POLÍTICAS PÚBLICAS GOVERNAMENTAIS COMO MEIO DE AUXÍLIO PARA A MELHORIA DA REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL Juliana Adono da Silva30 UFMS Larissa Mascaro Gomes da Silva de Castro31 UFMS E UFPA RESUMO: A partir da análise histórica da situação da Reforma Agrária no Brasil, o presente artigo pretende aferir a efetividade de políticas públicas governamentais. Serão analisados os seguintes aspectos: se o princípio da função social da propriedade cumpre o seu papel de forma adequada, se as hipóteses constitucionais de desapropriação contemplam as necessidades dos cidadãos e da manutenção do bem-estar social, bem como se a Reforma Agrária tem eficácia no país e produz justiça social. Ademais, o presente trabalho faz apontamentos em relação à importância do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nesse processo, como mecanismo de pressão, por melhor distribuição de terras no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Reforma Agrária; políticas públicas governamentais; justiça social; função social da propriedade; MST. Introdução O presente artigo pretende, pela perspectiva da evolução histórica-legislativa e da implementação de políticas governamentais, analisar a reforma agrária no Brasil, que é entendida, de acordo com o art. 1º, § 1º, da Lei 4.504/64, como a modificação do regime de posse e uso de uma região, para atender a justiça social e a produtividade, visando a melhor distribuição da terra. Para tanto, primeiramente, analisa o contexto histórico da Reforma Agrária no Brasil, através da metodologia cronológica, com apontamentos e informações que remontam à colonização europeia, desde 1500 até os dias atuais. Demonstrados e analisados a história e o contexto atual da questão agrária, no que diz respeito aos programas de reforma agrária no país, o presente trabalho elucida algumas das políticas públicas governamentais implantadas e sua efetividade na distribuição de terras de forma justa e igualitária, nos termos da Constituição Federal. A seguir, são estudados conceitos bibliográficos e legislativos sobre a função social da propriedade, correlacionando-os às hipóteses constitucionais de desapropriação. Buscase, nesse sentido, destacar a desapropriação constitucional para fins de reforma agrária 30 Autora do trabalho. Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas – UFMS/CPTL. E-mail: [email protected]. 31 Orientadora do trabalho. Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Pará - UFPA Mestre em Direito, especialista em Direito Empresarial e Bacharel em Direito, todos pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Docente do Curso de Direito do Campus de Três Lagoas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – CPTL/UFMS. E-mail: [email protected] no Brasil como uma medida jurídica que reconhece a importância da função social da propriedade para o desenvolvimento dos cidadãos, individual e coletivamente, para uma sociedade de forma justa e igualitária, mas que na prática encontra inúmeros obstáculos em razão da visão privada que ainda permeia a interpretação do direito e dos indivíduos. Também são estudados o histórico e conceitos fundamentais da Reforma Agrária, pretendendo o presente trabalho elucidar se as políticas públicas governamentais de Reforma Agrária no Brasil são eficazes e se produzem, como resultado e finalidade, a justiça social, através da distribuição justa e igualitária que possibilita a democratização do acesso à terra no Brasil, como também sua manutenção. Procura também informar a importância do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra nesse processo, como um mecanismo de pressão, para que o Poder Executivo cumpra as normas jurídicas e os objetivos do Estado brasileiro. Análise histórica da situação da Reforma Agrária no Brasil De acordo com o art. 1º, §1º do Estatuto da Terra, entende-se por Reforma Agrária o conjunto de medidas que buscam pela promoção e melhor distribuição de terras, pelas modificações do regime de sua posse e de seu uso, com a finalidade de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade. A Reforma Agrária é