostas dadas a essa pergunta por parte dos defensores do governo possuem diferentes matizes.
Os mais fundamentalistas aceitam o argumento de que nada foi modificado no novo governo simplesmente porque não poderia ser. Não
há uma outra estratégia alternativa de desenvolvimento, nem tampouco outra forma de macroeconomia. Só existe uma política econômica
correta. Trata-se da aceitação mais conservadora possível do lema thatcheriano do TINA (there is no alternative). Segundo este raciocínio, os
únicos ajustes possíveis estão no campo da microeconomia, no sentido de fornecer regras mais claras e um ambiente propício para a retomada
dos investimentos privados.
Existem, entretanto, aqueles mais pragmáticos. Estes asseguram que a manutenção da política é apenas uma estratégia para assegurar a
credibilidade dos mercados e, uma vez assegurada esta, poder-se-ia implementar as mudanças requeridas por um projeto mais alternativo13. O que
este argumento desconsidera é que não existe uma garantia de credibilidade. O compromisso com a credibilidade é um moto perpetuo, já que, no
primeiro momento em que essa relação de compromisso for quebrada, a credibilidade é rompida, sendo exigida novamente a manutenção da
política demandada pelo tal mercado. Embora mais pragmático, esse tipo de argumento acaba caindo também, por uma imposição da lógica
compromisso-credibilidade, na presumida inexistência de alternativas14.
Um outro tipo de argumento é aquele que defende a importância da herança maldita, isto é, dos problemas econômicos graves que foram
herdados pelo governo Lula. Trata-se, em nossa opinião, do argumento mais sério, ainda que também equivocado. De fato, o governo anterior
13
Alguns dos que pensam assim utilizaram esta argumentação para a campanha de reeleição do governo Lula em 2006. O primeiro governo seria a fase de garantia dessa
credibilidade. O segundo sim é que seria o das mudanças tão almejadas. Como o segundo governo Lula tampouco mostrou essa alteração de rumo, pode ser que esse mantra
seja repetido novamente, agora para a campanha da candidata apoiada pelo presidente.
14
Para uma boa reflexão sobre a identidade neoliberal do governo Lula e seu caráter subserviente aos mercados (financeiros) ver Paulani (2008).
deixou armadilhas econômicas e problemas estruturais gravíssimos. O argumento aqui é de que não haveria como mudar a política econômica
por conta dessa herança deixada pelo governo anterior. As armadilhas ainda estariam armadas e com seus efeitos potencializados. Que
armadilhas são essas, quais os seus efeitos e possíveis alternativas?
Antes de tratar disso, é inescapável fazer uma pergunta para os defensores deste tipo de argumento. Se esses problemas estruturais
herdados do governo anterior são tão graves e as armadilhas estavam prontas para explodir, o que será que construiu e desenvolveu estas
armadilhas? Nenhum defensor mais ardoroso do governo Lula contestaria a resposta de que a causa é a estratégia e a política econômicas
implementadas pelos governos anteriores. Ora, mas se elas foram mantidas pelo novo governo, como se espera que os problemas sejam
resolvidos e as armadilhas desmontadas? Mantidas a estratégia e a política, essas armadilhas só podem ser intensificadas, potencializando seus
possíveis efeitos críticos, assim como elevando o custo de ruptura com essa lógica que foi mantida.
Essas armadilhas estão relacionadas ao processo de abertura externa que caracteriza o projeto neoliberal. Esse processo leva a uma
enorme dependência dos fluxos de capitais externos para o fechamento das contas do balanço de pagamentos, dentro de um ambiente em que o
sistema financeiro internacional é instável. A isto se chama fragilidade financeira das contas externas. Por outro lado, esse processo também
promove o aumento da vulnerabilidade externa dessas economias, no sentido de que reduz a capacidade das mesmas para resistir/combater os
choques externos que ocorram, dentro do contexto de fragilidade financeira.
