JOSÉ LUIZ JOVELI O MANDADO DE INJUNÇÃO E SUA INEFETIVIDADE EM FACE DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS Piracicaba, SP 2007 2 JOSÉ LUIZ JOVELI O MANDADO DE INJUNÇÃO E SUA INEFETIVIDADE EM FACE DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS Orientador: Prof. Dr. SÉRGIO RESENDE DE BARROS Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação (Mestrado em Direito) da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob orientação do Professor Doutor Sérgio Resende de Barros. Núcleo: Estudos de Direitos Fundamentais e da Cidadania. Piracicaba, SP 2007 3 Dados para catalogação: JOVELI, J. L. O mandado de injunção e sua inefetividade em face dos direitos humanos fundamentais. Universidade Metodista de Piracicaba, 2007. Dissertação (Pós-Graduação, Curso de Mestrado em Direito). Orientador: Professor Doutor Sérgio Resende de Barros. 1. Mandado de Injunção; 2. Direitos Fundamentais; 3. Efetividade 4 O MANDADO DE INJUNÇÃO E SUA INEFETIVIDADE EM FACE DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS Autor: José Luiz Joveli Orientador: Professor Doutor Sérgio Resende de Barros B A N C A E X A M I N A D O R A ____/____/2007 ______________________________________________ PROFESSOR DOUTOR SÉRGIO RESENDE DE BARROS ORIENTADOR _______________________________________________ PROFESSOR DOUTOR GESSÉ MARQUES JÚNIOR MEMBRO _______________________________________________ PROFESSOR DOUTOR RUBENS BEÇAK MEMBRO 5 DEDICATÓRIA À Ana Luiza; e Josiane: DEDICO 6 AGRADECIMENTOS A concretização deste trabalho somente foi possível graças às bênçãos de Deus, bem como aos muitos colaboradores diretos ou indiretos, dos quais somos eternos devedores. Agradecimentos a todos. Em especial: À minha família, pelas horas de convivência que lhe foram subtraídas; À Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), por mais uma vez acolher um de seus filhos; Ao Professor Doutor Sérgio Resende de Barros, pelas aulas, orientações e, principalmente, pela sua amizade e exemplo de vida; Ao Professor Doutor Gessé Marques Júnior, pelos valiosos ensinamentos na arte da pesquisa; Ao Professor Doutor Rubens Beçak, pela disposição em igualmente colaborar com a evolução deste projeto; Ao Professor José Renato da Silva, pelo incentivo e apoio moral e material para a minha evolução acadêmica; Ao Senhor Paulo Roberto Rodrigues Jodas, Delegado Seccional de Polícia de Americana, por sua inestimável colaboração a este projeto de vida; Ao colega Robson Gonçalves de Oliveira, pela compreensão e apoio; À colega Carolina de Albuquerque, pelo apoio, sugestões e por confiar em nosso trabalho. 7 RESUMO Este trabalho tem como objetivo aferir, de maneira científica e metodológica, se o Mandado de Injunção, remédio constitucional previsto de forma inédita pela Constituição brasileira de 1988, garante eficazmente os direitos fundamentais preconizados nesta mesma Constituição. Firmou-se o entendimento de que o Mandado de Injunção é uma ação judicial que provoca uma atividade jurisdicional voltada, precipuamente, para o controle das omissões inconstitucionais normativas, e que deveria resultar, nos casos de procedência da ação, na edição, pelo órgão do Poder Judiciário competente, de norma judicial provisória e supridora inter partes da omissão do Poder, órgão ou autoridade originalmente competente para a realização da citada regulamentação. Palavras-chaves: Mandado de Injunção; Eficácia; Direitos Fundamentais. 8 ABSTRACT The main objective of this work is to survey both in scientific and methodological way, if the Mandado de Injunção, new constitutional treatment established in the Brazilian Constitution of 1988, guarantees efficiently the fundamental rights in this same Constitution. It was possible to understand that the Mandado de Injunção is a legal action that provokes a jurisdictional activity, mainly, directed for the control of the normative unconstitutional omissions, which the result should be the most adequate solution. For these cases the action is valid in the edition, by the Judiciary Branch, a provisory judicial norm and provider “inter parts” of the omission of the Power, agency or original competent authority for the accomplishment of this regulation. Key-words: Mandado de Injunção; Effectiveness; Fundamental Rights. 9 LISTA DE ABREVIATURAS ADCT: Ato das Disposições Constitucionais Transitórias CRFB/88: Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. DJ: Diário da Justiça DJU: Diário da Justiça da União MI: Mandado de Injunção RDA: Revista de Direito Administrativo RT: Revista dos Tribunais RTJ: Revista Trimestral de Jurisprudência STF: Supremo Tribunal Federal STJ: Superior Tribunal de Justiça 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................12 1 O MANDADO DE INJUNÇÃO E SUA TRAJETÓRIA....................................17 1.1 Origem........................................................................................................... 17 1.2 Direito comparado........................................................................................ 21 1.3 Conceito.........................................................................................................26 1.4 Objeto.............................................................................................................30 1.5 Partes............................................................................................................. 44 1.6 Diferenças entre mandado de injunção e ação de inconstitucionalidade por omissão.................................................................................................... 46 1.7 Aspectos processuais e competência........................................................50 2 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL..... 55 2.1 Da jurisprudência como técnica compreensiva........................................ 55 2.2 A concepção adequada de uma Constituição como pré-compreensão controlada...................................................................................................... 59 2.3 Do Estado Democrático de Direito como elemento central das concepções de constituição atuais......................................................................................62 3 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988............................................................................................. 68 3.1 A disposição do artigo 5º, § 1º, da Constituição de República Federativa do Brasil de 1988............................................................................................76 3.2 Breves notas sobre os direitos constitucionais........................................ 79 3.3 Lacunas legais e omissões inconstitucionais........................................... 81 3.4 Possibilidades e limites da concretização judicial de normas constitucionais no Estado Constitucional e Democrático de Direito.......................................... 84 3.5 Criação judicial do direito............................................................................ 87 4 DA DECISÃO CONCESSIVA DO MANDADO DE INJUNÇÃO.....................90 4.1 Mandado de Injunção e efetividade do processo...................................... 90 4.2 Principais características da decisão regulamentadora...........................99 4.3 Elaboração judicial regulamentadora e res judicata................................. 110 11 5 PESQUISA JURISPRUDENCIAL.................................................................. 115 5.1 Decisões no Mandado de Injunção perante o Supremo Tribunal Federal...... 115 5.2 Principais interpretações judiciais..............................................................120 5.3 Cotejo das decisões em face do Poder Legislativo.................................. 131 5.4 Reflexões sobre o resultado da pesquisa.................................................. 134 6 POSSÍVEIS SOLUÇÕES PARA VIABILIZAR MAIOR EFICÁCIA AO MANDADO DE INJUNÇÃO................................................................................................. 137 6.1 O processo de investidura dos Ministros do Supremo Tribunal Federal........137 6.2 Sentenças manipulativas aditivas...............................................................138 6.3 A questão da “separação de poderes”.......................................................145 6.4 A indenização por danos decorrentes de omissão inconstitucional...... 148 6.5 O Mandado de Injunção, a Inconstitucionalidade por Omissão e a troca de sujeito............................................................................................................. 151 6.6 O artigo 4ºda Lei de Introdução ao Código Civil e o Mandado de Injunção ... 153 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 154 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................. 161 ANEXOS.........................................................................................................169 Anexo 1 - Tabela comparativa Anexo 2 - Cronologia do Mandado de Injunção a partir da CRFB de 1988 Anexo 3 - Mandados de injunção julgados no período de 1988 a 2006 e a relação com o total de processos julgados no STF Anexo 4 - Levantamento de Mandados de Injunção recebidos pela Câmara dos Deputados 12 INTRODUÇÃO O objeto estudado neste trabalho é o Mandado de Injunção (MI), entendido como o instituto processual-constitucional inovador, previsto no artigo 5º, LXXI, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988 (CRFB/88), que assim dispõe: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXXI – conceder-se-á Mandado de Injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. A análise é realizada sob a perspectiva da garantia de eficácia desse instituto em face dos direitos fundamentais. Embora se entenda que o dispositivo necessita de regulamentação própria, já é assente que o writ vem sendo admitido e processado perante os órgãos do Judiciário de forma tranqüila, tornando-se eficaz juridicamente, embora não o seja, como se verá, no que tange à sua eficácia social ou efetividade. Procurou-se não só apresentar criticamente as interpretações doutrinárias e jurisprudenciais existentes atualmente sobre o instituto, mas também apresentar algo de novo na tentativa de fundar uma interpretação que confira ao instituto uma eficácia real. Nesse sentido, a análise jurisprudencial se limita, salvo raríssimas exceções, àquela emanada do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem, pelo disposto no artigo 102, I, “q” da CRFB/88, compete processar e julgar, originariamente, o Mandado de Injunção, quando a elaboração da norma 13 regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal. Em face da concentração da competência legislativa na União, resulta que, praticamente, todas as normas reguladoras dos direitos estabelecidos pela Constituição são de atribuição do Poder Legislativo Federal, sendo competente para o processamento e julgamento de Mandado de Injunção com relação a essas normas o STF. Ademais, o citado Tribunal é a instância máxima na interpretação da Constituição, possuindo, inclusive, o poder-dever de rever as decisões dos demais órgãos do Poder Judiciário que importem em interpretação de normas constitucionais, sendo assim, o último guardião da Carta Magna. Além disso, o estudo não se limita apenas à pesquisa jurisprudencial da mais alta Corte do País. De fato, as sentenças concessivas do mandamus junto ao STF são cotejadas com o Poder Legislativo Federal, avaliando, assim, quais recomendações foram realmente observadas pelo legislador, editando-se as leis que deveriam colmatar as omissões inconstitucionais constatadas por aquela Corte Suprema. Com base nesse critério, é possível afirmar ou não, de forma objetiva e metodológica, se o Mandado de Injunção cumpre seu papel de instrumento inibidor da inércia de determinadas normais constitucionais, carentes de regulamentação, conferindo garantia de efetividade aos direitos fundamentais tutelados pelo Constituinte. Como assevera Gessé Marques Júnior, a metodologia é “fundamental no processo de conhecimento. É através dela que podemos esclarecer, para o leitor, 14 qual foi o processo de aquisição de conhecimento.”1 Além disso, enfatiza Marques Júnior, num trabalho científico não se pode direcionar a pesquisa apenas às informações pontuais que eventualmente possam servir de base para confirmar a hipótese que se pretende demonstrar, ou somente a coleta aqueles dados que mais interessam ao pesquisador, pois o interesse é analisar determinado campo, buscando todas as informações possíveis para iluminar o objeto de pesquisa.2 Para melhor compreensão do assunto, o Capítulo 1 é dedicado à trajetória do instituto, contendo matéria relativa à sua origem, conceituação, objeto, partes, sua relação com outros institutos semelhantes no estrangeiro (direito comparado), as diferenças entre a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão e o Mandado de Injunção, sobretudo nos aspectos que, de fato, os distinguem na tutela de direito constitucional objetivo e subjetivo, além dos aspectos processuais e sua competência jurisdicional. No Capítulo 2, desenvolvem-se, brevemente, algumas considerações de Teoria da Constituição e de hermenêutica constitucional, com vias a compreender as características fundamentais do saber jurisprudencial, inserindo o estudo do Direito Constitucional em seu seio, bem como visando demonstrar o que é e qual a importância da concepção de Constituição para a compreensão de uma específica Constituição, objetivando compreender a Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988, verificando-se qual das concepções é adequada para a sua compreensão e porque, e quais as conseqüências desta resposta. 