A QUEBRA DO PARADIGMA VOLUNTARISTA E A OBJETIVAÇÃO DO VÍNCULO CONTRATUAL Anizio Pires Gaviao Filho A era da codificação tem o seu marco inicial gravado na história da cultura jurídica no Oitocentos, notamente a partir do Código de Napoleão que veio por iniciar a chamada era das codificações. Essa afirmativa pressupõe o entendimento de que a codificação é um fenômeno dotado de significação e características próprias; somente considera código os jusracionalistas produzidos no Oitocentos. É essência da era da codificação a idéia de código como sendo uma lei autofundante1, estatuinte do ordenamento, norma de caráter legislativo que pode fundar toda a extensão de uma determinada matéria jurídica e, partindo de um sujeito unitário, cobrir o ordenamento por inteiro sem detrimento de sua própria articulação interna2. Em oposição às compilações do período pré-constitucional, que se caracterizam pela ausência de sistematicidade, ordem e unidade, próprias do direito antigo, os códigos da modernidade apresentam-se como formulação sistematizada de leis, ausência de antinomias, pretensão de totalidade do seu sistema interno com exclusão de qualquer instrumento heterogintegratório e com a necessária ab-rogação da normatividade precedente. 1 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 176. 1 Deseja-se recortar do processo codificatório a mais célebre codificação do Oitocentos que foi o Código Civil de Napoleão e, a partir dela, analisar um dos paradigmas essenciais da segunda sistemática: o dogma da vontade. A essência da investigação reside no exame da transformação do papel da vontade nas relações de troca. O paradigma voluntarista, assentado no dogma da vontade, remonta ao nominalismo de Scotus e Ockham em que podem ser encontradas as raízes fundamentais da teoria da vontade orientadora das grandes codificações do Oitocentos por todo o século XIX. No Estado liberal mínimo, a transferência de riquezas deve obedecer às regras do livre jogo das forças econômicas. Não há intervenção nas relações negociais privadas, pois as trocas são reguladas pela liberdade contratual. Na sociedade atomizada, o interesse público é atendido na medida em que assegurada ampla liberdade para cada indivíduo livremente estabelecer seus próprios vínculos negociais. Assim, a restrição à imposição de limites ao poder da vontade não tem outra motivação que não a liberdade contratual como expressão do princípio da autonomia da vontade, sendo inadmissível a imposição deveres não resultantes da vontade das partes. A justiça contratual considera-se assegurada pela liberdade contratual, ou seja, pela vontade livre dos contratantes. A autonomia da vontade e a igualdade eram os pilares que fundavam a teoria geral dos contratos. 2 CLAVERÓ, Bartolomé. Codificación y constutición: paradigmas de un binomio. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico. Milano, v. 18, 1989, p. 88. 2 As transformações sociais e econômicas sofridas pela sociedade produziram uma insustentável crise no modelo do Estado liberal mínimo. Modificadas as relações do Estado com a sociedade, emergem os valores do Estado Social que irão representar o crescimento das ações estatais nas relações privadas. Verifica-se que o modelo liberal-burguês do Estado não-intervencionista é insuficiente para atender à flagrante desigualdade e injustiça social que campeiam nas relações econômico-sociais. Dá-se, então, o declínio do papel da vontade a partir do aumento da intervenção estatal nas relações de troca. O Estado intervém decisivamente nas relações econômicas, controlando o mercado e os preços; com medidas legais e fiscais, promove recessão ou incremento da demanda de produtos. O crescimento das atividades do Estado aumentou as suas relações com os indivíduos, relações que são reguladas no âmbito do direito público. De outro lado, mesmo no âmbito das relações privadas, tem-se a realização de troca de riquezas - bens materiais, imateriais e serviços – levada a efeito por grandes corporações, entidades associativas ou organizações sociais. Esses fenômenos levaram ao virtual desaparecimento da teoria atomizada da sociedade, na qual cada indivíduo persegue o seu interesse em relações de livre escolha com outro indivíduo. As alterações nas relações de troca vão conduzir à redução do papel do contrato e da liberdade contratual. É o que acontece nos chamados contratos de adesão, nas obrigações de contratar compulsórias e nas hipóteses em que a responsabilidade não advém da vontade, mas de condutas objetivas e socialmente relevantes. Em verdade, deslocou-se o eixo da relação contratual da teoria da vontade para a teoria da declaração, decorrendo daí a concepção objetiva do vínculo contratual. É a objetivação do contrato que passa a admitir a 3 investigação da justiça na relação contratual, justiça comutativa no sentido de buscar o justo do caso concreto. Por conseguinte, o contrato, como instrumento de troca de riquezas, deve ser justo e útil para bem assim atender à sua função econômico-social. I – Em torno dos princípios fundantes da codificação francesa Em que medida e intensidade se operou a relação entre a Revolução francesa e Código civil é questão sobre a qual se tem ocupado a historiografia. Menezes Cordeiro observa que o Code reproduziu, em parâmetros determinados, o direito europeu anterior, criticando o entendimento que o considera como produto inovador de alterações jurídicosociais profundas. Em verdade, o Code traduz apenas o ponto culminante da evolução que, iniciada pelos comentaristas e renovada pelo humanismo e pela primeira sistemática, seria infletida e conduzida, em termos definitivos, pelo jusracionalismo. Afirma Menezes Cordeiro não vislumbrar, entre a doutrina jurídica pré-revolucionária e o Code, rupturas ou evoluções significativas. O direito corporificado no Código de Napoleão, há muito, na ciência, sofria um processo de transformação. Os acontecimentos que, formalmente, tiveram lugar nas jornadas da Constituinte e da Convenção foram prenunciados pela revolução jusracionalista, com raízes de base até ao século XVI3. As alterações de conteúdo que tenham havido no direito privado devem ser procuradas na pré-codificação e no fermento jusracionalista que a informou4. Contudo, quando se refere aos dois grandes pilares substanciais do Código civil francês, o art. 5545 e o art. 1.134/16, Menezes Cordeiro 3 MENEZES CORDEIRO, A Manoel. A boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p. 226-227. MENEZES CORDEIRO, (nota 4), p. 232. 5 A propriedade é o direito de gozar e de dispor dos bens da forma mais absoluta, desde que não se faça deles um uso proibido pela leis e pelos regulamentos. 6 As convenções formadas legalmente valem como leis para aqueles que as fizeram. 4 4 reconhece, quanto ao primeiro, “uma acentuação do domínio, consoante a propriedade liberal da Revolução” e, quanto ao segundo, “um influxo de idéias novas”7, referindo-se ao consensualismo napoleônico. Sem embargo, “a codificação é uma questão da cultura moderna”, definindo-se ao ensejo da Revolução como meio de superação da sociedade do ordenamento corporativo e jurisprudencial, pois, “não há uma seqüência de direitos, Constituição e, logo depois lei, eventualmente Código”, deixa sentir Bartolomé Clavero. Isso porque “o Code não constitui um desenvolvimento do ordenamento, mas a ordenação imediata da liberdade no âmbito civil no mesmíssimo grau que a Constituição deve, também teoricamente, sê-lo no campo político”. A codificação é reclamada pelos direitos e é efeito da Revolução 8. A codificação, por ser uma norma extensa, que cobre um ordenamento de matéria, coerente e articuladamente, estava a exigir um requisito substantivo e não menos revolucionário: sujeito unitário9. Para esses efeitos se necessitava de “Revoluções”, ou seja, em sentido normativo, de “Constituições”, ou, mais precisamente, de “Declarações de direitos constitucionais”; com umas para se chegar a um tipo de lei e com outras para dita espécie de sujeito. Somente assim a codificação se define como objetivo, resultando possível10. Ainda que não se entremostre tarefa fácil a identificação da causa determinante do Código civil francês, afigura-se imperioso conciliar o pensamento doutrinário do período pré-constitucional com os ideais da Revolução, da Declaração dos direitos e da 7 MENEZES CORDEIRO, (nota 4), p. 233. CLAVERO, (nota 2), p. 104-105. 9 CLAVERO, (nota 2), p. 81. 10 CLAVERO, (nota 2), p. 81-82. Em sentido contrário, Arnaud vai concluir pela “inevitabilidade” do Código civil francês em atenção as suas raízes doutrinárias [MARTINS-COSTA, (nota 1), p. 172]. 