34º Encontro Anual da ANPOCS – Associação Nacional de Pós-graduação e pesquisa em Ciências Sociais. ST35: Trabalho, sindicatos e identidades sociais Título do Trabalho: A garantia dos direitos sociais mínimos: caso dos trabalhadores informais da cidade de Salvador. Gabriela da Luz Dias Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia: Cultura, desigualdades e desenvolvimento. Bolsista CAPES. Pós-graduada pela Escola de Magistratura da Bahia. Graduada pela Ucsal. Advogada atuante na área de Direito Trabalhista, Associativo e Cooperativo. Clóvis Roberto Zimmernmann Doutorado e graduação em Sociologia pela Universitat Heidelberg (Ruprecht-Karls). Graduação em Teologia - Universitat Heidelberg (Ruprecht-Karls) (1996). Professor adjunto de Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. 1 A garantia dos direitos sociais mínimos: caso dos trabalhadores informais da cidade de Salvador. Resumo: Este artigo possui como escopo principal abordar os avanços e retrocessos sofridos no campo dos direitos sociais, especialmente no que se refere à inserção dos trabalhadores informais no sistema securitário brasileiro. Para tanto, fazemos uma análise conceitual e histórica a respeito dos direitos sociais (antes e pós-Constituição Federal de 1988). Tratamos também das tipologias clássicas do Estado de bem-estar e propomos uma comparação com o Sistema de Seguridade Social brasileira. Concluímos que muitas medidas até o momento tomadas, a despeito de incentivarem a inclusão no sistema da seguridade, não garantem a efetividade dos direitos. E que, por isso, encontramo-nos distante da concepção do Estado de Bem-Estar, capaz de garantir melhorias nas condições de vida e direitos sociais para toda população. Palavras-chave: Direitos Sociais, Cobertura Previdenciária, Trabalhador informal. 2 1. Intróito É indubitável a dificuldade histórica do Brasil no processo de efetivação dos direitos sociais. Bem preleciona José Afonso da Silva (1998), a respeito do efetivo significado da expressão: Direitos sociais são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade (SILVA, 1998, p. 289). Na Constituição brasileira de 1988 vemos os direitos sociais apontados no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo II e Título VIII – Da ordem social, Capítulos I a IX. No artigo 6º garantiram-se os direitos sociais mínimos, que abaixo seguem transcritos: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Constituição Federal de 1988 – EC 66/2010) O Título VIII traz em seu artigo 193 disposições a respeito da ordem social, que assegura ter sua base no primado do trabalho e como objetivos o bem-estar e a justiça social. Os capítulos seguintes estabelecem normativos que subdividem a Seguridade Social na tríade: Saúde, Previdência Social e Assistência Social. Neste quesito, historicamente não coube ao Estado a regulamentação de políticas ligadas a essas três áreas. Na hipótese do indivíduo se encontrar em condição de vulnerabilidade social, a assistência social era realizada apenas por entidades de natureza privada com finalidade filantrópica, caritativa. A Constituição Republicana de 1891 inclusive chegou ao extremo de proibir o governo federal de interferir na regulamentação do trabalho, sob o argumento de se tratar de violação da liberdade do exercício profissional. Qualquer tipo de intervenção no exercício de atividade laboral era vista como prejudicial. 3 Apenas no ano de 1926, momento em que a Constituição sofreu sua primeira reforma, o governo federal foi autorizado a legislar sobre trabalho. Entretanto, todas as disposições da época a respeito de férias, trabalho de menor, além de outros temas, eram vistas como sem grandes repercussões, consideradas na época como medidas “para inglês ver”. 1 As legislações trabalhistas apenas surgiram efetivamente a partir de 1930, no governo de Getúlio Vargas, com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a disposição na Constituição de 1934 sobre normas atinentes ao Direito do Trabalho: salário mínimo, jornada de oito horas, proteção ao menor e a mulher, férias etc. Além da Constituição Brasileira de 1934, são também considerados marcos no processo de reconhecimento dos direitos sociais a Constituição Mexicana de 1917 (a primeira a reconhecer os direitos sociais como essenciais à organização e manutenção da ordem estatal) e a Constituição Alemã de Weimar em 1919. No ano de 1943, houve a iniciativa de se reunir todas as leis brasileiras existentes à época sobre direito do trabalho, momento em que surgiu