A abertura comercial, de um lado, promove dois efeitos. O primeiro, em associação com uma conjuntural valorização cambial, é a
construção de elevados déficits comerciais que precisam ser financiados. O segundo, de uma forma mais estrutural, promoveria uma espécie de
processo de substituição de importações às avessas, isto é, o fato dos produtos importados ficarem mais baratos que os de produção nacional por
um determinado tempo leva à quebra das empresas nacionais que produziam esses produtos. Quando a economia retomar, de alguma forma, o
crescimento de sua atividade e demandar esses produtos, não há alternativa a não ser importa-los. Isso ocorreu e vem ocorrendo, na economia
brasileira, dentro do setor de produtos intermediários e de bens de capital. Tanto um efeito, como o outro, mostram como a abertura comercial
leva ao aumento estrutural da necessidade de financiamento externo, em função do maior crescimento estrutural das importações.
Por outro lado, a abertura financeira promoveu o crescimento dos empréstimos diretos e entrada de capital externo. Se, do ponto de vista
do curto prazo, isto pode ser positivo, pois financia as contas negativas das transações correntes, implica na elevação do passivo externo líquido
e, portanto, no crescimento do serviço desse passivo, em momentos posteriores, o que significa também o aumento da necessidade do
financiamento externo para o futuro. A restrição externa estrutural para o crescimento é a primeira armadilha que essa inserção externa passiva
produz. A vulnerabilidade externa coloca a obrigatoriedade de uma taxa de juros interna muito maior do que as internacionais, como forma de
garantir o fluxo de capitais que possibilitem o fechamento das contas. Este piso para a taxa de juros interna é um limite estrutural para o
crescimento da economia.
A segunda armadilha é a armadilha financeira das contas externas. O crescimento do déficit em transações correntes, colocado
estruturalmente pelo processo de abertura externa, leva ao aumento do passivo externo, em virtude da maior entrada de recursos para financiar
aquele déficit. Entretanto, isso implica no maior pagamento do serviço deste passivo, o que volta a elevar o déficit da balança de serviços,
gerando um círculo vicioso de endividamento externo.
Por outro lado, as altas taxas de juros, necessárias para o fechamento das contas externas, implicam o aumento do serviço da dívida
pública, que necessita ser refinanciado. Esse refinanciamento foi – e continua sendo - realizado, em maiores proporções, via novo endividamento,
ou seja, por intermédio de lançamento de novos papéis de dívida pública. A conclusão é que se produz uma armadilha fiscal, definida pelo
aumento tanto do estoque da dívida pública como de seu serviço (Oliveira, 2009: 311-323)15.
A quarta armadilha diz respeito ao processo de stop and go que caracteriza a economia a partir dos anos 90, e definiu as oscilações
conjunturais da atividade econômica. Se, por alguma eventualidade, esse nível de atividade crescesse, isso implicaria em aumento da renda que,
por sua vez, levava à elevação da demanda por importações e, portanto, do déficit das transações correntes. A necessidade de financiar este
déficit com capital externo obriga o aumento das taxas internas de juros, o que aborta aquele ensaio inicial de crescimento econômico.
Estas armadilhas explicariam o quadro medíocre do desempenho da economia brasileira até 2002. É a herança maldita dos governos
anteriores. O governo Lula opta pela continuidade. O que se deve esperar? Que estas armadilhas não tenham sido resolvidas e, pior, tenham
aumentado a potencialidade de desestabilização que possuem. Entretanto, a vulnerabilidade externa, no governo Lula, parece ter melhorado. É o
que mostra a tabela 1, com os indicadores de vulnerabilidade externa conjuntural16 para o período entre 1994-2009.
Ano
15
Serviço da
dívida
Tabela 1: Indicadores de Vulnerabilidade Externa Conjuntural (1994-2006)
Dívida
Dívida
Reservas
Dívida
Dívida
externa total externa internacionais /
externa
externa
Diferentes perspectivas para a questão fiscal durante o governo Lula podem ser encontradas também em Sicsú (2007).
A chamada vulnerabilidade externa conjuntural é dada pelas opções de política econômica que se tem para enfrentar os choques externos e os custos que uma determinada
economia incorre nesse enfrentamento. A vulnerabilidade externa estrutural, por sua vez, está relacionada justamente aos processos de desregulamentação e liberalização
comercial, produtiva, tecnológica e financeira. Ainda que os indicadores conjunturais reflitam de alguma forma os problemas estruturais, eles também são afetados, como
veremos, por movimentos mais conjunturais, em especial os movimentos positivos ou negativos do cenário externo (Filgueiras e Gonçalves, 2007).