também um direito constitucional, inserido nos artigos 184 e 185 de nossa Constituição Federal (CF/88). Para entender a Reforma Agrária, é necessário previamente o conhecimento de seu contexto histórico no Brasil. Para tanto, é importante que se compreenda a questão agrária desde as suas raízes, enfocando à história e à gênese do direito à Reforma Agrária. A questão agrária no Brasil remonta ao seu nascimento, o qual se deu da expansão territorial e da exploração capitalista da sociedade europeia. Tal expansão não ignorou a ocupação territorial já existente anteriormente à chegada da etnia europeia (VILLARES, 2013, p. 95). A dinâmica da ocupação europeia foi talhada no começo de modo não hegemônico, porém usando ligações com povos indígenas para dar início à apropriação territorial e à extração dos recursos naturais que explicavam a empresa mercantil (VILLARES, 2013, p.95). Dessa forma, a expansão, primeiramente, realizou-se com a ligação com certos povos indígenas, em franca contraposição a outros considerados mais arredios ou cuja ocupação era mais organizada, posteriormente sua realização se deu com a importação de contingentes populacionais que se sobrepuseram a eles (VILLARES, 2013, p. 95). Nesse sentido, pode-se afirmar que o nascimento da luta pela terra no Brasil se deu no mesmo momento em que os portugueses iniciaram no país um verdadeiro caso de invasão, ou seja, apropriaram-se do território brasileiro, através da colonização de exploração, cujo objetivo era retirar da Colônia tudo o que ela pudesse oferecer (MORISSAWA, 2001, p. 58). Assim, a desigualdade social e a concentração fundiária têm marcado a história social do Brasil e têm suas origens desde o processo de colonização portuguesa, que instaurou o regime de sesmarias (vigente em Portugal e trazido para o Brasil), no qual o direito de posse era do agricultor e o domínio das terras pertencia ao rei (ou ao Estado) (MIRALHA, 2006, p.152). O modelo colonial no Brasil foi constituído por três componentes fundamentais na organização social, a saber: a grande propriedade fundiária, a monocultura de exportação e o trabalho escravo (MIRALHA, 2006, p. 152). Desde o início da colonização do Brasil, a terra esteve controlada pelos donos do poder do Estado, tendo tal tradição se consolidado como meio de dominação no Brasil e na República (LAUREANO; MOREIRA, 2009, p. 15). A terra passou a ser, desde então, um instrumento que possibilita a dominação do opressor sobre o oprimido, pois a concessão de terras pelo império ou pelo Estado, sempre se deu de forma a privilegiar poucos, não havendo a distribuição de maneira justa e igualitariamente oportunizada, razão dos latifúndios brasileiros. Portanto, em relação ao período colonial, desde 1500, a concentração fundiária é questão evidente na trajetória brasileira, o que se justifica desde a exploração de matéria prima durante o período colonial para o mercado externo, os ciclos agrícolas da canade-açúcar e do café, como as lutas de resistências como Quilombos, Canudos e Ligas Camponesas (LAHNI; COELHO; PEREIRA, 2009, p. 180). De acordo com Florestan Fernandes (2006), a superação do modelo colonial, ocorrido na queda do Antigo Regime, apresentou um caráter dual: de um lado, a característica revolucionária dos processos de independência dos países latino-americanos, e do outro o não rompimento com o modelo agroexportador inserido em certa divisão internacional do trabalho capitaneada pela Inglaterra. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária informa em seu site oficial, que no ano da independência do Brasil, em 1822, os conflitos de terra passaram a envolver proprietários e grileiros apoiados por bandos armados, e que apenas em 1850 houve tentativa do Império de ordenar o campo ao editar a Lei das Terras. Cabendo destaque a um dos dispositivos que proibiu a ocupação de áreas públicas e determinou a aquisição de terras apenas mediante pagamento em dinheiro. Ainda é elucidado que em 1889, com a instauração da República, o poder político permaneceu concentrado nas mãos dos latifundiários, sendo que, apenas no final dos anos 50 e início dos anos 