bibliografia - Ministério Público

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A QUEBRA DO PARADIGMA VOLUNTARISTA E A OBJETIVAÇÃO DO
VÍNCULO CONTRATUAL
Anizio Pires Gaviao Filho
A era da codificação tem o seu marco inicial gravado na história da cultura jurídica
no Oitocentos, notamente a partir do Código de Napoleão que veio por iniciar a chamada
era das codificações. Essa afirmativa pressupõe o entendimento de que a codificação é um
fenômeno dotado de significação e características próprias; somente considera código os
jusracionalistas produzidos no Oitocentos.
É essência da era da codificação a idéia de código como sendo uma lei
autofundante1, estatuinte do ordenamento, norma de caráter legislativo que pode fundar
toda a extensão de uma determinada matéria jurídica e, partindo de um sujeito unitário,
cobrir o ordenamento por inteiro sem detrimento de sua própria articulação interna2. Em
oposição às compilações do período pré-constitucional, que se caracterizam pela ausência
de sistematicidade, ordem e unidade, próprias do direito antigo, os códigos da modernidade
apresentam-se como formulação sistematizada de leis, ausência de antinomias, pretensão de
totalidade do seu sistema interno com exclusão de qualquer instrumento heterogintegratório
e com a necessária ab-rogação da normatividade precedente.
1
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 176.
1
Deseja-se recortar do processo codificatório a mais célebre codificação do
Oitocentos que foi o Código Civil de Napoleão e, a partir dela, analisar um dos paradigmas
essenciais da segunda sistemática: o dogma da vontade. A essência da investigação reside
no exame da transformação do papel da vontade nas relações de troca.
O paradigma voluntarista, assentado no dogma da vontade, remonta ao
nominalismo de Scotus e Ockham em que podem ser encontradas as raízes fundamentais da
teoria da vontade orientadora das grandes codificações do Oitocentos por todo o século
XIX.
No Estado liberal mínimo, a transferência de riquezas deve obedecer às regras do
livre jogo das forças econômicas. Não há intervenção nas relações negociais privadas, pois
as trocas são reguladas pela liberdade contratual. Na sociedade atomizada, o interesse
público é atendido na medida em que assegurada ampla liberdade para cada indivíduo
livremente estabelecer seus próprios vínculos negociais. Assim, a restrição à imposição de
limites ao poder da vontade não tem outra motivação que não a liberdade contratual como
expressão do princípio da autonomia da vontade, sendo inadmissível a imposição deveres
não resultantes da vontade das partes. A justiça contratual considera-se assegurada pela
liberdade contratual, ou seja, pela vontade livre dos contratantes. A autonomia da vontade e
a igualdade eram os pilares que fundavam a teoria geral dos contratos.
2
CLAVERÓ, Bartolomé. Codificación y constutición: paradigmas de un binomio. Quaderni Fiorentini per la
Storia del Pensiero Giuridico. Milano, v. 18, 1989, p. 88.
2
As transformações sociais e econômicas sofridas pela sociedade produziram uma
insustentável crise no modelo do Estado liberal mínimo. Modificadas as relações do Estado
com a sociedade, emergem os valores do Estado Social que irão representar o crescimento
das ações estatais nas relações privadas. Verifica-se que o modelo liberal-burguês do
Estado não-intervencionista é insuficiente para atender à flagrante desigualdade e injustiça
social que campeiam nas relações econômico-sociais.
Dá-se, então, o declínio do papel da vontade a partir do aumento da intervenção
estatal nas relações de troca. O Estado intervém decisivamente nas relações econômicas,
controlando o mercado e os preços; com medidas legais e fiscais, promove recessão ou
incremento da demanda de produtos. O crescimento das atividades do Estado aumentou as
suas relações com os indivíduos, relações que são reguladas no âmbito do direito público.
De outro lado, mesmo no âmbito das relações privadas, tem-se a realização de troca de
riquezas - bens materiais, imateriais e serviços – levada a efeito por grandes corporações,
entidades associativas ou organizações sociais. Esses fenômenos levaram ao virtual
desaparecimento da teoria atomizada da sociedade, na qual cada indivíduo persegue o seu
interesse em relações de livre escolha com outro indivíduo.
As alterações nas relações de troca vão conduzir à redução do papel do contrato e
da liberdade contratual. É o que acontece nos chamados contratos de adesão, nas
obrigações de contratar compulsórias e nas hipóteses em que a responsabilidade não advém
da vontade, mas de condutas objetivas e socialmente relevantes. Em verdade, deslocou-se o
eixo da relação contratual da teoria da vontade para a teoria da declaração, decorrendo daí a
concepção objetiva do vínculo contratual. É a objetivação do contrato que passa a admitir a
3
investigação da justiça na relação contratual, justiça comutativa no sentido de buscar o justo
do caso concreto. Por conseguinte, o contrato, como instrumento de troca de riquezas, deve
ser justo e útil para bem assim atender à sua função econômico-social.
I – Em torno dos princípios fundantes da codificação francesa
Em que medida e intensidade se operou a relação entre a Revolução francesa e
Código civil é questão sobre a qual se tem ocupado a historiografia. Menezes Cordeiro
observa que o Code reproduziu, em parâmetros determinados, o direito europeu anterior,
criticando o entendimento que o considera como produto inovador de alterações jurídicosociais profundas. Em verdade, o Code traduz apenas o ponto culminante da evolução que,
iniciada pelos comentaristas e renovada pelo humanismo e pela primeira sistemática, seria
infletida e conduzida, em termos definitivos, pelo jusracionalismo. Afirma Menezes
Cordeiro não vislumbrar, entre a doutrina jurídica pré-revolucionária e o Code, rupturas ou
evoluções significativas. O direito corporificado no Código de Napoleão, há muito, na
ciência, sofria um processo de transformação.
Os acontecimentos que, formalmente,
tiveram lugar nas jornadas da Constituinte e da Convenção foram prenunciados pela
revolução jusracionalista, com raízes de base até ao século XVI3. As alterações de conteúdo
que tenham havido no direito privado devem ser procuradas na pré-codificação e no
fermento jusracionalista que a informou4. Contudo, quando se refere aos dois grandes
pilares substanciais do Código civil francês, o art. 5545 e o art. 1.134/16, Menezes Cordeiro
3
MENEZES CORDEIRO, A Manoel. A boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p. 226-227.
MENEZES CORDEIRO, (nota 4), p. 232.
5
A propriedade é o direito de gozar e de dispor dos bens da forma mais absoluta, desde que não se faça deles
um uso proibido pela leis e pelos regulamentos.
6
As convenções formadas legalmente valem como leis para aqueles que as fizeram.
4
4
reconhece, quanto ao primeiro, “uma acentuação do domínio, consoante a propriedade
liberal da Revolução” e, quanto ao segundo, “um influxo de idéias novas”7, referindo-se ao
consensualismo napoleônico.
Sem embargo, “a codificação é uma questão da cultura moderna”, definindo-se ao
ensejo da Revolução como meio de superação da sociedade do ordenamento corporativo e
jurisprudencial, pois, “não há uma seqüência de direitos, Constituição e, logo depois lei,
eventualmente Código”, deixa sentir Bartolomé Clavero. Isso porque “o Code não constitui
um desenvolvimento do ordenamento, mas a ordenação imediata da liberdade no âmbito
civil no mesmíssimo grau que a Constituição deve, também teoricamente, sê-lo no campo
político”. A codificação é reclamada pelos direitos e é efeito da Revolução 8. A codificação,
por ser uma norma extensa, que cobre um ordenamento de matéria, coerente e
articuladamente, estava a exigir um requisito substantivo e não menos revolucionário:
sujeito unitário9. Para esses efeitos se necessitava de “Revoluções”, ou seja, em sentido
normativo, de “Constituições”, ou, mais precisamente, de “Declarações de direitos
constitucionais”; com umas para se chegar a um tipo de lei e com outras para dita espécie
de sujeito. Somente assim a codificação se define como objetivo, resultando possível10.