8 5 Constituição. Não se pode esquecer de que a codificação significa “a mais colossal operação de política de direito em todo o arco da história jurídica ocidental”11. Não parece haver dúvida que o processo de unificação e sistematização do Direito francês tenha suas raízes para muito além da Revolução, mas se entremostra inegável que o seu momento culminante se dá com a codificação que está intrinsecamente vinculada à época revolucionária12. Os princípios fundamentais do direito estabelecido na primeira grande codificação correspondem ao sistema jurídico típico de uma sociedade em desenvolvimento pela ótica do capitalismo. É o que se percebe pelo exame dos elementos fundamentais da codificação: o individualismo, o liberalismo, o subjetivismo, o voluntarismo e o racionalismo. Igualmente, isso é denunciado pela própria organização das instituições jurídicas13. Assentando na consagração dos grupos burgueses e do liberalismo individualista, o Código civil francês, coerentemente sistematizado, disciplinou as relações civis, ab-rogando as antigas fontes normativas. Sob uma “feição antropocêntrica”, apresenta o homem como centro do sistema, pois a lei está fundada nos seus direitos inatos14. Observou-se, no período pré-revolucionário, uma certa insuficiência das estruturas jurídicas para conviver com as novas exigências da classe social que estava assumindo uma 11 GROSSI, Paulo. Página introdutiva. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico, Milano, v. XXIII, 1944, p. 12. 12 Interessante referir que a própria vontade para a codificação está expressamente explicitada no decreto da Assembléia Constituinte de 5 de julho de 1790, referindo-se a um código geral de leis simples e claras. 13 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da Codificação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 74. Anota-se que o Código civil francês dispensou significativa atenção aos bens, destinando mais de 1.700 artigos à matéria, reservando 500 artigos para as pessoas. 14 MARQUES, Mário Reis. O liberalismo e a codificação do direito civil em Portugal. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1987, p. 137. 6 importância econômica, cultural e política cada vez maior. A burguesia havia conquistado um espaço determinante na economia e na cultura, mas o Estado e as instituições jurídicas continuavam ligadas aos interesses do alto clero e às concepções da nobreza. Nesse contexto, o mito jusracionalista transforma-se em ideologia e o Direito será o seu instrumento15. Justifica-se, então, um Direito racional. Acresce-se a isso a doutrina do contrato social. Pelo contratualismo, a liberdade originária que funda o pacto social está determinada pela idéia de liberdade. Essa liberdade é a liberdade de iniciativa da classe emergente que se expressa pela vontade, fonte geradora de direitos e deveres, e é tutelada pela lei; uma lei que garante a expressão livre da vontade, assegurando-lhe um imenso espaço jurídico. Estão aí, juridicamente colmatadas, as noções de direito subjetivo, como poder de vontade, e do contrato, como acordo de vontades, ao qual é atribuído a força de uma lei. Ao Poder público não é lícito violar a livre expressão da vontade. Desse modo, uma nova lei, intimamente ligada à idéia de igualdade, estava sendo gerada. A importância da concepção da lei nesse momento histórico é extremamente significativa. Tem-se a idéia de lei como algo nascido da vontade geral da nação, alheia a vontade dos juízes16. A lei, por sua racionalidade, clareza e generalidade, passará a ser considerada como uma garantia contra o arbítrio da atividade jurisdicional. Essa atividade 15 MARTINS-COSTA, (nota 1), p. 181. Interessante observar que os juízes, na França, eram considerados como uma classe dominada pela corrupção e comprometida com os interesses das classes privilegiadas, das quais provinham. Ainda hoje parece haver certa desconfiança como o poder de criação da atividade jurisdicional [MARTINS-COSTA, (nota 1), p. 184]. 16 7 jurisdicional passa a se constituir em operação meramente subsuntiva. Então, na França, o conceito de lei será objeto de exaltação. Assente nas idéias de lei, Código, Direito nacional e Estado nacional, a Escola da Exegese17 explica-se pelo primado da completude da lei. O Código surge como recolha autêntica do direito natural. O Direito, assim, aparece como algo realizado e acabado e não admite, por isso, incompletude. A lei18 é o Código decorrente da vontade geral. Somente o direito posto constitui normas jurídicas e a lei é a única fonte do direito. Na lição de Julien Bonnecase, a idéia da Escola da Exegese representa “o culto do texto da lei e fé na sua virtude própria”19. A soberania da lei, aliada ao princípio da separação dos poderes, conforma a estrutura do Estado de direito, cabendo ao legislativo a primazia sobre os demais poderes, porquanto é manifestação direta da soberania do povo. Ao juiz impõe-se subordinação à lei, enquanto ao jurista cabe apenas interpretar o texto do Código, artigo por artigo20, visando a alcançar a intenção do legislador na busca do sentido e do alcance dos textos legais. Impera, pois, a interpretação literal do texto legal, pois a lei é dotada de A denominação L’École de l’Exègèse, segundo Tarello, foi posta em circulação por um dos juristas privatistas franceses, no início do século XX, Julien Bonnecase, o qual, com o propósito de criticar a Escola da exegese, fez, ainda que de maneira precavida e parcial, a história e consolidou a denominação. A propósito, recorda Tarello que os juristas da Escola da exegese se referiam ao seu método como “méthode analitiche” ou “méthode exegetique” em contraposição ao “méthode dogmatique” [TARELLO, Geovanni. Cultura jurídica y política del derecho. México: Fondo de Cultura Econômica, 1995, p. 65]. 18 E o critério de validade da norma jurídica é a promulgação da lei, conforme estabelece o próprio art. 1º do Código civil francês. 19 Apud MARQUES (nota 15), p. 140. Marques, citando lição de Julian Bonnecasse, refere: “afirmando que quando ‘a lei é clara e positiva’ não há lugar para interpretação, Demolombe, como uma visão restritiva (‘L’ interprétation des lois, c’est la science ellemêne tout entière’), defende a tese de que a invocação de uma ‘pura regra de direito natural’, não sancionada ainda que ‘indiretamente’ ou ‘implicitamente’ pela lei, ao invés de levar o juiz a proferir sentença favorável, deve levá-lo a conclusão de que ‘a demanda não é fundada’. Em geral, para os civilistas desta escola, o art. 4º não erige em ‘leis civis obrigatórias’ todas as regras de direito natural, na as sanciona em massa (cfr. DEMOLOMBE, Cours de Code Napoléon, 2ª ed., Paris, 1860, vol. I, 130 ss.). Os jurisconsultos não devem em mente um direito natural ideal, mas um direito natural possível, aquele que transparece da legislação escrita” (p.140). 20 TARELO, Geovanni. Cultura jurídica y política del derecho. México: Fondo de Cultura Econômica, 1995, p. 64. 17 8 sentido único, determinado pelo legislador. Os professores não ensinam Direito civil, mas o Código Civil21. A lei é a fonte exclusiva do Direito de modo que juiz, a teor do art. 4º e do art. 5º do Código Civil, está proibido de heterointegração do sistema jurídico. Com Mário Marques Reis pode-se afirmar que o individualismo consagrado no Código civil francês alia-se aos princípios universais do direito romano clássico, pois estes se adaptam ao tipo de Direito exigido por uma sociedade baseada no laissez-faire e na autonomia privada. Em verdade, a autonomia da vontade representa a liberdade proclamada pela Declaração dos Direitos do Homem (art. 4º) com o Código civil. A livre circulação da riqueza é favorecida com a regulamentação dos contratos, observados os limites estabelecidos pela ordem pública e bons costumes. Em contraste com as incapacidades antigas, particulares características do Ius commune, a capacidade que enseja a responsabilidade contratual permite que os homens produzam as próprias leis22. Em verdade, a lei está a serviço dos homens. Os indivíduos, com base na lei e impulsionados pela vontade individual, podem livremente estabelecer tratativas negociais e creditícias. Superada a estrutura da sociedade feudal com todos os seus privilégios e limitações, o Direito civil, pelo Código, passa ter como princípio fundante a igualdade e a soberania individual. O sujeito de direito23 do Código é único. O jusnaturalismo, o racionalismo e a 21 A respeito, vale lembrar a célebre frase atribuída a Joseph Bugnet, professor da Faculdade de Direito de Paris: “Eu não conheço o direito civil, ensino o Código de Napoleão”, mencionada na obra de Julien Bonnecase [MARTINS-COSTA, (nota 1), p. 193]. 22 MARQUES, (nota 15), p. 139. 