60, com o processo de industrialização do País, a questão agrária passou a ser objeto de debates sociais (INCRA). Assim, nos anos 50 e 60 do século XX, foi criada a Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), e o governo de João Goulart iniciou um processo de Reforma Agrária, ao criar a SUPRA. Contudo, a violência do golpe militar de 1964 delimitou o anseio de liberdade do morador sujeito dos latifúndios armados do Nordeste brasileiro e de muitos camponeses sem terra que eram gerados pela crise do café e pelo começo do processo de industrialização do País. Os militares extinguiram a SUPRA e geraram o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), porém, nunca realizaram a reforma agrária, mesmo depois da promulgação do Estatuto da Terra, em novembro de 1964 (OLIVEIRA, 2001, p. 190). Em 1970, década marcada pelo aspecto socioeconômico das transformações que a agricultura brasileira sofreu (STEDILE, FERNANDES, 1999, p. 15), o Decreto nº 1.110 criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, produto da fusão entre o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário. Entretanto, tal período foi marcado por um processo de desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira, que modernizou e mecanizou a lavoura brasileira (INCRA). Em relação à criação do INCRA, aponta Célia Regina Pirolo dos Reis: “A história da criação e atuação do INCRA pode ser dividida em três períodos distintos. O primeiro vai de sua fundação como autarquia ao fim do governo militar (1970-1984). O segundo vai da Nova República ao governo Itamar Franco (1985-1994). O terceiro começa no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso até os dias atuais. Nos seus trinta anos de existência, as ações do INCRA podem ser assim resumidas: - De 1970 a 1984, segundo relatório fornecido pelo INCRA (2000:24.5) foram cadastrados 75.000 adquirentes de terras nos projetos de colonização. Foram criados 187 projetos de colonização, com área total de 9,927 milhões de hectares, abrangendo tantos os projetos de colonização oficial como os particulares. Foram assentados 166.189 famílias construídas 178 escolas em 127 projetos e 72 unidades de saúde em 22 projetos e de colonização do INCRA, PROTERRA e Convênios. Foram construídas 1.043,5 quilômetros de estradas e 11,5 quilômetros de abertura de ruas. - De 1985 a 1994, foram criados 804 projetos de assentamento, numa área de 7.831.531 hectares. A partir de 1985, pelo Decreto nº 91.766/85, foi aprovado o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA, 1985-1989). A reforma agrária passou a ser uma das prioridades absolutas no contexto de desenvolvimento do país, visando atender à população de baixa renda”. Com a instituição do PNRA, e sua finalidade de destinação de 43 milhões de hectares para o assentamento de 1,4 milhão de famílias até 1989, foi criado o Ministério Extraordinário para o Desenvolvimento e a Reforma Agrária (Mirad), porém quatro anos não se obteve resultado, muito menos justiça social, de acordo com os dados disponibilizados pelo Incra, quatro anos depois os números alcançados eram os seguintes: 82.689 famílias assentadas em pouco menos de 4,5 milhões de hectares, situação essa que resultou na extinção do Incra em 1987, e na do próprio Mirad, em 1989 (INCRA). Dessa forma, os ruralistas obtiveram êxito ao incluir na Constituição o caráter insuscetível de desapropriação da propriedade produtiva e transferir para a legislação complementar a fixação das normas para o cumprimento dos requisitos referentes à sua função social da terra (OLIVEIRA, 2007, p. 129). Com isso, o governo Sarney praticamente congelou o I PNRA. Primeiramente, por meio da Medida Provisória n 29, de 15 05 1989, extinguiu o cargo de ministro de Estado da Reforma Agrária e do Desenvolvimento Agrário, e transferiu as responsabilidades do MIRAD para o Ministério da Agricultura. Após o feito, pela Lei nº 7.739, de 20 03 1989, extinguiu igualmente o MIRAD e recriou o INCRA, por meio do Decreto nº 97.886, de 26 06 1989, vinculado ao Ministério da Agricultura (OLIVEIRA, 2007, p. 129). A questão foi vinculada de modo direto