1 MARQUES JÚNIOR, Gessé. Pensando em lógica de projeto. Disponível em: <http://www.unimep.br/~gmarques>. Acesso em 6 dez. 2006. 2 Ibidem. 15 A seguir, no Capítulo 3, dedica-se à realização de análises para a compreensão do instituto ora em estudo, pertinentes à Teoria do Direito aplicada à dogmática constitucional, envolvendo a aplicabilidade das normas constitucionais, aos direitos subjetivos constitucionais e, por fim, às possibilidades e limites para a operacionalização de um direito subjetivo constitucional através de interposição normativa, abordando-se, especialmente, o tema da ausência de regulamentação e o papel do Judiciário no Estado Constitucional e Democrático de Direito contemporâneo. Conseqüentemente, no Capítulo 4 apresenta-se uma análise do instituto sob o enfoque da eficácia jurídica e social e os efeitos das decisões judiciais nele exaradas, máxime no que se refere às correntes doutrinárias existentes a respeito. Cerne deste trabalho, o Capítulo 5 é voltado à pesquisa jurisprudencial efetivada perante o STF das decisões procedentes em sede de MI, os efeitos dessas sentenças, o cotejo de tais decisões em face do Poder Legislativo Federal e as necessárias reflexões sobre o resultado dessas pesquisas. Concluindo-se pela atual ineficácia social (ou inefetividade, como preferem alguns) do Mandado de Injunção, apontam-se no Capítulo 6 possíveis soluções para viabilizar maior eficácia ao instituto, discorrendo-se sobre a questão da “separação de poderes”, a indenização por danos decorrentes de omissão inconstitucional e as inovadoras sentenças manipulativas aditivas, originárias do direito alienígena, e que, de forma incipiente, começam a aparecer no cenário jurídico nacional. É trazida à colação a instigante obra a propósito de que outro sujeito, inicialmente não dotado de atribuição constitucional, implementasse o comando constitucional. Ressalta-se, ainda, a norma contida no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que 16 possibilita ao magistrado ou ao tribunal (que não pode eximir-se de uma decisão), integrar eventuais lacunas, de sorte a atingir uma solução satisfatória. Nas considerações finais são catalogadas sinteticamente as idéias extraídas da pesquisa, os objetivos que se pretendeu alcançar com este estudo e as eventuais propostas dele decorrentes, firmando-se posição de que somente com a concessão de efeitos constitutivos à decisão judicial exarada na ação injuntiva é possível se garantir a desejada eficácia social (ou efetividade) dos direitos fundamentais tuteláveis pelo Mandado de Injunção. 17 1 O MANDADO DE INJUNÇÃO E SUA TRAJETÓRIA 1.1 Origem Antes da Constituição pátria de 1988, nenhuma outra havia tratado o Mandado de Injunção. As normas constitucionais nem sempre contiveram eficácia plena em virtude de omissão legislativa, ficando dispositivos constitucionais importantes sem aplicabilidade, porque normas regulamentadoras deixavam de ser editadas, como por exemplo a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, prevista no artigo 6º, inciso XI, cujo dispositivo já constava da Carta de 1946.3 Consultando-se os anais da Assembléia Nacional Constituinte4, bem como a doutrina constitucional5, infere-se que a tramitação constituinte do Mandado de Injunção tinha o escopo de encontrar uma maneira de se dar eficácia imediata às normas constitucionais. Assim, consta que o novo writ teve sua gênese no dia 22 de abril de 1987, por meio do constituinte Gastone Righi, na terceira reunião da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias, a qual estabelecia a existência de um meio pelo qual o cidadão pudesse exercer um direito 3 BRASIL. Senado Federal. Lei n. 10.101/2000. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/sicon>. Acesso em 6 dez. 2006: tal dispositivo foi regulamentado por esta normatização. 4 Idem. Congresso. Câmara dos Deputados. Diários da Assembléia Nacional Constituinte de 02/02/1987 a 05/10/1988. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/constituinte_principal.asp>. Acesso em 6 dez. 2006. 5 SILVA, José Afonso da. Mandado de injunção e habeas data. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p.14-18 Cf. também SANTOS, Aricê Moacyr Amaral. O mandado de injunção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p.15-17. 18 social previsto pela nova Constituição.6 Interessante observar que há uma disputa entre parlamentares acerca do reconhecimento pela paternidade do novo instituto, uma vez que se aponta o Senador Virgilio Távora, mediante as sugestões constituintes nºs. 155-4, e 156-2, ambas datadas de 27 de março de 1987, como o primeiro a ter a idéia da criação do mandamus.7 A primeira sugestão em tela propunha que se incluísse no capítulo dos Direitos e Garantias Constitucionais o seguinte dispositivo: “Sempre que se caracterizar a inconstitucionalidade por omissão, conceder-se-á Mandado de Injunção, observado o rito processual estabelecido para o Mandado de Segurança.”8 A segunda oferecia a seguinte redação: “A não edição de atos ou normas pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, visando a implementar esta Constituição, implica a inconstitucionalidade por omissão.”9 Em 3 de abril de 1987, o Senador Ruy Bacelar propôs à Constituinte a sugestão de Norma Constitucional nº 367-1, na qual se previa: Art. – Os direitos conferidos por esta Constituição e que dependem de lei ou de providências do Estado serão assegurados por Mandado de Injunção, no caso de omissão do Poder Público. 6 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Diário da Assembléia Nacional Constituinte, de 20 de maio de 1987. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/constituinte_principal.asp>. Acesso em 6 dez. 2006: na ocasião, assim se manifestou o constituinte Gastone Righi: “Entretanto, não temos um mandamus, uma forma de processo pela qual alguém possa exercitar um direito social, digamos o direito social à saúde ou o direito da criança à escola. O diretor da escola diz que não há mais vagas, então, fica a criança sem matrícula. Qual a forma que tem o indivíduo de fazer valer a garantia constitucional de o Estado dar a escola a seu filho? Isso sempre faltou nas Constituições. É’ um ponto importante, muito discutido pelos constitucionalistas. E esta é a Subcomissão que deve apreciá-lo. V. Exas. devem resolver esse problema, criando um tipo de mandado de garantia de direito social para que o juiz possa determinar sua execução. Se não há vaga, tem de haver. O administrador tem de criar a vaga ou a sala na escola. Tem de dar solução ao problema, porque a garantia social está na Constituição”. E concluiu apelando “para que não se esqueçam do instrumento judicial que possa compelir a autoridade pública a garantir o direito social a todos os cidadãos.” 7 SANTOS, Aricê Moacyr Amaral. op. cit. p.15-16. 8 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 27 abr. 1987. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/constituinte_principal.asp>. Acesso em 6 dez. 2006. 9 Idem. 19 Parágrafo único – O Mandado de Injunção terá o mesmo rito processual estabelecido para o Mandado de Segurança.10 Durante sua tramitação na Assembléia Nacional Constituinte, já na primeira fase dos trabalhos, o writ recebeu no anteprojeto da subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, cujo relator foi o Deputado Darcy Pozza, nova redação, a saber: Art.- Os direitos e garantias constantes desta Constituição têm a aplicação imediata. Conceder-se-á Mandado de Injunção para garantir direitos nela assegurados, não aplicados em razão da ausência de norma regulamentadora, podendo ser requeridos em qualquer juízo ou tribunal, observadas as regras de competência da lei processual.11 Essa redação acabou sofrendo grandes alterações na Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, passando a constar o instituto injuntivo, no substitutivo do Relator da Comissão, Senador José Paulo Bisol, da seguinte forma: Art. 34 – Conceder-se-á Mandado de Injunção, observado o rito processual do mandado de segurança, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania do povo e à cidadania. Art. 48, § 1º - A lacuna permanecendo depois de seis meses da promulgação da Constituição, qualquer cidadão, associação, partido político, sindicato ou entidade civil poderá promover Mandado de Injunção para o efeito de obrigar o Congresso a legislar sobre o assunto no prazo que a sentença consignar.12 10 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 29 abr. 1987. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/constituinte_principal.asp>. Acesso em 6 dez. 2006. 11 Idem. 21 mai. 1987. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/constituinte_principal.asp>. Acesso em 6 dez. 2006. 12 Idem. 6 jun. 1987. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/constituinte_principal.asp>. Acesso em 6 dez. 2006. 20 Conservando a redação final do Mandado de Injunção, a Comissão de Sistematização, na fase do Projeto de Constituição, fincou a regra de competência para o seu julgamento: Art. 32, Parágrafo único – Qualquer juízo ou tribunal, observadas as regras da lei processual, é competente para conhecer, processar e julgar as garantias constitucionais.13 Na fase de emendas ao Primeiro Substitutivo do Relator da Comissão de Sistematização, o Senador Fernando Henrique Cardoso indicou a Emenda nº 34.970 de 5 de setembro de 1987, suprimindo a referência ao rito processual do Mandado de Segurança, contribuindo de forma decisiva para a redação final do Mandado de Injunção. O Segundo Substitutivo da Comissão de Sistematização definiu o instituto nestes termos: Art. 5º, inciso 47 – Conceder-se-á Mandado de Injunção, observando o rito processual previsto em lei complementar, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício das liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania do povo e à cidadania.14 O Projeto de Constituição (A) (Terceiro Substitutivo do relator da Constituinte) retirou apenas a referência à lei complementar, substituindo-a pela lei ordinária. Finalmente, com o Projeto de Constituição (B), originário do segundo turno de discussão e votação no Plenário, o Mandado de Injunção sofreu a sua última alteração, sendo definido nos seguintes termos: 13 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 5 ago. 1987. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/constituinte_principal.asp>. Acesso em 6 dez. 2006. 14 Idem. 6 set. 1987. p.26 Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/constituinte_principal.asp>. Acesso em 6 dez. 2006. 21 Art. 5º, inciso LXXI, Constituição Federal de 1988 - Conceder-se-á Mandado de Injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.15 O vocábulo injunção vem do latim injunctio,onis, que significa ordem formal, imposição e procede de injugere (mandar, ordenar, impor uma obrigação). Tem, assim, o sentido de unir, impor, ajuntar, indicando obrigação imposta que se apresenta em caráter de ordem formal, cujo cumprimento não pode ser desatendido. Nesse sentido, o Mandado de Injunção surgiu como o instrumento adequado para colmatar as lacunas decorrentes do texto constitucional, realizando em favor do impetrante o direito, a liberdade ou a prerrogativa inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. 1.2 Direito comparado Não há consenso doutrinário acerca da origem do Mandado de Injunção, pois enquanto uns vêem no instituto um instrumento sui generis, que não encontra paralelo no Direito Comparado16, outros procuram sua origem no Direito americano ou inglês, ou, ainda, no Direito alemão. José Afonso da Silva defende a tese de que o Mandado de Injunção surgiu na Inglaterra, no final do século XIV, com base no juízo de equidade, em que o juiz, ante a falta da norma legal ou na hipótese de a Commow Law não oferecer proteção 15 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 20 set. 1988. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/constituinte_principal.asp>. Acesso em 6 dez. 2006. 16 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2001. p.381. 22 suficiente, soluciona o caso concreto que lhe foi submetido. Ressalta porém tal jurista que a fonte mais próxima do Mandado de Injunção é o writ of injuction do Direito norte-americano.17 Naquele país, o instituto reveste-se de duas formas: a prohibitory injunction, para vedar a prática de ato violador de direito e a mandadory injunction, para ordenar a prática de ato cuja omissão viola direito. Já foram objeto de injunction afrontas à liberdade de associação, à liberdade de palavra, à liberdade religiosa e à igualdade. No tocante à violação ao direito de igualdade, referência é o caso Brown v. Board of Education of Topeka, em que a injunção foi ajuizada para impedir a denegação de igual oportunidade de educação por razões puramente raciais, cujo julgamento estabeleceu aos estudantes negros o direito à educação em escolas não segregadas. Eventual desobediência da ordem de injunction constitui contempt of court, ou seja, desacato à corte, passível de prisão decretada de forma sumaríssima pelo Tribunal. Dircêo Torrecillas Ramos assevera que o processo de injunção surge na Inglaterra, entre os séculos XIII e XIV, fixando-se na Common law, e no século XV passa a ser lex scripta. Porém, quando perde a capacidade de adaptar-se diante de circunstâncias novas, que exigiam a aplicação de princípios jurídicos diversos, acaba sendo substituído pelo instituto que ficou conhecido como “processo da Corte de Chancelaria.”18 De fato, como é cediço, o common law começa a surgir, no século XI, a partir da invasão normanda do que hoje é a Inglaterra, vindo a desenvolver-se, lenta e 17 18 SILVA, José Afonso da. op. cit., 1989. p.10-11. RAMOS, Dircêo Torrecillas. Remédios constitucionais. São Paulo: WVC, 1998. p.40. 