a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT. Por tudo quanto será visto, se tornará fácil perceber que são inegáveis os avanços alcançados com a promulgação da Constituição Federal de 1988. A intitulação Carta Cidadã se deve exatamente ao fato de se tratar da constituição mais democrática que o país já teve. Os direitos sociais são, assim, considerados prestações positivas a serem garantidas pelo Estado Social, capazes de consolidar a perspectiva de uma isonomia material (e não apenas formal) e social na busca de melhores condições de vida. Encontra-se ainda consagrados como fundamento na Carta Republicana (art. 1, IV, CF/88). Observa-se que dentre as garantias estabelecidas no rol de direitos sociais (art. 6º), o direito ao trabalho emerge como possibilidade de alcançar uma existência digna, onde todas as pessoas têm direito a ganhar a vida por meio de um trabalho 1 Expressão utilizada para significar lei publicada apenas formalmente, sem a intenção de se pôr em prática. Conforme José Murilo de Carvalho em seu livro Cidadania no Brasil – O longo caminho, a expressão surgiu na época da escravidão no Brasil, em virtude das exigências da Inglaterra no que tange a assinatura de tratados que versassem a respeito da proibição do tráfico, como preço a ser pago em razão da conquista da independência brasileira. 4 livremente escolhido, de possuir condições equitativas e satisfatórias de trabalho e renda e até de ser protegida em caso de desemprego (art. 6º c/c art. 7º e 170, CF/88). Nos artigos seguintes (7º a 11) existe a previsão sobre os principais direitos dos trabalhadores. Nota-se que tanto a Constituição quanto a Consolidação das Leis do Trabalho e as demais legislações esparsas a respeito do tema estabelecem proteções ao trabalhador urbano e rural, com vistas a melhorar sua condição social. Inúmeras disposições foram trazidas pelo Estado com vistas a editar normas garantidoras de direitos mínimos aos trabalhadores, sujeito historicamente hipossuficiente e economicamente mais fraco. A respeito do tema, temos ainda a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que no artigo 23º prescreve: 1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses. A história da cidadania encontra-se imbricada com a noção da garantia e consolidação de direitos. É comum o desmembramento da cidadania em direitos civis, políticos e sociais. Esta segmentação foi sugerida por Marshall, tido pela maioria dos doutrinadores como o teórico mais importante na teorização da cidadania. Nesta linha de pensamento, pleno será o cidadão titular de todas as três espécies de direitos. Nas palavras de José Murilo de Carvalho (2009) os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos. A idéia central em que se baseiam é a justiça social (CARVALHO, 2009, p. 22). Nessa esteira, os direitos sociais são instrumentos indispensáveis para o pleno gozo de direitos, sendo, entretanto, necessária a intervenção estatal com vistas a 5 assegurar mecanismos para consecução da justiça distributiva, propulsora do fim das desigualdades sociais. Ainda no que tange aos direitos sociais, mais especificamente no que se refere aos direitos previdenciários, a Constituição Federal de 1988 apresentou como principal conquista a inserção mais intensa do trabalhador rural no sistema previdenciário (a este respeito foi relevante também a elevação da aposentadoria dos trabalhadores rurais para o piso de 1 (um) salário mínimo). No que se refere ao sistema assistencial, uma importante alteração se deu com a introdução do Benefício de Prestação Continuada, contido na LOAS - Lei Orgânica de Assistência Social, marcado pelo estabelecimento de renda vitalícia para idosos e deficientes, independente de contribuição à previdência. Desta maneira, verificando os moldes em que foi delineada a Previdência Social brasileira, em que pese seu caráter contributivo e mantenedor de condições (como detalharemos a seguir), merecidas são as reverências às conquistas alcançadas pela Constituição de 1988 no que tange aos direitos sociais. No campo da Previdência Social, em razão da suposta necessidade de se reduzir déficit, várias reformas foram realizadas no sistema que atingiram negativamente os cidadãos. Os dois principais problemas enfrentados no que se refere a benefícios previdenciários foram: a revogação do critério “tempo de serviço” para obtenção da aposentadoria, sendo substituída pela necessidade de análise concomitante do tempo de contribuição e da idade mínima. Foram também eliminados os regimes especiais que consentiam aposentadorias com menor tempo de contribuição. Este artigo possui como escopo principal abordar os avanços e retrocessos sofridos no campo dos direitos sociais, especialmente no que se refere à inserção dos trabalhadores informais no sistema securitário brasileiro, trazendo dados empíricos da cidade de Salvador. 