à Presidência da República com a criação do Ministério Extraordinário de Política Fundiária, em 1996, ao qual de forma imediata se incorporou o Incra. E, por fim, em 2000, o Decreto nº 3.338 criou o Ministério do Desenvolvimento Agrária (MDA), órgão ao qual o Incra está vinculado hoje (INCRA). Assim, em relação à história da Reforma Agrária no Brasil e às suas raízes, conclui-se que tal processo desenvolveu-se em cinco momentos: a começar no contexto do modelo de desenvolvimento agropecuário do regime militar, seguindo com o início da nova República, a passar pelos governos Collor/Itamar, posteriormente num momento relacionado ao projeto neoliberal dos mandatos de FHC e, por fim, no governo de Lula, que, segundo o Professor Titular de Geografia Agrária da USP Ariovaldo Umbelino (2011), numa entrevista concedida à página do MST, não obteve êxito ao valorizar o agronegócio e adotar uma espécie de política de contra-Reforma Agrária e de legalização da grilagem de terras. Visto o histórico da instituição da Reforma Agrária no Brasil como um direito constitucional, o presente artigo passa a demonstrar e analisar a função social da propriedade. O princípio da função social da propriedade Para entender o direito constitucional à reforma agrária, é necessário, a princípio, que se faça um breve apontamento ao princípio da função social da propriedade estabelecido na Constituição Federal de 1988 como um dever do proprietário de determinados bens. Entende-se por função social da propriedade o elemento central do Direito Agrário, que torna o imóvel um bem de produção de alimentos de matéria-prima (CASSETARI, 2015, p. 9). O termo “função social da propriedade” foi mencionado de modo explícito, pela primeira vez, no Estatuto da Terra. Já as suas raízes no mundo remontam à Constituição mexicana de 1917 e à Constituição alemã de Weimar em 1919 (CASSETTARI, 2015, p. 9). Em relação ao ordenamento jurídico brasileiro, a expressão “função social da propriedade” foi apresentada, pela primeira vez, no artigo 157, inciso II, da Constituição Federal de 1967. Antes disso, na carta de 1946, somente era mencionado o termo “bemestar social”, estabelecendo o art. 147 que: “o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no artigo 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos” (SCHMEISCKE; WALTER, 2014, p. 21). Com a Constituição Federal de 1988, em seu título destinado aos direitos e garantias fundamentais, especificamente no artigo 5º, inciso XXII, foi garantido o direito de propriedade. Tal dispositivo condiciona o uso da propriedade privada, de forma com que a mesma deve observar e cumprir a sua função social. Desse modo, conclui-se que o direito à propriedade é relativo e condicionado (SCHMEISKE; WALTER, p. 21). Além disso, o Código Civil estabelece em seu artigo 1.228, § 1º, que: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. O artigo 186 da Constituição Federal de 1988 estabelece que “a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, ao seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. Diante desse panorama, conclui-se que a ordem jurídica brasileira estabelece que o bem deve ser utilizado de forma adequada, e não ser mero objeto para suprir os interesses do proprietário. Portanto, se verificado que não há cumprimento ao princípio da função social da propriedade, o Estado tem legitimidade de atuar nesse sentido, para que a determinação constitucional seja efetivada (SCHMEISKE; WALTER, p. 22). Não havendo observância e efetividade ao princípio da função social da propriedade, o Estado deve seguir e obedecer às hipóteses constitucionais de desapropriação, para que a função social da terra seja cumprida de acordo com as determinações legais. Hipóteses constitucionais de desapropriação A fim de fazer com que os interesses coletivos prevaleçam sobre os interesses individuais, o Estado deve intervir na propriedade privada que não atenda à sua função social. Nesse mesmo sentido, haverá a possibilidade de o ente estatal intervir na propriedade particular para restringir a utilização do bem, em busca da defesa do interesse público, seja por