Ainda que não se entremostre tarefa fácil a identificação da causa determinante do
Código civil francês, afigura-se imperioso conciliar o pensamento doutrinário do período
pré-constitucional com os ideais da Revolução, da Declaração dos direitos e da
7
MENEZES CORDEIRO, (nota 4), p. 233.
CLAVERO, (nota 2), p. 104-105.
9
CLAVERO, (nota 2), p. 81.
10
CLAVERO, (nota 2), p. 81-82. Em sentido contrário, Arnaud vai concluir pela “inevitabilidade” do Código
civil francês em atenção as suas raízes doutrinárias [MARTINS-COSTA, (nota 1), p. 172].
8
5
Constituição. Não se pode esquecer de que a codificação significa “a mais colossal
operação de política de direito em todo o arco da história jurídica ocidental”11. Não parece
haver dúvida que o processo de unificação e sistematização do Direito francês tenha suas
raízes para muito além da Revolução, mas se entremostra inegável que o seu momento
culminante se dá com a codificação que está intrinsecamente vinculada à época
revolucionária12.
Os princípios fundamentais do direito estabelecido na primeira grande codificação
correspondem ao sistema jurídico típico de uma sociedade em desenvolvimento pela ótica
do capitalismo. É o que se percebe pelo exame dos elementos fundamentais da codificação:
o individualismo, o liberalismo, o subjetivismo, o voluntarismo e o racionalismo.
Igualmente, isso é denunciado pela própria organização das instituições jurídicas13.
Assentando na consagração dos grupos burgueses e do liberalismo individualista, o Código
civil francês, coerentemente sistematizado, disciplinou as relações civis, ab-rogando as
antigas fontes normativas. Sob uma “feição antropocêntrica”, apresenta o homem como
centro do sistema, pois a lei está fundada nos seus direitos inatos14.
Observou-se, no período pré-revolucionário, uma certa insuficiência das estruturas
jurídicas para conviver com as novas exigências da classe social que estava assumindo uma
11
GROSSI, Paulo. Página introdutiva. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico, Milano, v.
XXIII, 1944, p. 12.
12
Interessante referir que a própria vontade para a codificação está expressamente explicitada no decreto da
Assembléia Constituinte de 5 de julho de 1790, referindo-se a um código geral de leis simples e claras.
13
ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da Codificação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 74.
Anota-se que o Código civil francês dispensou significativa atenção aos bens, destinando mais de 1.700
artigos à matéria, reservando 500 artigos para as pessoas.
14
MARQUES, Mário Reis. O liberalismo e a codificação do direito civil em Portugal. Coimbra: Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1987, p. 137.
6
importância econômica, cultural e política cada vez maior. A burguesia havia conquistado
um espaço determinante na economia e na cultura, mas o Estado e as instituições jurídicas
continuavam ligadas aos interesses do alto clero e às concepções da nobreza. Nesse
contexto, o mito jusracionalista transforma-se em ideologia e o Direito será o seu
instrumento15. Justifica-se, então, um Direito racional.
Acresce-se a isso a doutrina do contrato social. Pelo contratualismo, a liberdade
originária que funda o pacto social está determinada pela idéia de liberdade. Essa liberdade
é a liberdade de iniciativa da classe emergente que se expressa pela vontade, fonte geradora
de direitos e deveres, e é tutelada pela lei; uma lei que garante a expressão livre da vontade,
assegurando-lhe um imenso espaço jurídico. Estão aí, juridicamente colmatadas, as noções
de direito subjetivo, como poder de vontade, e do contrato, como acordo de vontades, ao
qual é atribuído a força de uma lei. Ao Poder público não é lícito violar a livre expressão da
vontade. Desse modo, uma nova lei, intimamente ligada à idéia de igualdade, estava sendo
gerada.
A importância da concepção da lei nesse momento histórico é extremamente
significativa. Tem-se a idéia de lei como algo nascido da vontade geral da nação, alheia a
vontade dos juízes16. A lei, por sua racionalidade, clareza e generalidade, passará a ser
considerada como uma garantia contra o arbítrio da atividade jurisdicional. Essa atividade
15
MARTINS-COSTA, (nota 1), p. 181.
Interessante observar que os juízes, na França, eram considerados como uma classe dominada pela
corrupção e comprometida com os interesses das classes privilegiadas, das quais provinham. Ainda hoje
parece haver certa desconfiança como o poder de criação da atividade jurisdicional [MARTINS-COSTA,
(nota 1), p. 184].
16
7
jurisdicional passa a se constituir em operação meramente subsuntiva. Então, na França, o
conceito de lei será objeto de exaltação.
Assente nas idéias de lei, Código, Direito nacional e Estado nacional, a Escola da
Exegese17 explica-se pelo primado da completude da lei. O Código surge como recolha
autêntica do direito natural. O Direito, assim, aparece como algo realizado e acabado e não
admite, por isso, incompletude. A lei18 é o Código decorrente da vontade geral. Somente o
direito posto constitui normas jurídicas e a lei é a única fonte do direito. Na lição de Julien
Bonnecase, a idéia da Escola da Exegese representa “o culto do texto da lei e fé na sua
virtude própria”19. A soberania da lei, aliada ao princípio da separação dos poderes,
conforma a estrutura do Estado de direito, cabendo ao legislativo a primazia sobre os
demais poderes, porquanto é manifestação direta da soberania do povo. Ao juiz impõe-se
subordinação à lei, enquanto ao jurista cabe apenas interpretar o texto do Código, artigo por
artigo20, visando a alcançar a intenção do legislador na busca do sentido e do alcance dos
textos legais. Impera, pois, a interpretação literal do texto legal, pois a lei é dotada de
A denominação L’École de l’Exègèse, segundo Tarello, foi posta em circulação por um dos juristas
privatistas franceses, no início do século XX, Julien Bonnecase, o qual, com o propósito de criticar a Escola
da exegese, fez, ainda que de maneira precavida e parcial, a história e consolidou a denominação. A
propósito, recorda Tarello que os juristas da Escola da exegese se referiam ao seu método como “méthode
analitiche” ou “méthode exegetique” em contraposição ao “méthode dogmatique” [TARELLO, Geovanni.
Cultura jurídica y política del derecho. México: Fondo de Cultura Econômica, 1995, p. 65].
18
E o critério de validade da norma jurídica é a promulgação da lei, conforme estabelece o próprio art. 1º do
Código civil francês.
19
Apud MARQUES (nota 15), p. 140. Marques, citando lição de Julian Bonnecasse, refere: “afirmando que
quando ‘a lei é clara e positiva’ não há lugar para interpretação, Demolombe, como uma visão restritiva (‘L’
interprétation des lois, c’est la science ellemêne tout entière’), defende a tese de que a invocação de uma ‘pura
regra de direito natural’, não sancionada ainda que ‘indiretamente’ ou ‘implicitamente’ pela lei, ao invés de
levar o juiz a proferir sentença favorável, deve levá-lo a conclusão de que ‘a demanda não é fundada’. Em
geral, para os civilistas desta escola, o art. 4º não erige em ‘leis civis obrigatórias’ todas as regras de direito
natural, na as sanciona em massa (cfr. DEMOLOMBE, Cours de Code Napoléon, 2ª ed., Paris, 1860, vol. I,
130 ss.). Os jurisconsultos não devem em mente um direito natural ideal, mas um direito natural possível,
aquele que transparece da legislação escrita” (p.140).
20
TARELO, Geovanni. Cultura jurídica y política del derecho. México: Fondo de Cultura Econômica, 1995,
p. 64.
17
8
sentido único, determinado pelo legislador. Os professores não ensinam Direito civil, mas o
Código Civil21. A lei é a fonte exclusiva do Direito de modo que juiz, a teor do art. 4º e do
art. 5º do Código Civil, está proibido de heterointegração do sistema jurídico.