16
externa /
/ PIB (%)
total
dívida total (%)
total /
total líquida
exportações
líquida /
exportações
/
(%)
PIB (%)
exportações
1994
38,2
26,3
15,3
27,1
3,3
1,9
1995
44,5
21,7
12,2
33,9
3,3
1,9
1996
54,7
22,3
12,1
34,7
3,6
2,0
1997
72,6
23,7
15,2
27,2
3,6
2,3
1998
87,4
28,4
20,9
19,9
4,4
3,2
1999
126,5
42,0
32,5
16,1
4,7
3,6
2000
88,6
36,0
28,4
15,2
3,9
3,1
2001
84,9
37,9
29,4
17,1
3,6
2,8
2002
82,7
41,8
32,7
18,0
3,5
2,7
2003
72,5
38,8
27,3
22,9
2,9
2,1
2004
53,7
30,3
20,4
26,3
2,1
1,4
2005
55,8
19,2
11,5
31,7
1,4
0,9
2006
41,4
15,9
7,0
49,8
1,3
0,5
2007
32,4
14,1
- 0,9
93,3
1,2
- 0,1
2008
19,0
12,1
- 1,7
97,7
1,0
- 0,1
2009
28,6
12,6
- 3,9
120,3
1,3
- 0,4
Fonte: Banco Central do Brasil, Boletim do BC, Suplemento Estatístico (www.bcb.gov.br).
Percebe-se em todos esses indicadores a piora significativa da economia brasileira no período 1994-1999. Já para o período entre 19992002, o final do governo FHC, parece haver certa melhora nos indicadores. Todos esses indicadores também mostram melhora durante o
governo Lula, o que, aliás, foi constantemente propagandeado não só pelos defensores do governo, mas por representantes do mesmo.
Além disso, a economia teria voltado a crescer. Em 2004, esse crescimento atingiu 5,7%, em 2005 cerca de 3% e 3,7% em 2006, acima
dos valores médios obtidos pelo governo anterior. Não bastasse isso, do ponto de vista das contas externas, os problemas pareciam resolvidos,
como observado na tabela 2. Os déficits em transações correntes são revertidos a partir de 2003, mantendo o superávit até 2007. Ter-se-ia, assim,
resolvido os problemas estruturais da economia. Ao menos esse era o discurso oficial.
Tabela 2: Transações Correntes 1995-2009 (US$ bilhões)
Balança Comercial
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
Serviços e Rendas Tra Saldo
nsfe
rênc
ias
24,8
33,6
44,7
46,2
40,3
24,8
25,3
-23,5
-25,2
-34,1
-36,8
-42,5
-57,2
-53,0
2,9
3,3
3,6
4,3
4,0
4,2
3,2
4,2
11,7
14,2
13,7
1,5
-28,2
-24,3
% do PIB
0,8
1,9
1,8
1,4
0,1
-1,7
-1,5
Fonte: Banco Central do Brasil, Boletim do BC, Suplemento Estatístico (www.bcb.gov.br).
Isto, entretanto, é mera aparência. Em primeiro lugar, a armadilha fiscal continua presente. A dívida interna do setor público aumentou
sua participação de 37,5% do PIB em 2002 para 47,6% do PIB em 2006, chegando a 59,4% no final de 2009. Para o primeiro mês de 2010, o
próprio Banco Central estima que a dívida interna do setor público chegou a 60% do PIB 17. O problema da dívida pública permanece justamente
pelas razões que conformam a armadilha fiscal. Altas taxas de juros, combinadas com o lançamento de títulos da dívida pública pelo governo,
como forma de contrabalançar a forte entrada de capital externo, que tende a expandir a oferta monetária interna para além daquilo programado
no regime de metas inflacionárias. Conseqüentemente, a dívida pública interna explode durante o governo Lula, chegando a R$ 1.897,642
bilhões em janeiro de 2010.
Mas, dizem os defensores do lulismo, pelo menos as outras três armadilhas estariam resolvidas. O processo de stop and go não ocorreria
mais justamente porque a armadilha da restrição externa estrutural ao crescimento foi, supostamente, desarmada. E esta última foi resolvida
tendo em vista a quebra do círculo vicioso nas contas externas. De fato, como visto, as contas externas melhoraram muito no período 2002-2006.