23 Clavero, citando Tomás y Valiente, remete a meados do século XVII e identifica em Hobbes o momento generativo da concepção constitucional da relação entre o Estado e o indivíduo, tomando este na perspectiva originária como agente jurídico, como sujeito de direito e dos direitos, de ordenamento e de liberdades. Clavero lembra que tradicionalmente pessoa era algo para ser possuído e não algo para ser; o homem, por ter pessoa, não era pessoa; não era indivíduo. A pessoa era qualidade ou capacidade conferida ao indivíduo e nunca o indivíduo propriamente. Hobbes foi o primeiro teórico a elaborar o princípio de que a pessoa é o indivíduo e o mesmo deste modo se concebe por si como sujeito de direito. E primeira idealização conjunta do indivíduo e do Estado constitucionais, segundo Clavero, vai ser encontrada em John Lock em uma 9 projeção da vertente individualista da prática econômico-social-burguesa colocam o indivíduo no centro do Direito. Os vários sistemas jurídico-particulares, com suas jurisdições e privilégios específicos, fundiram-se num só ordenamento jurídico construído em torno de um ente abstrato – o sujeito de direito24. Tem-se, então, o dogma da autonomia privada como essência da codificação francesa exatamente em atenção ao atendimento da finalidade política da sociedade liberalburguesa. Por isso, impende investigar as transformações a que foi submetida na evolução da cultura jurídica, especialmente em relação às profundas alterações experimentadas pela sociedade que culminaram com o advento do Estado social moderno. II – Do paradigma voluntarista à objetivação do vínculo contratual O dogma da vontade remonta ao nominalismo de Duns Scotus e de Guilherme de Ockham. Na lição de Macintyre, o franciscano Scotus foi o progenitor e o mais distinguido colaborador da linha antitomística da baixa Idade Média, deixando assentado que o modo agostiniano de entender a primazia da vontade pressupõe que o entendimento é inerte, a vontade é livre e que o fato de que a vontade seja movida por seu bem é algo diferente de que a vontade seja obediente ao mandado de outro; “a vontade, portanto, somente pode mostrar sua obediência à Deus não somente obedecendo a lei natural qua diretriz de nosso concepção mais bem elaborada do indivíduo como sujeito de direitos, titular e ator de liberdades [CLAVERO, Bartolomé. Happy constitucion. Madrid: Trotta, 1997, p. 12-20]. 24 MARQUES, (nota 15), p. 140. Marques acrescenta que “o Code civil é agora o direito comum dos cidadãos franceses, sintetizando as tradições dos pays de droit écrit e dos pays de droit coutumeir, que cedem perante uma legislação de tipo uniforme”. 10 bem, senão também qua mandamento divino”25. Desse modo, segundo Macintyre, ao lado do “dever” da razão prática, aparece outro “dever”, desconhecido para Aristóteles e para o mundo antigo, qual o “dever” característico da obrigação moral, surgindo assim um novo e caraterístico “dever”26. Na concepção nominalista, antitomista, os filósofos sustentavam que a vontade é o móvel da vida humana. Ao contrário do defendido por São Tomás, que dizia que a vontade é um órgão executivo, necessário para executar os insights do intelecto, uma faculdade meramente “subserviente”, Duns Scotus sustenta que “intelectus ... este causa subserviens voluntatis”27. O intelecto serve à vontade, fornecendo a ela seus objetos, bem como o conhecimento necessário; ou seja, o intelecto torna-se uma faculdade meramente subserviente, pois necessita da vontade para direcionar a sua atenção e somente pode funcionar adequadamente quando o seu objeto é “confirmado” pela vontade28. Isso importa na medida em que o voluntarismo encontrado na gênese do contrato provém das concepções nominalistas de Scotus e Ockham. A célebre disputa política entre a Ordem dos Franciscanos e o Papado, cujo objeto foi a propriedade29 de terras é lembrada por Judith Martins-Costa30; os nominalistas defendem a primazia da vontade para demonstrar que a soberania do rei e o direito de propriedade privada não são impostos por 25 MACINTYRE, Alasdair. Tres versiones rivales de la ética. Trad. De Rogelio Rovira. Madrid: Rialp. 1992, p. 194-198. 26 MACINTYRE, (nota 26), p. 198 e 242. 27 ARENDT, Hanna. A vida do espírito. Trad. Helena Martins. Rio de Janeiro: 2000, p. 280. Observa Hanna Arendt que São Tomas defendia primazia do intelecto sobre a vontade. 28 ARENDT, (nota 28), p. 280. 29 Para Ockham, os franciscanos são os perfeitos imitadores do Cristo pobre e sem propriedade; os franciscanos não têm propriedade, mas somente o usufruto, sendo a Santa Sé a proprietária dos bens. 11 um “direito natural”, “preexistente à sociedade, aistórico e atemporal”, pois constituem “criações arbitrárias e históricas” na origem das quais está o indivíduo, criando as instituições jurídicas livremente por sua vontade, a qual não é servo do intelecto, como dizia Tomás de Aquino, mas é autônoma e criadora31. É dessa concepção que se permite concluir que o indivíduo no estado da natureza é livre32 e nada pode obrigá-lo, salvo seu consentimento33; logo, a origem única das regras jurídicas, por definição obrigatórias, é o acordo de vontades, é o consenso. Já com os primeiros jusracionalistas34 aparece o contrato como um expressão da vontade, restando sistematizada pela noção de consenso em Domat e Pothier35 36 que vem a desembocar no 30 MARTINS-COSTA, Judith. A noção de contrato na história dos pactos. Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, o editor dos juristas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.501. 31 MARTINS-COSTA, Judith, (nota 31), p. 501. 32 RIEG, Alfred. Le rôle de la volunté dans la formation de l’acte juridique d’après les doctrines allemandes du XIX siècle. Arquives de Philosophie du Droit, Paris, v. 4, 1957, p. 125-126. O indivíduo é livre, constituindo-se no seu próprio e único senhor, submetido apenas à sua própria vontade que livre e soberanamente lhe autoriza a assumir obrigações. 33 VILLEY, Michel. Essor et Décadence du Voluntarisme Juridique. Arquives de Philosophie du Droit, Paris, v. 4, 1957, p. 90-91. 34 BECKER, Anelise. Teoria geral da lesão nos contratos. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 17-18. Anelise Becker lembra que já no início do século XVII Grócio seculariza o brocardo solus consensus obligat, “tornando-se o ponto de contato entre a tradição canônica e o voluntarismo moderno”, acrescentando que o seu grande mérito foi evitar, mediante o princípio de direito natural pact sunt servand, o “perigo de que a vontade humana, por meio do contrato, pudesse revolver sempre e arbitrariamente as relações jurídicas” (p.18). 35 MARTINS-COSTA, (nota 1), p. 201. 36 CALASSO, Francesco. Il negozio giuridico. Milano: Giuffrè, 1959, 339-340. Sobre a contribuição de Domat e Pothier para a codificação francesa, imperioso referir: “...il rapporto dialettico della norma agendi e della facultas agendi, e si era prestado prestado perció come strumento prezioso a una filosofia che mirava a elevare l’individuo a principio e fine della realtá politica giuridica, viene in primo piano, ed è fatale che in questa posizione di preminenza esso venga esaltato como manifestazione per antonomasia della volontá umana. Como osservó Emmanuelle Kant, l’idea del contrato era il solo mezzo possibile per costruire i diritti naturali dell’individuo dentro la strutura dello Stato. Ed é naturale que il punto d’arrivo di questo lungo travaglio di pensiero si stato consacrato nel codice Napoleone (1804), fruto della Revoluzione francese, nella famosa definizione dell’art. 1.101: Le contrat est une convention. Nella Francia illuministica, due grandi giureconsulti avevano lavorato alacremente a utilizzare, delle correnti giusnaturalistiche, quel tanto di vitale e de duraturo che poteva innestarsi alla grande tradizione del diritto comune, accettato da secoli in Francia non ratione Imperii, sed imperio rations: Jean Domat (1625-1696), l’autore de Les lois civiles dans leur ordre naturel, definito ‘le restaurateur de la raison dans la jurisprudence’ e Rober-Joseph Pothier (1699-1772), che ebe fortíssimo il senso della socialittá del diritto: il loro pensiero alimentò largamente il codice della Rivoluzione” (p. 340). 12 Código Civil francês. Lembra Arnaud que o axioma posto no art. 1.134 do Code é a expressão de todo um sistema filosófico adaptado ao Direito37. Durante algum tempo, essa noção serviu para designar todo e qualquer tipo de vinculação obrigacional que resultasse da bilateralização da vontade individual. A idéia de vontade como expressão suprema e inderrogável da liberdade individual alcança o Código do Napoleão na sua essência. O contrato é considerado fonte primordial das obrigações juridicamente vinculantes como e enquanto manifestação da vontade individual38, resultando do consenso que deve ser entendido como modo de exercício da liberdade individual para se vincular juridicamente. Plausível, pois, assimilar o contrato ao consentimento, e este à vontade, daí surgindo o voluntarismo que seria, nos duzentos anos seguintes à Revolução, tanto a pedra de toque do direito contratual como a ferramenta privilegiada das operações econômicas de intercâmbio de bens e de serviços típicas do capitalismo em suas várias formas39. A concepção do contrato como manifestação da vontade humana em si e por si mesma produz várias conseqüências no enfrentamento das relações jurídicas privadas. Entre estas está a proteção que foi conferida quase que exclusivamente a um dos pólos da relação jurídica contratual: o credor, manifestante da vontade que é sacralizada. Não requer muito esforço perceber toda a proteção jurídica que foi alcançada ao credor na relação obrigacional, exatamente a fim de atender ao exigido pelo necessário livre jogo de 37 38 ARNAUD, André-Jean. Les origenes doctrinales du Code Civil français. Paris: LGDJ, 1969, p. 197. MARTINS-COSTA, (nota 31), p. 503. 