2. As tipologias clássicas: Seguro versus Seguridade Para compreendermos o sistema de seguridade social brasilieiro é importante analisar as tipologias clássicas do Estado de Bem-Estar social. Essas tipologias tem relação direta com os modelos de seguridade social instituidas no Brasil. O primeiro modelo clássico, implantado no século XIX pelo chanceler Otto Von Bismarck, mormente na década de 1880, leva seu nome, sendo portanto, chamado 6 de Modelo Bismarckiano. Na época, as políticas sociais implantadas exerceram importante função no processo de construção nacional. Hoje, tornou-se referencial na análise do Estado de bem-estar (FARIA, 1998, p. 51). O modelo bismarckiano encontra-se voltado basicamente para a seguridade básica, disponibilizado apenas para seus segurados, possui um caráter contributivo e corporativista, basicamente instituído para beneficiar operários industriais com carteira assinada e reconhecidos como tal (FARIA, 1998, p. 51). Em virtude de seu caráter contributivo, a sua cobertura é limitada e o valor do benefício depende do montante da contribuição, possuindo desse modo baixo efeito redistributivo. O modelo Bismarckiano segue a lógica do mérito individual, caracterizado pela contribuição individual como critério para o aferimento de benefícios. Esse modelo é muito criticado por excluir parcelas significativas da população do acesso à proteção social, sobretudo do setor informal, pois quem não apresenta possibilidade de contribuir financeiramente com o sistema previdenciário não tem direito a receber benefícios. No Brasil, Wanderley Guilherme dos Santos chamou esse modelo de ‘cidadania regulada’. O segundo modelo, introduzido por William Beveridge, também carrega o nome do seu principal representante, e por esta razão é comumente chamado de Modelo Beveridgeano. Beveridge foi responsável por propor a criação de uma ampla rede de seguridade social. O modelo beveridgeano é mundialmente conhecido pelo seu caráter universalista, onde ampara a idéia do mínimo social para toda a população, independente de sua necessidade. Por esta razão é entendido como modelo capaz de gerar alto efeito redistributivo. O modelo beveridgeano não exige contribuição individual anterior para a obtenção de um benefício básico, aferindo direitos sociais pela característica definidora da cidadania, ou seja, o simples fato de a pessoa pertencer a um determinado país. O financiamento dos programas de caráter universal não se dá via contribuições individuais, mas por tributos gerais. Para Faria (1998), Beveridge, assim como Keynes, entendeu a seguridade como elemento macroeconômico capaz de garantir estabilidade do país. Beveridge é também conhecido por ter sido precursor das idéias de Marshall a respeito da universalidade de benefícios, independente de prova de necessidade (FARIA, 1998, p. 53). 7 3. O sistema de Seguridade Social Brasileiro. A respeito da conquista da cidadania, de acordo com José Murilo de Carvalho (2009) os direitos foram conquistados no Brasil na seguinte ordem: inicialmente os direitos sociais, implantados em um momento de crise - numa época de supressão de direitos políticos e redução dos direitos civis2 - em seguida os direitos políticos e ulteriormente os direitos civis. Todos esses três direitos são até hoje muitas vezes indisponíveis à população. Entretanto, conforme trazido por este autor, na Inglaterra 3, a ordem seguida foi oposta: primeiro conquistaram-se as liberdades civis – base de qualquer garantia à plena cidadania, posteriormente os direitos políticos e por derradeiro os direitos sociais. A partir disto, conclui o autor que os diferentes caminhos comprometem o resultado final, uma vez que o tipo de cidadão produzido pela sociedade dependerá diretamente da ordem dos direitos alcançados, alterando, por conseguinte, na espécie de democracia gerada. Conforme visto, muitos avanços foram alcançados com a promulgação da Carta Magna de 1988, entretanto, muito ainda falta a ser conquistado, principalmente no que tange a efetiva materialização dos direitos sociais. A respeito da Seguridade Social, a Constituição Federal dispõe: Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. E em seguida assevera: Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: 2 Reflexão do historiador José Murilo de Carvalho a respeito do período em que foram conquistados os direitos sociais: “O período de 1930 a 1945 foi o grande momento da legislação social. Mas foi uma legislação introduzida em ambiente de baixa ou nula participação política e de precária vigência de direitos civis. Este pecado de origem e a maneira como foram distribuídos os benefícios sociais tornaram duvidosa sua definição como conquista democrática e comprometeram em parte sua contribuição para o desenvolvimento de uma cidadania ativa.” 