Com Mário Marques Reis pode-se afirmar que o individualismo consagrado no
Código civil francês alia-se aos princípios universais do direito romano clássico, pois estes
se adaptam ao tipo de Direito exigido por uma sociedade baseada no laissez-faire e na
autonomia privada. Em verdade, a autonomia da vontade representa a liberdade proclamada
pela Declaração dos Direitos do Homem (art. 4º) com o Código civil. A livre circulação da
riqueza é favorecida com a regulamentação dos contratos, observados os limites
estabelecidos pela ordem pública e bons costumes. Em contraste com as incapacidades
antigas, particulares características do Ius commune, a capacidade que enseja a
responsabilidade contratual permite que os homens produzam as próprias leis22. Em
verdade, a lei está a serviço dos homens. Os indivíduos, com base na lei e impulsionados
pela vontade individual, podem livremente estabelecer tratativas negociais e creditícias.
Superada a estrutura da sociedade feudal com todos os seus privilégios e limitações, o
Direito civil, pelo Código, passa ter como princípio fundante a igualdade e a soberania
individual. O sujeito de direito23 do Código é único. O jusnaturalismo, o racionalismo e a
21
A respeito, vale lembrar a célebre frase atribuída a Joseph Bugnet, professor da Faculdade de Direito de
Paris: “Eu não conheço o direito civil, ensino o Código de Napoleão”, mencionada na obra de Julien
Bonnecase [MARTINS-COSTA, (nota 1), p. 193].
22
MARQUES, (nota 15), p. 139.
23
Clavero, citando Tomás y Valiente, remete a meados do século XVII e identifica em Hobbes o momento
generativo da concepção constitucional da relação entre o Estado e o indivíduo, tomando este na perspectiva
originária como agente jurídico, como sujeito de direito e dos direitos, de ordenamento e de liberdades.
Clavero lembra que tradicionalmente pessoa era algo para ser possuído e não algo para ser; o homem, por ter
pessoa, não era pessoa; não era indivíduo. A pessoa era qualidade ou capacidade conferida ao indivíduo e
nunca o indivíduo propriamente. Hobbes foi o primeiro teórico a elaborar o princípio de que a pessoa é o
indivíduo e o mesmo deste modo se concebe por si como sujeito de direito. E primeira idealização conjunta
do indivíduo e do Estado constitucionais, segundo Clavero, vai ser encontrada em John Lock em uma
9
projeção da vertente individualista da prática econômico-social-burguesa colocam o
indivíduo no centro do Direito. Os vários sistemas jurídico-particulares, com suas
jurisdições e privilégios específicos, fundiram-se num só ordenamento jurídico construído
em torno de um ente abstrato – o sujeito de direito24.
Tem-se, então, o dogma da autonomia privada como essência da codificação
francesa exatamente em atenção ao atendimento da finalidade política da sociedade liberalburguesa. Por isso, impende investigar as transformações a que foi submetida na evolução
da cultura jurídica, especialmente em relação às profundas alterações experimentadas pela
sociedade que culminaram com o advento do Estado social moderno.
II – Do paradigma voluntarista à objetivação do vínculo contratual
O dogma da vontade remonta ao nominalismo de Duns Scotus e de Guilherme de
Ockham. Na lição de Macintyre, o franciscano Scotus foi o progenitor e o mais distinguido
colaborador da linha antitomística da baixa Idade Média, deixando assentado que o modo
agostiniano de entender a primazia da vontade pressupõe que o entendimento é inerte, a
vontade é livre e que o fato de que a vontade seja movida por seu bem é algo diferente de
que a vontade seja obediente ao mandado de outro; “a vontade, portanto, somente pode
mostrar sua obediência à Deus não somente obedecendo a lei natural qua diretriz de nosso
concepção mais bem elaborada do indivíduo como sujeito de direitos, titular e ator de liberdades [CLAVERO,
Bartolomé. Happy constitucion. Madrid: Trotta, 1997, p. 12-20].
24
MARQUES, (nota 15), p. 140. Marques acrescenta que “o Code civil é agora o direito comum dos cidadãos
franceses, sintetizando as tradições dos pays de droit écrit e dos pays de droit coutumeir, que cedem perante
uma legislação de tipo uniforme”.
10
bem, senão também qua mandamento divino”25. Desse modo, segundo Macintyre, ao lado
do “dever” da razão prática, aparece outro “dever”, desconhecido para Aristóteles e para o
mundo antigo, qual o “dever” característico da obrigação moral, surgindo assim um novo e
caraterístico “dever”26.
Na concepção nominalista, antitomista, os filósofos sustentavam que a vontade é o
móvel da vida humana. Ao contrário do defendido por São Tomás, que dizia que a vontade
é um órgão executivo, necessário para executar os insights do intelecto, uma faculdade
meramente “subserviente”, Duns Scotus sustenta que “intelectus ... este causa subserviens
voluntatis”27. O intelecto serve à vontade, fornecendo a ela seus objetos, bem como o
conhecimento necessário; ou seja, o intelecto torna-se uma faculdade meramente
subserviente, pois necessita da vontade para direcionar a sua atenção e somente pode
funcionar adequadamente quando o seu objeto é “confirmado” pela vontade28.
Isso importa na medida em que o voluntarismo encontrado na gênese do contrato
provém das concepções nominalistas de Scotus e Ockham. A célebre disputa política entre
a Ordem dos Franciscanos e o Papado, cujo objeto foi a propriedade29 de terras é lembrada
por Judith Martins-Costa30; os nominalistas
defendem a primazia da vontade para
demonstrar que a soberania do rei e o direito de propriedade privada não são impostos por
25
MACINTYRE, Alasdair. Tres versiones rivales de la ética. Trad. De Rogelio Rovira. Madrid: Rialp. 1992,
p. 194-198.
26
MACINTYRE, (nota 26), p. 198 e 242.
27
ARENDT, Hanna. A vida do espírito. Trad. Helena Martins. Rio de Janeiro: 2000, p. 280. Observa Hanna
Arendt que São Tomas defendia primazia do intelecto sobre a vontade.
28
ARENDT, (nota 28), p. 280.
29
Para Ockham, os franciscanos são os perfeitos imitadores do Cristo pobre e sem propriedade; os
franciscanos não têm propriedade, mas somente o usufruto, sendo a Santa Sé a proprietária dos bens.
11
um “direito natural”, “preexistente à sociedade, aistórico e atemporal”, pois constituem
“criações arbitrárias e históricas” na origem das quais está o indivíduo, criando as
instituições jurídicas livremente por sua vontade, a qual não é servo do intelecto, como
dizia Tomás de Aquino, mas é autônoma e criadora31.
É dessa concepção que se permite concluir que o indivíduo no estado da natureza
é livre32 e nada pode obrigá-lo, salvo seu consentimento33; logo, a origem única das regras
jurídicas, por definição obrigatórias, é o acordo de vontades, é o consenso. Já com os
primeiros jusracionalistas34 aparece o contrato como um expressão da vontade, restando
sistematizada pela noção de consenso em Domat e Pothier35
36
que vem a desembocar no
30
MARTINS-COSTA, Judith. A noção de contrato na história dos pactos. Homenagem a Carlos Henrique de
Carvalho, o editor dos juristas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.501.
31
MARTINS-COSTA, Judith, (nota 31), p. 501.
32
RIEG, Alfred. Le rôle de la volunté dans la formation de l’acte juridique d’après les doctrines allemandes
du XIX siècle. Arquives de Philosophie du Droit, Paris, v. 4, 1957, p. 125-126. O indivíduo é livre,
constituindo-se no seu próprio e único senhor, submetido apenas à sua própria vontade que livre e
soberanamente lhe autoriza a assumir obrigações.
33
VILLEY, Michel. Essor et Décadence du Voluntarisme Juridique. Arquives de Philosophie du Droit, Paris,
v. 4, 1957, p. 90-91.
34
BECKER, Anelise. Teoria geral da lesão nos contratos. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 17-18. Anelise
Becker lembra que já no início do século XVII Grócio seculariza o brocardo solus consensus obligat,
“tornando-se o ponto de contato entre a tradição canônica e o voluntarismo moderno”, acrescentando que o
seu grande mérito foi evitar, mediante o princípio de direito natural pact sunt servand, o “perigo de que a
vontade humana, por meio do contrato, pudesse revolver sempre e arbitrariamente as relações jurídicas”
(p.18).