13 forças econômicas do mercado que levaria a “uma situação social ótima”40. Concluído o contrato, a obrigação contratual não mais poderia ser modificada, admitindo-se a intervenção do Estado somente em “socorro do credor, colocando toda a força pública à sua disposição para compelir o devedor a cumpri-lo”, assenta Marcel Waline41. A restrição à imposição de limites ao poder da vontade não tinha outra motivação que não a liberdade contratual como expressão do princípio da autonomia da vontade. Somente é admissível a oposição de alguns poucos limites negativos, como os atinentes aos bons costumes e os próprios da manifestação livre da vontade. De outra parte, absolutamente intoleradas limitações positivas como, por exemplo, imposição de certos deveres não-resultantes da vontade das partes. É nessa perspectiva, também, que a justiça contratual considera-se assegurada pela liberdade contratual, ou seja, a vontade livre dos contratantes. A autonomia da vontade e a igualdade eram os pilares que fundavam a teoria geral dos contratos. Uma não pode ser entendida sem a devida vinculação com a outra. Vontade livre e igualdade eram a tradução jurídica da concepção econômica do liberalismo. A vontade autônoma quer dizer autonomia como imunidade e como poder de incidir sobre a realidade exterior. Na lição de Dieter Schwab, “a doutrina do direito civil do século 19 entendia os princípios da liberdade de contratar e da livre concorrência, igualmente, como elementos de uma ordem natural que o Estado tem o dever de deixar intocada, livre de sua intervenção e que, assim, livre e auto- 39 MARTINS-COSTA, (nota 1), p. 202 SCHWAB, Dieter. Liberdade contratual e formação de contratos ‘ex vi legis’. Revista da AJURIS, v. 39, 1987, 19. 41 Apud BECKER, (nota 35), p. 26. 40 14 atuante, conduz ao bem comum”42. A ação estatal deve estar restrita ao sancionar o resultado do livremente convencionado pelos indivíduos. Por conseguinte, o contrato, na concepção voluntarista do Código civil francês, é considerado intrinsecamente justo. A justiça é intrínseca ao contrato, decorrendo tanto da liberdade de contratar como da igualdade dos contratantes. Ainda que já Grócio, fundado na idéia de vontade e razão, tenha se referido à justiça contratual como decorrente do equilíbrio nas prestações, assentou-se na doutrina liberal individualista, sob o ideal voluntarista, que a justiça contratual é fenômeno natural do livre jogo operado no mercado conduzido sob a perspectiva da livre concorrência; isso é capaz de garantir a justiça comutativa individual. Adverte Roppo que nesse sistema, fundado na ampla liberdade contratual, “não havia lugar para a questão da intrínseca igualdade, da justiça substancial das operações econômicas de vez em quando realizadas sob a forma contratual. Considerava-se e afirmava-se, de fato, que a justiça da relação era automaticamente assegurada pelo fato de o conteúdo deste corresponder à vontade livre dos contraentes, que, espontânea e conscientemente, o determinavam em conformidade com os seus interesses, e, sobretudo, o determinavam num plano de recíproca igualdade jurídica”43. SCHWAB, (nota 41), p. 17. Acrescenta Dieter Schwab que “o postulado da liberdade contratual vincula-se a um determinado posicionamento básico, sócio-político, que passou a ser conhecido, predominantemente, sob o conceito de ‘liberalismo’. Do enfoque teórico-histórico o liberalismo tem origens em parte na doutrina da filosofia moral inglesa-escocesa de Shaftesbury, Lock e Adam Smith, e de, de outra parte, origina-se nos ensinamentos da escola fisiocrática francesa, que cunhou frases, tais como: ‘laissez faire, laissez passer, le monde va de lu mêne”. 43 ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 35. Acrescenta Roppo que as revoluções burguesas, bem como as sociedades liberais delas decorrentes, aboliram os privilégios e as discriminações legais que caracterizavam os ordenamentos em muitos aspectos semifeudais do “antigo regime”, afirmando, então, a paridade de todos perante a lei. Era exatamente essa igualdade de posições jurídico-formais entre os contrantes que garantia que as trocas respeitavam os cânones da justiça comutativa. E conclui Roppo que “liberdade de contratar e igualdade formal das partes eram portanto os pilares – que se completavam reciprocamente – sobre os quais se formava a asserção peremptória, segundo a qual dizer contratual equivale a dizer justo (p.35). 42 15 Na medida em que absolutamente subjetivado o vínculo contratual pela integral acolhida do princípio da autonomia da vontade, por esse condicionamento perpassa toda a questão da teoria das nulidades, exatamente em atenção à problemática dos vícios, defeitos ou inexistência da vontade. Assevera Cláudio Fortunato Michelon Júnior que “a vontade sempre jogou um papel fundamental no conceito de negócio jurídico e, conseqüentemente, na autonomia das nulidades. Conforme o papel desempenhado, alguns ‘defeitos’ poderiam sofrer tratamento diverso e ser considerados ora como causa de nulidade ora como causa de anulabilidade. Quando se considerou que a vontade era o verdadeiro fundamento do ato jurídico e que a declaração de vontade era apenas o instrumento de expressão desde fundamento, qualquer divergência entre a vontade interna e a declaração acarretaria as conseqüências jurídicas radicais, de que se compõe o regime jurídico das Nulidades”44. O entendimento era de que vontade viciada não é uma vontade livre, não havendo falar em consentimento; as conseqüências do contrato devem estar conforme as representações mentais dos contratantes, admitindo intervenção do Estado na hipótese de qualquer imperfeição ou perturbação do processo de formação da vontade, devendo ser extinta a avença em que – por ausência ou defeito do elemento psíquico – faltasse o seu próprio fundamento. A vontade humana é considerada de forma tão exacerbada que vem conduzir diretamente a disciplina em matéria de erro, dolo, coação, simulação, entre outras, todas destinadas a tutelar “a liberdade e a espontaneidade do querer de quem realiza o negócio, e a desobrigá-lo do vínculo negocial, sempre que a sua vontade resulte de qualquer 44 MICHELON JÚNIOR, Cláudio Fortunato. Teoria das nulidades. Porto Alegre: UFRGS, Trabalho para o Curso de Pós-Graduação (Mestrado em Direito) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1994, p. 42. 16 modo perturbada”45. Nessa concepção voluntarista do século XIX, a vontade interior dos contratantes definia o conteúdo e os efeitos da relação obrigacional avençada. Via-se na vontade o elemento principal, superior à sua manifestação ou declaração46. Desse modo, nas hipóteses de incapacidade ou vícios do consentimento, como na hipótese de coação, dolo ou erro, a solução é a nulidade47. Assim, faltando a liberdade contratual, resulta contaminado todo o ato. Essa solução é uma conseqüência direta do acolhimento de uma concepção voluntarista ou subjetivista das relações contratuais. Com raízes profundas no direito natural, acolhida na doutrina da codificação francesa, a vontade orientou, em essência, o desenvolvimento das relações negociais ao longo do século XIX. Com Atiyah, fixa-se o período do nascimento, do desenvolvimento e do ápice da liberdade contratual orientada pela vontade livre como sendo de 1770 a 1870, reservando-se o período de 1870 a 1970 para a chamada era do declínio da liberdade contratual48. Ainda que se possa afirmar arbitrária a fixação da história em períodos, é inegável que a opção de Atiyah mostra íntima relação com o desenvolvimento das concepções econômicas na história da humanidade, principalmente porque o contrato é instrumento de troca de riquezas. 45 ROPPO, (nota 44), p. 49. BECKER, (nota 35), p. 44. Cf. Clóvis do Couto e Silva (COUTO E SILVA, Clóvis. Para uma história dos conceitos do direito civil e no direito processual civil, Revista de Processo, v. 37, 1985, p. 240). 47 COUTO E SILVA, Clóvis. Para uma história dos conceitos do direito civil e no direito processual civil. Revista de Processo, São Paulo, v. 37, 1985, p. 240. 48 ATIYAH. P.S. The rise and fall of freedom of contract. Oxford: Clarendon Press, 1979, p. 256. Atiyah aponta início da história da liberdade contratual em 1700, indicando o período de 1770 a 1870 como a era da liberdade contratual e o período de 1870 a 1970 como o declínio e a queda da liberdade contratual. A era do individualismo é considerada pelo período de 1770 a 1870. 