23 gradualmente, durante séculos. Ocorre que durante o final do século XIV, por razões que fogem ao nosso interesse momentâneo, as soluções jurídicas extraídas do common law, mediante precedentes, começaram a ser consideradas insuficientes. Este problema de “esclerose” do common law veio a ser resolvido através do recurso dos interessados à autoridade do Rei, para que fizesse justiça no caso concreto, decidindo a questão, supostamente, de forma eqüitativa. O Rei, usualmente, e a partir do século XV de forma quase institucional, delegava a atribuição de solver estes problemas ao Chanceler. Este passa a resolver os problemas aplicando remédios jurídicos estranhos à tradição inglesa, derivados, basicamente, do direito romano, considerado, à época, como razão escrita, e do direito canônico. Tais decisões, inicialmente casuísticas, vão construindo, com o passar das décadas, um corpo normativo sistemático, que competirá cada vez mais com o conjunto de normas jurídicas de common law. Este novo conjunto de pautas de direito, aplicadas pelos Chanceleres, será denominado equity. Deste modo, neste período, a Inglaterra conviveu com dois distintos e paralelos sistemas jurídicos, o common law e a equity, aplicados por tribunais diferentes (Tribunais de Westminster/Chancelaria), com fontes materiais (tradição e costume ingleses/direito romano e canônico), institutos e forma de evolução (precedente/discricionária) diferentes. Portanto, o fato do writ of injunction ser um instrumento da equity não o faz integrante de uma jurisdição de equidade, no sentido de atuação judicial discricionária para a realização da justiça no caso concreto. 24 Ou seja, não há mais de equidade no julgamento de um writ of injunction do que em qualquer outra ação judicial no sistema jurídico anglo-americano. Nesse sentido é, também, a opinião de Dircêo Torrecillas Ramos, quando afirma que com o advento da “ação declaratória”19desenvolvida a partir de 1918, teria ocorrido uma superação da injunção, da mesma forma como esta superara os meios históricos da common law, cuja evolução dos processos e a utilização da ação declaratória sendo relegada a um plano residual, a injunção teria ficado reduzida à ordem (injunction), emanada de um tribunal, de que se faça ou não alguma coisa.20 Concluindo sua excelente exposição sobre o assunto, assevera Torrecillas Ramos que o Mandado de Injunção, nos moldes atuais, já estaria, portanto, superado por processos paralelos, desde o século XV e mais acentuadamente a partir de 1918, com o desenvolvimento da “ação declaratória”. E acrescenta que “seria suficiente a notificação para a execução da regulamentação, através de ‘ação declaratória’, facilitando o acesso à justiça, ou fazer valer o direito, ainda que sem a regulamentação em falta.”21 As possíveis influências do mandado de injunção apontadas pela doutrina não se restringem ao writ of injunction. Há ainda doutrinadores que vêem no instituto do Mandado de Injunção alguma semelhança com instituto Verfasungsbeschwerde, do Direito alemão, vez que o artigo 93 da Lei Fundamental de Bonn prevê que esse instituto pode ser ajuizado, perante o Tribunal Constitucional Federal, por qualquer 19 RAMOS, Dircêo Torrecillas. op. cit. p.40: As aspas se justificam, visto que se trata, na verdade, de uma reclamação ou denúncia dirigida à Corte Constitucional, para que esta declare a inconstitucionalidade de norma violadora da Constituição, sem qualquer característica, portanto, de ação no sentido clássico. Não há litígio. 20 Ibidem. p.40-41. 21 Ibidem. p.42. 25 cidadão, sob a alegação de ter sido prejudicado pelo Poder Público nos seus direitos fundamentais.22 Em suma, o instituto alemão pode ser impetrado tanto em face de uma ação, como de uma omissão que acarrete violação a direito fundamental, cuja mora legislativa pode ser declarada inconstitucional pelo Judiciário, a quem compete dar uma solução satisfatória para o caso em julgamento, tutelando o direito violado por omissão do legislador, sem prejuízo de que o Legislativo, no futuro, exerça suas atribuições constitucionais. Manoel Gonçalves Ferreira Filho leciona que no Direito italiano há uma ingiunzione, tratando-se de um instituto processual mediante o qual pode conseguirse uma decisão de condenação de forma mais simples que a do processo ordinário, sendo particularmente útil para os créditos certos e munidos de prova, em relação aos quais o devedor não teria razão para resistir em juízo e poderia fazê-lo, num processo comum, mas com mera finalidade protelatória, concluindo, portanto, que aí também não estaria a fonte do nosso Mandado de Injunção.23 De todo o exposto, analisando-se o perfil que lhe atribui a Constituição de 1988, forçoso reconhecer que o Mandado de Injunção é algo sem precedente, quer no direito nacional, quer no alienígena. 22 MACIEL, Adhemar Ferreira. Mandado de injunção e inconstitucionalidade por omissão. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, jan.-mar. 1989: outros autores, todavia, sustentam que o instituto alemão é destinado a impugnar ato de autoridade que viole direito constitucional, no que se assemelha, por conseguinte, ao Mandado de Segurança. Cf. PORTO, Odyr. Mandado de Injunção. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. São Paulo: Lex, nov.-dez. 1988. 23 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2001. p.316. 26 J.M. Othon Sidou preleciona que o “instituto incorporado ao elenco de garantia dos direitos constitucionais, o mandado de injunção, não tem antecedente legislativo nem doutrinário no direito brasileiro.24 (grifo do autor). Cotejando-se o novel instituto brasileiro com aqueles existentes no Direito americano, inglês e alemão já mencionados, infere-se que o nosso envolve, não só um juízo de equidade (equity dos ingleses), como também se volta à proteção de direitos fundamentais da pessoa humana (injunction dos americanos e Verfasungsbeschwerde dos alemães), porém com características próprias e singulares, já exteriorizadas neste estudo. Em suma, da forma como idealizado, o Mandado de Injunção não encontra paralelo no direito estrangeiro, tratando-se, portanto, de verdadeira inovação do Constituinte Brasileiro. 1.3 Conceito O conceito legal se encontra no artigo 5º, inciso LXXI da Constituição de 1988, que assim dispõe: Conceder-se-á Mandado de Injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Já o conceito doutrinário é mais amplo. Randolpho Gomes define o Mandado de Injunção como: 24 SIDOU, J.M. Othon. Habeas corpus, mandado de segurança, mandado de injunção, habeas data, ação popular. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.267. 27 Uma ação civil, de origem constitucional, de cognição, exercível por qualquer pessoa ou entidade em face de quem quer que obste o exercício de um direito emanado da Constituição, sob o pretexto ou fundamento de inexistência de norma que o regulamente.25 Irineu Strenger, procurando encontrar a melhor adaptação dessa figura ao nosso meio, propõe o seguinte conceito: Mandado de Injunção é o procedimento pelo qual se visa obter ordem judicial que determine a prática ou a abstenção de ato, tanto da administração pública, como do particular, por violação de direitos constitucionais fundada na falta de norma regulamentadora.26 Ivo Dantas, por seu turno, entende que “sob a perspectiva de uma definição doutrinária, o ponto capital a ser enfrentado é o da compreensão do adjetivo inviável, que funcionará para o Mandado de Injunção como a expressão direito líquido e certo funciona para o Mandado de Segurança”27, cujo adjetivo exprime negação, significando que algo não pode ser realizado ou levado a efeito por existirem obstáculos que aparecem no seu caminho, e que representam no Mandado de Injunção a inexistência de norma regulamentadora que provoca uma lacuna, um vazio que deveria ser preenchido, e que não o foi. Marcelo Figueiredo propõe dois conceitos constitucionais para esse instituto. O primeiro, entendendo que o: Mandado de Injunção é a ação constitucional posta à disposição de qualquer pessoa física ou jurídica, apta à tutela de direito individual, coletivo e difuso, toda vez que houver falta de regulamentação de direito infraconstitucional, que obstaculize sua fruição. O segundo, que: 25 GOMES, Randolpho. Mandado de injunção. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas S. A., 1989. p.26. 26 STRENGER, Irineu. Mandado de injunção. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p.15. 27 DANTAS, Ivo. Mandado de injunção. Rio de Janeiro: Aide, 1989. p.71. 28 O Mandado de Injunção é a ação constitucional apta à tutela dos direitos constitucionais individuais, coletivos ou difusos, não fruíveis, por seus titulares, em razão direta de falta de regulamentação. Hipossuficiência regulamentar.28 De forma lapidar, Adolfo Mamoru Nishiyama assevera que o Mandado de Injunção “é o remédio constitucional, de procedimento especial, posto à disposição de pessoa física ou jurídica, com a finalidade de suprir a falta de regulamentação de uma norma constitucional.”29 Partindo do pressuposto de que a principal finalidade do mandamus, como um instrumento de realização prática da disposição contida no artigo 5º, § 1º, é conferir imediata aplicabilidade à norma constitucional portadora daqueles direitos e daquelas prerrogativas mencionadas no artigo 5º, inciso LXXI, da Constituição de 1988, inerte em virtude de ausência de regulamentação, José Afonso da Silva entende que o Mandado de Injunção é “um remédio ou ação constitucional posto à disposição de quem se considere titular de qualquer daqueles direitos, liberdades ou prerrogativas inviáveis por falta de norma regulamentadora exigida ou suposta pela Constituição.”30 O fato é que esses constitucionalistas brasileiros admitem que o Mandado de Injunção pode ser usado por todo aquele que acredita haver um liame entre a omissão legislativa e a inviabilidade de exercer os direitos constitucionalmente previstos, sem exceção de quaisquer deles, dado que a abrangência que lhe é dedicada no texto constitucional é total. Nessa linha, Cretella Júnior define o 28 SANTOS, Marcelo de Oliveira Fausto Figueiredo. O mandado de injunção e a inconstitucionalidade por omissão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p.36. 29 NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. Remédios constitucionais. Barueri, SP: Manole, 2004. p.270. 30 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2006. p.448. 29 Mandado de Injunção como: A ação civil de rito sumário, que possibilita a todo aquele que tem direito subjetivo público ou privado, exigir, em juízo, o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, tornados inviáveis pela falta de norma regulamentadora.31 Admitindo-se que direitos fundamentais são aqueles classificados por José Afonso da Silva32 em seis grupos, a saber: I. Direitos Individuais (art. 5º); II. Direitos Coletivos (art. 5º); III. Direitos Sociais (art. 6º e 193 e seguintes); IV. Direito à Nacionalidade (art. 12); V. Direitos Políticos (art. 14 a 17); e VI. Direitos Solidários (arts. 3º e 225); e levando-se em conta as finalidades e o alcance que a doutrina nacional agregou até agora a esse instituto, pode-se conceituar o Mandado de Injunção como uma garantia ou remédio constitucional, mediante o qual se tenta obter o exercício de quaisquer direitos fundamentais e liberdades constitucionais espalhados pela CRFB/88, mormente àqueles catalogados nos artigos 5º ao 17, inclusive os direitos sociais, bem como direitos individuais decorrentes do regime e de tratados internacionais (artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal), sempre que se verifique a ausência de norma regulamentadora atrapalhando a eficácia plena daqueles direitos e liberdades. 31 CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. p.724. 32 SILVA, José Afonso da. op. cit., 2006. p.184. 