35
MARTINS-COSTA, (nota 1), p. 201.
36
CALASSO, Francesco. Il negozio giuridico. Milano: Giuffrè, 1959, 339-340. Sobre a contribuição de
Domat e Pothier para a codificação francesa, imperioso referir: “...il rapporto dialettico della norma agendi e
della facultas agendi, e si era prestado prestado perció come strumento prezioso a una filosofia che mirava a
elevare l’individuo a principio e fine della realtá politica giuridica, viene in primo piano, ed è fatale che in
questa posizione di preminenza esso venga esaltato como manifestazione per antonomasia della volontá
umana. Como osservó Emmanuelle Kant, l’idea del contrato era il solo mezzo possibile per costruire i diritti
naturali dell’individuo dentro la strutura dello Stato. Ed é naturale que il punto d’arrivo di questo lungo
travaglio di pensiero si stato consacrato nel codice Napoleone (1804), fruto della Revoluzione francese, nella
famosa definizione dell’art. 1.101: Le contrat est une convention. Nella Francia illuministica, due grandi
giureconsulti avevano lavorato alacremente a utilizzare, delle correnti giusnaturalistiche, quel tanto di vitale e
de duraturo che poteva innestarsi alla grande tradizione del diritto comune, accettato da secoli in Francia non
ratione Imperii, sed imperio rations: Jean Domat (1625-1696), l’autore de Les lois civiles dans leur ordre
naturel, definito ‘le restaurateur de la raison dans la jurisprudence’ e Rober-Joseph Pothier (1699-1772), che
ebe fortíssimo il senso della socialittá del diritto: il loro pensiero alimentò largamente il codice della
Rivoluzione” (p. 340).
12
Código Civil francês. Lembra Arnaud que o axioma posto no art. 1.134 do Code é a
expressão de todo um sistema filosófico adaptado ao Direito37. Durante algum tempo, essa
noção serviu para designar todo e qualquer tipo de vinculação obrigacional que resultasse
da bilateralização da vontade individual.
A idéia de vontade como expressão suprema e inderrogável da liberdade
individual alcança o Código do Napoleão na sua essência. O contrato é considerado fonte
primordial das obrigações juridicamente vinculantes como e enquanto manifestação da
vontade individual38, resultando do consenso que deve ser entendido como modo de
exercício da liberdade individual para se vincular juridicamente. Plausível, pois, assimilar o
contrato ao consentimento, e este à vontade, daí surgindo o voluntarismo que seria, nos
duzentos anos seguintes à Revolução, tanto a pedra de toque do direito contratual como a
ferramenta privilegiada das operações econômicas de intercâmbio de bens e de serviços
típicas do capitalismo em suas várias formas39.
A concepção do contrato como manifestação da vontade humana em si e por si
mesma produz várias conseqüências no enfrentamento das relações jurídicas privadas.
Entre estas está a proteção que foi conferida quase que exclusivamente a um dos
pólos da relação jurídica contratual: o credor, manifestante da vontade que é sacralizada.
Não requer muito esforço perceber toda a proteção jurídica que foi alcançada ao credor na
relação obrigacional, exatamente a fim de atender ao exigido pelo necessário livre jogo de
37
38
ARNAUD, André-Jean. Les origenes doctrinales du Code Civil français. Paris: LGDJ, 1969, p. 197.
MARTINS-COSTA, (nota 31), p. 503.
13
forças econômicas do mercado que levaria a “uma situação social ótima”40. Concluído o
contrato, a obrigação contratual não mais poderia ser modificada, admitindo-se a
intervenção do Estado somente em “socorro do credor, colocando toda a força pública à
sua disposição para compelir o devedor a cumpri-lo”, assenta Marcel Waline41.
A restrição à imposição de limites ao poder da vontade não tinha outra motivação
que não a liberdade contratual como expressão do princípio da autonomia da vontade.
Somente é admissível a oposição de alguns poucos limites negativos, como os atinentes
aos bons costumes e os próprios da manifestação livre da vontade. De outra parte,
absolutamente intoleradas limitações positivas como, por exemplo, imposição de certos
deveres não-resultantes da vontade das partes.
É nessa perspectiva, também, que a justiça contratual considera-se assegurada pela
liberdade contratual, ou seja, a vontade livre dos contratantes. A autonomia da vontade e a
igualdade eram os pilares que fundavam a teoria geral dos contratos. Uma não pode ser
entendida sem a devida vinculação com a outra. Vontade livre e igualdade eram a tradução
jurídica da concepção econômica do liberalismo. A vontade autônoma quer dizer
autonomia como imunidade e como poder de incidir sobre a realidade exterior. Na lição de
Dieter Schwab, “a doutrina do direito civil do século 19 entendia os princípios da liberdade
de contratar e da livre concorrência, igualmente, como elementos de uma ordem natural que
o Estado tem o dever de deixar intocada, livre de sua intervenção e que, assim, livre e auto-
39
MARTINS-COSTA, (nota 1), p. 202
SCHWAB, Dieter. Liberdade contratual e formação de contratos ‘ex vi legis’. Revista da AJURIS, v. 39,
1987, 19.
41
Apud BECKER, (nota 35), p. 26.
40
14
atuante, conduz ao bem comum”42. A ação estatal deve estar restrita ao sancionar o
resultado do livremente convencionado pelos indivíduos. Por conseguinte, o contrato, na
concepção voluntarista do Código civil francês, é considerado intrinsecamente justo. A
justiça é intrínseca ao contrato, decorrendo tanto da liberdade de contratar como da
igualdade dos contratantes. Ainda que já Grócio, fundado na idéia de vontade e razão, tenha
se referido à justiça contratual como decorrente do equilíbrio nas prestações, assentou-se na
doutrina liberal individualista, sob o ideal voluntarista, que a justiça contratual é fenômeno
natural do livre jogo operado no mercado conduzido sob a perspectiva da livre
concorrência; isso é capaz de garantir a justiça comutativa individual. Adverte Roppo que
nesse sistema, fundado na ampla liberdade contratual, “não havia lugar para a questão da
intrínseca igualdade, da justiça substancial das operações econômicas de vez em quando
realizadas sob a forma contratual. Considerava-se e afirmava-se, de fato, que a justiça da
relação era automaticamente assegurada pelo fato de o conteúdo deste corresponder à
vontade livre dos contraentes, que, espontânea e conscientemente, o determinavam em
conformidade com os seus interesses, e, sobretudo, o determinavam num plano de recíproca
igualdade jurídica”43.
SCHWAB, (nota 41), p. 17. Acrescenta Dieter Schwab que “o postulado da liberdade contratual vincula-se
a um determinado posicionamento básico, sócio-político, que passou a ser conhecido, predominantemente,
sob o conceito de ‘liberalismo’. Do enfoque teórico-histórico o liberalismo tem origens em parte na doutrina
da filosofia moral inglesa-escocesa de Shaftesbury, Lock e Adam Smith, e de, de outra parte, origina-se nos
ensinamentos da escola fisiocrática francesa, que cunhou frases, tais como: ‘laissez faire, laissez passer, le
monde va de lu mêne”.
43
ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 35. Acrescenta Roppo que as revoluções
burguesas, bem como as sociedades liberais delas decorrentes, aboliram os privilégios e as discriminações
legais que caracterizavam os ordenamentos em muitos aspectos semifeudais do “antigo regime”, afirmando,
então, a paridade de todos perante a lei. Era exatamente essa igualdade de posições jurídico-formais entre os
contrantes que garantia que as trocas respeitavam os cânones da justiça comutativa. E conclui Roppo que
“liberdade de contratar e igualdade formal das partes eram portanto os pilares – que se completavam
reciprocamente – sobre os quais se formava a asserção peremptória, segundo a qual dizer contratual equivale
a dizer justo (p.35).