46 17 Na perspectiva de investigar os primeiros movimentos do início do declínio da liberdade contratual e também o declínio do próprio contrato, é necessário atentar para alguns fenômenos sociais e econômicos importantes que conduziram à modificação do paradigma voluntarista. Isso porque o declínio da liberdade contratual está intimamente relacionado com as alterações experimentadas na economia e na sociedade. À proporção que as concepções e os modelos econômicos eram superados pelas novas relações sociais, e novos modelos de troca de riquezas passaram a ser exigíveis, a reorientação do paradigma voluntarista restou impositiva. Um primeiro ponto de quebra da concepção do individualismo deu-se em relação ao aparecimento e desenvolvimento da classe trabalhadora. Ocorreu que, no desenrolar do século XIX, o individualismo começou a perder seus atrativos, particularmente na classe operária. Também significativo problema do modelo negocial do século XIX pode ser apreendido nas implicações entre o individualismo e igualitarismo. Afirma Athiyah: “MidVictorian individualism was plainly antagonistic to egalitarian ideals”. Durante o século XIX, acreditar em igualdade, em igualdade econômica ou justiça social não tinha base na opinião pública ou política, pois não havia crença na igualdade como um ideal49. Desenvolvendo-se o século XIX, cada vez mais se via injustiça nesse processo. A competição começou a ser vista, aos olhos de alguns, como uma degradação, luta social constante de homem contra homem ao invés de um encorajamento social de cooperação. Os que nasciam ricos e em boa posição tinham enorme vantagem na competição em relação 18 aos outros. Logo, a idéia de igualdade passou a ser bastante significativa nas relações humanas. É nessa perspectiva que começa a surgir uma minoritária classe de pensadores e de escritores, colocando em dúvida a sociedade até então incontestável50. São esses fenômenos sociais e econômicos que irão desencadear uma profunda transformação do papel da vontade nas relações negociais de troca de riquezas, culminando com o declínio do contrato51. Foi Keynes quem pronunciou a oração funeral The End of Laissez Faire, em 1926, afirmando que “não é de modo algum verdade que os indivíduos possuam, a título necessário, uma ‘liberdade natural’ no exercício das suas atividades econômicas. Não existe nenhum ‘pacto’ que possa conferir direitos perpétuos aos possuidores e aos que se tornam possuidores. O mundo não é de modo algum governado pela providência de maneira a fazer sempre coincidir o interesse particular com o interesse geral. E ele também não está organizado de maneira tal que os dois acabem por coincidir na prática. Não é de todo correto deduzir dos princípios da economia política que o interesse pessoal devidamente esclarecido opere sempre em favor do interesse geral. E não é tampouco verdade que o interesse pessoal seja em geral esclarecido. A experiência não demonstra de modo algum que os indivíduos, uma vez reunidos numa unidade social, sejam sempre menos 49 ATIYAH, (nota 49), p. 287. ATIYAH (nota 49), p. 289. Já em 1861, John Stuart Mill, na sua obra Utilitarianism, apresenta um discurso defensivista discutindo as desigualdades (p.289). 51 O paradigma contratual clássico, assentado na teoria da vontade, na liberdade de escolha e no modelo econômico do mercado livre deixou de atender as exigências das trocas. Na concepção do modelo clássico, o contrato, uma vez celebrado deve ser obedecido e cumprido. A conseqüência e o efeito do contrato depende da intenção das partes e não pode ser imposto pelo tribunal; os tribunais não fazem os contratos pelas partes, nem ajustam ou alteram os termos do acordado pelas partes; a honestidade e a justiça da troca era irrelevante. 50 19 clarividentes do que quando agem isoladamente”52. Se isso não era o fim, era apropriadamente o bastante. A Segunda Guerra, o desemprego e a recessão indicaram o fim do ideal de que os homens, independentemente dos governos, poderiam organizar livremente a sociedade. O individualismo do início do século XIX tinha como base a necessidade de imposição de disciplina social na nova sociedade industrial e urbana, enquanto o Estado construía sua máquina administrativa. Com substanciais alterações na sociedade e novas exigências impostas pelas trocas, a solvabilidade dos conflitos emergentes passou a requerer novos instrumentos. Em vista disso, os problemas sociais e econômicos passaram a exigir a intervenção estatal de forma mais significativa, emergindo o Estado Social. Um dos mais sérios problemas da queda do modelo clássico contratual foi não alcançar soluções para os problemas dos monopólios e dos acordos ditos restritivos. A alternativa encontrada pelo legislador do Código civil italiano, por exemplo, foi estabelecer restrições à liberdade de contratar. Basta observar o art. 2.596 que trata do pacto contra a liberdade de concorrência, impondo obrigação de não-contratar, e o art. 2.597 que impõe obrigação de contratar àquele que exerce monopólio legal53, mesmo contra sua vontade. Também o declínio da liberdade de escolha pode igualmente ser sentido nos compulsory Todas essas concepções do modelo contratual clássico não mais lograram atender as exigências impostas pelos novos valores da sociedade. 52 ATIYAH, (nota 49), p. 626. Cf. Atiyah: “It is not true that individual process a prescriptive ‘natural liberty’ in their activities. There is no ‘compact’ conferring perpetual rights on thosse who have or on those who acquire. The world is not so governed form above that private and social interest always coincide. It is not so manage here below that in practice they always coincide. It is not a correct dedution from de Principles of Economics that Enlightened self-interest always operates in the public interest. Nor is it true that selfinterest generally is enlightened; more often individuals acting separately to promote their own ends are too 20 contracts54. Então, não há livre escolha na relação de troca quando o conteúdo da relação negocial é imposto de forma compulsória para uma das partes. Essa concepção, considerada a teoria clássica dos contratos, é praticamente impensável, pois a relação negocial somente pode ser ultimada pela liberdade de escolha orientada pela vontade, não importando se houve ou não qualquer tipo de pressão para produzir a escolha55. Os últimos trinta anos, segundo Atiyah, têm acentuado o declínio do contrato desde seu ápice em 1870. Três aspectos dizem respeito a esse fenômeno. O primeiro referese à importância econômica na medida em que o papel do contrato encontra-se reduzido na sociedade, o que significa que o contrato pode perfeitamente ser dispensado em algumas relações de troca. O segundo aspecto está relacionado ao declínio do valor da liberdade de escolha como fonte dos direitos e responsabilidades e, conseqüentemente, o aumento da importância dos direitos e deveres não-voluntariamente impostos ou assumidos. O terceiro refere-se ao fato de que há um movimento de afastamento dos modelos contratuais como instrumentos de alocação de riscos. Isso significa que as trocas contemporâneas em termos que se lhes permitam devem permanecer continuamente abertas para futuros ajustamentos tão longas quanto possíveis sejam as relações de troca56. ignorant or too weak to attain even these. Experience does not show that individuals, when they make up a social unit are always less clear-sighted than when they act separately” (p. 626). 53 GRISSI, Guiseppe. L’autonomia privata. Milano: Giuffré, 1999, p. 26. 54 ATIYAH, (nota 49), 742. 55 ATIYAH, (nota 49), p. 702. Outro exemplo pode ser tomado na decisão adotada por uma corte inglesa no célebre caso Esso Petroleum (1968) ao invalidar um acordo, determinando que a companhia fornecesse combustível ao proprietário do posto de combustível pelo prazo de vinte e um anos. A decisão sustentou que a restrição convencionada não era razoável em atenção ao interesse público, acrescentando que as partes não se encontravam em igualdade de condições de barganha. Desde então, observa Atiyah, um número significativo de decisões tem sido adotadas nas quais os Lords mostram considerável flexibilidade de pensamento. Tanto é assim que, em 1974, foi possível ao Lord Diplock afirma na House of Lords que o verdadeiro ponto da restrição do acordos não estava no interesse público, mas na simples questão de honestidade (P. 702). 21 O declínio pode ser sentido também no aumento da intervenção do Estado nas relações privadas de troca. É bem verdade que a evolução que se verifica pelo aumento do papel do Estado no campo de atuação das relações privadas no aspecto econômico não teve o mesmo acompanhamento nos conceitos de autonomia privada e de contrato. Mostrou-se muito mais ágil a adequação da teoria econômica à necessidade de intervenção estatal57. De todo modo, no desenvolver-se do século XX, a atividade intervencionista do Estado nas relações privadas manifestou-se de forma direta na medida em que o conteúdo das relações negociais passou a se subordinar a uma necessária “mediatização da lei”58. Assim, a intervenção do Estado começou a manifestar-se pela imposição de limites objetivos e positivos à liberdade contratual, antes absolutamente intocável; passou-se a negar eficácia jurídica à vontade privada quando manifestada em desacordo com os pressupostos de sua força vinculativa, ou quando dela resultassem conseqüências nocivas ao bem-estar social, expressando-se o princípio da funcionalização do contrato; ou, ainda, fazendo intervir interesses de terceiros no regulamento negocial59. O declínio da liberdade de escolha nas relações de troca aparece com os contratos standards, contratos com as cláusulas já definidas e previamente estipuladas por um dos contratantes, normalmente aquele que detém maior poder de barganha60. Não há dúvida 56 ATIYAH, (nota 49), p. 717. PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982, p. 35. 