intermédio de servidão administrativa, requisição, ocupação temporária, limitação administrativa, tombamento ou desapropriação (SCHMEISKE; WALTER, p. 22). De acordo com Hely Lopes Meirelles, compreende-se por desapropriação “a transferência compulsória da propriedade particular (ou pública de entidade de grau inferior para o superior) para o Poder Público ou seus delegados, por utilidade ou necessidade pública, ou ainda por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro (art. 5º, XXXIV, CF), salvo as exceções constitucionais de pagamento em títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, no caso de área urbana não edificada, subutilizada ou não utilizada (art. 182, § 4º, III, CF), e de pagamento em títulos da dívida agrária, no caso de reforma agrária, por interesse social (art. 184, CF)” (NOBRE JÚNIOR, 1993, p. 78). A Constituição Federal denomina como desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária pois, tradicionalmente, tem origem na desapropriação por interesse pública ou necessidade pública (CASSETTARI, 2015, p. 71). Dessa forma, a desapropriação atende à necessidade pública e ao interesse social, contudo, para que se efetive de acordo com a Constituição Federal, deve haver prévia e justa indenização em dinheiro, exceto em casos determinados pelos art. 182, § 4º, III e art. 184 da CF. Assim, parte-se do princípio genérico de que é legítima a intervenção do Estado na esfera das relações dominiais privadas, quando não efetivada a função social da propriedade. A cominação, como sanção constitucional, contra o descumprimento ao princípio da função social da propriedade, é a desapropriação a fim de implantar a reforma agrária (NEVES, 2013, p. 243). Portanto, a propriedade rural que não cumprir a sua função social está sujeita à desapropriação para fins de reforma agrária, ou seja, impõe uma sanção para o não cumprimento da função social (CASSETTARI, 2015, p. 71). A Lei n. 8.629, em seu art. 2º, submete os imóveis que não cumprem a sua função social para a seleção à reforma agrária: “A propriedade rural que não cumprir a função prevista no art. 9 é passível de desapropriação, nos termos desta lei, respeitados os dispositivos constitucionais” (NEVES, 2013, p. 244). Assim, de acordo com o art. 2º da Lei n. 8.629, que dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal, não cumprida a sua função social, o imóvel pode ser desapropriado constitucionalmente. No §1º do art. 2º, é ratificada a destinação de tais imóveis para a implantação da reforma agrária: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social” (NEVES, 2013, p. 244). Nesse sentido, quanto à competência de desapropriar, a competência material é da União, que tem a obrigação de cuidar deste setor público, e operada pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). A competência administrativa, por sua vez, pertence ao INCRA, que é autarquia federal criada para a promoção da reforma (CASSETTARI, 2015, p. 76). Além disso, o STJ entende que a União tem exclusividade quanto à competência material, não havendo a possibilidade dos Estados promoverem esse tipo de desapropriação. E, por fim, a competência jurisdicional é da Justiça Federal, nos termos Apenas os imóveis rurais que não estejam cumprindo a função social da propriedade são atingidos pela desapropriação para fins de reforma agrária, segundo o estabelecido pelo artigo 184 da Constituição Federal de 1988 (NEVES, 2013, p. 245). A desapropriação para fins de reforma agrária, dessa forma, se aplica somente a determinados imóveis rurais que violem o princípio da função social da propriedade, com fundamentação legal no art. 184 da CF. Se a propriedade rural, em último caso, for “desnecessária” ao seu dono, não desenvolvendo ele o aproveitamento, torna-se passível à desapropriação para fins de reforma agrária. O princípio da função social para fins de desapropriação tem caráter preponderante. A função social é realizada de acordo com o art. 186 da Constituição, enquanto o art. 184 do mesmo texto legal é explícito ao tornar relevante tal função (NEVES, 2013, p. 246). Desse modo, não cumprido algum