LPP/Outro Brasil, Análise da conjuntura econômica, set/2005

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LPP/Outro Brasil, Análise da conjuntura econômica, set/2005.
QUANTO VALE OU É A PRAZO?
Considerações acerca da Reforma do Estado nos anos recentes
Ceci Vieira Juruá
A reforma neoliberal do Estado vem sendo feita a conta-gotas no Brasil, como
aliás tem acontecido em outros países da América Latina. Desde o final dos
anos 1980, as relações entre o Governo e a economia (relações Estadocapital) estão sendo sucessivamente configuradas e reconfiguradas entre nós,
apresentando-se a cada momento como o produto da adaptação recíproca
daqueles dois pólos de poder. Ao longo deste processo estão surgindo novas
formas institucionais que se combinam às novas mediações ideológicas,
monetárias e jurídicas, e determinam assim o modus operandi dos espaços
sociais monopolizados pelo Estado e pelo capital, bem como as modalidades
de articulação entre eles e, em particular, as relações Governo/ mercados.
No campo da Política, a primeira sinalização de que esta seria uma reforma em
profundidade ocorreu no segundo turno das eleições presidenciais de 1989, as
primeiras eleições diretas para Presidente da República desde 1960. Daquele
segundo turno fizeram parte dois novos partidos: o PRN- Partido da
Renovação Nacional e o PT- Partido dos Trabalhadores, desvinculados,
ambos, do compromisso nacional-desenvolvimentista que fornecera o cimento
ideológico do Modelo Econômico e do Contrato Social inaugurados pela
Revolução de 1930.
Do ponto de vista da Economia, a primeira sinalização de início da reforma
neoliberal do Estado foi dada pelo anúncio do PND- Programa Nacional de
Desestatização, nos primeiros meses de 1990. Cabe destacar que este
Programa foi objeto de medida provisória, ratificada em seguida pelo
Congresso Nacional. Implantado de forma progressiva e lenta, a execução do
PND começou por alguns setores estratégicos – insumos básicos e infraestruturas de transportes e de energia. Apresentado inicialmente como um
programa de privatização de empresas estatais, com a dupla finalidade de
ajuste fiscal e de estímulo à concorrência nos mercados afetados, o PND
transformou-se aos poucos em um programa de desnacionalização e de
oligopolização dos setores dinâmicos da economia brasileira.
Na seqüência do Governo Collor e sobretudo após o anúncio do Plano Real,
em 1994, sucessivas emendas constitucionais alteraram e desestruturaram
paulatinamente o arcabouço jurídico da sociedade brasileira, sobretudo em
matéria de finanças públicas. Alterações substantivas no quadro legal das
finanças públicas são acompanhadas, necessariamente, por transformações
nas instituições encarregadas da articulação entre o Estado e a sociedade –
empresas e cidadãos. São esses dois movimentos – de organização interna e
de articulação social – que caracterizam uma reforma do Estado. Mas eles
podem ser simultâneos ou não, harmoniosos ou conflitivos, embora suas
finalidades devam convergir no longo prazo.
No Brasil, a perda do patrimônio valioso e estratégico constituído por empresas
estatais cinqüentenárias e dotadas de um capital cultural e tecnológico de difícil
reposição, foi sucedida por novas formas institucionais de atuação
governamental. Surgiram assim as agências reguladoras, órgãos estatais cuja
finalidade principal é a supervisão e a fiscalização da produção de bens e
serviços
coletivos e/ou públicos. Em certas situações,
as agências
reguladoras anunciaram o fim de um monopólio estatal, como no caso da
Agência Nacional de Petróleo. Na criação das agências houve um acúmulo de
erros táticos e operacionais -ausência de debate democrático, criação tardia e
pós-privatização, precariedade de formação dos recursos humanos,
insuficiência de meios financeiros, insegurança do marco jurídico em
permanente transformação, entre outros -. O maior problema viria, no entanto,
da assimetria na relação de forças que passou a prevalecer. De um lado o
Governo, pauperizado e fragilizado, do outro lado grupos econômicos
transnacionais compradores das estatais, enriquecidos e fortalecidos no
processo de privatização/desnacionalização,
Como a privatização não resolveu e, ao contrário, agravou o desajuste fiscal,
em razão da política monetária adotada para atrair capital estrangeiro, mas
também em decorrência do agravamento do endividamento externo até 2002, a
todo momento houve fortes pressões para, em nome do impossível ajuste
fiscal, introduzir inovações institucionais no núcleo estruturador das finanças
públicas – os sistemas Tributário Nacional e de Seguridade Social -, dois
pilares do Contrato Social de 1930 ratificado na Constituição da República de
1988.