Por quê? Por alguma medida pró-ativa do novo governo? Não, pois este fez exatamente o que o anterior fazia. A melhora das contas externas só
17
O governo não se furta a divulgar que sua dívida externa líquida (total menos o estoque de reservas internacionais) passou a ser negativa em 2006 (no total de R$ 63,5
bilhões), mas não reconhece que, na verdade, sua dívida total apenas mudou de composição, passando a possuir um maior peso da parcela interna.
ocorreu por uma eventualidade conjuntural dos seguintes fatores: (i) alta no ciclo de liquidez internacional, o que reduz as taxas internacionais de
juros, proporcionando um crescimento da economia mundial e uma redução no risco-país18 que embasa o fluxo de capitais externos; (ii) forte
crescimento da economia chinesa que importa os produtos justamente que preponderam na pauta de exportações da economia brasileira; (iii)
crescimento do preço das commodities, predominantes na estrutura exportadora do país. Qual destas razões se deve a alguma medida do governo
brasileiro? Nenhuma. É tudo fruto de um cenário externo extremamente favorável, que propiciou o forte crescimento das exportações, a reversão
no déficit da balança comercial e de transações correntes e o acúmulo de reservas internacionais que permitiram, dentre outras coisas, o
pagamento antecipado de montante da dívida com organismos internacionais.
Essa melhora dos indicadores de vulnerabilidade externa são meramente conjunturais. O que ocorreu com a estrutura e, portanto, com a
razão última dessas armadilhas? Se o governo faz exatamente o que se fazia antes, essa estrutura não pode ter mudado. Ao contrário,
intensificou-se. Três pontos ilustram isso. O primeiro é o aprofundamento da reestruturação industrial, fruto do processo de abertura comercial,
que jogou a economia brasileira dentro de uma lógica muito próxima àquela das economias primário-exportadoras, que caracterizou nossa região
antes dos processos de substituição de importações. Não há dúvida quanto a isso. A economia brasileira voltou a ser extremamente dependente
das exportações para a sua dinâmica, e essas exportações são, em sua grande maioria, exportações de produtos primários e/ou baseados em
recursos naturais. Esse processo de reprimarização das exportações brasileiras, fruto da estratégia neoliberal de desenvolvimento, foi mantido e
aprofundado pelo governo Lula. Em 2004, os produtos primários já representavam 30,66% do total de nossas exportações, sendo que o segundo
colocado nesse ranking eram as manufaturas de média tecnologia com 27,36%. O processo se aprofunda, com os produtos primários passando a
33,45% em 2007 e 38,26% do total de exportações em 2008.
Dessa forma, a manutenção do padrão de inserção comercial regressiva no governo Lula aprofundou o processo de reprimarização das
exportações. Não só a economia brasileira passou a depender cada vez mais das oscilações dos mercados externos para a demanda de sua
produção interna como o componente primário das exportações se acentuou. As oscilações de demanda e preço dos produtos primários notoriamente mais bruscas - no mercado internacional contribuem também para a maior vulnerabilidade da economia brasileira.
Um segundo ponto que deve ser destacado nessa aparente melhora dos indicadores no período 2002-2006 é o fato de que, em que pese a
melhora conjuntural dos mercados externos, um componente estrutural foi acentuando seu desequilíbrio nesse período. A conta de serviços e
renda teve o seu déficit aumentado em todo momento. Sai de um rombo de US$ 23,1 bilhões em 2002 para US$ 36,8 bilhões em 2006. Por que
isso? Justamente porque durante a fase positiva do cenário externo, além do crescimento da demanda por nossas exportações, as reservas
internacionais cresciam em razão da forte entrada de recursos externos, muito em conseqüência da alta no ciclo de liquidez internacional e das
elevadas taxas domésticas de juros. Esses recursos entrantes acresciam o estoque do passivo externo, que redunda, em períodos posteriores, em
18
A redução do risco-país é apresentada pelo governo como a maior prova de que este conseguiu a tal credibilidade dos mercados que tanto perseguiu com o seu compromisso
de manutenção das políticas anteriores. O que o governo, deliberadamente, omite é que os indicadores de risco-país caíram para todas as economias do mundo, justamente em
razão da alta do ciclo de liquidez internacional, de forma que o Brasil manteve sua posição relativa frente às outras economias. Não há nenhum mérito do governo nesse
resultado, a não ser a sorte de governar o país em um momento conjuntural de alívio do cenário externo.
