R. Vilão Electromagnetismo Electrostática 2.4 O campo electrostático: um campo conservativo 2.4.1 Trabalho realizado pelo campo electrostático; potencial electrostático Consideremos um sistema de duas cargas Q e q1 e calculemos o trabalho realizado pela força de Coulomb que actua na carga Q quando esta é deslocada da posição ra = ra r̂ para a posição rb = rb r̂. O trabalho realizado por uma força F é, por definição: Wa→b = rb F · dl (2.24) ra Atendendo à expressão da força de Coulomb (eq. 2.1): F=k q1 Q r̂ r2 (2.25) e à expressão do deslocamento elementar dl em coordenadas esféricas: ds = drêr + r sin θdφêφ + rdθêθ (2.26) rapidamente se conclui que o trabalho realizado pela força de Coulomb que actua na carga Q é (assumimos, por simplicidade e sem perda de generalidade que a carga q1 está na origem do sistema de coordenadas): Wa→b = k q1 Q q1 Q −k ra rb (2.27) Há vários aspectos deste resultado que devem ser salientados: • apesar de a definição de trabalho de uma força num dado deslocamento exigir a especificação do caminho percorrido, tal não foi necessário para a força de Coulomb; isso resulta do facto de esta força ser radial, o que implica que apenas o deslocamento que afaste a carga Q da carga q1 contribua para o trabalho; o trabalho realizado pela força de Coulomb é assim independente do caminho, e a força de Coulomb é uma força conservativa; 21 R. Vilão Electromagnetismo Electrostática • o trabalho realizado pela força de Coulomb no deslocamento em causa depende assim apenas da diferença entre quantidades da forma kQq1 /r que apenas dependem da posição inicial ra e da posição final rb . O resultado (2.27) sugere assim a definição de uma quantidade auxiliar: Ep (r) = k q1 Q r (2.28) Esta quantidade costuma designar-se energia potencial do sistema de cargas q1 e Q. Note-se que a energia potencial não tem significado fı́sico em si mesma: a diferença de energias potenciais é que corresponde a uma quantidade com significado fı́sico - o trabalho realizado pela força. No entanto, quando afastamos indefinidamente um par de cargas inicialmente à distância r (colocando-as a uma distância final suficientemente grande, rb → ∞), o trabalho realizado pela força de Coulomb é numericamente igual a k q1 Q/r. A energia potencial de um par de cargas pode assim ser interpretada como o trabalho realizado pela força de Coulomb quando se afastam as cargas indefinidamente ou, dito de outro modo, como o trabalho que é preciso realizar contra a força de Coulomb para aproximar as duas cargas desde uma posição inicial infinitamente afastada até à sua configuração final. Costuma assim designar-se a energia potencial (2.28) como a energia potencial armazenada no par de cargas. Em função da energia potencial, o trabalho (2.27) pode ser reescrito como: Wa→b = − Ep (rb ) − Ep (ra ) (2.29) • a independência do caminho tem por consequência imediata o facto de o trabalho realizado pela força de Coulomb ao longo de um caminho fechado ser nulo: Wa→a = F · dl = 0 (2.30) a força de Coulomb não permite assim projectar ciclos de trabalho semelhantes aos ciclos de expansão de gases, em que o sistema realiza um trabalho não nulo sobre o exterior ao fim de um ciclo; se o electromagnetismo se resumisse à força de Coulomb, não existiria engenharia electrotécnica. 22 R. Vilão Electrostática Electromagnetismo No caso de o deslocamento da carga Q ser realizado na presença de várias cargas, o trabalho realizado pela força de Coulomb resultante decorre imediatamente do princı́pio da sobreposição: Wa→b qi Q qj Q qi qj = k (i) − k (j) = −Q k (i) − k (j) = −Q V (rb ) − V (ra ) ra rb rb ra i j i j (2.31) (i) (i) onde ra e rb são as distâncias da carga Q à carga i quando se encontra na posição ra e rb , respectivamente. A expressão 2.31 informa-nos ainda que o trabalho realizado pela força de Coulomb no deslocamento da carga Q pode ser escrito na forma: Wa→b = −Q∆V (r) = −Q V (rb ) − V (ra ) (2.32) onde se define o potencial eléctrico V (r) devido à distribuição de cargas na posição r: V (r) = k i 2.4.2 qi r(i) (2.33) Relação entre campo eléctrico e potencial eléctrico A conjunção da definição de trabalho (2.24) com o resultado resulta em: −Q∆V (r) = rb F · dl = Q ra rb E · dl (2.34) ra onde se usou a definição de campo eléctrico F = QE. Obtemos assim uma importante relação entre o potencial eléctrico e o campo eléctrico: ∆V (r) = − rb E · dl (2.35) ra Da definição de gradiente (eq. 1.10) segue imediatamente que: E = −∇V (r) 23 (2.36) R. Vilão Electromagnetismo Electrostática e, atendendo a que o rotacional do gradiente de um campo escalar é nulo (eq. 1.30), podemos escrever imediatamente: ∇ × E = −∇ × ∇V (r) = 0 (2.37) Repare-se que a integração de ∇ × E numa superfı́cie S conduz, utilizando o teorema de Stokes, a : (∇ × E) · dS = 0 ⇔ S E · dl = 0 (2.38) i.e., somos conduzidos de volta à eq. (2.30). Note-se ainda que, atendendo a que F = qE e que V = q Ep , resulta uma expressão equivalente à expressão (2.36), relacionando a força que actua numa carga q com a energia potencial dessa carga na presença das restantes: F = −∇Ep (r) (2.39) Linhas equipotenciais Tal como acontece para o campo eléctrico, para o qual se definem linhas de campo que têm por fim facilitar a visualização, também para o potencial eléctrico é conveniente definir linhas equipotenciais, que unem os pontos situados ao mesmo potencial. Estas linhas são assim definidas pela equação: dV = 0 ⇔ E · dl = 0 (2.40) em que se fez uso da equação (2.35). Da definição (2.40) resulta imediatamente que o campo eléctrico é perpendicular às linhas equipotenciais (E · dl = 0 ⇒ E ⊥ dl); as linhas de campo, paralelas ao campo em cada ponto, são pois perpendiculares às linhas equipotenciais em cada ponto. 24 R. Vilão 2.4.3 Electromagnetismo Electrostática Equações diferenciais para o potencial electrostático: equação de Laplace e equação de Poisson Podemos combinar a lei de Gauss na forma diferencial (2.20) com a eq. (2.36) e obter dessa forma uma equação diferencial de 2a ordem para o potencial na presença de uma distribuição de carga ρ: ∇·E= ρ ρ ρ ⇔ ∇ · ∇V = − ⇔ ∇2 V = − 0 0 0 (2.41) Esta equação designa-se equação de Poisson. Na caso ρ = 0, a equação de Poisson reduz-se à equação de Laplace: ∇2 V = 0 (2.42) Note-se que a equação de Poisson contém em si quer a informação contida na lei de Gauss (∇ · E = ρ/0 ), quer a informação que o campo é conservativo (E = −∇V , que é equivalente a rotE = 0). Recorde-se o importante teorema da análise de campos vectoriais que garante que um campo vectorial pode ser completamente definido a partir da especificação da sua divergência, do seu rotacional e das condições de fronteira adequadas. A equação de Poisson, munida das condições de fronteira adequadas, permite pois definir completamente o campo, e assume assim importância primordial no cálculo (sobretudo computacional) dos campos e potenciais electrostáticos na presença das distribuições de carga mais intrincadas. 25 R. Vilão 2.4.4 Electromagnetismo Electrostática Continuidade das componentes do campo eléctrico paralelas a uma distribuição superficial de carga s E1 n h d E2 Figura 2.3: Aplicação da independência do caminho às proximidades de um ponto de uma superfı́cie carregada com a densidade superficial σ. O campo eléctrico nas proximidades do ponto é E1 e E2 em cada lado da superfı́cie. Conforme vimos, nas proximidades de um ponto de uma superfı́cie carregada com densidade superficial σ, a aplicação da lei de Gauss conduziu à identificação de uma descontinuidade nas componentes do campo eléctrico perpendiculares à superfı́cie. Analisemos quais as consequências da independência do caminho nesta situação. Na fig. 2.3 consideramos agora um percurso fechado λ delimitando uma superfı́cie S. As orientações do percurso e da superfı́cie (especificada pelo versor n̂ perpendicular à superfı́cie) definidas na figura estão relacionadas, convencionalmente, através da regra da mão direita. Este percurso fechado obedece a condições semelhantes às definidas anteriormente para a superfı́cie de Gauss: • o percurso deve ser suficientemente próximo da superfı́cie carregada para que esta se possa considerar como sendo aproximadamente plana, permitindo que seja adequado tomar um percurso rectangular de altura h e largura d, conforme ilustra a figura 2.3; • a largura d do percurso deverá ser suficientemente reduzida para que o campo eléctrico nos pontos atravessados pela largura do percurso possa ser considerado aproximadamente o mesmo em cada ponto; 26 R. Vilão Electromagnetismo Electrostática • a altura h do percurso deverá ser suficientemente pequena para que a circulação do campo eléctrico através dos segmentos correspondentes à altura possa ser desprezada em relação à circulação do campo eléctrico através dos segmentos correspondentes à largura; A circulação do campo eléctrico através do percurso λ definido na fig. 2.3 resulta assim: E · dl = E1 · dl1 + E2 · dl2 = (E1 − E2 )d (2.43) onde dl1 = −dl2 = d d̂l1 , e E1 e E2 são as componentes do campo paralelas à superfı́cie carregada. O facto de o campo electrostático ser conservativo, ou independente do caminho, implica (eq. 2.38) que a circulação de E num percurso fechado seja nula, i.e.: (E1 − E2 )d = 0 ⇔ E1 = E2 (2.44) Concluı́mos assim que as componentes do campo electrostático paralelas a uma superfı́cie carregada são contı́nuas. Há quem prefira escrever o resultado (2.44) de uma forma que sublinha o paralelismo com a eq. (2.37). Define-se então o rotacional superficial : rotS E = n × (E2 − E1 ) (2.45) onde n é o versor perpendicular à superfı́cie delimitada pelo circuito fechado λ (ver fig. 2.3). Resulta assim:4 rotS E = 0 4 (2.46) Convenhamos que esta é uma forma particularmente crı́ptica de dizer que as componentes do campo eléctrico paralelas a uma superfı́cie são contı́nuas... 27