-As reformas no Sistema Tributário Nacional e na Seguridade Social
O Sistema Tributário Nacional (STN) adotado na Constituição de 1988 atendia
a alguns objetivos centrais como: equilíbrio federativo, justiça social e
redistribuição de renda, defesa da empresa nacional e apoio à continuidade da
industrialização. Mas as sucessivas alterações constitucionais introduzidas
durante os anos 90 perseguiram outros objetivos e subordinaram a questão
tributária aos problemas da dívida pública crescente e à internacionalização da
economia brasileira, bem como à busca de legitimação e de apoio popular por
parte do Governo FHC. Dentre as alterações introduzidas até 2002, merecem
destaque:
- a criação do primeiro regime específico de tributação, regime de
excepcionalidade: o SIMPLES/ Sistema Integrado de Pagamento de Impostos
e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte (1996),
- a formação de um fundo específico destinado ao pagamento da dívida
pública, com recursos tributários desviados de suas finalidades tradicionais de
financiamento do gasto público,
- a concentração de recursos tributários na esfera federal por meio de:
a)criação de novas contribuições sociais não submetidas à obrigatoriedade de
partilha com os Estados/DF e com os Municípios, b)uso intensivo de
modalidades de renúncia fiscal abrangendo, entre outros, os impostos de
Renda e sobre Produtos Industrializados, dois tributos responsáveis pela
formação dos fundos de participação de Estados e de Municípios.
Por outro lado a Constituição de 1988 havia criado a Seguridade Social como
um direito de todos os brasileiros, um direito de caráter universal, gozando de
fontes específicas de recursos que, no conjunto, mantinham o sistema tripartite
de financiamento da década de 1930 alimentado por contribuições de três
segmentos sociais: trabalhadores, empresas e Governo. Desde o Plano Real,
no entanto, uma parcela dos recursos específicos destinados à Seguridade
Social foi sendo desviada para o pagamento dos juros da dívida pública
construindo o que a mídia enfatiza como “déficit da Previdência Social”. Ao
mesmo tempo os serviços de Saúde Pública, que também integram a
Seguridade Social, foram objeto de uma forte deterioração de qualidade. As
reformas constitucionais no campo da Seguridade Social estão sendo
orientadas para:
- redução dos benefícios previdenciários paralelamente à ampliação dos
benefícios assistenciais,
- desmonte do sistema de financiamento tripartite da Previdência Social,
canalizando-se para outros objetivos os recursos governamentais arrecadados
na modalidade de contribuições sociais vinculadas à Previdência. Assim,
verificamos que os recursos obtidos por meio da COFINS e da CPMF estão
sendo transferidos paulatinamente para a formação do superávit primário.
Anotamos ainda que as contribuições destinadas à Seguridade Social estão
sendo utilizadas como instrumento de política econômica no incentivo a
exportações e a outros setores considerados prioritários, o que contraria a
finalidade específica para a qual foram criadas.
-O novo Contrato Social, uma nova configuração social...
As emendas constitucionais de alteração do STN e da Seguridade Social
promulgadas até 2002, sucedidas por mudanças na legislação complementar e
ordinária pertinente, produziram impactos sociais que não se limitam aos
aspectos técnicos do orçamento e das finanças públicas. Foram mudanças
substantivas que alteraram a natureza e o sentido do Contrato Social e o
exercício do poder de Estado. Foi rompido o pacto federativo. Foi alterado o
compromisso Estado/cidadãos objetivando oferecer uma proteção social
solidária e universal, a cidadania passando a assumir uma outra feição - de
inclusão social e de acesso a serviços públicos e privados, promovidos sob a
ótica do assistencialismo.