58 PRATA, (nota 58) p. 43. 59 O aumento da intervenção estatal nas relações privadas também pode ser medido pelo crescimento da atividade judicial no âmbito do conteúdo da relação de trocas, na medida em que se reconheceu possibilidade da intervenção do poder judicial para fins de que o contrato atenda a sua finalidade social. Exemplo disso pode ser encontrado na crescente admissibilidade das chamadas cláusulas gerais como instrumento de oxigenação de sistemas até então tidos como fechados e completos. 60 ROPPO, (nota 44), p. 312. O fenômeno é apreendido por Roppo como uma das mais significativas e graves formas de restrição da liberdade contratual, sendo assim sintetizado: quem, pela sua posição e pelas suas atividades econômicas, encontra-se na necessidade de estabelecer um série indefinida de relações negociais, homogêneas quanto ao seu conteúdo, com um sem número de contrapartes, predispõe, antecipadamente, um 57 22 quanto à economicidade e à racionalidade desse tipo contratual na sociedade massificada contemporânea, mas não é menos certo de que isso implica restrição à liberdade contratual de uma das partes. O aderente não é livre para discutir o conteúdo do contrato; algumas vezes não há sequer a liberdade de contratar ou não-contratar, pois contratar é o único meio para aquisição de um determinado bem. Quando uma pessoa assina um contrato que lhe impõe certa conduta que não pode atender ou que lhe é excessivamente onerosa, diz Atiyah que essa responsabilidade não pode ser considerada purely consensual. Pressões de ordem comercial, econômica ou social podem deixar as pessoas sem qualquer possibilidade de escolha pelos standards da vida moderna, fenômenos que diretamente atuam sobre a liberdade de escolha e, sem embargo, são completamente ignorados pela teoria clássica do contrato. Nesses contratos de adesão, há limitação à liberdade contratual quanto ao conteúdo do contrato que já foi previamente definido por uma parte, restando a outra tão somente a possibilidade de aderir às cláusulas fixadas61. As relações de trocas de bens de consumo da classe dos consumidores, naturalmente hipossuficientes, bem exemplificam contratos de massa orientados em forma de mera adesão a cláusulas previamente definidas. A proteção do consumidor, via intervenção legislativa do Estado, fez-se na perspectiva de buscar reequilibrar as limitações naturais do consumidor nas relações negociais de troca. Outrossim, os elementos da confiança e do proveito recíproco são profundamente importantes na nova dimensão da relação negocial. Nas relações de troca o que importa é esquema contratual, um complexo uniforme de cláusulas aplicáveis indistintamente a todas as relações da série, sujeitas, então, a mesma regulamentação; quem, por outro lado, deseja entrar em negociação com o proponente apenas adere a essas cláusulas, limitando-se a aceitá-las em bloco sem qualquer discussão quanto ao conteúdo do contrato (p.312). 61 GRISSI, Giuseppe. L’autonomia privata. Milano: Giuffrè, 1999, p. 31 23 fairness ou unfairness62 que é mais relevante do que a questão do consenso. Vislumbra-se, atualmente, um crescente reconhecimento no sentido de que, embora as partes cheguem a uma transação como resultado de conduta voluntária, os direitos e deveres resultantes da transação, em grande parte, são produtos da lei e não do real acordo. É claro que em negociações cuidadosamente ultimadas, cada cláusula é definida pelas partes, mas eventual ambigüidade necessariamente será solvida pela decisão da atividade judicial. É o que Atiyah sugere quando trata do resurgence of benefit-based liabilities63 e resurgence of reliance-based liabilities64 65. É nesse sentir que Judith Martins-Costa cogita da possibilidade de “relativizar ao máximo o papel da vontade no quadro do vínculo contratual”, apontando o deslocamento do eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade para a tutela objetiva da 62 ATIYAH, (nota 49), p. 743. Responsabilidade decorrente da vantagem. 64 Responsabilidade que tem como fundamento a confiança e dever de cooperação nas relações negociais. 65 ATIYAH, (nota 49), p. 733-774. É paradigmático o caso Esso Petroleum v. Mardon, de 1964, demonstrando significativo exemplo de mudança nas atitudes das relações contratuais. Esse caso envolvia o arrendamento de um posto de combustível do autor para o réu. O valor do arrendamento era baseado na potencial estimativa de vendas do posto de combustível, calculada pelos próprios peritos do autor. As estimativas projetadas reverteram de modo que o réu não foi capaz de vender conforme o que havia sido projetado. Igualmente, não tinha condições financeiras para pagar o arrendamento ajustado. Ajuizada a ação para cobrança do arrendamento, o réu apresentou reconvenção exigindo indenização pelos danos experimentados. O réu teve acolhida em seu pleito sob o argumento de que o autor deveria ser diligente nas suas estimativas que foram consideradas pelo réu para a celebração do negócio de arrendamento. Essa decisão, segundo Atiyah, reflete filosofia completamente contrária a concepção clássica do contrato, deixando claro a existência do dever de informar do contratante em questões essenciais de avaliações do conteúdo do contrato. A idéia de que cada parte deve fazer o seu próprio julgamento e estimativa a respeito do conteúdo do contrato e, a partir disso, entabular negociais de barganha em igualdade de condições é deixada de lado. A decisão deve ser tida como uma reflexão sobre as modernas práticas comerciais. Primeiro, porque reconhece a desigualdade das partes quanto ao poder de barganha e quanto ao acesso as informações; segundo, porque reconhece no contrato – especialmente nos contratos de relação continuada – não um exercício de uma única atividade de alocação de riscos, mas o caráter cooperativo que deve orientar as relações negociais. Isso, então, representa um crescimento da importância da reliance-based em relação a promise-based liability (p. 774). 63 24 confiança com a perspectiva para a concretização dos princípios da superioridade do interesse comum sobre o particular, da igualdade e da boa-fé objetiva66. Percebe-se que o declínio da liberdade contratual reside exatamente nessa nova perspectiva do papel da vontade como elemento estrutural da relação negocial de troca de riquezas. Em verdade, da teoria da vontade, dominante até a primeira metade do século XX, passou-se para a chamada teoria da declaração. Experimentou-se uma crescente redução do papel e da importância da vontade, vista como elemento psicológico da relação negocial, fenômeno definido como a objetivação do contrato67 ou do vínculo contratual. Essa transformação buscou atender às novas exigências de uma moderna economia de massa e, assim, garantir-se celeridade, segurança e estabilidade nas relações sociais. A partir da teoria da declaração, o vínculo contratual deve ser analisado por meio de elementos objetivos, exteriores e socialmente reconhecíveis68. A responsabilidade nas relações negociais não advém somente da autovinculação ou autodeterminação expressa das partes, mas poderá decorrer de legítimas expectativas criadas a partir de condutas particularmente adotadas69. 66 MARTINS-COSTA, Judith. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista do Consumidor, São Paulo, v. 3, 1992, p. 141. 67 Galgano observa que “a atenção do jurista encontra-se doravante orientada para o momento da circulação: o interesse a satisfazer já não é o interesse em comprar, mas o interesse em vender, e em vender na maior quantidade possível. Tem início, com a teoria da declaração, um processo de objetivação da troca, que tende a perder parte das suas originárias características de voluntariedade” [Apud PRATA, (nota 48), p. 43]. 68 ROPPO, (nota 44), p. 298. 