elevação do serviço desse passivo (juros, amortizações, remessa de lucros e dividendos, pagamento de royalties, etc.). Trata-se de uma elevação
estrutural de um desequilíbrio de fluxo, em razão de um desequilíbrio de estoque. Em suma, mais um elemento na elevação da vulnerabilidade
externa estrutural da economia brasileira. E se é estrutural, isso significa que, quando da reversão do cenário externo amplamente favorável no
período 2002-2006, isto é, quando a balança comercial reverter seus resultados positivos, estes déficits estruturalmente crescentes da conta
serviços e rendas manifestarão novamente a armadilha das contas financeiras.
Por último, além do cenário externo favorável, é preciso considerar também que a retomada do crescimento da economia brasileira no
período 2002-2006 foi aparente. De fato, do ponto de vista dos números absolutos, as taxas médias cresceram em relação a períodos anteriores.
Mas, o que ocorreu com o mundo? Cresceu também. No período entre 2003 e 2006 a economia mundial cresceu em média 4,9%, enquanto a
economia brasileira cresceu 3,3% em média. A conclusão é que o hiato entre o crescimento da economia mundial e a brasileira se elevou, isto é, a
distância entre a economia brasileira e a média da economia mundial se elevou, no período, em 1,6%. Houve um retrocesso, do ponto de vista da
economia mundial, e não um avanço. Trata-se, ao contrário do que pensam os defensores do lulismo, de um período recessivo, e não de
crescimento19.
O período 2002-2006 - e de alguma maneira uma parte de 2007 também - significou, portanto, uma melhora dos indicadores de
vulnerabilidade externa por uma única razão. O cenário externo foi o melhor visto em décadas na economia mundial. Em primeiro lugar, a alta
no ciclo de liquidez internacional levou tanto a uma ampliação da entrada de recursos externos, em todas suas formas, como a uma baixa
considerável das taxas de juros internacionais, o que deu margem para a redução dos juros domésticos, ainda que esse movimento tenha sido
muito retardado na economia brasileira. Em segundo lugar, o crescimento da economia mundial levou a uma elevação da demanda por nossas
exportações, favorecidas também pelo forte crescimento do preço das commodities, principal produto exportado. Por último, a forte entrada de
capital externo permitiu que essa fase favorável fosse acompanhada de valorização cambial e, portanto, sem impactos inflacionários maiores para
o crescimento da economia.
Mas esse cenário externo se alterou.
4- Transformação do cenário externo e manifestação da vulnerabilidade externa estrutural
Apesar da vociferação inicial do governo brasileiro, a crise atingiu diretamente o desempenho da economia, e não por acaso. Como visto,
o governo Lula não modificou substancialmente nada do que se fazia em termos de estratégia de desenvolvimento e política econômica do
governo anterior. As reformas estruturais de liberalização, abertura e desregulamentação não foram revertidas. Ao contrário, em alguns casos,
19
A “sabedoria” econômica tradicional costuma associar recessão a taxas de crescimento negativas, desconhecendo completamente que os movimentos cíclicos de uma
economia ocorrem em torno de uma tendência de crescimento. Assim, qualquer resultado positivo na taxa de crescimento do PIB é tido como algo benéfico, não importando a
trajetória que esta taxa vinha apresentando no passado – de forma que mesmo uma taxa positiva de crescimento pode significar recessão, se esta taxa é menor do que as
anteriormente apresentadas – nem muito menos o que ocorre com a média da economia mundial.
foram aprofundadas, mantendo a estratégia neoliberal de desenvolvimento, em específico o alto grau de abertura externa da economia, o que
majora a dependência e vulnerabilidade externa estrutural da economia.