30 1.4 Objeto Trata-se de garantia constitucional, prevista pela primeira vez na Constituição de 1988, no capítulo destinado aos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, capítulo que integra o Título II, relativo aos direitos e às garantias fundamentais. Encontra-se no artigo 5º, inciso LXXI, da Constituição, ao lado de outras garantias constitucionais, quais sejam, o mandado de segurança individual e coletivo, o habeas corpus, o habeas data e a ação popular. Constitui-se numa ação constitucional, cuja previsão legal dispõe: “concederse-á Mandado de Injunção sempre que a falta da norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. Deve haver, portanto, um nexo de causalidade entre a norma faltante e a impossibilidade do exercício daqueles direitos, e que constitui o pressuposto para a impetração do mandamus. Entende-se por norma regulamentadora toda e qualquer medida para tornar efetiva a norma constitucional, quais sejam, as leis complementares, ordinárias, decretos, regulamentos, resoluções, portarias, dentre outras. Tanto o artigo 102, I, “q”, como o artigo 105, I, “h”, da Constituição Federal que disciplinam a competência originária do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, para processar e julgar o Mandado de Injunção - fazem referência à norma regulamentadora de atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de 31 um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal (artigo 102, I, “q”), como também à norma regulamentadora de atribuição de órgão, entidade ou autoridade federal, da administração direta ou indireta (artigo 105, I, “h”), o que nos permite concluir toda a extensão que se quis dar à expressão “norma regulamentadora”. Todavia, interessam para o objeto deste estudo as omissões legislativas e seu controle, de sorte que as omissões administrativas não são aqui analisadas. Em suma, o Mandado de Injunção tutela apenas direitos cuja viabilidade de exercício se acha obstada pela falta de regulamentação. Se a razão para a inviabilidade do exercício for outra que não a falta de regulamentação, o writ não poderá ser utilizado.33 Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes afirma que “não cabe o Mandado de Injunção para forçar a Administração Pública a criar ou melhorar um serviço público; em outras palavras, não é ele instrumento para suprir a ausência ou deficiência do serviço público.”34 Portanto, o Mandado de Injunção só controla a omissão de medidas regulamentares e não de quaisquer medidas, como ocorre, por exemplo, com a ação de inconstitucionalidade por omissão. Flávia Piovesan, isoladamente, diverge dessa 33 PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Mandado de injunção. São Paulo: Atlas, 1999. p.78-79: este autor entende que, desse modo, “para ensejar a impetração de Mandado de Injunção pouco importa a natureza do ato; o que é essencial é que este seja de conteúdo normativo e que sua ausência impeça o pleno exercício do direito, liberdade ou prerrogativa constitucional. Entretanto, caso o obstáculo seja a simples resistência do obrigado (pessoa física ou jurídica, de direito privado ou público) em cumprir o comando da norma constitucional, não haverá espaço para o mandado de injunção. E’ o que se dará, por exemplo, se determinado município não estiver dotado de nenhum estabelecimento público de ensino fundamental, frustrando o direito público subjetivo de acesso ao ensino público e gratuito. Neste caso, a inefetividade do direito não decorre da ausência de legislação, mas da falta de atos materiais do Poder Público (estadual e municipal). Dessa maneira, deveriam ser utilizados outros instrumentos processuais que compelissem o Poder Público ao cumprimento de tal dever (como, por exemplo, a ação civil pública). Em tais hipóteses, porém, jamais poderia ser impetrado o mandado de injunção.” 34 GOMES, Luiz Flávio. Anotações sobre o mandado de injunção. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, set. 1989. p.56. 32 orientação, pois para ela “compreender a norma regulamentadora como toda e qualquer medida para tornar efetiva norma constitucional”, é incluir no conceito de norma regulamentadora não apenas a edição de normas, mas “a produção de ato administrativo e ato material.”35 A omissão legislativa inconstitucional pode ser total, correspondente à inércia completa do legislador, ou parcial, que corresponde à deficiência ou insuficiência da atividade do legislador, principalmente se tal deficiência implicar em violação ao princípio da isonomia, quando a exclusão legal de benefício se equipara à falta de norma regulamentadora, ensejando a impetração do writ para justamente estender a disciplina legal aos grupos excluídos, viabilizando o exercício de direito constitucional. Em outras palavras, a norma regulamentadora inconstitucional inválida, pois - equivale à não regulamentação, permitindo, em tese, a injunção.36 Odyr Porto entende que o Mandado de Injunção presume uma omissão e se não existir essa falta, como por exemplo na hipótese de haver regulamentação, ainda que injusta, o mandado não poderia ser concedido.37 No julgamento do Mandado de Injunção 79-4, o Supremo Tribunal Federal firmou posição, no sentido de que “não cabe Mandado de Injunção, para, sob color de reclamar a edição de norma regulamentadora de dispositivo constitucional (art. 39, § 1º, da CF), pretender-se a alteração de lei já existente, supostamente incompatível com a Constituição.”38 35 PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p.119. 36 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2007, p.407. 37 PORTO, Odyr. op. cit. p.96. 38 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 79-4. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 2 ago. 1990. p.6802. 33 Com isso, se exigiria recorrer ao Judiciário por duas vezes: primeiro para requerer a declaração da inconstitucionalidade da lei preexistente, para depois impetrar Mandado de Injunção, o que seria um despautério. Por questões de economia processual, mais razoável seria equiparar a manifesta inconstitucionalidade da lei preexistente com a falta de norma regulamentadora. No que tange aos direitos e prerrogativas mencionados no novo instituto, entende o Supremo Tribunal Federal que não cabe Mandado de Injunção em se tratando de falta de norma regulamentadora a tornar viável o exercício de direitos previstos em lei complementar, cuja via processual só poderia ser usada quando se tratasse do exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.39 A soberania a que alude o artigo 5º, LXXI do texto, refere-se à soberania popular, prevista no artigo 14 da Constituição, e os respectivos instrumentos de seu exercício, isto é, sufrágio universal, voto secreto e direto, com igual valor para todos, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular. O objeto do Mandado de Injunção é garantir o exercício de qualquer direito constitucional não regulamentado, de qualquer liberdade constitucional não regulamentada e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à cidadania e à soberania, desde que não regulamentadas. Por isso não é possível impetrar Mandado de Injunção quando se tratar de norma jurídica auto-aplicável, que não dependa de norma regulamentadora para 39 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 296-7. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 28 fev. 1992. p.2169. 34 viabilizar o exercício do direito que dispõe.40 Assim o STF já se posicionou na Questão de Ordem levantada no Mandado de Injunção 97, no julgamento realizado no dia 1 de fevereiro de 1990, tendo como Relator o Ministro Sydney Sanches, estabelecendo que “é impróprio o uso do mandado de injunção para o exercício de direito decorrente de norma constitucional auto-aplicável.”41 No mesmo sentido, ao considerar como pressuposto do Mandado de Injunção a falta de norma regulamentadora, decisão proferida em grau de apelação pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (Ap. 189102114, da 6ª C., j. 8 de março de 1990): A invocação do mandado de injunção pressupõe e só tem cabida quando a inexistência de norma regulamentadora vem a se constituir em obstáculo ou inviabilize o exercício de um direito ou pretensão, causando prejuízo. Se a norma jurídica invocada é auto-aplicável, o que ocorre com o artigo 47 do “Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, descabe a utilização do mandado de injunção.42 Interessante observar que o Mandado de Injunção é garantia auto-aplicável, harmonizando o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e das garantias fundamentais, nos moldes do artigo 5º, § 1º, da Constituição de 1988, embora não seja cabível nas hipóteses das normas constitucionais de eficácia plena ou de eficácia contida43, conforme se verá no momento oportuno. Enquanto não editada legislação específica, aplica-se ao Mandado de Injunção o procedimento do Mandado de Segurança previsto pela Lei 1533/51, 40 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p.907: o autor acredita que “quanto às normas, é preciso que sejam de eficácia limitada, ou seja, dependentes de regulamentação. Portanto, não cabe mandado de injunção se a norma constitucional invocada for auto-aplicável”. 41 BRASIL. Supremo Tribunal Federal MI n. 97. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>. Acesso em 23 set.2007. 42 Revista dos Tribunais. n.654. São Paulo: Revista dos Tribunais. p.181 43 NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. op. cit. p.272. 35 conforme mandamento previsto no parágrafo único do artigo 24 da Lei 8.038/90, que institui normas e procedimentos para alguns processos que ela especifica, e como aliás já havia sido determinado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do MI107-3, firmando entendimento, em votação unânime, que “a injunction é autoaplicável, independentemente de norma jurídica que a regulamente, inclusive quanto ao procedimento. Relativamente a este, aplicar-se-á, no que couber, e analogicamente, o do mandado de segurança.”44 Na hipótese de falta de regulamentação de lei já em vigor, poder-se-ia talvez impetrar Mandado de Segurança (uma vez que é cabível tal ação contra indevida omissão administrativa), não fosse, todavia, difícil a definição de um “direito líquido e certo” ante a ausência de regulamentação integral. Por esse motivo, o Mandado de Injunção, nesse caso, serviria, não somente para colmatar a norma constitucional (que fora parcialmente preenchida com a regulamentação em primeiro nível), mas agora também da própria lei, isto é, a injunção judicial substituiria o regulamento faltante, uma vez que toda matéria passível de mandado de segurança não é solucionável por Mandado de Injunção, e vice-versa.45 Insista-se: o Mandado de Injunção é perfeitamente admissível quando, apesar de editada a norma regulamentadora, esta, por ser incompleta ou insuficiente, não tem condições reais de viabilizar o exercício de tais direitos, liberdades e prerrogativas, e, por isso mesmo, incapaz de dar operatividade ao comando constitucional, isto é, a regulamentação foi formalmente criada pelo Poder, órgão ou 44 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 107-3. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 21 set. 1990. p.9782. 45 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, “hábeas data”, ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade. São Paulo: Malheiros, 2003. p.252. 36 autoridade originariamente competente, mas não é capaz de viabilizar o exercício do direito em questão. Ou seja, uma vez aferido que a regulamentação existente é inadequada para operacionalizar o pleno exercício de qualquer dos direitos tutelados, será imperioso determinar se esta inadequação é capaz de inquinar dita regulamentação do vício de inconstitucionalidade por ação ou não. Em caso positivo, teremos uma inconstitucionalidade por ação, seguida, cronológica e logicamente, de uma inconstitucionalidade por omissão. Nesse caso, se o conteúdo da norma regulamentadora se mostrar inapto aos fins a que se destina, tem-se uma inconstitucionalidade por ação, o que determinará uma carência regulamentar inconstitucional, na medida em que a norma inconstitucional não integra validamente o ordenamento jurídico. Corroborando tal posição, Sérgio Bermudes leciona que Caso diferente será aquele em que a norma regulamentadora for inconstitucional. Nessa hipótese, a situação será equiparável à da ausência de norma, pela ineficácia da regra de direito contrária à Constituição. Aqui, admite-se a injunção, cabendo ao legitimado impetrá-la, argüindo a inconstitucionalidade e, por isso, a ineficácia da norma regulamentadora.46 Todavia, essa não parece ser a orientação do Supremo Tribunal Federal, que entende descaber a injunção para se discutir a deficiência da norma regulamentadora já editada, ou seja, a mera edição desta norma afasta o cabimento do Mandado de Injunção. 46 BERMUDES, Sérgio. O mandado de injunção. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr. 1989. p.109. 37 Nesse sentido, o Ministro Celso de Mello, relator do MI 642-DF, se manifestou: Eventuais lacunas normativas ou imperfeições de conteúdo material, constantes de textos meramente legais ou de normas inscritas em tratados internacionais, não se revelam colmatáveis, nem suscetíveis de correção, por via injuncional, eis que o Mandado de Injunção somente tem pertinência, quando destinado a suprir omissões estatais na regulamentação de cláusulas exclusivamente fundadas na própria Constituição da República.47 Ainda no que tange aos direitos tutelados pelo Mandado de Injunção, Calmon de Passos afirma: Entendemos, entretanto, descaber o Mandado de Injunção quando o adimplemento, seja pelo particular, seja pelo Estado, envolve a organização prévia de determinados serviços ou a alocação específica de recursos, porque nessas circunstâncias se faz inviável a tutela, inexistentes os recursos ou o serviço, e construir-se o Mandado de Injunção como direito de impor ao Estado a organização de serviços constitucionalmente reclamados teria implicações de tal sorte que, inclusive, constitucionalmente, obstam, de modo decisivo, a pertinência do mandamus na espécie.48 Como exemplo, o autor cita o seguro-desemprego, cujo direito seria impossível de ser amparado pelo Mandado de Injunção, visto ser insuscetível de atribuição individual, sem que haja um sistema (técnico) instalado e funcionando devidamente. 