16 0.5.2 Lei de Gauss aplicada a superfı́cies de carga s E1 E2 Figure 3: Aplicação da lei de Gauss às proximidades de um ponto de uma superfı́cie carregada com a densidade superficial σ. O campo eléctrico nas proximidades do ponto é E1 e E2 em cada lado da superfı́cie. Um caso particular com especial relevância é aquele em que as cargas se distribuem numa superfı́cie, como acontece no caso dos materiais condutores (em particular os metais) e nas zonas de deplecção das junções semicondutoras dos dı́odos. Neste caso, é possı́vel extrair algumas conclusões gerais sobre o campo eléctrico nas proximidades de cada ponto exterior à superfı́cie. Para isso consideramos uma superfı́cie de Gauss em torno do ponto, tal como ilustra a figura 3 e analisamos o fluxo através desta superfı́cie de Gauss no limite em que a superfı́cie de Gauss se torna muito pequena, delimitando o ponto da superfı́cie carregada em análise. Há três considerações importantes na escolha da superfı́cie de Gauss contendo o ponto em análise: • a superfı́cie de Gauss deverá ser suficientemente próxima da superfı́cie carregada para que esta se possa considerar como sendo aproximadamente plana 4 , permitindo que seja adequado tomar como superfı́cie de Gauss um cilindro de altura h cujos topos sejam paralelos à superfı́cie carregada; • a área S dos topos do cilindro tomado como superfı́cie de Gauss deverá ser suficientemente reduzida para que o campo eléctrico nos pontos da superfı́cie de cada um dos topos do cilindro pode ser considerado aproximadamente o mesmo em cada ponto; 4 Ainda hoje as formigas julgam que a Terra é plana... 17 0.5. LEI DE GAUSS • a altura h do cilindro tomado como superfı́cie de Gauss deverá ser suficientemente pequena para que o fluxo através da superfı́cie lateral do cilindro possa ser desprezado em relação ao fluxo através dos topos; Verificadas as condições anteriores, o fluxo total φ do campo eléctrico através da superfı́cie de Gauss escolhida, é então φ = E1 · dS1 + E2 · dS2 = (E⊥1 − E⊥2 )dS (56) onde dS1 = −dS2 = dSn, em que n é o versor perpendicular à superfı́cie carregada, apontando do lado 2 para o lado 1. Por sua vez, a carga dq contida na superfı́cie de Gauss é: dq = σdS (57) E da aplicação da lei de Gauss resulta: (E⊥1 − E⊥2 ) = σ 0 (58) Obtemos então um resultado extraordinário: existe sempre uma descontinuidade da componente do campo eléctrico perpendicular a uma superfı́cie carregada, e o valor da descontinuidade é σ/0 . Duas notas a este respeito: • a semelhança formal entre a equação (58) e a equação (55) leva muitos autores a reescrevê-la na forma divS E = σ0 , onde se define divS E = (E⊥1 − E⊥2 )dS • a existência de uma descontinuidade de uma grandeza com significado fı́sico como o campo eléctrico causa necessariamente estranheza e perplexidade. Qual é o significado fı́sico desta estranha descontinuidade? A estranheza do resultado é consequência da estranheza do pressuposto: uma distribuição superficial de carga. Na realidade, nos exemplos conhecidos e já referidos de distribuições superficial de carga (metais, dı́odos), as cargas encontram-se distribuı́das em volumes de espessura muito reduzida (da ordem do nm), mas não nula. Este resultado informa-nos pois da existência de uma variaccão do campo eléctrico no interior da distribuição de carga. Essa variação é contı́nua, no limite clássico. 18 0.6 O campo electrostático: um campo conservativo 0.6.1 Trabalho realizado pelo campo eléctrostático e potencial electrostático Consideremos um sistema de duas cargas Q e q1 e calculemos o trabalho realizado pela força de Coulomb que actua na carga Q quando esta é deslocada da posição ra = ra r̂ para a posição rb = rb r̂. O trabalho realizado por uma força F é, por definição: Wa→b = rb F · dl (59) ra Atendendo à expressão da força de Coulomb (eq. 37): F=k q1 Q r̂ r2 (60) e à expressão do deslocamento elementar dl em coordenadas esféricas: ds = drêr + r sin θdφêφ + rdθêθ (61) rapidamente se conclui que o trabalho realizado pela força de Coulomb que actua na carga Q é (assumimos, por simplicidade e sem perder generalidade que a carga q1 está na origem do sistema de coordenadas): Wa→b = k q1 Q q1 Q −k ra rb (62) Este resultado contém vários aspectos a salientar: • apesar de a definição de trabalho de uma força num dado deslocamento exigir a especificação do caminho percorrido, tal não foi necessário para a força de Coulomb; tal resulta do facto de esta força ser radial, o que implica que apenas o deslocamento que afaste a carga Q da carga q1 contribua para o trabalho; o trabalho realizado pela força de Coulomb é assim independente do caminho, e a força de Coulomb