42
15
Na medida em que absolutamente subjetivado o vínculo contratual pela integral
acolhida do princípio da autonomia da vontade, por esse condicionamento perpassa toda a
questão da teoria das nulidades, exatamente em atenção à problemática dos vícios, defeitos
ou inexistência da vontade. Assevera Cláudio Fortunato Michelon Júnior que “a vontade
sempre jogou um papel fundamental no conceito de negócio jurídico e, conseqüentemente,
na autonomia das nulidades. Conforme o papel desempenhado, alguns ‘defeitos’ poderiam
sofrer tratamento diverso e ser considerados ora como causa de nulidade ora como causa de
anulabilidade. Quando se considerou que a vontade era o verdadeiro fundamento do ato
jurídico e que a declaração de vontade era apenas o instrumento de expressão desde
fundamento, qualquer divergência entre a vontade interna e a declaração acarretaria as
conseqüências jurídicas radicais, de que se compõe o regime jurídico das Nulidades”44.
O entendimento era de que vontade viciada não é uma vontade livre, não havendo
falar em consentimento; as conseqüências do contrato devem estar conforme as
representações mentais dos contratantes, admitindo intervenção do Estado na hipótese de
qualquer imperfeição ou perturbação do processo de formação da vontade, devendo ser
extinta a avença em que – por ausência ou defeito do elemento psíquico – faltasse o seu
próprio fundamento. A vontade humana é considerada de forma tão exacerbada que vem
conduzir diretamente a disciplina em matéria de erro, dolo, coação, simulação, entre outras,
todas destinadas a tutelar “a liberdade e a espontaneidade do querer de quem realiza o
negócio, e a desobrigá-lo do vínculo negocial, sempre que a sua vontade resulte de qualquer
44
MICHELON JÚNIOR, Cláudio Fortunato. Teoria das nulidades. Porto Alegre: UFRGS, Trabalho para o
Curso de Pós-Graduação (Mestrado em Direito) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1994, p. 42.
16
modo perturbada”45. Nessa concepção voluntarista do século XIX, a vontade interior dos
contratantes definia o conteúdo e os efeitos da relação obrigacional avençada. Via-se na
vontade o elemento principal, superior à sua manifestação ou declaração46. Desse modo,
nas hipóteses de incapacidade ou vícios do consentimento, como na hipótese de coação,
dolo ou erro, a solução é a nulidade47. Assim, faltando a liberdade contratual, resulta
contaminado todo o ato. Essa solução é uma conseqüência direta do acolhimento de uma
concepção voluntarista ou subjetivista das relações contratuais.
Com raízes profundas no direito natural, acolhida na doutrina da codificação
francesa, a vontade orientou, em essência, o desenvolvimento das relações negociais ao
longo do século XIX. Com Atiyah, fixa-se o período do nascimento, do desenvolvimento e
do ápice da liberdade contratual orientada pela vontade livre como sendo de 1770 a 1870,
reservando-se o período de 1870 a 1970 para a chamada era do declínio da liberdade
contratual48. Ainda que se possa afirmar arbitrária a fixação da história em períodos, é
inegável que a opção de Atiyah mostra íntima relação com o desenvolvimento das
concepções econômicas na história da humanidade, principalmente porque o contrato é
instrumento de troca de riquezas.
45
ROPPO, (nota 44), p. 49.
BECKER, (nota 35), p. 44. Cf. Clóvis do Couto e Silva (COUTO E SILVA, Clóvis. Para uma história dos
conceitos do direito civil e no direito processual civil, Revista de Processo, v. 37, 1985, p. 240).
47
COUTO E SILVA, Clóvis. Para uma história dos conceitos do direito civil e no direito processual civil.
Revista de Processo, São Paulo, v. 37, 1985, p. 240.
48
ATIYAH. P.S. The rise and fall of freedom of contract. Oxford: Clarendon Press, 1979, p. 256. Atiyah
aponta início da história da liberdade contratual em 1700, indicando o período de 1770 a 1870 como a era da
liberdade contratual e o período de 1870 a 1970 como o declínio e a queda da liberdade contratual. A era do
individualismo é considerada pelo período de 1770 a 1870.
46
17
Na perspectiva de investigar os primeiros movimentos do início do declínio da
liberdade contratual e também o declínio do próprio contrato, é necessário atentar para
alguns fenômenos sociais e econômicos importantes que conduziram à modificação do
paradigma voluntarista. Isso porque o declínio da liberdade contratual está intimamente
relacionado com as alterações experimentadas na economia e na sociedade. À proporção
que as concepções e os modelos econômicos eram superados pelas novas relações sociais, e
novos modelos de troca de riquezas passaram a ser exigíveis, a reorientação do paradigma
voluntarista restou impositiva.
Um primeiro ponto de quebra da concepção do individualismo deu-se em relação
ao aparecimento e desenvolvimento da classe trabalhadora. Ocorreu que, no desenrolar do
século XIX, o individualismo começou a perder seus atrativos, particularmente na classe
operária.
Também significativo problema do modelo negocial do século XIX pode ser
apreendido nas implicações entre o individualismo e igualitarismo. Afirma Athiyah: “MidVictorian individualism was plainly antagonistic to egalitarian ideals”. Durante o século
XIX, acreditar em igualdade, em igualdade econômica ou justiça social não tinha base na
opinião pública ou política, pois não havia crença na igualdade como um ideal49.
Desenvolvendo-se o século XIX, cada vez mais se via injustiça nesse processo. A
competição começou a ser vista, aos olhos de alguns, como uma degradação, luta social
constante de homem contra homem ao invés de um encorajamento social de cooperação. Os
que nasciam ricos e em boa posição tinham enorme vantagem na competição em relação
18
aos outros. Logo, a idéia de igualdade passou a ser bastante significativa nas relações
humanas. É nessa perspectiva que começa a surgir uma minoritária classe de pensadores e
de escritores, colocando em dúvida a sociedade até então incontestável50.
São esses fenômenos sociais e econômicos que irão desencadear uma profunda
transformação do papel da vontade nas relações negociais de troca de riquezas, culminando
com o declínio do contrato51.
Foi Keynes quem pronunciou a oração funeral The End of Laissez Faire, em 1926,
afirmando que
“não é de modo algum verdade que os indivíduos possuam, a título
necessário, uma ‘liberdade natural’ no exercício das suas atividades econômicas. Não existe
nenhum ‘pacto’ que possa conferir direitos perpétuos aos possuidores e aos que se tornam
possuidores. O mundo não é de modo algum governado pela providência de maneira a fazer
sempre coincidir o interesse particular com o interesse geral. E ele também não está
organizado de maneira tal que os dois acabem por coincidir na prática. Não é de todo
correto deduzir dos princípios da economia política que o interesse pessoal devidamente
esclarecido opere sempre em favor do interesse geral. E não é tampouco verdade que o
interesse pessoal seja em geral esclarecido. A experiência não demonstra de modo algum
que os indivíduos, uma vez reunidos numa unidade social, sejam sempre menos
49
ATIYAH, (nota 49), p. 287.
ATIYAH (nota 49), p. 289. Já em 1861, John Stuart Mill, na sua obra Utilitarianism, apresenta um discurso
defensivista discutindo as desigualdades (p.289).
51
O paradigma contratual clássico, assentado na teoria da vontade, na liberdade de escolha e no modelo
econômico do mercado livre deixou de atender as exigências das trocas. Na concepção do modelo clássico, o
contrato, uma vez celebrado deve ser obedecido e cumprido. A conseqüência e o efeito do contrato depende
da intenção das partes e não pode ser imposto pelo tribunal; os tribunais não fazem os contratos pelas partes,
nem ajustam ou alteram os termos do acordado pelas partes; a honestidade e a justiça da troca era irrelevante.
50
19
clarividentes do que quando agem isoladamente”52. Se isso não era o fim, era
apropriadamente o bastante. A Segunda Guerra, o desemprego e a recessão indicaram o fim
do ideal de que os homens, independentemente dos governos, poderiam organizar
livremente a sociedade.
O individualismo do início do século XIX tinha como base a necessidade de
imposição de disciplina social na nova sociedade industrial e urbana, enquanto o Estado
construía sua máquina administrativa. Com substanciais alterações na sociedade e novas
exigências impostas pelas trocas, a solvabilidade dos conflitos emergentes passou a
requerer novos instrumentos. Em vista disso, os problemas sociais e econômicos passaram
a exigir a intervenção estatal de forma mais significativa, emergindo o Estado Social.