47 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 642. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 14 ago. 2001. p.2881. 48 CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Mandado de segurança coletivo, mandado de injunção e “habeas data”. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p.112. 38 De todo o exposto, infere-se que a omissão normativa inconstitucional depende de existir, simultaneamente, um dever de regulamentar49 e de um prazo dentro do qual tal dever deverá ser cumprido. As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais deverão ser, quando necessário, regulamentadas rapidamente, o que determina a imediata omissão inconstitucional em caso de sua não regulamentação e, assim sendo, a não permissão, pelo Constituinte, de prazo qualquer para a regulamentação. Todavia, por mais que se deseje garantir eficácia social às normas constitucionais, uma regulamentação demora algum tempo para ser editada em função das mutações do processo legislativo, motivo pelo qual deve ser outorgado às autoridades competentes um prazo mínimo de tolerância que, uma vez transcorrido sem a edição da norma faltante,50 determina-se a total condenação da conduta omissiva e se impõe a concessão do remédio constitucional mencionado. Isso desde que a norma constitucional cuja regulamentação esteja faltando determine um direito amparado por Mandado de Injunção. Frise-se que a realização de estudos, a formação de comissões ou a discussão de lei não suspende o transcurso do “prazo para regulamentação”. O compromisso constitucional de regulamentar é um comprometimento de resultado, que só é efetivamente cumprido quando a norma regulamentar exigida 49 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Tomemos a Sério o Silêncio dos Poderes Públicos - o Direito à Emanação de Normas Jurídicas e à Protecção Judicial Contra as Omissões Normativas. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (org.). As garantias do cidadão na Justiça. São Paulo: Saraiva, 1993. p.354: o autor entende que “a doutrina costuma salientar que o conceito de omissão juridicamente relevante não é um conceito naturalístico, reconduzível a um simples ‘não fazer’, a um simples ‘conceito de negação’. Omissão, em sentido jurídico-constitucional, significa não fazer aquilo a que se estava constitucionalmente obrigado. A omissão legislativa só é autônoma e juridicamente relevante quando se conexiona com uma exigência constitucional de acção, não bastando o simples dever geral de legislador para dar fundamento a uma omissão inconstitucional.” 50 Prazo esse que, atualmente (mais de dezoito anos depois da promulgação da CRFB/88), já deve ser considerado mais do que esgotado. 39 constitucionalmente adquire vigência. Nesse sentido, não se pode concordar com a posição que vinha sendo adotada pelo Supremo Tribunal Federal, de que a propositura de um projeto de lei pudesse suprimir a omissão inconstitucional, conforme ficou consignado no voto do Ministro Néri da Silveira, exarado no MI nº 215-1/RS, bem como em decisões semelhantes proferidas nos MI nºs. 226-67/PE e 238-0/RJ. No que concerne ao Poder Legislativo, este trabalho adota a posição de que somente com a edição da norma regulamentar prevista constitucionalmente se pode viabilizar o exercício do direito, afastando-se eventual omissão inconstitucional. Nessa esteira, a realização de estudos ou mesmo a apresentação de projeto de lei não têm o efeito de afastar as omissões inconstitucionais, exigindo-se a edição e a vigência de norma regulamentar constitucionalmente prevista, conforme posição já adotada pelo próprio Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mandado de Injunção nº 361-1/RJ. Por óbvio, como se verá no momento oportuno, o Poder Judiciário também é competente para colmatar lacunas inconstitucionais, quando da inércia do legislador. Para se entender melhor este objeto, faz-se necessário analisar o significado da expressão: “dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à cidadania e à soberania”. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal e a maioria da doutrina nacional, capitaneada por José Afonso da Silva51, afirmam a existência de três diferentes expressões: a primeira seria constituída pela expressão “dos direitos constitucionais, a segunda pela das liberdades constitucionais” e a terceira pela expressão “das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à cidadania e à soberania”. Ou seja, a 51 SILVA, José Afonso da. op. cit., 2006. p.448-449. 40 palavra prerrogativas estaria ligada apenas à expressão: “inerentes à nacionalidade, à cidadania e à soberania”, indicando direitos políticos e direitos de nacionalidade. Tal entendimento, porém, revela um certo equívoco, visto que a locução “direitos constitucionais” envolveria as duas seguintes, esvaziando-as, portanto. Outros autores, liderados por Celso Ribeiro Bastos52, afirmam ter encontrado no texto constitucional duas expressões apenas: 1) dos direitos e liberdades constitucionais e 2) das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à cidadania e à soberania. Para esses autores, a expressão “prerrogativas inerentes à nacionalidade, à cidadania e à soberania” se referem aos direitos civis e políticos do cidadão (artigo 12 a 17 da CRFB/88) e que as prerrogativas inerentes à nacionalidade aludiriam aos direitos próprios do nacional, tanto no que se refere à própria nacionalidade, como àqueles dela decorrentes, que, embora previstos constitucionalmente, ainda precisariam de regulamentação.53 Já as prerrogativas inerentes à cidadania e à soberania indicariam os direitos políticos (abrangendo a função do voto), sendo que a expressão cidadania se referiria à manifestação de vontade de cada um, e a soberania popular indicaria a expressão coletiva dessa participação política, nos moldes do artigo 14 da Constituição (sufrágio universal). Importante ressaltar que a palavra prerrogativa indica um direito ou poder especial dado a uma pequena parcela de pessoas, cuja etimologia, aliás, sugere os direitos especiais de uma categoria de pessoas. Esta palavra é oriunda do termo 52 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2001. p.250. Note-se, como exemplo, as normas constitucionais previstas no artigo 12 da Constituição de 1988, referentes à aquisição da nacionalidade, originárias ou derivadas, entre as quais há ainda várias que são dependentes de regulamentação a fim de que o seu exercício possa ser viabilizado. 53 41 latino praerogativa, que indicava, na Roma antiga, a tribo ou centúria que votava primeiro (era “rogada” primeira) nas Assembléias populares, podendo influenciar o voto das demais, tornando-se então sinônimo de vantagem, de privilégio. Prerrogativa, assim, pode se referir tanto a direitos e liberdades constitucionais, abrangendo uma ampla gama de destinatários, e portanto não só a nacionais ou cidadãos, como também se referir simplesmente ao direito de votar e ser votado. Celso Ribeiro Bastos identifica na locução direitos e liberdades constitucionais as clássicas declarações de direito individuais, entendendo que se deve considerar nela incluídos os direitos sociais.54 Mais consentâneo com o verdadeiro objetivo que o Constituinte quis dar ao mandamus, há posicionamento doutrinário no sentido de que o objeto do Mandado de Injunção abrange o exercício de qualquer direito constitucional, individual ou coletivo, político ou social, ainda não regulamentado, além de contemplar em seu escopo as prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, também quando não regulamentadas.55 Independentemente da divisão adotada pela doutrina, firma-se a posição de que são objeto de tutela do Mandado de Injunção todos os direitos de liberdade e suas garantias (expressos ou não no artigo 5º da CRFB/8856), bem como todos os direitos de nacionalidade e os direitos políticos, desde que previstos, todos eles, em normas constitucionais. 54 BASTOS, Celso Ribeiro. op. cit. p.250. NISHIYAMA, Adolfo Mamoru, op. cit. p. 275. Cf também: SILVA, José Afonso da. op. cit., 2006. p.448. 56 Exemplo de direito-liberdade não previsto no artigo 5º é o direito de greve, que depende de regulamentação que esclareça como se dará o processo coletivo de deliberação acerca de sua decretação/manutenção. 55 42 Nesse sentido, direitos constitucionais significariam o conjunto de faculdades atribuídas aos governados pela Lei Maior, dentre os quais os direitos individuais, coletivos, sociais e políticos e nas disposições transitórias do texto constitucional, bem como nos demais capítulos da Carta Magna. Liberdades constitucionais teriam como princípio norteador o princípio esculpido no artigo 5º, II, significando dizer que tudo que não é proibido é livre de ser praticado, bem como as liberdades de manifestação de pensamento, de consciência, de crença, de expressão, de comunicação, de exercício profissional, de associação (inclusive sindical), de obtenção de informações pelo habeas data, de ensino, de pesquisa, de planejamento familiar e de locomoção, esta protegida também pelo habeas corpus. Finalmente, as prerrogativas a que alude o disposto no artigo 5º, LXXI, decorrem dos princípios expostos no artigo 12 e nos artigos 14 a 16 da Lei Maior, tendo repercussão em vários outros dispositivos constitucionais. Prerrogativas à nacionalidade seriam, portanto, as referentes ao exercício dos cargos públicos, por eleição ou por nomeação, salvo os impedimentos e vedações legais, aí incluídos os de nacionalidade portuguesa e os originários de países de língua portuguesa. Prerrogativas à soberania se referem à soberania popular que é referida no artigo 14, como os meios de seu exercício, isto é, sufrágio universal, voto secreto e direto, com igual valor para todos, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular. Prerrogativas inerentes à cidadania compreendem a qualidade do indivíduo que tem direitos políticos, ou seja, é cidadão o nacional (nato ou naturalizado), no gozo de seus direitos civis e políticos, cujos direitos são adquiridos pelo alistamento eleitoral e exercidos pelo voto e pela elegibilidade. 43 Na verdade, as liberdades e prerrogativas constitucionais mencionadas são, essencialmente, direitos fundamentais. Tivesse disciplinado o legislador constituinte que o Mandado de Injunção seria concedido sempre que a falta de norma regulamentadora tornasse inviável o exercício dos direitos fundamentais e teria dito tudo.57 Esse é, portanto, o alcance dado pela Constituição ao Mandado de Injunção. Inviabilizado, de qualquer forma, o exercício de quaisquer desses direitos, liberdades ou prerrogativas elencadas, por falta de norma que os regulamente, têm os governados a seu dispor esse remédio constitucional, para usufruir os privilégios sonegados. O elenco é tão vasto quanto a amplitude do dispositivo contido no artigo 5º, § 2º, do Título II, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Como exemplo desse importante princípio, veja-se a norma esculpida no artigo 150, item III, da CRFB/88, autolimitando os poderes do Estado e que, embora não estando presente no mencionado Título II, sobre os direitos fundamentais, a eles se equipara, como direito do indivíduo de não pagar tributo em relação a fatos geradores que tenham ocorrido antes do início da vigência da lei que o instituiu ou aumentou, ou no mesmo exercício em que haja sido publicada a lei que os houver instituído ou aumentado.58 57 58 SIDOU, J. M. Othon. op. cit. p.273. (grifo do autor). Ibidem, p.273. 44 1.5 Partes O Mandado de Injunção pode ser impetrado por toda e qualquer pessoa, diferentemente da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, cuja legitimidade ativa é restrita aos entes relacionados no artigo 103, incisos I a IX da Constituição. É possível admitir-se a impetração do Mandado de Injunção para a defesa de direito coletivo, mas não difuso, sob pena de se confundir o mandamus (como instrumento de defesa de direito subjetivo) com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, que visa tutelar direito objetivo, eliminando as lacunas do sistema, de forma geral e abstrata. A despeito de inexistir norma a respeito, a jurisprudência vem admitindo a impetração desse tipo de mandado, sendo legitimadas as mesmas entidades às quais a Constituição concedeu a possibilidade de ajuizamento de Mandado de Injunção coletivo, cujos requisitos se aproximam daqueles do mandado de segurança coletivo, na medida em que a injunção coletiva será cabível quando o prejuízo pela falta de norma regulamentadora afetar a todos os associados da entidade impetrante.59 Todavia, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o MI 23-9, impetrado por associação de classe, entendeu que esta não poderia ingressar com Mandado de Injunção representando seus associados.60 Uma vez que o Mandado de Injunção é cabível tanto nas relações de natureza pública, como nas relações privadas, sua legitimidade passiva recai sobre 59 MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit. p.258. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 23-9. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 5 mar. 1992. 