Com as reformas neoliberais, o Governo deixou de ter uma participação ativa
na regulação dos principais mercados, despojado que foi de instrumentos
efetivos como a fixação de preços, capacidade de financiamento e de
acionamento de mecanismos de proteção à empresa nacional, por exemplo.
Como agente de regulação de mercados, a atuação do Governo perdeu
flexibilidade e capacidade de ação discricionária, ficando enquadrado em
normas jurídicas e regras gerenciais aparentemente desprovidas de conteúdo
político. Nesse sentido, o melhor exemplo vem do Banco Central que fixa a
taxa básica de juros movido por uma única preocupação – o combate à inflação
-, preso a uma única concepção – o regime de metas de inflação -, omitindo-se
integralmente quanto aos efeitos sociais perversos que decorrem da política
monetária adotada Tudo isto foi feito em uma conjuntura política onde
prevaleceram as orientações do Executivo sobre o Legislativo, graças ao uso
abusivo de medidas provisórias de caráter anti-democrático.
No campo das mediações sociais ocorreram, igualmente, transformações de
peso.
Observamos por exemplo que as grandes empresas vem
desenvolvendo uma estratégia política cuja preferência manifesta é por um
ordenamento jurídico fundamentado no contratualismo, em detrimento da
hierarquia tradicional das normas jurídicas de caráter constitucional. Em
segundo lugar, uma nova abordagem das questões monetárias e do próprio
papel da moeda doméstica no sistema econômico, com ênfase na função
“reserva de valor” em títulos de crédito/dívida e em títulos objeto de transações
financeiras e especulativas. A função “unidade de conta” da moeda, por outro
lado, vem sendo paulatinamente ocupada por moedas estrangeiras, sobretudo
euro e dólar, em razão da liberalização ilimitada dos mercados financeiros e do
apelo crescente ao crédito externo por parte das grandes empresas e dos
bancos nacionais e transnacionais.
Com a vitória das oposições nas eleições presidenciais em 2002, esperava-se
uma mudança na política econômica, uma reversão das orientações do Estado
e novos critérios de decisão governamental que pudessem permitir a retomada
do crescimento econômico, a expansão do emprego e a interrupção do
processo de financeirização da economia e de concentração de renda. Essas
não eram tarefas de fácil implementação em razão do tamanho da dívida
pública, da presença maciça dos conglomerados internacionais nos setores
dinâmicos da economia brasileira e, mesmo, da ausência de um pensamento
crítico estruturado com forte penetração popular. Por outro lado, a ideologia do
partido vitorioso nas urnas em 2002 tendia a uma maior proximidade com o
trabalhismo anglo-saxão do que com a social democracia da União Européia,
renegando ainda todas as conquistas da sociedade brasileira entre 1930 e
1980.
A sinalização de que as expectativas de mudança da sociedade brasileira não
teriam correspondência com as decisões dos Poderes Legislativo e Executivo
foi dada no primeiro ano de Governo, com a promulgação de três emendas
constitucionais que ratificaram o conteúdo neoliberal das reformas em curso.
Abordaremos a seguir duas dessas emendas, as que tiveram por objeto o
Sistema Financeiro Nacional e o Sistema Tributário Nacional.
-Reformas constitucionais adotadas em 2003
A Emenda Constitucional N.40 foi promulgada em maio de 2003 (o
detalhamento da EC N.40 está apresentado no anexo 1 que acompanha este
artigo). Dela resultou o aprofundamento do processo de liberalização e de
internacionalização do SFN (Sistema Financeiro Nacional), mediante:
-eliminação do teto de 12% para a taxa real de juros, teto fixado pelos
constituintes de 1988;
-admissão da participação do capital estrangeiro nas instituições que integram
o SFN.
Tanto a liberação da taxa de juros quanto o avanço da internacionalização do
SFN não constituíam medidas favoráveis às mudanças esperadas.
Na
verdade tiveram um forte impacto negativo sobre a dívida pública, que
continuou a crescer em razão de uma taxa de juros que é o triplo ou pelo
menos o dobro da taxa de crescimento da economia. Mas ambas impactam
ainda o processo de financeirização da economia brasileira, com efeitos
negativos sobre o processo produtivo e sobre o agravamento da concentração
da Renda Nacional. Apontam para a consolidação do rentismo como traço
predominante do atual modelo de acumulação de capital.