dos requisitos disciplinados pelo art. 186 da CF, não há função social da propriedade e, consequentemente, há legalidade em desapropriar para fins de reforma agrária. Portanto, não havendo cumprimento ao princípio da função social da propriedade, o Estado tem legitimidade de reagir legalmente através das hipóteses de desapropriação estabelecidas pela Constituição Federal. Políticas Públicas de Reforma Agrária no Brasil e a produção de justiça social Para que melhore e ganhe efetividade a Reforma Agrária no Brasil, ao passo que produza, igualmente, justiça social, através da propriedade produtiva (a propriedade que exerce e cumpre a sua função social) e da distribuição justa de terras (em busca pela erradicação da pobreza e das desigualdades socioeconômicas no campo e na cidade), torna-se essencial a implementação de políticas públicas governamentais. Desde 1980, tem sido promovida pelo Estado brasileiro uma política de assentamentos em várias regiões do país. Simultaneamente, promove-se um novo modo de inclusão social, seja ela forçada ou não. Por meio de programas de assentamentos, como a criação na década de 1970 do INCRA, o qual obteve função muito evidente entre as políticas públicas direcionadas pelo Estado aos assentamentos. Ademais, para que houvesse maior eficácia de desenvolvimento nos assentamentos e no meio rural, foi realizada a criação em 1997 do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), o qual tinha a pretensão de desenvolvimento de programas de incentivo à agricultura familiar, visto que as terras distribuídas às famílias eram de pequenas propriedades e não haveria a possibilidade de promoção da agricultura convencional, pois deixaria de ter um fundo social e passaria a ter um fundo mais econômico (PAIM; DALL’IGNA, p. 7). Dessa forma, governo federal busca, por meio de políticas públicas, formas mais céleres e com maior eficácia de garantia à desapropriação das terras ocupadas por assentados enfrentando dificuldades, por conta, muitas vezes, dos proprietários que pediam preços exorbitantes de suas terras e do próprio sistema jurídico do país (PAIM; DALL’IGNA, p. 7). Atualmente, o PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar é o único programa de crédito para a agricultura familiar. Foi criado como apoio ao desenvolvimento rural, se propondo a fortalecer a agricultura familiar através de assistência técnica, seguro agrícola, comercialização e concedendo crédito rural produtivo às famílias agricultoras, suas associações e cooperativas. Apesar de sua ampliação e de seu desenvolvimento no governo Lula, resultou por não ter este alcance por deficiências técnicas, administrativas e de programas (SOUZA FILHO, 2008, p. 72) O PRONAF surgiu numa época em que o elevado custo e a escassez de crédito eram apontados como os problemas principais enfrentados pelos agricultores, em particular os familiares. Depois de 10 anos de execução, fica claro que o programa se estendeu de modo considerável por todo o território nacional, ampliou o montante financiado, desenvolveu programas especiais para atender diversas categorias, assumiu a assistência técnica e reforçou a infraestrutura tanto dos próprios agricultores como dos municípios em que se encontra (GUANZIROLI, 2007, p. 302). Abramovay e Veiga (1999) realizaram um dos primeiros trabalhos de avaliação do PRONAF, e concluíram que, embora existam problemas de implantação, especialmente em relação à seleção dos municípios, o PRONAF desencadeou um inédito e frutífero processo de discussão local sobre os rumos do desenvolvimento rural que poderiam engendrar o fortalecimento da agricultura familiar. A Fundação de Economia de Campinas (FECAMP) (2002) realizou um estudo com pesquisa de campo em 21 municípios e oito estados brasileiros, que demonstrou a extensão da pobreza nas localidades estudadas e que a mesma associa-se especialmente à sua localização geográfica e não às variáveis relativas à pluriatividade ou ao crédito do PRONAF. No entanto, o crédito do PRONAF mostrou-se fortemente associado ao nível tecnológico e à produtividade agrícola. Ademais, o IPEA avaliou, também, o