60 45 a parte privada ou pública que sofre os efeitos de eventual deferimento da injunção, ou melhor, sobre o ente (pessoa física ou jurídica, pública ou privada) cuja atuação é imprescindível para viabilizar o exercício do direito, e não sobre a autoridade competente para elaborar a norma regulamentadora faltante. Quando o texto constitucional fixa ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça as competências para o mandamus, não está, com isso, a apontar o pólo passivo da ação respectiva, por se tratar de simples critério de repartição de competências entre os órgãos jurisdicionais. Isso porque se o Mandado de Injunção visa à tutela de uma pretensão, deverá ser impetrado contra a pessoa pública ou privada, à qual compete tornar viável a pretensão, não havendo sentido chamar-se ao processo a autoridade cuja inércia se imputa a omissão, de sorte a excluir a parte contra a qual a pretensão é dedutível. Não tem sido esta, porém, a posição do Supremo Tribunal Federal que, por maioria de votos, fixou o entendimento de que parte passiva é apenas a autoridade e o órgão omisso, visto que a natureza mandamental do Mandado de Injunção é dirigir-se às autoridades ou aos órgãos públicos omissos quanto à regulamentação que viabilize aqueles direitos e aquelas prerrogativas já mencionadas. Dessa forma, não cabe litisconsórcio passivo entre essas autoridades e esses órgãos públicos que deverão, se for o caso, elaborar a regulamentação necessária - e particulares que, em favor do impetrante do writ, vierem a ser obrigados ao cumprimento da 46 norma regulamentadora, quando esta vier, em decorrência de sua elaboração, a entrar em vigor.61 O Supremo Tribunal Federal já deixou assente que só o órgão público (estatal) pode ser sujeito passivo na ação injuntiva, ou seja, aquele (legislador ou administrador) que deveria ter editado a norma integradora e não o fez.62 Assim, tem decidido aquela Corte de Justiça que a indicação da autoridade legislativa omissa constitui requisito processual, sem o qual a inicial é indeferida, não se admitindo sequer a companhia litisconsorcial de particular no pólo passivo.63 1.6 Diferenças entre mandado de injunção e ação de inconstitucionalidade por omissão O Mandado de Injunção serve para tutelar direito subjetivo, e não se confunde com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, que é instrumento para salvaguardar direito objetivo. No caso da ação de inconstitucionalidade por omissão, esta é legislativa ou administrativa; no caso do Mandado de Injunção, a Constituição menciona falta de norma regulamentadora – lei, decreto, etc. -, portanto, a omissão aí seria tanto legislativa como do administrador, mas é uma omissão normativa. 61 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 323-8. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 14 fev. 1992. p.1164: Confirmando tal posição, no julgamento do MI 382-3, determinou o Supremo que na injunção não há lugar para a citação, como interveniente ou terceiro interessado, dos particulares, bem como para litisconsórcio passivo entre eles e a autoridade competente para a elaboração da norma regulamentadora. (MI 382-3, DJ 12 de setembro de 2003). Já no julgamento do MI 153-7, o Supremo fixou entendimento de que se a lei inexistente é de iniciativa privativa do Presidente da República, é ele quem deve figurar no pólo passivo da ação e não o Presidente do Senado Federal. (RT 655/205). 62 Idem. Agravo Regimental ao Mandado de Injunção nº 323-8 . Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 14 fev. 1992. p.1164. 63 CLÉVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p.252. 47 Sérgio Resende de Barros exemplifica que: Se a Constituição garante, como garante, o ensino fundamental para todos e eu não posso matricular meu filho numa escola pública porque o Estado não construiu escolas, eu não posso impetrar Mandado de Injunção, para assegurar o gozo desse direito que a Constituição me dá, e do qual eu estou sendo privado, porque aí a omissão não é normativa, ou seja, não está faltando uma norma regulamentadora, está faltando é uma construção da escola, é um ato administrativo e não normativo.64 No Mandado de Injunção existe uma fiscalização concreta da inconstitucionalidade por omissão, enquanto que na ação direta há a fiscalização abstrata da inconstitucionalidade, conforme se depreende da simples leitura dos dispositivos constitucionais que abrigam tais institutos. De fato, o artigo 5º, inciso LXXI, da Carta de 1988, objetiva tornar viável o exercício de um direito fundamental no caso concreto, eventualmente lesado pela ausência de norma regulamentadora, ao passo que o artigo 103, § 2º, objetiva conferir efetividade à norma constitucional, atacando a inconstitucionalidade em tese, saneando a ordem jurídica lacunosa e conferindo eficácia plena aos dispositivos constitucionais. Conforme observa Michel Temer, na ação direta de inconstitucionalidade por omissão “comunica-se a omissão”; no Mandado de Injunção, “o Judiciário deve declarar o direito para que dele possa desfrutar o postulante ainda que omisso o regulamentador da norma constitucional. Insista-se: o Judiciário não legislará nem substituirá o legislador competente. Declarará o direito.”65 64 BARROS, Sérgio Resende de. A inconstitucionalidade por omissão. In: MARTINS, José Renato. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p.137. 65 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001. p.208. 48 Nesse sentido, os efeitos da decisão quando do julgamento da injunção são inter partes, circunscrito ao caso concreto. Na ação direta, os efeitos são erga omnes, ou seja, oponível contra todos. No que tange à legitimidade ativa, podem propor ação direta de inconstitucionalidade por omissão as entidades relacionadas no artigo 103, incisos I a IX da Constituição, enquanto que o Mandado de Injunção pode ser impetrado por toda e qualquer pessoa. No âmbito da legitimidade passiva, constata-se que a injunção pode ser impetrada contra o ente público ou privado que deve viabilizar o direito. Já na ação direta, o sujeito passivo é o órgão público responsável por medida que torne efetiva norma constitucional. Importante distinção reside no órgão jurisdicional competente para julgar tais institutos: na ação direta, este órgão é tão somente o Supremo Tribunal Federal, por se tratar de competência concentrada66, ao passo que, no Mandado de Injunção, a competência se estende para outros órgãos jurisdicionados, nos termos do artigo 102, I, “q” e artigo 105, I, “h”, da Carta de 1988, por se tratar, até certo ponto, de competência difusa.67 Até certo ponto difusa, porque se trata de competência concentrada nos Tribunais Superiores, em que o Supremo Tribunal Federal processa e julga 66 O modelo concentrado também é usado na via de ação direta de inconstitucionalidade, nos moldes do modelo austríaco, introduzido na Constituição da Áustria de 1920, sob a inspiração de Hans Kelsen. Diz-se “concentrado” porque o controle é realizado por um órgão judicial único. 67 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1992. p.65-s.: já o modelo difuso de controle da constitucionalidade, no que se refere à inconstitucionalidade por ação, é acolhido na via de exceção ou defesa, inspirado no modelo norte-americano, em que todo e qualquer juiz, seja ele juiz ordinário ou juiz de jurisdição especial, pode efetuar o controle. O precedente (leading case) para a construção desse modelo foi o célebre caso “Marbury versus Madison”, de 1803, em que o Juiz Marshal proclamou a supremacia da Constituição sobre as demais leis e o poder dos juízes de, no conflito entre as leis e a Constituição, deixar de aplicar as normas inconstitucionais. 49 originariamente o Mandado de Injunção quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, dentre outras hipóteses. Cabe-lhe ainda julgar em recurso ordinário o Mandado de Injunção decidido em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão, donde se conclui que também esses Tribunais Superiores têm competência para o julgamento da injunção. Nem sempre tal competência é difusa porque, na maioria dos casos, o Mandado de Injunção é impetrado em virtude da falta de norma regulamentadora de atribuição do órgão Legislativo, o que pode acarretar uma concentração de processos no Supremo Tribunal Federal. Parece que o objetivo do Constituinte, ao atribuir ao Supremo Tribunal Federal tal competência, foi evitar que se criasse uma gama de decisões heterogêneas, o que poderia acontecer se o julgamento do Mandado de Injunção coubesse a vários órgãos jurisdicionais. Equivocada, todavia, essa posição. Este trabalho compartilha a idéia que, se a competência fosse efetivamente difusa, maior eficácia representaria o Mandado de Injunção, cuja descentralização não apenas evitaria o acúmulo de processos no âmbito do Supremo Tribunal Federal, mas também tornaria mais facilitado o acesso à Justiça, em razão da maior proximidade do órgão jurisdicional, o que poderia encorajar a impetração do Mandado de Injunção.68 Por derradeiro, outro aspecto diferenciador que merece ser lembrado entre tais institutos é aquele concernente ao objeto de cada um. De fato, na ação direta busca-se a efetividade de qualquer norma constitucional, seja de que matéria for, 68 PIOVESAN, Flávia. op. cit. p.163. 50 tendo em conta que, nos termos do artigo 103, § 2º da Carta de 1988, a ação direta torna efetiva a norma constitucional, sem qualquer restrição. O objeto do Mandado de Injunção, por seu turno, buscando tornar viável o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas atinentes à nacionalidade, cidadania ou soberania, tem um alcance mais reduzido, se comparado com o objeto da ação direta, porém revela ele maior potencialidade de eficácia, posto que, no controle concentrado, o Supremo Tribunal Federal não viabiliza, diretamente, direito algum, mas declara inconstitucional a omissão de medida para tornar efetiva a norma constitucional, dando ciência ao órgão competente para a adoção das providências necessárias. No Mandado de Injunção, todavia, cabe ao Poder Judiciário tornar viável o exercício de direitos e liberdades constitucionais, quando da falta de norma regulamentadora. Vide ao final deste trabalho, tabela comparativa desses institutos. 1.7 Aspectos processuais e competência Hodiernamente, prevalece a tese da auto-aplicabilidade, considerando-se o novo writ como garantia prontamente realizável, regendo-se, conforme o caso, pelo procedimento do Mandado de Segurança (Lei 1.553/51) ou pelo procedimento ordinário do Código de Processo Civil. O fundamento da auto-aplicabilidade do Mandado de Injunção se encontra no próprio texto constitucional (artigo 5º, § 1º), que propugna pela aplicação imediata das normas definidoras de garantias fundamentais. De fato, entende Ingo Wolfgang Sarlet que a melhor exegese da norma contida no artigo 5º, § 1º, de nossa 51 Constituição é a que parte da premissa de que se trata de norma de cunho inequivocamente principiológico, de caráter mandamental, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais, sem necessariamente entrar na discussão em torno das diferenças entre regras e princípios que, para o autor, são espécies do gênero normas jurídicas.69 Sarlet propugna, ainda, que, concernente aos direitos fundamentais, a aplicabilidade imediata e eficácia plena assumem a condição de regra geral, uma espécie de plenitude eficacial que, por motivos elementares (inclusive em face da natureza principiológica da norma contida no artigo 5º, § 1º), não pode ser absoluta.70 Em outras palavras, os direitos fundamentais possuem, relativamente às demais normas constitucionais, maior aplicabilidade e eficácia, a despeito de existirem eventuais distinções nessa graduação, dependendo da forma de sua positivação, de seu objeto e da função que desempenham. Embora a Constituição tenha deixado de estabelecer o rito processual para a utilização do novel instituto, o Tribunal Federal de Recursos instituiu em seu Regimento Interno normas procedimentais para o Mandado de Injunção, através do ato nº 1.245, de 16.11.1988, a saber: a) o registro da Ação far-se-á no Protocolo da Secretaria do Tribunal na classe Petição, onde receberá numeração contínua e seriada; b) o registro e a distribuição far-se-ão através de sistema eletrônico, com designação das partes, respectivamente, como impetrante e impetrado; 69 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.282. 70 Ibidem. p.282. 52 c) quando de competência originária do Supremo, serão processados e julgados pelo Tribunal Pleno e pelas Seções Especializadas; d) no processo e julgamento dos Mandados de Injunção serão adotadas, no que couberem, as normas previstas no Regimento Interno para o Mandado de Segurança; e) os processos de Mandado de Injunção terão prioridade sobre todos os atos judiciais, salvo o habeas corpus, o mandado de segurança e o habeas data. No que se refere à competência, são competentes para apreciar o Mandado de Injunção, em instância originária: 1. O Supremo Tribunal Federal, quando a edição de norma regulamentadora for de responsabilidade: a) do Presidente da República; b) do Congresso Nacional; c) da Câmara dos Deputados; d) do Senado Federal; e) das mesas da Câmara ou do Senado; f) do Tribunal de Contas da União; g) d) de um dos Tribunais Superiores ou h) do próprio Supremo Tribunal Federal. 2. O Superior Tribunal de Justiça, quando a edição da norma regulamentadora for de responsabilidade: a) de autoridades federais; b) da Administração direta ou indireta não inserida na competência do STF, da Justiça Federal, Militar, do Trabalho e Eleitoral. 