Em dezembro de 2003 foi aprovada a Emenda Constitucional N.42 (ver
detalhamento nos anexos 2 e 3) que introduziu modificações substanciais no
STN (Sistema Tributário Nacional). Vou destacar duas do conjunto bastante
amplo de alterações promovidas pela EC N.42.
A primeira mudança de porte envolveu o ICMS (Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e sobre prestações de Serviços de Transporte Interestadual e
Intermunicipal e de Comunicação), imposto de competência estadual e objeto
de repartição com os municípios. Até então, a isenção do ICMS nas
exportações beneficiava apenas produtos industrializados e, em casos
específicos, os semi-elaborados. A EC N.42 ampliou esse benefício para toda
e qualquer mercadoria exportada e, pior, garantiu a manutenção e o
aproveitamento do imposto recolhido nas operações e prestações anteriores à
etapa de exportação. Foi uma medida que, às custas das finanças estaduais e
municipais, beneficiou particularmente o agro-negócio voltado para o mercado
externo, em processo que julgo constituir uma atualização histórica do modelo
primário-exportador vigente ao tempo do liberalismo inglês.
Em segundo lugar, a EC N.42 constitucionalizou o SIMPLES (Sistema
Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e
das Empresas de Pequeno Porte), de forma um tanto incompreensível, na
medida em que este regime de excepcionalidade tributária teve sua vigência
inaugurada em 1996 e não passou, até esta data, por uma avaliação rigorosa
quanto à sua eficácia e aos seus impactos sobre as finanças públicas.
Mais importante do que a constitucionalização do SIMPLES, foi a autorização
introduzida na Constituição da República para a adoção de outros regimes de
excepcionalidade tributária, mediante estabelecimento de critérios especiais de
tributação, por lei complementar, como medida preventiva frente ao risco de
desequilíbrios da concorrência. Em decorrência, e no caso de manutenção do
atual ambiente político e ideológico, não será o Governo impelido a ampliar o
leque de favores tributários aos conglomerados que operam em território
brasileiro, frente a ameaças de invasão do mercado por outros conglomerados
atuando externamente? Não seria esta uma forma de reintroduzir a “reserva
de mercado”, em detrimento do equilíbrio das contas públicas?
Não
representa esta medida um atrelamento do STN às exigências da guerra pelo
mercado global travada entre os grandes grupos econômicos internacionais?
Não estaremos frente a uma tendência de adotar a política de focalização nas
decisões sobre tributação, contrariamente ao espírito de isonomia que
prevaleceu entre os constituintes de 1988?
Estas e tantas outras questões que poderíamos aqui levantar, relativamente às
EC’s Ns.40 e 42, não foram ainda objeto de um amplo debate democrático.
Não há, entre nós, um conhecimento amplo e aprofundado das reformas
constitucionais e do conjunto de leis complementares e ordinárias que
transitam pelo Congresso Nacional. As decisões que são tomadas naquele
Parlamento parecem resultar de iniciativas tomadas en petit comité. A
proliferação de medidas visando conceder incentivos fiscais, por exemplo,
parece não ter limites, apesar de podermos estimar em mais de R$ 100 bilhões
a renúncia fiscal anual.
A desnacionalização da economia, por outro lado, avança a passos largos. Em
março de 2005, por exemplo, o Ministro da Fazenda encaminhou ao Presidente
da República um anteprojeto de lei complementar abrindo o mercado de
resseguros, sob o argumento de estimular a livre concorrência. Há ali também
a proposta de admissão de resseguradores estrangeiros e a permissão para
que uma certa categoria desses resseguradores estrangeiros, com apenas um
escritório de representação no Brasil, possam manter conta em moeda
estrangeira. Este é mais um caso em que a privatização transforma-se em
desnacionalização, sem benefícios para a sociedade brasileira.
Termino colocando a velha questão: as reformas neoliberais que vêm sendo
feitas desde o início da década de 1990, atendem às expectativas, sonhos e
utopias de nossa geração, de construir democraticamente um Estado
soberano?
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