3 O autor que desenvolve na Inglaterra as várias dimensões da cidadania é Thomas H. Marshall. Para este autor, também a cidadania inglesa se desenvolveu vagarosamente. 8 I - universalidade da cobertura e do atendimento; II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV - irredutibilidade do valor dos benefícios; V - eqüidade na forma de participação no custeio; VI - diversidade da base de financiamento; VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. (grifos nossos) Chama atenção o fato de da Seguridade Social brasileira objetivar de um lado a universalidade da cobertura e do atendimento e por outro visar a seletevidade na prestação dos benefícios. Universalidade e seletividade são princípios divergentes nas discussões contemporâneas sobre Seguridade Social, mas que no Brasil são incorporados nos objetivos da seguridade social. A experiência prática demonstra em nosso país que a seletividade predomina sobre a universalidade. Com a implementação do Sistema Único de Saúde – SUS, em que pese todas as dificuldades na sua gestão (que aqui não pretendemos abordar), observamos que o direito de acesso à saúde foi estendido de maneira irrestrita a toda coletividade, sem estabelecimento de condicionantes e independente de pagamento. Do ponto de vista da legislação o SUS é o componente mais universal da Seguridade Social brasileira. Na prática, entretanto, a saúde no Brasil é extratificada entre o atendimento público, visto como precário e para pobres e o antendimento dos planos de saúde privado, de melhor qualidade e para os extratos mais ricos. A assistência social, da mesma forma (e onde também fazemos a mesma ressalva, tendo em vista que não é o foco do tema analisado), é seletiva para todos que dela necessitarem, independente de contribuição. Neste tipo de prestação incluem-se os serviços assistenciais e os benefícios assistenciais pecuniários (por exemplo, o Benefício de Prestação Continuada - BPC, concedido ao idoso e/ou deficiente que comprove não ter meios de atender a sua subsistência). Tanto na teoria como na prática o Benefício de Prestação Continuada é um componente extremamente seletivo da Seguridade Social brasileira, em virtude dos critérios de elegibilidade serem de 1/4 do salário mínimo para o auferimento do benefício e não para todos os idosos (PEREIRA, 1998). 9 A Previdência Social, em que pese os objetivos acima descritos, instituídos na Carta Constitucional, é organizada de maneira diferente, estabelecida sob a forma de regime geral. Os princípios basilares da Previdência são, portanto, a compulsoriedade, apresentada como a necessidade de filiação obrigatória e a contributividade, demonstrada pela necessidade de, para ser beneficiário, enquadrar-se na qualidade de segurado e contribuir para o sistema da Seguridade Social. Pelo exposto, torna-se fácil perceber que tais restrições tornam limitativa a prestação desta garantia a certa categoria de trabalhadores, tendo em vista que muitos cidadãos não contribuem para a Previdência Social. Assim, uma pergunta norteia a discussão que a seguir apresentaremos: Sendo o Sistema da Seguridade Social instrumento de proteção social baseada na necessidade de se cobrirem riscos sociais, não seriam exatamente os que não podem contribuir aqueles que deveriam ser os seus principais beneficiários? Um dado preocupante a respeito da condição atual do Estado brasileiro, no que tange ao tema, refere-se à quantidade de pessoas não alcançadas pela rede mínima de proteção social: segundo a PNAD 2006, 1,46 milhões de famílias vivem com renda zero, ou seja, não auferem renda de trabalho, nem se encontram providas de renda mínima de proteção social (LAVINAS, 2006). Segundo Lavinas: São 3,5 milhões de pessoas excluídas da rede assistencial e expostas à pobreza extrema. [...] Deste universo de 3,5 milhões de pessoas, somente 0,84% têm mais de 65 anos. A idade média dos adultos dessas famílias, de tamanho padrão (3 membros em média) é de 30 anos (LAVINAS, 2007, p. 6). Lavinas sintetiza: “Praticamente 10 % da população pobre não foi alcançada por nenhum tipo de benefício assistencial” (LAVINAS, 2007, p. 6). Isso demonstra que na realidade a seletividade predomina sobre a universalidade. Isso significa que nem pelo lado da regra contributiva, nem pelo lado da política assistencial logramos garantir, de facto ou de jure (em caso de risco consumado), o acesso a uma renda monetária regular, um mínimo de sobrevivência, que possa prevenir contra a miséria e níveis alarmantes de exclusão social (LAVINAS, 2007, p. 6). 