PRONAF, e identificou problemas e avanços do Programa, sugerindo mudanças específicas nos grupos de agricultores beneficiados (FERREIRA e GARCIA, 2002). Para que seja implementada uma política pública de reforma agrária eficaz, são necessários, primeiramente, um projeto de colonização ou de reforma agrária, a criação de condições de produção e de comercialização dos produtos, de modo a garantir qualidade da terra e do escoamento da produção (SOUZA FILHO, 2008, p. 74). Com condições de produção efetivas, a lógica do assentamento deve ser fundamentada na coletividade, de forma a promover a formação técnica e individual dos assentados e beneficiar o associativismo, principalmente através de cooperativas. Assim, os financiamentos têm de privilegiar a formação dos coletivos, de preferência com o fortalecimento das cooperativas (SOUZA FILHO, 2008, p. 74). A concepção e execução do Pronaf contemplam a participação de organizações dos agricultores. Tais modificações expressam uma nova visão do significado e da função da agricultura familiar no Brasil, sobretudo para o desenvolvimento sustentável (GEHLEN, 2004, p. 99). É mais que necessário que se criem programas regionais e locais para a melhoria das condições de produção da região ou do local. Tais programas devem estabelecer-se com as cooperativas e associações de agricultores, buscando pela diversificação e pela produção de alimentos (SOUZA FILHO, 2008, p. 74). Portanto, para que o direito à Reforma Agrária ganhe efetividade no Brasil, mais do que o PRONAF, é necessária a criação de programas regionais e locais, que observem as características geográficas/locais de cada lote de reforma agrária, a fim de garantir melhores condições de produção, e consequentemente, que se cumpra a função social da propriedade rural em conjunto com a garantia e a produção da justiça social. Dessa forma, para que tais políticas públicas ganhem efetividade e “saiam do papel”, e para que exista justiça social fundamentada na reforma agrária que gera a distribuição justa de terras com produtividade, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem imperiosa importância, ao pressionar os órgãos competentes para que cumpram os seus papéis e haja justiça no campo e na cidade. Assim, o presente trabalho abordará a importância do MST como mecanismo de pressão nesse processo, a seguir. A importância do MST como mecanismo de pressão O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem muita importância e visibilidade nos debates sobre a reforma agrária, as lutas sociais e o papel político dos setores sociais com interesse na modificação do padrão de propriedade da terra no Brasil (NAVARRO, 1997, p. 86). De acordo com o economista e ativista social brasileiro João Pedro Stédile (2002), o MST constitui um agrupamento particular no seio desse amplo arco de correntes favoráveis à reforma agrária. Os seus dirigentes lutam, antes de tudo, por uma revolução socialista no Brasil (SABOURIN, 2008, p. 14). José de Souza Martins, em sua obra “O sujeito oculto: ordem e transgressão na reforma agrária” (2003) considera que, no Brasil, uma aliança entre o capital e o trabalho contra uma renda fundiária – “mesmo de irracional, inclusive do ponto de vista do desenvolvimento do capitalismo” – sempre foi impossível. Ao contrário, a herança escravista e a tentação de perpetuá-la concretizaram uma aliança entre o capital e a propriedade da terra. A mais importante finalidade de uma reforma agrária distributiva seria o de reduzir as relações de trabalho ligadas à concentração fundiária e ressocializar as populações deixadas à margem do desenvolvimento econômico e social (SABOURIN, 2008, pp. 165-166). Atualmente, numa nova conjuntura, o MST compreende que o início da reforma agrária deve ocorrer com a democratização da propriedade de terra. No entanto, é necessário que se organize diferentemente a produção de alimentos, a agroecologia, através da qual as técnicas agrícolas assentem-se na observância ao respeito ao ambiente e preservem a saúde dos trabalhadores e consumidores, com prioridade da produção para o mercado interno, em conjunto com um modelo