69 Modernamente vê-se uma relação obrigacional complexa, onde, ao lado dos deveres de prestação (tanto deveres principais de prestação como deveres secundários) há os deveres laterais, além dos direitos potestativos, sujeições, ônus jurídicos, expectativas jurídicas, etc. Todos esses elementos se coligam em atenção a uma identidade de fim e constituem o conteúdo de uma relação de caráter unitário e funcional: a relação obrigacional complexa ou relação obrigacional em sentido amplo. É a obrigação como processo, dinâmica e orgânica (COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976). É nesse pensar que se deve considerar as chamadas relações contratuais de fato. Karl Larenz (LARENZ, Karl, Derecho de obligaciones, Trad. Jaime Santos Briz, Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, p. 60) anota que o que atribui significado jurídico a esses processos não é a vontade negocial dos participantes, mas a valoração jurídica que se obtém no tráfico pela existência de uma conduta social 25 Uma das mais significativas conseqüências da substituição da teoria da vontade como fundamento do vínculo contratual é a necessária redução das hipóteses de invalidação dos negócios jurídicos por vício de vontade. Ora, o crescimento e o desenvolvimento da sociedade mercantil massificada, ao mesmo tempo em que exige celeridade às operações de troca, também não prescinde da certeza, da segurança e da estabilidade. Essas exigências, certamente, não poderiam ser atendidas pelo teoria da vontade, especialmente porque inúmeras seriam as hipóteses de invalidade dos contratos. Na moderna concepção contratual, vinculada a relação negocial à sua função social e utilidade, a necessidade da autonomia privada não pode ser obtida a qualquer preço, sustentando Ghestin que a validade do contrato está subordinada à sua justiça. O contrato somente será considerado válido se, sendo útil, for igualmente justo70. O fenômeno da superação do dogma da vontade no contrato pode ser sentido na medida em que se passou a exigir da relação negocial de troca de riquezas o cumprimento de uma função social e, além disso, a concretização do justo. típica. Diz Larenz que o reconhecimento de tais relações obrigacionais, que intrinsecamente devem ser consideradas segundo o direito contratual, está na mesma linha dos fatos típicos de declaração com efeito normativo (v.g., o silêncio da carta de confirmação no tráfico mercantil), em que tampouco depende a questão de se no caso concreto concorrem os requisitos para existência de uma declaração de vontade válida. A essência dessa concepção é que na sociedade massificada, segundo as concepções do tráfico jurídico, existem condutas geradores de vínculos obrigacionais, fora da emissão de vontade que se dirijam à produção de tal efeito, antes derivadas de simples ofertas e aceitações de fatos. A respeito, Judith Martins-Costa [MARTINSCOSTA, (nota 63), p. 508] faz observações quanto à tendência à objetivação do conceito de contrato, isso consistindo na objetivação do próprio elemento subjetivo do contrato. Os contratos devem ser caracterizados como atos sociais, pelos quais os particulares, nos limites estabelecidos pela ordem jurídica, realizam os seus próprios interesses, disciplinando-os para o futuro, inserindo-os na ordem social. Essa tendência para a objetivação do contrato tem como conseqüência uma verdadeira “descoberta” dogmática da existência de deveres de conduta que decorrem do vínculo contratual independentemente da vontade dos contratantes. 70 Apud BECKER, (nota 35), p. 59. 26 Isso porque a autonomia privada não pode ser tomada como um valor em si mesmo, devendo ser considerada com base nos princípios que orientam o todo do ordenamento jurídico. São esses os princípios que servem de base para avaliar se a autonomia privada é digna de proteção pelo ordenamento jurídico. Assim, revela-se indispensável o reexame da noção de autonomia privada à luz do juízo de valor - giudizzio de meritovolezza - de cada ato realizado, de modo tal que se possa deduzir se estes, individualmente considerados, podem ser regulados, pelo menos em parte, pela autonomia privada. Assim, está a autonomia privada submetida aos limites dos juízos de licitude e de valor71. Perlingieri refere, por exemplo, precedentes da jurisprudência italiana, autorizando a redução do valor de cláusula penal convencionalmente fixada (art. 1.382 do Código civil italiano)72. Nessa mesma orientação, permite o art. 413 do Novo do Código Civil brasileiro a redução da penalidade se o montante for manifestamente excessivo em relação à natureza e à finalidade do negócio. A admissibilidade da investigação da justiça na relação negocial é diretamente correlata com a possibilidade de limitação da liberdade contratual. Salienta-se o fato de que, no modelo contratual clássico, a justiça era tida como assegurada pela manifestação livre do consentimento e pela igualdade das partes; na concepção da teoria da objetivação do contrato, a liberdade contratual deve colmatar-se ao justo em concreto. Mesmo que ainda acentuado o debate73 sobre os limites da liberdade contratual e da justiça contratual, 71 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Trad. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 18. 72 PERLINGIERI, (nota 72), p. 279. 73 GRISSI, (nota 62), p. 180. Na lição de Gazzoni o contrato se revela como “uno strumento a plurimo impiego”, absorvendo a função, afora a tradicional manifestação da autonomia privada e de regulamentação das relações privadas, de instrumento para persecução do interesse público. Sem embargo, observa Guarneri que “le tecniche in cui si concreta questa istanza ideologica sono molto varie e vanno dall’applicazione di 27 não se tendo alcançando contornos suficientemente precisos para cada uma dessas esferas, forçoso observar a relação contratual como um vínculo também conduzido pelo princípio da eticidade. Desse modo, o justo em concreto e o equilíbrio das prestações na relação negocial são objetivos que devem ser indefinidamente perseguidos. Nessa perspectiva, vale lembrar a teoria da causa na sua concepção objetiva74, o que corresponderia à função econômico-social do contrato. Conforme observa Anelise Becker, o contrato, correspondendo à troca de bens e serviços, nasceu como instrumento para a satisfação das necessidades do homem e da vida em sociedade, “função econômicosocial em que se revela toda a sua utilidade: o contrato nada mais é do que um instrumento, privilegiado por seu modo de formação, que o direito reconhece, porque permite operações socialmente úteis, isto é, permite troca de bens e de serviços para satisfação das necessidades concretas”75. O contrato deve funcionar como instrumento de troca de riquezas de forma eficaz e útil na organização da vida social. Aqui, “a vontade deixa de ser clausole generali civilistiche quali la buana fede, il buon costume, l’ordine pubblico, in novello ordine pubblico economico, l’equità, la meritevolezza dell’interesse – di cui all’art. 1322 c.c. -, all’utilizzo di clausole generali della Costituzione quali la solidarità – art. 2 – l’utilita sociale – art. 41, 2º co. -, i fini sociali – art. 41, 3º co. – al referimento generico ai concetti-valvola, senza determinare di qualle si trata, al richiamo ai parametri sempre generici ma giuridici quali la Costituzione, i principi della Costituzione, la legge di piano, al riferimento a parametr quali di piano, le sua direttive, i suoi obiettivi, le finalità des sistema econômico, la produttività, ecc., non canonizzatti in norme giuridiche. Não deve ser por outro motivo que Ferri sugere “estrema cautela” quanto à funcionalização dos institutos do civilistas aos fins sociais sob pena de “paralizzare l’atttivitá del privato e di contraddire proprio quei principi di libertà e di eguaglianza”. No fundo, Grissi parece sugerir prevalência da lógica do mercado. Assevera Sacco que ‘la previsione costituzionale interessa il contratto non tanto sotto il profilo del contenuto, quanto sotto il profilo della agibilitá delle vie d’acesso al mercato”, concluindo Galgano que ‘lo squilibrio fra le prestazioni non rileva in sé e per sé, ma solo in quanto sai rivelatore di una diversa e ulteriore anomalia del contrato”. Mas, observa Messineti que “quello che si vuole é l’espansione indefinita della razionalità economica del mercato” [apud GRISSI, (nota 86) p. 180-186]. 74 Para Betti, “a causa ou razão do negócio jurídico se identifica com a função econômico-social de todo o negócio, considerado despojado da tutela jurídica, na síntese de seus elementos essenciais, como totalidade e unidade funcional, em que manifesta a autonomia privada. A causa é, em resumo, a função de interesse social da autonomia privada.” [Emílio BETTI, Teoria geral do negócio jurídico. Trad. Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra Editora, 1969, p. 350]. 75 BECKER, (nota 35), p. 59. 