Um dos mais sérios problemas da queda do modelo clássico contratual foi não
alcançar soluções para os problemas dos monopólios e dos acordos ditos restritivos. A
alternativa encontrada pelo legislador do Código civil italiano, por exemplo, foi estabelecer
restrições à liberdade de contratar. Basta observar o art. 2.596 que trata do pacto contra a
liberdade de concorrência, impondo obrigação de não-contratar, e o art. 2.597 que impõe
obrigação de contratar àquele que exerce monopólio legal53, mesmo contra sua vontade.
Também o declínio da liberdade de escolha pode igualmente ser sentido nos compulsory
Todas essas concepções do modelo contratual clássico não mais lograram atender as exigências impostas
pelos novos valores da sociedade.
52
ATIYAH, (nota 49), p. 626. Cf. Atiyah: “It is not true that individual process a prescriptive ‘natural
liberty’ in their activities. There is no ‘compact’ conferring perpetual rights on thosse who have or on those
who acquire. The world is not so governed form above that private and social interest always coincide. It is
not so manage here below that in practice they always coincide. It is not a correct dedution from de Principles
of Economics that Enlightened self-interest always operates in the public interest. Nor is it true that selfinterest generally is enlightened; more often individuals acting separately to promote their own ends are too
20
contracts54. Então, não há livre escolha na relação de troca quando o conteúdo da relação
negocial é imposto de forma compulsória para uma das partes. Essa concepção,
considerada a teoria clássica dos contratos, é praticamente impensável, pois a relação
negocial somente pode ser ultimada pela liberdade de escolha orientada pela vontade, não
importando se houve ou não qualquer tipo de pressão para produzir a escolha55.
Os últimos trinta anos, segundo Atiyah, têm acentuado o declínio do contrato
desde seu ápice em 1870. Três aspectos dizem respeito a esse fenômeno. O primeiro referese à importância econômica na medida em que o papel do contrato encontra-se reduzido na
sociedade, o que significa que o contrato pode perfeitamente ser dispensado em algumas
relações de troca. O segundo aspecto está relacionado ao declínio do valor da liberdade de
escolha como fonte dos direitos e responsabilidades e, conseqüentemente, o aumento da
importância dos direitos e deveres não-voluntariamente impostos ou assumidos. O terceiro
refere-se ao fato de que há um movimento de afastamento dos modelos contratuais como
instrumentos de alocação de riscos. Isso significa que as trocas contemporâneas em termos
que se lhes permitam devem permanecer continuamente abertas para futuros ajustamentos
tão longas quanto possíveis sejam as relações de troca56.
ignorant or too weak to attain even these. Experience does not show that individuals, when they make up a
social unit are always less clear-sighted than when they act separately” (p. 626).
53
GRISSI, Guiseppe. L’autonomia privata. Milano: Giuffré, 1999, p. 26.
54
ATIYAH, (nota 49), 742.
55
ATIYAH, (nota 49), p. 702. Outro exemplo pode ser tomado na decisão adotada por uma corte inglesa no
célebre caso Esso Petroleum (1968) ao invalidar um acordo, determinando que a companhia fornecesse
combustível ao proprietário do posto de combustível pelo prazo de vinte e um anos. A decisão sustentou que a
restrição convencionada não era razoável em atenção ao interesse público, acrescentando que as partes não se
encontravam em igualdade de condições de barganha. Desde então, observa Atiyah, um número significativo
de decisões tem sido adotadas nas quais os Lords mostram considerável flexibilidade de pensamento. Tanto é
assim que, em 1974, foi possível ao Lord Diplock afirma na House of Lords que o verdadeiro ponto da
restrição do acordos não estava no interesse público, mas na simples questão de honestidade (P. 702).
21
O declínio pode ser sentido também no aumento da intervenção do Estado nas
relações privadas de troca. É bem verdade que a evolução que se verifica pelo aumento do
papel do Estado no campo de atuação das relações privadas no aspecto econômico não teve
o mesmo acompanhamento nos conceitos de autonomia privada e de contrato. Mostrou-se
muito mais ágil a adequação da teoria econômica à necessidade de intervenção estatal57. De
todo modo, no desenvolver-se do século XX, a atividade intervencionista do Estado nas
relações privadas manifestou-se de forma direta na medida em que o conteúdo das relações
negociais passou a se subordinar a uma necessária “mediatização da lei”58. Assim, a
intervenção do Estado começou a manifestar-se pela imposição de limites objetivos e
positivos à liberdade contratual, antes absolutamente intocável; passou-se a negar eficácia
jurídica à vontade privada quando manifestada em desacordo com os pressupostos de sua
força vinculativa, ou quando dela resultassem conseqüências nocivas ao bem-estar social,
expressando-se o princípio da funcionalização do contrato; ou, ainda, fazendo intervir
interesses de terceiros no regulamento negocial59.
O declínio da liberdade de escolha nas relações de troca aparece com os contratos
standards, contratos com as cláusulas já definidas e previamente estipuladas por um dos
contratantes, normalmente aquele que detém maior poder de barganha60. Não há dúvida
56
ATIYAH, (nota 49), p. 717.
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982, p. 35.
58
PRATA, (nota 58) p. 43.
59
O aumento da intervenção estatal nas relações privadas também pode ser medido pelo crescimento da
atividade judicial no âmbito do conteúdo da relação de trocas, na medida em que se reconheceu possibilidade
da intervenção do poder judicial para fins de que o contrato atenda a sua finalidade social. Exemplo disso
pode ser encontrado na crescente admissibilidade das chamadas cláusulas gerais como instrumento de
oxigenação de sistemas até então tidos como fechados e completos.
60
ROPPO, (nota 44), p. 312. O fenômeno é apreendido por Roppo como uma das mais significativas e graves
formas de restrição da liberdade contratual, sendo assim sintetizado: quem, pela sua posição e pelas suas
atividades econômicas, encontra-se na necessidade de estabelecer um série indefinida de relações negociais,
homogêneas quanto ao seu conteúdo, com um sem número de contrapartes, predispõe, antecipadamente, um
57
22
quanto à economicidade e à racionalidade desse tipo contratual na sociedade massificada
contemporânea, mas não é menos certo de que isso implica restrição à liberdade contratual
de uma das partes. O aderente não é livre para discutir o conteúdo do contrato; algumas
vezes não há sequer a liberdade de contratar ou não-contratar, pois contratar é o único meio
para aquisição de um determinado bem. Quando uma pessoa assina um contrato que lhe
impõe certa conduta que não pode atender ou que lhe é excessivamente onerosa, diz Atiyah
que essa responsabilidade não pode ser considerada purely consensual. Pressões de ordem
comercial, econômica ou social podem deixar as pessoas sem qualquer possibilidade de
escolha pelos standards da vida moderna, fenômenos que diretamente atuam sobre a
liberdade de escolha e, sem embargo, são completamente ignorados pela teoria clássica do
contrato. Nesses contratos de adesão,
há limitação à liberdade contratual quanto ao
conteúdo do contrato que já foi previamente definido por uma parte, restando a outra tão
somente a possibilidade de aderir às cláusulas fixadas61. As relações de trocas de bens de
consumo da classe dos consumidores, naturalmente hipossuficientes, bem exemplificam
contratos de massa orientados em forma de mera adesão a cláusulas previamente definidas.
A proteção do consumidor, via intervenção legislativa do Estado, fez-se na perspectiva de
buscar reequilibrar as limitações naturais do consumidor nas relações negociais de troca.
Outrossim, os elementos da confiança e do proveito recíproco são profundamente
importantes na nova dimensão da relação negocial. Nas relações de troca o que importa é
esquema contratual, um complexo uniforme de cláusulas aplicáveis indistintamente a todas as relações da
série, sujeitas, então, a mesma regulamentação; quem, por outro lado, deseja entrar em negociação com o
proponente apenas adere a essas cláusulas, limitando-se a aceitá-las em bloco sem qualquer discussão quanto
ao conteúdo do contrato (p.312).