econômico que distribua renda (LAUREANO; MOREIRA; 2009, p. 28). Para João Pedro Stedile, os objetivos do MST referem-se à luta pela erradicação da pobreza e das desigualdades sociais. Para que sejam alcançados os objetivos supracitados, é preciso, primeiramente, começar pela distribuição da propriedade da terra no meio rural. E, assim sendo, através da democratização da terra, criam-se condições para que as pessoas saiam da linha da pobreza e para que se acabem as desigualdades sociais (STEDILE; FERNANDES, 1999, p. 161). A reforma agrária pode ser compreendida como um meio para que a justiça social ganhe efetividade e para que a soberania popular seja adquirida. Além disso, o MST tem extrema importância ao pressionar o Governo e os órgãos responsáveis pela reforma agrária, ao mesmo passo em que carrega uma grande bandeira, atualmente, carregada por milhares de militantes, com o sonho de “partilhar terra, ter justiça social e soberania popular” (LAUREANO; MOREIRA; 2009, p. 28). Nesse mesmo raciocínio Joao Pedro Stedile explica que através da massificação da luta do MST, pode-se realizar a reforma agrária e fazer com que milhões tenham acesso à terra, à escola, entre outros direitos, em pouco tempo ((STEDILE; FERNANDES, 1999, pp. 120-121). O Movimento Sem Terra se responsabiliza, hoje, pelo assentamento de 370 famílias em 7,5 milhões de hectares em todo o país. Teve grande avanço em relação À organização interna dos trabalhadores e tem presença em 24 dos 27 estados do Brasil. O MST, com unidade, construiu, em conjunto com a efetiva participação coletiva dos trabalhadores, uma proposta de educação do campo, simultaneamente com a conquista da produção agroecológica e da soberania alimentar (LAUREANO; MOREIRA; 2009, p. 29). Portanto, é possível e legítimo afirmar que o MST representa atualmente uma das maiores conquistas democráticas do povo brasileiro, não só pelos seus anos de luta pela terra e resistência, mas também por, através delas, pressionar o Governo para que o direito à reforma agrária torne-se efetivo e, consequentemente, a sociedade seja pautada nos valores de justiça social e distributiva! Considerações finais O artigo, em si, analisou como as políticas públicas governamentais podem ser instrumentos de efetivação da reforma agrária no Brasil. A princípio, foi feita uma introdução para situar o assunto e destacar a sua importância na sociedade. Posteriormente, analisou-se a história da reforma agrária no país, começando pelo “descobrimento” do Brasil, momento em que teve início o conflito de terras e, consequentemente, as desigualdades sociais e econômicas, de forma a demandar por uma reforma agrária, para a resolução dos problemas supracitados e a fim de que se efetivasse (e hoje, efetive) a justiça social. A pesquisa demonstrou o conceito do princípio da função social da propriedade de acordo com a legislação brasileira e alguns doutrinadores, passando a analisar o que acontece quando o mesmo não é observando, ou seja, as hipóteses determinadas pela Constituição Federal de desapropriação do bem improdutivo. Ao seguir, foram demonstradas as políticas públicas de reforma agrária no Brasil, analisou-se a eficácia das mesmas e, se são exercidas de forma a produzirem justiça social no país. Por fim, passou-se a analisar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como um mecanismo de pressão ao governo, para que a reforma agrária torne-se efetiva e produza justiça social. Assim, conclui-se o conflito de terras é um problema histórico, e a reforma agrária é um meio para que a solução do mesmo seja alcançada. Além disso, as políticas públicas governamentais são eficazes, porém, para que se efetivem, é preciso apoio por parte do Governo, além de suporte e bases que tornem possível a sua realização. O MST, desde o seu surgimento, sempre esteve atrelado à reforma agrária, e sua luta e resistência têm grande responsabilidade na conquista das políticas públicas e das desapropriações constitucionais com fins de reforma agrária. Sendo assim, é uma luta de todos: Governo, MST e sociedade! 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