10 Ademais, em que pese a necessidade de integração de ações (art. 194, Constituição Federal/1988), observamos que o sistema separa as subáreas que compõem a seguridade social e não garante os mesmos tipos de proteção a todos os subsistemas, uma vez que temos um direito à saúde e à assistência a quem necessitar e independente de contribuição e um direito previdenciário contributivo, limitativo e compulsório, dotado de uma disciplina própria, recheada de especificidades, dentro do universo do sistema securitário juridicamente integrado e faticamente desarticulado. Pelo exposto, observamos que a garantia instituída na Carta Magna de 1988 é bem diferente do seu processo de implementação. Entretanto, não há como deixar de considerar a potencialidade constitucional brasileira a respeito do tema, que, a depender do caminho que se seguir no processo de efetivação de direitos, pode permitir emergir um padrão extremamente avançado de concretização de direitos sociais. Sabemos também que o problema de materialização dos direitos sociais não é exclusivo do Brasil, uma vez que muitos outros países seguem esta tendência. 4. A falta de garantia de direitos sociais mínimos aos trabalhadores informais de Salvador Atualmente é grande a fração da população economicamente ativa que opera atividade laboral informal sem contribuir para a previdência social. Através de pesquisas realizadas pelo IPEA4 e pelo PED5 observamos que é relevante e preocupante o número de trabalhadores informais não contribuintes, tanto observando o quadro conjuntural nacional, quanto analisando através de uma perspectiva micro: a cidade do Salvador. A seguir apresentaremos gráficos que delineiam brevemente o problema dos trabalhadores brasileiros informais: 4 5 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA. Pesquisa de Emprego e Desemprego realizada pela Faculdade de Economia - UFBA, DIEESE, SEI, SEPLANTEC e SETRAS para levantamento dos dados estatísticos referentes ao perfil dos desempregados e informais. 11 Gráfico 1: A cobertura da previdência (Contribuintes e Não Contribuintes) 60% 59% 59% 60% 56% 50% 40% 41% 44% 45% 40% 55% 42% Cobertos Descobertos 30% 20% 10% 0% 1988 1993 1998 2003 2007 Fonte de dados: IPEA / PNADS6. Percebe-se no gráfico acima que é grande a fração da população economicamente ativa que opera atividade laboral informal, 42% da população economicamente ativa, sendo que 55% contribuem para a previdência social em 2007. Nota-se que o percentual dos trabalhadores cobertos diminuiu de 59% em 1988 para 55% em 2007. Gráfico 2: O perfil dos não contribuintes da previdência (Desocupados e Informais) 6 Considera-se neste caso, a população economicamente ativa, correspondente a pessoas de 16 a 64 anos. Considera-se como trabalhador informal todo aquele que exerce atividade laborativa, mas não contribui para a Previdência Social. 12 45% 40% 35% 45% 44% 41% 37% 42% 40% 34% 35% 35% 34% 30% 20% Desempregados Informais 15% Total de descobertos 25% 10% 5% 9% 4% 10% 6% 8% 0% 1988 1993 1998 2003 2007 Fonte de dados: IPEA / PNADS7. Neste trabalho publicado pelo IPEA8, que resumimos nos gráficos acima apresentados, identificou-se que, no ano de 2007, 42% (quarenta e dois por cento) da população economicamente ativa, equivalente a 38.850.359 de pessoas, encontravam-se descobertas pela previdência social. Do total de não contribuintes (42%), 34%, (trinta e quatro por cento) das pessoas trabalham como informais, exercendo assim alguma atividade laborativa. Como é grande o número de trabalhadores informais, isso significa dizer que temos atualmente9 31.230.442 de pessoas impedidas de gozar de qualquer tipo de direito social (direito à FGTS, férias, 13° salário, horas extras, salário mínimo, salário família, licenças paternidade/ maternidade, seguro-desemprego, auxílio doença, aposentadoria, etc). Desta maneira, através da análise dos dados acima apresentados, percebemos que 1/3 (um terço) da população brasileira, em que pese exercer atividade laborativa, por ser informal, encontra-se completamente exposta à vulnerabilidade social, tendo em vista que não goza de qualquer tipo de assistência previdenciária e nem de nenhum direito 7 Considera-se neste caso, a população economicamente ativa, correspondente a pessoas de 16 a 64 anos.Considera-se como trabalhador informal todo aquele que exerce atividade laborativa, mas não contribui para a Previdência Social. 