61
GRISSI, Giuseppe. L’autonomia privata. Milano: Giuffrè, 1999, p. 31
23
fairness ou unfairness62 que é mais relevante do que a questão do consenso. Vislumbra-se,
atualmente, um crescente reconhecimento no sentido de que, embora as partes cheguem a
uma transação como resultado de conduta voluntária, os direitos e deveres resultantes da
transação, em grande parte, são produtos da lei e não do real acordo. É claro que em
negociações cuidadosamente ultimadas, cada cláusula é definida pelas partes, mas eventual
ambigüidade necessariamente será solvida pela decisão da atividade judicial. É o que
Atiyah sugere quando trata do resurgence of benefit-based liabilities63 e resurgence of
reliance-based liabilities64 65.
É nesse sentir que Judith Martins-Costa cogita da possibilidade de “relativizar ao
máximo o papel da vontade no quadro do vínculo contratual”, apontando o deslocamento
do eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade para a tutela objetiva da
62
ATIYAH, (nota 49), p. 743.
Responsabilidade decorrente da vantagem.
64
Responsabilidade que tem como fundamento a confiança e dever de cooperação nas relações negociais.
65
ATIYAH, (nota 49), p. 733-774. É paradigmático o caso Esso Petroleum v. Mardon, de 1964,
demonstrando significativo exemplo de mudança nas atitudes das relações contratuais. Esse caso envolvia o
arrendamento de um posto de combustível do autor para o réu. O valor do arrendamento era baseado na
potencial estimativa de vendas do posto de combustível, calculada pelos próprios peritos do autor. As
estimativas projetadas reverteram de modo que o réu não foi capaz de vender conforme o que havia sido
projetado. Igualmente, não tinha condições financeiras para pagar o arrendamento ajustado. Ajuizada a ação
para cobrança do arrendamento, o réu apresentou reconvenção exigindo indenização pelos danos
experimentados. O réu teve acolhida em seu pleito sob o argumento de que o autor deveria ser diligente nas
suas estimativas que foram consideradas pelo réu para a celebração do negócio de arrendamento. Essa
decisão, segundo Atiyah, reflete filosofia completamente contrária a concepção clássica do contrato, deixando
claro a existência do dever de informar do contratante em questões essenciais de avaliações do conteúdo do
contrato. A idéia de que cada parte deve fazer o seu próprio julgamento e estimativa a respeito do conteúdo do
contrato e, a partir disso, entabular negociais de barganha em igualdade de condições é deixada de lado. A
decisão deve ser tida como uma reflexão sobre as modernas práticas comerciais. Primeiro, porque reconhece a
desigualdade das partes quanto ao poder de barganha e quanto ao acesso as informações; segundo, porque
reconhece no contrato – especialmente nos contratos de relação continuada – não um exercício de uma única
atividade de alocação de riscos, mas o caráter cooperativo que deve orientar as relações negociais. Isso, então,
representa um crescimento da importância da reliance-based em relação a promise-based liability (p. 774).
63
24
confiança com a perspectiva para a concretização dos princípios da superioridade do
interesse comum sobre o particular, da igualdade e da boa-fé objetiva66.
Percebe-se que o declínio da liberdade contratual reside exatamente nessa nova
perspectiva do papel da vontade como elemento estrutural da relação negocial de troca de
riquezas. Em verdade, da teoria da vontade, dominante até a primeira metade do século XX,
passou-se para a chamada teoria da declaração. Experimentou-se uma crescente redução do
papel e da importância da vontade, vista como elemento psicológico da relação negocial,
fenômeno definido como a objetivação do contrato67 ou do vínculo contratual. Essa
transformação buscou atender às novas exigências de uma moderna economia de massa e,
assim, garantir-se celeridade, segurança e estabilidade nas relações sociais. A partir da
teoria da declaração, o vínculo contratual deve ser analisado por meio de elementos
objetivos, exteriores e socialmente reconhecíveis68. A responsabilidade nas relações
negociais não advém somente da autovinculação ou autodeterminação expressa das partes,
mas poderá decorrer de legítimas expectativas criadas a partir de condutas particularmente
adotadas69.
66
MARTINS-COSTA, Judith. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista do
Consumidor, São Paulo, v. 3, 1992, p. 141.
67
Galgano observa que “a atenção do jurista encontra-se doravante orientada para o momento da circulação: o
interesse a satisfazer já não é o interesse em comprar, mas o interesse em vender, e em vender na maior
quantidade possível. Tem início, com a teoria da declaração, um processo de objetivação da troca, que tende a
perder parte das suas originárias características de voluntariedade” [Apud PRATA, (nota 48), p. 43].
68
ROPPO, (nota 44), p. 298.
69
Modernamente vê-se uma relação obrigacional complexa, onde, ao lado dos deveres de prestação (tanto
deveres principais de prestação como deveres secundários) há os deveres laterais, além dos direitos
potestativos, sujeições, ônus jurídicos, expectativas jurídicas, etc. Todos esses elementos se coligam em
atenção a uma identidade de fim e constituem o conteúdo de uma relação de caráter unitário e funcional: a
relação obrigacional complexa ou relação obrigacional em sentido amplo. É a obrigação como processo,
dinâmica e orgânica (COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky,
1976). É nesse pensar que se deve considerar as chamadas relações contratuais de fato. Karl Larenz
(LARENZ, Karl, Derecho de obligaciones, Trad. Jaime Santos Briz, Madrid: Editorial Revista de Derecho
Privado, 1958, p. 60) anota que o que atribui significado jurídico a esses processos não é a vontade negocial
dos participantes, mas a valoração jurídica que se obtém no tráfico pela existência de uma conduta social
25
Uma das mais significativas conseqüências da substituição da teoria da vontade
como fundamento do vínculo contratual é a necessária redução das hipóteses de invalidação
dos negócios jurídicos por vício de vontade. Ora, o crescimento e o desenvolvimento da
sociedade mercantil massificada, ao mesmo tempo em que exige celeridade às operações de
troca, também não prescinde da certeza, da segurança e da estabilidade. Essas exigências,
certamente, não poderiam ser atendidas pelo teoria da vontade, especialmente porque
inúmeras seriam as hipóteses de invalidade dos contratos. Na moderna concepção
contratual, vinculada a relação negocial à sua função social e utilidade, a necessidade da
autonomia privada não pode ser obtida a qualquer preço, sustentando Ghestin que a
validade do contrato está subordinada à sua justiça. O contrato somente será considerado
válido se, sendo útil, for igualmente justo70.
O fenômeno da superação do dogma da vontade no contrato pode ser sentido na
medida em que se passou a exigir da relação negocial de troca de riquezas o cumprimento
de uma função social e, além disso, a concretização do justo.
típica. Diz Larenz que o reconhecimento de tais relações obrigacionais, que intrinsecamente devem ser
consideradas segundo o direito contratual, está na mesma linha dos fatos típicos de declaração com efeito
normativo (v.g., o silêncio da carta de confirmação no tráfico mercantil), em que tampouco depende a questão
de se no caso concreto concorrem os requisitos para existência de uma declaração de vontade válida. A
essência dessa concepção é que na sociedade massificada, segundo as concepções do tráfico jurídico, existem
condutas geradores de vínculos obrigacionais, fora da emissão de vontade que se dirijam à produção de tal
efeito, antes derivadas de simples ofertas e aceitações de fatos. A respeito, Judith Martins-Costa [MARTINSCOSTA, (nota 63), p. 508] faz observações quanto à tendência à objetivação do conceito de contrato, isso
consistindo na objetivação do próprio elemento subjetivo do contrato. Os contratos devem ser caracterizados
como atos sociais, pelos quais os particulares, nos limites estabelecidos pela ordem jurídica, realizam os seus
próprios interesses, disciplinando-os para o futuro, inserindo-os na ordem social. Essa tendência para a
objetivação do contrato tem como conseqüência uma verdadeira “descoberta” dogmática da existência de
deveres de conduta que decorrem do vínculo contratual independentemente da vontade dos contratantes.