28 um fim em si mesma” e o “contrato passa a ser sancionado pelo direito objetivo em virtude de sua utilidade social, ou seja, porque permite operações socialmente úteis, com o que as próprias operações, e não a vontade, passam a constituir o essencial”76. A liberdade contratual resulta transferida para um segundo plano em atenção aos princípios da equivalência das prestações e da boa-fé objetiva, obrigando a tutela do contrato com base nesses valores protegidos pelo ordenamento jurídico, seja pelo modo como foram concluídos, seja pelo seu conteúdo77. Em atenção ao fenômeno do declínio da liberdade contratual e do próprio contrato como instrumento de troca de riquezas é que se pode conceber uma nova teoria estrutural. O aparato conceitual do Direito é essencialmente o do modelo clássico da teoria da vontade, bastando examinar as concepções acolhidas no Código Civil de 1916 que não revelam outro paradigma que não o voluntarista cunhado no século XIX. Faz-se necessário um redimensionamento do ordenamento jurídico em atenção aos valores contemporâneos que orientam as relações sociais, exigência que já foi apreendida por Miguel Reale no Novo do Código Civil brasileiro ao tornar imanente o princípio da eticidade. Não é por outra razão que o art. 421 do Novo do Código civil consigna expressamente que o contrato deve atender a uma função social. É exatamente com essa mentalidade que uma nova estrutura conceitual do contrato pode estar assentada, como quer Atiyah, em três pilares do direito das obrigações: a idéia 76 GHESTIN, Jaques. Traité de droit civil, les obligations. Paris: LGDJ, 1988, p. 182, apud BECKER, (nota 35), p. 55. 77 RAISER, Ludwig. Il Compito del diritto privato. Milano: Giuffrè, 1990, p. 56, apud BECKER, (nota 67), p. 57. 29 da recompensa por vantagem financeira - lucro; a proteção da confiança razoável e a voluntária criação e extinção de direitos e responsabilidades78. No processo de redefinição conceitual das categorias do Direito, as principais questões irão necessariamente dizer respeito a conflitos envolvendo essas três noções. São esses questionamentos que devem ser respondidos. Pode ser imposta responsabilidade nas hipóteses em que as vantagens (lucros) são obtidas sem consentimento? Em que extensão os direitos devem ser criados ou extintos por simples intenção, ou expressa intenção, na qual não há o elemento vantagem ou o elemento confiança? Essas questões devem ser consideradas para a distinção entre um presente e um futuro consentimento, presente e futuras trocas, não se olvidando do papel das legítimas expectativas criadas. De todo modo, é assente o declínio do papel da vontade e a necessidade de um relançamento redimensionado do contrato como instrumento de troca. 78 ATIYAH, (nota 49), p. 779. 30 BIBLIOGRAFIA ALMEIDA COSTA, Mário Júlio. Direito das obrigações. Coimbra: Almedina, 2000. ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da codificação: crônica de um conceito. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997. ARENDT, Hannah. A vida do Espírito. Trad. Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará: 2000. ARNAUD, André-Jean. Les origenes doctrinales du Code Civil français. Paris: LGDJ, 1969. ATIYAH. P.S. The rise and fall of freedom of contract. Oxford: Clarendon Press, 1979. BECKER, Anelise. Teoria geral da lesão nos contratos. São Paulo: Saraiva, 2000. BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, tomo 1, 1969. BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Editora Mandarim, 2000. CALASSO, Francesco. Il Negozio Giuridico. Milano: Giuffrè, 1959. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e o conceito de sistema na ciência do direito. Trad. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. CLAVERO, Bartolomé. Codificación y constitución – Paradigmas de un binomio. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico, Milano, v. 18, pp. 79-1454, 1989. ____. Happy constitucion. Madrid: Editorial Trotta, 1997. ____. Lei del código: transplantes y rechazos constitucionales por España e por America. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico, Milano, v. 23, pp. 81-193, 1994. 31 COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976. ____. O Direito civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro. O direito privado na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. ____. Miguel Reale, civilista. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 672, pp. 53-62, 1991. ____. Para uma história dos conceitos do direito civil e no direito processual civil, Revista de Processo. São Paulo, v. 37, 1985. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução Hermínio A. Carvalho, 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998. GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Civilização do direito constitucional ou constitucionalização do direito civil? A eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídico-civil no contexto do direito pós-moderno. Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, pp. 108-115, 2001. GRISSI, Giuseppe. L’autonomia privata. Milano: Giuffrè, 1999. GROSSI, Paolo. La propieda e las propiedades. Un análisis histórico. Trad. Angel M. López e López, Madrid: Editorial Civitas S. A., 1992. ____. Tradizioni e modeli nella sitemazione post-unitaria della proprietà. Quaderni Fiorenti per la Storia del Pensiero Giuridico. Milano, v. 5/6. 1976/77. ____. Un paradiso per Pothier. Quaderni Fiorentini, Milano, v. 14, pp. 401-456, 1985. ____. Proprietá – diritto intermedio. Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. XXXVII, pp. 227-255. 1988. HATTENHAUER, Hans. Los fundamentos historico-ideológicos del derecho alemán. Trad. Miguel Isquierdo Macias Pacavea. Madrid: Edersa, 1981. IRTI, Natalino. L’etá della decodificazione. 3ª ed. Milano: Giuffré, 1989. 32 ____. I cinquantanni del codice civile. Rivista di diritto civile. Padova, v. 3, pp. 227-237, 1992. KOSCHAKER, Paul. Europa y el derecho romano. Trad. Jose Santa Cruz Teijeiro. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1955. LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Trad. Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, tomo 1, 1958. LOPES, José Reinaldo Lima. O direito na história. São Paulo: Max Limonad, 2000. LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Trad. Vera Maria Jocob Fradera. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. ____. La descodifición y fractura del derecho civil. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 11, pp. 78-93, 1996. MACINTYRE, Alasdair. Tres versiones rivales de la ética. Trad. De Rogelio Rovira. Madrid: Rialp. 1992. MARQUES, Mário Reis. O liberalismo e a codificação do direito civil em Portugal. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1987. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. ____. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pp. 127-153, 1992. ____. A noção de contrato na história dos pactos. Uma vida dedicada ao direito – Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, editor dos juristas. São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 497-513, 1996. ____. As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 680, pp. 47-58. 1992. 33 ____. O sistema na codificação civil brasileira: de Leibniz a Teixeira de Freitas. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 17, pp. 189-204, 1999. MENEGUELLI, Rugero. Voluntà. Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. XLVI, pp. 1032-1043. 19. MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997. MICHELON JÚNIOR, Cláudio Fortunato. Teoria das nulidades. Porto Alegre: UFRGS, Trabalho para o Curso de Pós-Graduação (Mestrado em Direito) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1994. MORTARI, Vincenzo Piano. Codice. Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. VII, pp. 227-237, 19 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Trad. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982. RAISER, Ludwig. O futuro do direito privado. Revista da Procuradoria-Geral do Estado. Porto Alegre, v. 9(25), pp. 11-30, 1979. REALE, Miguel. Nova fase do direito moderno. São Paulo: Editora Saraiva, 1990. ____. Código Civil – a OAB e o projeto de Código Civil. Revista Síntese de Direito Processual Civil. São Paulo v. 5, pp. 116-118, 2000. ____. O sentido inovador do projeto do novo Código Civil. Revista Forense, v. 286, 1984. ____. Significado do Código Civil. Revista Síntese de Direito Processual Civil. São Paulo, v. 1, pp. 36-38, 1999. ____. Visão geral do projeto de Código Civil. Revista dos Tribunais, v. 752, 1998. 34 RIEG, Alfrede. Le rôle de la volonté dans la formation de l’acte juridique d’aprés les doctrines allemandes du XIX siècle. Archives de Philosophie du Droit. Paris: Sirey, tomo 4, pp. 125-133, 1957. ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988. SACCO, Rodolfo. Codificare: modo superato di legiferare? Rivista de Diritto Civile. Padova, parte I, pp. 117-135, 1983. SCHWAB, Dieter. Liberdade contratual e formação de contra “ex vi legis”. Revista da Ajuris. Porto Alegre, v. 39, pp. 16-36. SCHWAB, Dieter. Validade e controle das “condições gerais de negócios”. Revista da Ajuris. Porto Alegre, v. 41, pp. 7-19. TARELLO, Geovanni. Cultura jurídica y política del derecho. México: Fondo de Cultura Econômica, 1995. VILLEY, Michel. Essor et décadence du volontarisme juridique. Archives de Philosophie du Droit. Paris: Sirey, tomo 4, pp. 87-98, 1957. WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Trad. A M. Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980. 35