8 Políticas Sociais: acompanhamento e análise - Vinte Anos da Constituição Federal - Volume 1 nº 17, volume 1 2009. 9 Dados encontrados em pesquisa realizada no ano de 2007. 13 social constitucionalmente garantido aos trabalhadores (art. 7°, CF/88). Isso acontece pois nosso sistema de seguridade social é ainda orientado no modelo Bismarckiano. Maria da Luz Alves Ferreira (2007), em pesquisa feita em tese de doutorado a respeito do trabalho informal e seu conseqüente reflexo sobre a cidadania, observou forte heterogeneidade social nas questões atinentes ao trabalhador informal. Em sua tese, apresenta duas vertentes a respeito do tema, uma diretamente associada a aspectos econômicos, outra mais voltada ao cunho sociocultural. A teoria de cunho econômico traz em sua temática a informalidade associada à lógica perversa do mercado. Para seus defensores (Márcio Pochmann, Maritzel Fuentes, Paul Singer, entre outros) o aumento da informalidade deriva do caminho atualmente seguido pela economia, fortemente marcado pela disparidade proposta pelo modo de produção capitalista. Nesta conjuntura, os trabalhadores informais, exatamente por conta da dificuldade de acesso ao setor formal, não possuem outra opção senão submeterem-se a qualquer tipo de atividade. Aqueles que defendem o cunho sociocultural do setor informal (Léa Vidal (1996), Eliane Vasconcellos (1994), Patrícia Rivero (2000), Dombrowski (1996) apud Ferreira, 2007) enxergam a informalidade como uma escolha clara e consciente daqueles que estão nesta condição. Para estes, há uma preferência natural, particular e racional destes trabalhadores, que acabam por analisar vantagens (ganhos mais elevados em comparação ao mercado formal, jornada flexível, desnecessidade de receber remuneração mensalmente, inexistência de chefia, etc), preferindo assim a informalidade frente à formalidade. A vertente social, não considera informais seus atores, mas sim suas atividades (FERREIRA, 2007, p. 44). Deste modo, a informalidade surge como alternativa inteligente e perspicaz, capaz de driblar as condições de dificuldade apresentadas pelo mercado formal. No que tange as pesquisas trazidas, estabelecendo um comparativo entre os dados analisados pelo IPEA e os captados na Pesquisa de Emprego e Desemprego realizada pela Faculdade de Economia - UFBA, DIEESE, SEI, SEPLANTEC e SETRAS para levantamento dos dados estatísticos referentes ao perfil dos desempregados e informais, observamos que o fenômeno de dificuldade de acesso à previdência não é diferente na cidade de Salvador. A amostragem apresentada nas pesquisas confirma a vulnerabilidade dos trabalhadores informais soteropolitanos, no que tange a cobertura pela previdência social, conforme mostraremos a seguir. 14 Um dos responsáveis10 pela pesquisa de campo dos estudos apontados traçou o perfil dos trabalhadores informais da cidade de Salvador: [...] são homens, negros, chefes de família, têm mais de 40 anos e baixo nível de escolaridade. Dedicam-se em sua imensa maioria às atividades informais que oferecem bens e serviços à população em geral, concentrando-se principalmente nos setores de serviço e comércio. (OLIVEIRA, 2005, p. 148). Outros dados da pesquisa soteropolitana mostraram que os trabalhadores informais urbanos apresentam a mesma configuração que aquela apresentada pela pesquisa do IPEA, no que tange a não contribuição à previdência social: Gráfico 3: Recolhimento de INSS Não recolhe INSS Recolhe INSS 0 Porcentagem 20 40 60 80 100 Recolhe INSS Não recolhe INSS 19,9 80,1 Fonte: Pesquisa de Campo: CRH/FFCH/UFBA, 2002. A partir dos dados do PED11 podemos perceber também que 72% dos entrevistados gostariam de mudar para um emprego com carteira assinada e 28% não possuem intenção de mudar. 10 Oliveira, Luiz Paulo Jesus de, A condição “provisória – permanente” dos trabalhadores informais: o caso dos trabalhadores de rua na cidade de Salvador. Salvador, 2005. 