53 3. O Tribunal Superior do Trabalho, o Tribunal Superior Eleitoral, o Superior Tribunal Militar e os Tribunais Regionais Federais, quando a edição da norma regulamentadora for de responsabilidade: a) de autoridades federais; b) da Administração direta ou indireta, obedecidas a competência especializada de cada órgão, o local onde deveria se dar a edição do texto ausente e a pessoa ou entidade encarregada de editá-lo. 4. Os demais órgãos da Justiça Federal, Eleitoral, do Trabalho e Militar, obedecidas a especialidade, o local da edição do ato e a pessoa ou entidade encarregada de editá-lo. 5. A Justiça Estadual, por seus órgãos, quando a edição da norma regulamentar for de responsabilidade de autoridades estaduais ou municipais, da Administração direta ou indireta, ressalvada a competência especializada e observado o local onde a edição do ato deveria ter lugar e a pessoa ou entidade encarregada de editá-lo. Em suma, o mandado de injunção possui tramitação idêntica ao de seu congênere, o mandado de segurança. Porém, no que tange o cabimento de medida liminar, não se vislumbra a hipótese em que a decisão final precise dessa medida, pelo próprio objetivo do mandamus e da pertinência daquela. Comungando desse entendimento, J.M. Othon Sidou afirma: “Em todo caso, é de ter em mente que todas as garantias constitucionais têm ínsita, como providência primária, a medida liminar. Seria o mandado de injunção o caso único de exceção à regra.”71 71 SIDOU, J. M. Othon. op. cit. p.283. 54 Finalmente, no que tange ao regime recursal, cabível no Mandado de Injunção recurso ordinário, regido pela Lei nº 8.037, de 1990, mas improcedente o recurso especial, por ser incabível em mandado de segurança (Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990, art. 30). Procedem, quer no STF, quer no STJ, os recursos de agravo regimental, de embargos de divergência, infringentes e de declaração, nos termos de seus regimentos internos e só excepcionalmente é possível impetrar-se o recurso extraordinário, em razão da peculiaridade do writ.72 72 SIDOU, J. M. Othon, op. cit., p. 283. 55 2 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 2.1 Da jurisprudência como técnica compreensiva Este tópico destina-se a esclarecer como deve ser realizado (finalidade prescritiva) o trabalho de um jurista ou operador (especialmente um juiz) em um Estado Constitucional e Democrático de Direito, o que se mostrará, por diversas razões, muito importante para a fundamentação de nossas conclusões sobre o Mandado de Injunção, especialmente no que se refere aos limites e possibilidades da concreção judicial do direito constitucional. Como técnica de aplicação concreta do direito, a jurisprudência deve ser entendida como um saber compreensivo, visando à determinação do significado das disposições normativas, previamente identificadas como jurídicas, através de uma interpretação hermeneuticamente73 orientada, bem como um saber construtivo, na medida em que reconstrói o material normativo desenvolvendo um sistema unitário, coerente e completo, apto a auxiliar na solução tanto de problemas expressamente previstos quanto de casos nunca imaginados. Deve ainda ser entendida como um saber valorativo, visto que a realização de juízos de valor é determinante para a interpretação e justificação da obrigatoriedade do direito, ainda que não o seja para sua identificação (positivismo conceitual). 73 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989: p.231-252: segundo este autor, “por ‘hermenêutica’ entendo aqui a doutrina sobre as condições de possibilidade e os modos específicos do <compreender em sentido estrito>, quer dizer, do compreender aquilo que é dotado de sentido enquanto tal, em contraposição ao <explicar> de objectos sem ter em conta as referências de sentido. Se na metodologia jurídica se trata dos modos específicos de compreender referências de sentido jurídico, a hermenêutica geral, no sentido apontado, constitui por sua vez a base da própria metodologia jurídica.” 56 A interpretação do direito, como qualquer interpretação, busca extrair de um objeto cultural o seu significado. Para tanto, deve-se partir de uma série de conhecimentos prévios, e, seguindo um processo circular de esclarecimento recíproco, orientado por determinadas pautas ou critérios, tendo sempre em foco as conseqüências práticas reais de nossas interpretações, atingir o significado que melhor se conforma com o conjunto normativo-valorativo em que está inserida a disposição normativa interpretada. O conjunto de tais conhecimentos que se deve possuir antecipadamente sobre o objeto a interpretar, e que, em última análise, são condição de possibilidade da interpretação, é denominado pela doutrina de pré-compreensão.74 É com base nesses conhecimentos antecipados que o intérprete formará uma “conjectura de sentido”75 acerca da norma, que lhe possibilitará dar início ao círculo hermenêutico que, por sua vez, conduzirá ao significado. A pré-compreensão, portanto, é indispensável para a descoberta do sentido do objeto interpretado, mas ela não é determinante, no sentido de pré-estabelecer a interpretação ou, o que é pior, de justificá-la. De posse de tal conjetura de sentido, o intérprete ingressa no processo interpretativo propriamente dito, configurado pelo “círculo hermenêutico de esclarecimento recíproco”. Com a finalidade de elucidar esta afirmação, indispensável a transcrição, por inteiro, das palavras de Karl Larenz: Uma vez que o significado das palavras em cada caso só pode inferir-se da conexão de sentido do texto e este, por sua vez, em última análise, apenas do significado – que aqui seja pertinente – das palavras que o formam e da combinação de palavras, então terá o intérprete – e, em geral, todo aquele que queira compreender um 74 75 LARENZ, Karl. op. cit. p.245-246. Ibidem. p.244. 57 texto coerente ou um discurso – de, em relação a cada palavra, tomar em perspectiva previamente o sentido da frase por ele esperado e o sentido do texto no seu conjunto; e a partir daí, sempre que surjam dúvidas, retroceder ao significado da palavra primeiramente aceite e, conforme o caso, rectificar este ou a sua ulterior compreensão do texto, tanto quanto seja preciso, de modo a resultar uma concordância sem falhas. Para isso, terá que lançar mão, como controlo e auxiliares interpretativos, das mencionadas ‘circunstâncias hermeneuticamente relevantes’. A imagem de um círculo não será adequada senão na medida em que não se trata de que o movimento circular do compreender retorne pura e simplesmente ao seu ponto de partida – então tratarse-ia de uma tautologia -, mas de que eleva a um novo estágio a compreensão do texto. Se o significado de uma palavra aceite em primeira mão pelo intérprete não se adequa ao nexo do sentido do texto, tal como este se vem a revelar ao intérprete no decurso do processo interpretativo, então o intérprete terá de rectificar a sua posição inicial; se os possíveis (aqui imagináveis) significados da palavra revelam uma conexão de sentido diversa daquela que inicialmente o intérprete tinha conjecturado, este rectifica então a sua conjectura. O processo de olhar para a frente e para trás pode ter que se repetir inúmeras vezes, mormente quando se tenha apenas contemplado uma parte do texto global – por exemplo, uma só frase ou parágrafo. Mesmo no caso em que se confirme plenamente a conjectura inicial de sentido, o intérprete já não estará situado no mesmo ponto, já que a sua mera suposição ou idéia se converte, de ora em diante, em certeza. A conjectura de sentido tem o caráter de uma hipótese, que vem a ser confirmada mediante uma interpretação conseguida. O processo de compreender tem o seu curso, deste modo, não apenas em uma direção, ‘linearmente’, como uma demonstração matemática ou uma cadeia lógica de conclusões, mas em passos alternados, que têm por objectivo o esclarecimento recíproco de um mediante o outro.76 Se a presença de um momento de criatividade do intérprete do direito é inevitável e, talvez, até mesmo, desejável, não o é uma ação criativa desregrada e arbitrária. É possível, tecnicamente, evitar tal arbítrio, fundando nossa précompreensão, como indica Larenz, na tradição da metodologia ocidental e realizando o autocontrole de nossos preconceitos, utilizando-nos dos critérios 76 LARENZ, Karl. op. cit. p.242-243. 58 hermenêuticos, e, principalmente, justificando todas as interpretações de maneira racional, honesta e pública.77 A indispensabilidade da presença de elementos culturais – extrajurídicos – portanto, dentre os conhecimentos que integrarão a pré-compreensão é, evidentemente, mais significativa na interpretação das disposições constitucionais, visto que estas últimas encontram-se naqueles que são os atos normativos inaugurais de seus respectivos ordenamentos jurídicos, não podendo ser, portanto, interpretadas a partir do restante do ordenamento jurídico que inauguraram, mas, sim, imprimindo seu sentido normativo e valorativo em todo o complexo sistema jurídico. A importante presença de tais elementos extrajurídicos não deve significar o arbítrio subjetivista do intérprete, visto que existem métodos para garantir padrões significativos de objetividade. E, mais do que possível tecnicamente, esta objetividade/racionalidade é uma exigência normativa vinculada à realização dos objetivos centrais do Estado Democrático de Direito. Neste sentido, é importante notar que a Teoria do Direito tem trazido importantes contribuições para a técnica de fundamentação das decisões judiciais, colocações que visam, por um lado, proporcionar instrumentos para o aplicador, através de recursos que auxiliam na formulação de uma “boa” decisão, tanto no aspecto de sua justiça/coerência, quanto no aprimoramento de sua capacidade persuasiva (legalidade/legitimidade); e, por outro, tornar a decisão suscetível de análise intersubjetiva, buscando a sua controlabilidade (legalidade/controle), recursos, que, certamente, diminuem o arbítrio e aumentam a legitimidade.78 77 78 LARENZ, Karl. op. cit. p.294. Ibidem. p. 161 e ss. 59 2.2 A concepção adequada de uma Constituição como pré-compreensão controlada Como já dito, todo labor compreensivo, toda atividade interpretativa de descoberta de um sentido, pressupõe uma série de conhecimentos acerca do objeto a ser interpretado, a assim chamada pré-compreensão. Asseverar a presença e o papel da pré-compreensão no processo interpretativo não implica, como poderia parecer, recomendar o seu uso, e nem, tampouco, recriminar-lhe. Trata-se de um juízo descritivo, ou seja, é apenas o reconhecimento de que todo aquele que interpreta inevitavelmente fará uso de uma série, maior ou menor, de conhecimentos acerca do objeto interpretado, que já possuía antes do início da interpretação. Este conjunto de conhecimentos prévios necessários para a interpretação constitucional (pré-compreensão constitucional) organiza-se em torno de uma macrovisão acerca da Constituição, concernente, basicamente, a seu status normativo, sua função e sua relação com valores morais, três aspectos intimamente relacionados. São, justamente, essas idéias essenciais sobre a Constituição que se convencionou chamar de concepções de Constituição. Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, toda e qualquer Teoria da Constituição terá de desenvolver-se em três diferentes, mas intrinsecamente interconectadas, esferas: a esfera política, a “científica” e a crítico-normativa.79 79 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p.1187-1189. 60 À esfera política, segundo o autor supracitado, corresponde a função de “compreender a ordenação constitucional do político, através da análise, discussão e crítica da força normativa, possibilidades e limites do direito constitucional”. Percebese que tal função só será cumprida com o apoio de disciplinas científico-sociais, como a Sociologia e a Ciência Política, mas, é importante ressaltar que tais ciências deverão responder a determinadas questões (limites e possibilidades da força normativa). Todo processo de obtenção de conhecimento acha-se pautado por perguntas que lhe são anteriores – propostas por Canotilho, pois este já parte de uma concepção prévia, que procura encontrar normatividade na Constituição (questão do status normativo). Por sua vez, à esfera “científica” cumpre “descrever, explicar e refutar os fundamentos, idéias, postulados, construção, estrutura e métodos (dogmática) do direito constitucional.”80 Ainda que os dois aspectos anteriores já possuam uma carga eminentemente crítica, Canotilho agrega mais uma função à Teoria da Constituição, denominando-a “teoria crítica e normativa da constituição” e atribuindo-lhe um triplo sentido: (1) como instância crítica das soluções constituintes consagradas nas leis fundamentais e das propostas avançadas para a criação de uma constituição nos momentos constitucionais; (2) como fonte de descoberta das decisões, princípios, regras e alternativas, acolhidas pelos vários modelos constitucionais; (3) como filtro de racionalização das pré-compreensões do intérprete das normas constitucionais procurando evitar que os seus prejuízos e préconceitos jurídicos, filosóficos, ideológicos, religiosos e éticos afectem a racionalidade e razoabilidade indispensáveis à observação da rede de complexidade do estado de direito democráticoconstitucional.81 80 81 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., 1998. p.1187-1189. Ibidem. p.1187-1189 (grifos do autor) 61 Conclusivamente, à Teoria da Constituição cumpre, simultaneamente, as fundamentais tarefas de construir a pré-compreensão e realizar o seu controle. Ou seja, a Teoria da Constituição deverá contribuir para o estabelecimento deste conhecimento prévio – empírico, analítico-normativo e valorativo – indispensável para o início da interpretação e deverá, também, reconstruir sistematicamente, de modo crítico, todo o conhecimento prévio existente sobre a Constituição, de modo a evitar a irracionalidade e o arbítrio subjetivista. Daí que, todo aquele que pretenda realmente compreender uma Constituição terá que partir de uma Teoria da Constituição que seja adequada para o seu verdadeiro entendimento. É a necessidade de compatibilizar a defesa dos direitos de liberdade, com o pluralismo e a Democracia que constituirá o verdadeiro desafio do constitucionalismo do pós-Segunda Guerra mundial, a institucionalização jurídico-política de um Estado que seja, simultaneamente, governado por Leis e pelos Homens. Portanto, como, obviamente, os primeiros passos para a interpretação do Mandado de Injunção devem ser dados mediante a compreensão da nossa Constituição vigente, passa-se a abordar, ainda que com brevidade, seus principais aspectos, dentre eles aqueles concernentes ao que se convencionou chamar-se Estado Constitucional e Democrático contemporâneo, que, sem dúvida, orienta nossa Carta Magna. 