Relacionado a isso, a instrumentalização da política econômica tampouco se alterou em sua essência. A política fiscal continuou tendo
como objetivo a obtenção de elevadíssimos superávits primários. A política monetária continuou com sua meta inflacionária e operação
conservadora. Quanto à taxa de câmbio, ainda que não estejamos mais em um sistema de bandas cambiais, o Banco Central atua de forma a não
deixar a taxa de câmbio superar um determinado patamar-teto e nem descer abaixo de um nível-piso. Ou seja, ainda que não pré-anunciada, a
atuação do Banco Central continua referendada em bandas que, pelo seu próprio comportamento, são de conhecimento do mercado.
Se nem a estratégia de desenvolvimento, nem a política econômica do governo Lula são distintas do período anterior, a reversão do
cenário externo – até então favorável ao desempenho da economia sob tutela do novo governo – voltou a demonstrar a vulnerabilidade externa
estrutural da economia, fruto da manutenção e aprofundamento da estratégia. Ou seja, em resumo, o período 2002-2006 representou um cenário
externo extremamente favorável, justamente a partir do momento em que assumia o novo governo; e isso tudo sem que ele tenha feito nada para
isso. Não há outra palavra para descrever o acontecimento que não sorte. A crise que se abateu sobre a economia mundial a partir de 2007/2008
veio justamente modificar essa maré de sorte.
A reversão do cenário internacional significou a volta dos problemas no balanço de pagamentos basicamente por duas razões: desaceleração do
crescimento das exportações, em função da recessão mundial que diminui a demanda por nossos produtos; e, redução dos preços das
commodities, tanto pela recessão mundial como, principalmente, pela desvalorização do capital fictício aplicado na especulação dentro do
mercado futuro de commodities. Isso significa que a vulnerabilidade externa estrutural tende a se manifestar novamente na piora das contas
externas.
Já em 2007 os resultados positivos na balança comercial começam a ser revertidos, com a redução do superávit de US$ 46,2 bilhões em
2006 para US$ 40,3 bilhões no ano seguinte, como mostra a tabela 2. Esse resultado na balança comercial já é insuficiente para fazer frente ao
déficit em serviços e rendas, que em 2007 atingiu US$ 42,5 bilhões. O saldo em transações correntes só foi ligeiramente positivo nesse ano por
conta das transferências. Mas já em 2008 a redução ainda maior do saldo na balança comercial (US$ 25,3 bilhões), somado a um déficit de US$
57,2 bilhões em serviços e rendas, insuficientemente coberto pelas transferências (US$ 4,2 bilhões), leva a um déficit em transações correntes,
que chega a 1,7% do PIB. A necessidade estrutural de financiamento externo para o fechamento do balanço de pagamentos volta a se manifestar.
Ao contrário do que se pode imaginar, a responsabilidade do problema não pode ser atribuída à ocorrência de choques exógenos, como se nada
pudesse ser feito a respeito; e isso por maior que tenham sido as conseqüências da crise econômica mundial a partir de 2007/2008.
Como visto, os problemas estruturais e as armadilhas produzidas/aceleradas pelo aprofundamento da inserção externa passiva da
economia brasileira construíram uma situação que eleva a fragilidade das contas externas e, portanto, da vulnerabilidade da economia a esses
choques. Quanto maior a dependência da economia frente às oscilações da conjuntura internacional maiores serão os impactos internos das
reversões cíclicas na economia mundial.
O impacto da crise mundial nas contas externas é ainda agravado pela dinâmica de atração de investimentos externos de curto prazo e de
natureza especulativa, que se fazem necessários para o fechamento do balanço de pagamentos. Ainda que as taxas de juros internacionais
estivessem em queda – uma tentativa dos governos centrais de minorar os impactos da crise no mundo – nesse ambiente de aprofundamento da
incerteza, desenvolveu-se uma maior aversão ao risco, fazendo com que os capitais exijam um maior diferencial de juros para aplicar nas
economias periféricas. O que ocorreu na economia brasileira no novo cenário de crise na economia mundial é que as taxas de juros domésticas
caem, mas em menor proporção em relação à queda nos países centrais. O atraso do Banco Central brasileiro em acompanhar os movimentos
internacionais de redução nos juros como forma de aliviar os efeitos da crise só fez elevar a margem que incentiva uma maior entrada de capital
externo de curto prazo.