236p. 11 15 Pesquisa de Campo CRH/UFBA (2001-2002) Um dado interessante refere-se ao fato de que 22% dos entrevistados que dizem não querer carteira assinada, justificam esta opção por conta da idade avançada, pois para estes sua condição etária iria dificultar seu reingresso no mercado de trabalho. Assim, em que pese no momento da entrevista terem se posicionado no sentido de dizer que não possuem interesse em mudar para carteira assinada, em face da justificativa da sua resposta pode ser que para estes trabalhadores, a informalidade é uma alternativa inteligente e perspicaz, capaz de driblar as condições de dificuldade apresentadas pelo mercado formal. Interessante dizer que daqueles entrevistados que gostariam de mudar para um emprego com carteira assinada, 44,2% justificaram que gostariam de ter direitos trabalhistas, 20% desejam ter trabalho certo e seguro, 14,2% queriam ter salário certo e 10,8% almejam ter melhor renda e 5,8% melhores condições de trabalho. Pelo exposto, o desejo pelo emprego formal, exteriorizado pela intenção de ter sua carteira assinada, reflete a vontade dos trabalhadores verem reconhecidos seus direitos sociais de caráter Bismarckiano, na forma em que se encontram prescritos na Constituição Nacional. 5. Considerações Finais Apesar de todos os avanços alcançados com as garantias constitucionalmente estabelecidas e com a evolução histórica das políticas sociais, percebemos que muitos trabalhadores encontram-se ainda desprotegidos e alheios ao sistema previdenciário instituído em nosso país, cuja concepção ainda centra-se na lógica Bismarckiana do mercado formal e da contribuição individual para auferimento dos direitos sociais. Inegável o avanço no processo de cobertura previdenciária pós-constituição de 1988, sobretudo no que se refere a equiparação dos trabalhadores rurais aos urbanos. Entretanto, muito ainda há de ser feito. As medidas até o momento tomadas, a despeito de incentivar a inclusão no sistema da seguridade, não garantem a efetividade dos direitos em virtude do caráter contributivo dos mesmos. Muitos trabalhadores até hoje têm seus direitos negados pela falta de formalidade na prática da atividade laborativa. A Lei Complementar n. 128/2008 criou a figura do Microempreendedor Individual, também chamado de MEI. Posteriormente, a Resolução nº 58, dispôs sobre o Microempreendedor Individual – MEI, no âmbito do 16 Simples Nacional, com objetivo de legalizar os empreendimentos informais. Com a entrada em vigor do SIMEI – Sistema de Recolhimento em Valores Fixos Mensais dos Tributos abrangidos pelo Simples Nacional, a partir de 1º de julho de 2009, os microempreendedores individuais que optaram pelo sistema tiveram a oportunidade de legalizarem seus negócios. Entretanto, em que pese todos os incentivos no sentido de estimular a formalização, inegável a necessidade de existência de políticas de apoio no sentido de incluí-los no processo de materialização de direitos sociais para além da lógica contributiva. Demais disso, verificamos que, conforme exposto, as políticas propostas pela Seguridade, em que pese o princípio constitucional apregoar a necessidade de integração de ações, permanecem até hoje completamente fragmentadas e desarticuladas, dificultando o processo de promover a redução dos chamados riscos sociais. Deste modo, a preocupação basilar que deverá nortear as políticas públicas orientadoras do trio: assistência, previdência e saúde será exatamente articular suas atividades e promover estratégias de inclusão daqueles que se encontram atualmente apartados do sistema, como é o caso dos trabalhadores informais de Salvador e de muitos outros municípios brasileiros. Há a necessidade de se superar a lógica perversa da contribuição individual, pois exclui parcelas significativas da população do acesso à proteção social, sobretudo dos trabalhadores do setor informal, pois quem não apresenta possibilidade de contribuir financeiramente com o sistema previdenciário não tem direito a receber benefícios. Por tudo quanto foi exposto, observamos que, longe do conceito de Estado Providência, conforme bem definido por Maria do Carmo Falcão12 estamos próximos do Estado Assistencial, o qual se configura pela expressão oculta da extensão dos direitos sociais, e conseqüentemente da suposta universalização das atenções das políticas sociais. 6. 12 Sociais. 17 Referências Bibliográficas: Assistência na previdência social. Uma política marginal. In: Os Direitos (dos desassistidos) ARRETCHE, Marta. Emergência e desenvolvimento do Welfare State: teorias explicativas. In: BIB: Boletim Bibliografico de Ciências Sociais., Rio de Janeiro, nº 39, p.3-40, 1995. 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