é uma força conservativa • o trabalho realizado pela força de Coulomb no deslocamento em causa depende assim apenas da diferença entre quantidades da forma kQq1 /r que apenas dependem da 0.6. O CAMPO ELECTROSTÁTICO: UM CAMPO CONSERVATIVO 19 posição inicial ra e da posição final rb . O resultado (62) sugere assim a definição de uma quantidade auxiliar: q1 Q Ep (r) = k (63) r Esta quantidade costuma designar-se energia potencial do sistema de cargas q1 e Q. Note-se que a energia potencial não tem significado fı́sico em si mesma: a diferença de energias potenciais é que corresponde a uma quantidade com significado fı́sico - o trabalho realizado pela força. No entanto, quando afastamos indefinidamente um par de cargas inicialmente à distância r (colocando-as a uma distância final suficientemente grande, rb → ∞), o trabalho realizado pela força de Coulomb é numericamente igual a k q1 Q/r. A energia potencial de um par de cargas pode assim ser interpretada como o trabalho realizado pela força de Coulomb quando se afastam as cargas indefinidamente ou, dito de outro modo, como o trabalho que é preciso realizar contra a força de Coulomb para aproximar as duas cargas desde uma posição inicial infinitamente afastada até à sua configuração final. Costuma assim designar-se a energia potencial (63) como a energia potencial armazenada no par de cargas. Em função da energia potencial, o trabalho (62) pode ser reescrito como: Wa→b = − (Ep (rb ) − Ep (ra )) (64) • uma consequência imediata da independência do caminho é que o trabalho realizado pela força de Coulomb ao longo de um caminho fechado sobre si próprio é nulo: Wa→a = F · dl = 0 (65) a força de Coulomb não permite assim projectar ciclos de trabalho semelhantes aos ciclos de expansão de gases, em que o sistema realiza um trabalho não nulo sobre o exterior ao fim de um ciclo; se o electromagnetismo se resumisse à força de Coulomb, não existiria engenharia electrotécnica. No caso de o deslocamento da carga Q ser realizado na presença de várias cargas, o trabalho realizado pela força de Coulomb resultante decorre imediatamente do princı́pio da sobreposição: Wa→b qi Q qj Q qi qj = k (i) − k (j) = −Q k (i) − k (j) = −Q(V (rb ) − V (ra )) r r r ra a i j i j b b (66) 20 (i) (i) onde ra e rb são as distâncias da carga Q à carga i quando se encontra na posição ra e rb , respectivamente. A expressão 66 informa-nos ainda que o trabalho realizado pela força de Coulomb no deslocamento da carga Q pode ser escrito na forma: Wa→b = −Q∆V (r) = −Q(V (rb ) − V (ra )) (67) onde se define o potencial eléctrico V (r) na posição r devido à distribuição de cargas: V (r) = k i 0.6.2 qi r(i) (68) Relação entre campo eléctrico e potencial eléctrico A conjunção da definição de trabalho (59) com o resultado resulta em: −Q∆V (r) = rb F · dl = Q ra rb E · dl (69) ra onde se usou a definição de campo eléctrico F = QE. Obtemos assim uma importante relação entre o potencial eléctrico e o campo eléctrico: rb E · dl = −(V (rb ) − V (ra )) = −∆V (r) (70) ra Da definição de gradiente (eq. 10) segue imediatamente que: E = −∇V (r) (71) e, atendendo a que o rotacional do gradiente de um campo escalar é nulo (eq. 31), podemos escrever imediatamente: ∇ × E = −∇ × ∇V (r) = 0 (72) Repare-se que a integração de ∇ × E numa superfı́cie S conduz, utilizando o teorema de Stokes, a : (∇ × E) · dS = 0 ⇔ S i.e., somos conduzidos de volta à eq. (65). E · dl = 0 (73) 0.6. O CAMPO ELECTROSTÁTICO: UM CAMPO CONSERVATIVO 0.6.3 21 Equações diferenciais para o potencial electrostático: equação de Laplace e equação de Poisson Podemos combinar a lei de Gauss na forma diferencial (55) com a eq. (71) e obter dessa forma uma equação diferencial de 2a ordem para o potencial na presença de uma distribuição de carga ρ: ∇·E= ρ ρ ρ ⇔ ∇ · ∇V = − ⇔ ∇2 V = − 0 0 0 (74) Esta equação designa-se equação de Poisson. Na caso ρ = 0, a equação de Poisson reduz-se à equação de Laplace: ∇2 V = 0 (75) Note-se que a equação de Poisson contém em si quer a informação contida na lei de Gauss (∇ · E = ρ/0 ), quer a informação que o campo é conservativo (E = −∇V , que é equivalente a rotE = 0). Existe um importante teorema da análise de campos vectoriais que garante que um campo vectorial pode ser completamente definido a partir da especificação da sua divergência, do seu rotacional e das condições de fronteira adequadas. A equação de Poisson, com as condições de fronteira adequadas, permite pois definir completamente o campo, e assume assim importância primordial no cálculo (sobretudo computacional) dos campos e potenciais electrostáticos na presença das distribuições de carga mais intrincadas.