Uma das conseqüências disso é um movimento de valorização cambial, só interrompido no final de 2008, justamente o momento mais
agudo da crise mundial, quando tivemos uma forte reversão dos fluxos de capitais. Depois disso, a partir de março de 2009 a tendência à
valorização cambial volta a se manifestar, justamente pela elevada diferença entre os juros domésticos e os externos que, apesar de se reduzir em
2009, chega a outubro desse ano em patamares similares ao momento pré-crise, quando a valorização do câmbio já se fazia presente.
Assim, depois da crise mundial, os juros internos caíram mais lentamente que os juros internacionais, elevando o spread de valorização
para os ativos domésticos, incentivando a maior entrada de capital, e levando à nova valorização do cambio, o que aprofunda os problemas
estruturais nas contas externas. Isto por um lado. Por outro, percebe-se que a forte entrada dos capitais de curto prazo – necessários para o
financiamento das contas externas novamente deficitárias – recoloca a dinâmica de instabilidade e crise cambial. Alguns analistas já chegam até a
falar em bolha financeira sendo formada na economia brasileira. Isto significa que enquanto as expectativas de valorização cambial se
mantiverem – e forem sancionadas – o fluxo de capital externo permanece, o que realimenta a valorização cambial. Qualquer novo refluxo no
ciclo de liquidez internacional e assistiremos a uma nova crise cambial, o que, mais uma vez, demonstra a elevação da vulnerabilidade da
economia brasileira no período.
O que o início de 2010, ano eleitoral, nos mostrou, só confirma essa tendência. Em fevereiro o Balanço de Pagamentos registrou um
superávit de US$ 741 milhões, sendo que as transações correntes foram deficitárias em US$ 3,3 bilhões (acumulando um déficit de US$ 28,1
bilhões em 12 meses), o equivalente a 1,66% do PIB. Esse resultado para as transações correntes é o pior para um mês de fevereiro desde 1947.
O problema estrutural é agravado pela piora no déficit de serviços nesse mês (US$ 2,1 bilhões), 131,6% superior ao mesmo mês de 2009, e pela
remessa líquida de rendas em US$ 1,8 bilhão. O superávit no Balanço de Pagamentos de fevereiro só foi possível pela entrada líquida na conta
financeira de US$ 4 bilhões. A dívida externa total estimada nesse mês de fevereiro de 2010 atingiu US$ 203 bilhões, US$ 4,8 bilhões a mais do
que o contabilizado no final de 2009.
Para o mês de março, os dados mostraram que a taxa de crescimento das importações superou a das exportações. A primeira chegou a
50%, comparando o mesmo mês do ano passado, sendo que o volume total de importações chegou a US$ 15,059 bilhões. As exportações
atingiram em março US$ 15,727 bilhões, um valor 33% superior ao mesmo mês de um ano atrás. O saldo comercial de US$ 668 milhões
representou uma queda de 62% em relação ao ano passado, confirmando que o recrudescimento do cenário externo repõe os problemas
estruturais nas contas externas da economia brasileira. Em junho de 2010, os dados divulgados aprofundaram a tendência. O déficit em
transações correntes nesse mês atingiu US$ 5,2 bilhões. A previsão para o ano de 2010 é de um déficit de cerca de US$ 50 bilhões, sendo que
apenas 64,6% disso devemos ser cobertos com investimento direto estrangeiro, o pior resultado desde 1997.
Isso significa que o fechamento das contas externas em 2010 dependerá, novamente, do ingresso de capitais de curto prazo, extremamente
voláteis e suscetíveis às oscilações da conjuntura internacional. Isso significa uma maior vulnerabilidade externa do país frente a essas oscilações.
Esse resultado se deve basicamente à elevação estrutural do déficit em serviços e rendas e ao aumento das importações.
A conclusão é que os problemas estruturais e as armadilhas do processo de abertura e liberalização externa da economia brasileira se
mantem durante o governo Lula. A fase de aparente melhoria entre 2002 e 2007 não se deveu a uma mudança/ruptura desse governo frente às
estratégias do período anterior. Ao contrário, este governo não só manteve como aprofundou a estratégia neoliberal de desenvolvimento no que
tange à sua inserção externa. Nada mais natural que a vulnerabilidade externa estrutural volte a se manifestar justamente no momento em que o
cenário externo amplamente favorável se desfez.
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