70
Apud BECKER, (nota 35), p. 59.
26
Isso porque a autonomia privada não pode ser tomada como um valor em si
mesmo, devendo ser considerada com base nos princípios que orientam o todo do
ordenamento jurídico. São esses os princípios que servem de base para avaliar se a
autonomia privada é digna de proteção pelo ordenamento jurídico. Assim, revela-se
indispensável o reexame da noção de autonomia privada à luz do juízo de valor - giudizzio
de meritovolezza - de cada ato realizado, de modo tal que se possa deduzir se estes,
individualmente considerados, podem ser regulados, pelo menos em parte, pela autonomia
privada. Assim, está a autonomia privada submetida aos limites dos juízos de licitude e de
valor71. Perlingieri refere, por exemplo, precedentes da jurisprudência italiana, autorizando
a redução do valor de cláusula penal convencionalmente fixada (art. 1.382 do Código civil
italiano)72. Nessa mesma orientação, permite o art. 413 do Novo do Código Civil brasileiro
a redução da penalidade se o montante for manifestamente excessivo em relação à natureza
e à finalidade do negócio.
A admissibilidade da investigação da justiça na relação negocial é diretamente
correlata com a possibilidade de limitação da liberdade contratual. Salienta-se o fato de
que, no modelo contratual clássico, a justiça era tida como assegurada pela manifestação
livre do consentimento e pela igualdade das partes; na concepção da teoria da objetivação
do contrato, a liberdade contratual deve colmatar-se ao justo em concreto. Mesmo que
ainda acentuado o debate73 sobre os limites da liberdade contratual e da justiça contratual,
71
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Trad. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar,
1999, p. 18.
72
PERLINGIERI, (nota 72), p. 279.
73
GRISSI, (nota 62), p. 180. Na lição de Gazzoni o contrato se revela como “uno strumento a plurimo
impiego”, absorvendo a função, afora a tradicional manifestação da autonomia privada e de regulamentação
das relações privadas, de instrumento para persecução do interesse público. Sem embargo, observa Guarneri
que “le tecniche in cui si concreta questa istanza ideologica sono molto varie e vanno dall’applicazione di
27
não se tendo alcançando contornos suficientemente precisos para cada uma dessas esferas,
forçoso observar a relação contratual como um vínculo também conduzido pelo princípio
da eticidade. Desse modo, o justo em concreto e o equilíbrio das prestações na relação
negocial são objetivos que devem ser indefinidamente perseguidos.
Nessa perspectiva, vale lembrar a teoria da causa na sua concepção objetiva74, o
que corresponderia à função econômico-social do contrato. Conforme observa Anelise
Becker, o contrato, correspondendo à troca de bens e serviços, nasceu como instrumento
para a satisfação das necessidades do homem e da vida em sociedade, “função econômicosocial em que se revela toda a sua utilidade: o contrato nada mais é do que um instrumento,
privilegiado por seu modo de formação, que o direito reconhece, porque permite operações
socialmente úteis, isto é, permite troca de bens e de serviços para satisfação das
necessidades concretas”75. O contrato deve funcionar como instrumento de troca de
riquezas de forma eficaz e útil na organização da vida social. Aqui, “a vontade deixa de ser
clausole generali civilistiche quali la buana fede, il buon costume, l’ordine pubblico, in novello ordine
pubblico economico, l’equità, la meritevolezza dell’interesse – di cui all’art. 1322 c.c. -, all’utilizzo di
clausole generali della Costituzione quali la solidarità – art. 2 – l’utilita sociale – art. 41, 2º co. -, i fini sociali
– art. 41, 3º co. – al referimento generico ai concetti-valvola, senza determinare di qualle si trata, al richiamo
ai parametri sempre generici ma giuridici quali la Costituzione, i principi della Costituzione, la legge di piano,
al riferimento a parametr quali di piano, le sua direttive, i suoi obiettivi, le finalità des sistema econômico, la
produttività, ecc., non canonizzatti in norme giuridiche. Não deve ser por outro motivo que Ferri sugere
“estrema cautela” quanto à funcionalização dos institutos do civilistas aos fins sociais sob pena de
“paralizzare l’atttivitá del privato e di contraddire proprio quei principi di libertà e di eguaglianza”. No fundo,
Grissi parece sugerir prevalência da lógica do mercado. Assevera Sacco que ‘la previsione costituzionale
interessa il contratto non tanto sotto il profilo del contenuto, quanto sotto il profilo della agibilitá delle vie
d’acesso al mercato”, concluindo Galgano que ‘lo squilibrio fra le prestazioni non rileva in sé e per sé, ma
solo in quanto sai rivelatore di una diversa e ulteriore anomalia del contrato”. Mas, observa Messineti que
“quello che si vuole é l’espansione indefinita della razionalità economica del mercato” [apud GRISSI, (nota
86) p. 180-186].
74
Para Betti, “a causa ou razão do negócio jurídico se identifica com a função econômico-social de todo o
negócio, considerado despojado da tutela jurídica, na síntese de seus elementos essenciais, como totalidade e
unidade funcional, em que manifesta a autonomia privada. A causa é, em resumo, a função de interesse social
da autonomia privada.” [Emílio BETTI, Teoria geral do negócio jurídico. Trad. Fernando de Miranda.
Coimbra: Coimbra Editora, 1969, p. 350].
75
BECKER, (nota 35), p. 59.
28
um fim em si mesma” e o “contrato passa a ser sancionado pelo direito objetivo em virtude
de sua utilidade social, ou seja, porque permite operações socialmente úteis, com o que as
próprias operações, e não a vontade, passam a constituir o essencial”76. A liberdade
contratual resulta transferida para um segundo plano em atenção aos princípios da
equivalência das prestações e da boa-fé objetiva, obrigando a tutela do contrato com base
nesses valores protegidos pelo ordenamento jurídico, seja pelo modo como foram
concluídos, seja pelo seu conteúdo77.
Em atenção ao fenômeno do declínio da liberdade contratual e do próprio contrato
como instrumento de troca de riquezas é que se pode conceber uma nova teoria estrutural.
O aparato conceitual do Direito é essencialmente o do modelo clássico da teoria da
vontade, bastando examinar as concepções acolhidas no Código Civil de 1916 que não
revelam outro paradigma que não o voluntarista cunhado no século XIX. Faz-se necessário
um redimensionamento do ordenamento jurídico em atenção aos valores contemporâneos
que orientam as relações sociais, exigência que já foi apreendida por Miguel Reale no Novo
do Código Civil brasileiro ao tornar imanente o princípio da eticidade. Não é por outra
razão que o art. 421 do Novo do Código civil consigna expressamente que o contrato deve
atender a uma função social.
É exatamente com essa mentalidade que uma nova estrutura conceitual do contrato
pode estar assentada, como quer Atiyah, em três pilares do direito das obrigações: a idéia
76
GHESTIN, Jaques. Traité de droit civil, les obligations. Paris: LGDJ, 1988, p. 182, apud BECKER, (nota
35), p. 55.
77
RAISER, Ludwig. Il Compito del diritto privato. Milano: Giuffrè, 1990, p. 56, apud BECKER, (nota 67),
p. 57.
29
da recompensa por vantagem financeira - lucro; a proteção da confiança razoável e a
voluntária criação e extinção de direitos e responsabilidades78. No processo de redefinição
conceitual das categorias do Direito, as principais questões irão necessariamente dizer
respeito a conflitos envolvendo essas três noções. São esses questionamentos que devem
ser respondidos. Pode ser imposta responsabilidade nas hipóteses em que as vantagens
(lucros) são obtidas sem consentimento? Em que extensão os direitos devem ser criados ou
extintos por simples intenção, ou expressa intenção, na qual não há o elemento vantagem
ou o elemento confiança? Essas questões devem ser consideradas para a distinção entre um
presente e um futuro consentimento, presente e futuras trocas, não se olvidando do papel
das legítimas expectativas criadas. De todo modo, é assente o declínio do papel da vontade
e a necessidade de um relançamento redimensionado do contrato como instrumento de
troca.
78
ATIYAH, (nota 49), p. 779.
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