62 2.3 Do Estado Democrático de Direito como elemento central das concepções de constituição atuais A expressão Estado Democrático de Direito, como é de conhecimento geral, foi cunhada pelo espanhol Elias Dias, para significar um Estado simultaneamente socialista e democrático, um “socialismo na democracia”.82 Todavia, Manoel Gonçalves Ferreira Filho discorda de José Afonso da Silva, quando este teria afirmado que foi nessa acepção que a expressão teria sido adotada pelo Constituinte de 1988, como Estado em processo de transição democrática para o socialismo, pois para Ferreira Filho: [...] esta orientação socialista a ser impressa ao estado de Direito não foi sequer objeto de cogitação nos debates da Constituinte. Não há dúvida alguma que a expressão ‘Estado Democrático de Direito’ não foi votada pelo constituinte brasileiro com a intenção de designar o socialismo na Constituição ou na democracia pátria.83 De fato, tal afirmação pode ser facilmente confirmada por uma simples leitura dos Princípios Fundamentais (cidadania, dignidade da pessoa humana, valorização da livre iniciativa, pluralismo), da relação de Direitos Fundamentais (garantia do direito fundamental da propriedade, assim como da liberdade de consumo e da escolha profissional), da Ordem Econômica (livre iniciativa, finalidade de assegurar a todos existência digna, propriedade privada dos meios de produção, livre concorrência, liberdade de empresa, intervenção econômica estatal apenas em situações excepcionais e, por fim, planejamento econômico com força apenas indicativa para o setor privado) ou dos limites materiais ao poder de reforma (artigo 82 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 2000. p.18. 83 Ibidem. p.18. 63 60, § 4º, IV – direitos e garantias individuais, entre os quais a liberdade de empresa, a liberdade de trabalho, ofício ou profissão, a liberdade de consumo e a propriedade privada) da CRFB/88, que claramente apontam a impossibilidade do estabelecimento, por meio de um processo democrático, do socialismo no Brasil. Na verdade, a referida expressão significa, apenas, a necessária junção dos mecanismos institucionais e dos valores do Estado Democrático e do Estado de Direito no seio de um verdadeiro Estado Constitucional. Parece claro, portanto, que a expressão: Estado Democrático de Direito, procura traduzir o maior dos desafios do Estado Constitucional contemporâneo: compatibilizar a idéia de Governo das Leis em sua plenitude (Estado de Direito e Rule of Law) com a de Governos dos Homens em sua plenitude (Democracia). Não é outra a interpretação de José Joaquim Gomes Canotilho ao afirmar que: O Estado constitucional é ‘mais’ do que Estado de direito. O elemento democrático não foi apenas introduzido para ‘travar’ o poder (to check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder (to legitimize State power). Se quisermos um Estado constitucional assente em fundamentos não metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no sistema jurídico; (2) outra é a da legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político. O Estado ‘impolítico’ do Estado de direito não dá resposta a este último problema: donde vem o poder. Só o princípio da soberania popular segundo o qual ‘todo o poder vem do povo’ assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado segundo procedimento juridicamente regulados serve de ‘charneira’ entre o ‘Estado de direito” e o ‘Estado democrático” possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de direito democrático.84 84 CANOTILHO, José Joaquim Gomes.op.cit., 1998. p.93-94. (grifos do autor) 64 Tal compatibilização, verdadeiro desafio (tanto teórico, quanto prático) do Constitucionalismo contemporâneo, deverá, ainda, atentar para o fato de que o Estado de Direito de que aqui se fala é o Estado Constitucional de Direito, e não apenas o Estado Legal de Direito, entendido o primeiro como o verdadeiro e efetivo primado da Lei como fonte de direito, como meio de regulação social, elaborada pelo Poder Legislativo, com a conseqüente submissão a ela do Poder Executivo (Administração) e do Poder Judiciário (juízes).85 Esse Estado Constitucional de Direito se caracteriza, basicamente, por possuir uma Constituição verdadeira e integralmente normativa (fonte vinculante de direito e de direitos) e globalmente suprema, subordinando a todos os poderes estatais, inclusive o Poder Legislativo. E mais: destronando a Lei como norma primaz do ordenamento, no mesmo momento em que entroniza a Constituição. Mas afirmar que a Constituição subordina a todos os Poderes estatais somente constituirá uma afirmativa verdadeira se, além da rigidez constitucional, for institucionalizado o controle de constitucionalidade, um procedimento efetivo de verificação da compatibilidade dos atos exarados pelos referidos poderes, inclusive as leis, com a Constituição, com a conseqüente limpeza do ordenamento jurídico mediante a expulsão do ato violador (anulação) ou o reconhecimento de que o vício do suposto ato determinou que o mesmo nunca tenha adquirido real validade (declaração de nulidade). Além disso, deverá também dispor de um mecanismo de defesa com vistas a garantir a obediência a seus comandos, objetivando conferir efetividade aos seus 85 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. São Paulo: Saraiva, 1988, p.4. 65 propósitos e dar concretude a seus princípios, visto que se descumpre a Constituição não apenas por ação, mas, igualmente, por uma atitude negativa dos que são incumbidos constitucionalmente para atuar e agir, com o propósito de tornar efetivos alguns preceitos da Carta Magna.86 De outro lado, o Estado Constitucional de Direito deverá ser associado com a Democracia, de modo que os governantes, limitados constitucionalmente (normatividade e supremacia constitucionais, assegurada pelo controle de constitucionalidade) e fiscais uns dos outros (divisão de poderes), sejam escolhidos e vigiados pelo destinatário do poder político, o que assegurará maior controle do governo e a sua, ao menos parcial, legitimação.87 Esta supremacia constitucional, no entanto, somente será verdadeira e efetiva se for imposta até mesmo contra as decisões tomadas mediante os procedimentos da democracia. Ou seja, os desejos da maioria do povo e/ou de seus representantes, devem sucumbir diante dos imperativos da supremacia constitucional, o que se operacionaliza através da rigidez constitucional e do controle de constitucionalidade. A estas idéias, agrega-se, nas sociedades ocidentais contemporâneas, entre as quais se encontra nosso país, o fato, sociologicamente verificável, da existência, na atualidade, de diversas ideologias, no sentido de macrovisões valorativas, na 86 VELOSO, Zeno, Controle jurisdicional de constitucionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p.247. 87 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., 1998. p.92: o autor explica que “O Estado constitucional é, assim, e em primeiro lugar, o Estado com uma constituição limitadora do poder através do império do direito. As idéias do ‘governo de leis e não de homens’, de ‘Estado submetido ao direito’, de ‘constituição como vinculação jurídica do poder’ foram, como vimos, tendencialmente realizadas por institutos como os de rule of law, due process of law, Rechsstaat, príncipe de la légalité. No entanto, alguma coisa faltava ao Estado de direito constitucional – a legitimidade democrática do poder.” 66 busca de um lugar ao sol no plano político, noção que pode ser sintetizada na expressão “pluralismo”.88 Assim, com base na normatividade constitucional, defesa de valores (limites e fins do Estado) e pluralismo político, constroem-se as principais concepções de constituição da atualidade, eventuais postulantes da institucionalização de um Estado Democrático de Direito, como o estabelecido pela CRFB/88. Na mesma medida em que a CRFB/88 abriga uma série de opções valorativas, estabelecedoras de limites e orientações teleológicas, ela abre um espaço do juridicamente possível para a livre decisão democrática, caracterizandose, claramente, como uma Constituição Pluralista, instituidora de um verdadeiro Estado Constitucional e Democrático de Direito, à qual cumpre o estabelecimento e a garantia efetiva de alguns valores essenciais, associados ao liberalismo político, e que estes precisam ser compatibilizados com o processo democrático de tomada de decisões políticas (natureza, relação com os valores e função da Constituição).89 O que se busca, na verdade, é compatibilizar a real normatividade e supremacia constitucional, com a constitucionalização de valores e com a Democracia, nem tão aberta que rejeite as conquistas do liberalismo (direitos e garantias individuais e garantias institucionais), nem tão fechada que esvazie a Democracia. Esta é a regra da Constituição Pluralista, na busca da construção normativa de um verdadeiro e efetivo Estado Democrático de Direito.90 Assim, tal tipo constitucional, inserido na tradição do liberalismo político, compreende que, ainda que seja a principal forma consensualmente admitida de 88 SILVA, José Afonso, 2006, op. cit., p.143. Ibidem, p.146. 90 Ibidem, p.119. 89 67 legitimação do poder político, a Democracia só é possível se são preservadas determinadas regras do jogo, dentre as quais se incluem diversos direitos liberais, e só tem valor se encontra limites na proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana. A partir desta identificação da CRFB/88 como Constituição tipicamente Pluralista permite-se construir, de modo controlado, toda uma pré-compreensão do processo de extração de sentido de qualquer de seus dispositivos, máxime daqueles concernentes ao Mandado de Injunção, alvo deste trabalho. 68 3 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 De início, é necessário fixar-se que todas as normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas dotadas de aplicabilidade e que desempenham uma determinada função no ordenamento, autorizando ao lesado pela sua violação exigir seu cumprimento ou a reparação pelo mal causado. Somente pode ser aplicada aquela norma que é eficaz, que possui todos os requisitos para produzir efeitos práticos na realidade concreta, que sai, enfim, da abstração de si mesma para surtir efeitos na vida do cidadão que busca pelo direito subjetivo. Para a elucidação das características de validade e eficácia das disposições constitucionais, este trabalho leva em consideração a sua realização prática, no sentido de obediência pelos destinatários, o que se convencionou denominar-se eficácia social. O conceito jurídico de validez está intrinsecamente vinculado à sua validez social. Com efeito, assinala Robert Alexy que: Si um sistema de normas o uma norma no tiene nínguna validez social, es decir, no logra la menor eficácia social, este sistema de normas o esta norma tampoco puede valer juridicamente. El concepto de validez jurídica incluye, pues, necesariamente también elementos de la validez social. Si tan solo incluye elementos de la validez social, se trata de um concepto positivista de la validez jurídica; si abarca también elementos de la validez moral, de um concepto no positivista de la validez jurídica.91 91 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Barcelona: Gedisa, 1997a. p.89. 69 Portanto, válida é a norma editada de acordo com o sistema jurídico a que pertence, ou seja, a norma coesa, não contraditória com as demais normas do sistema, e que observa os requisitos de natureza subjetiva e objetiva, e também deve exprimir a experiência social de um comportamento obrigatório, pois uma norma vale se for efetivamente obedecida, uma vez que é vivida como socialmente obrigatória pelo juiz e por outras autoridades jurídicas, ao aplicarem o Direito. O requisito essencial da eficácia social é a efetividade da aplicação jurídica, que se verifica quando a norma, com potencialidade para regular certas situações, é realmente aplicada a casos concretos.92 Portanto, a norma constitucional eficaz “seria a efetivamente obedecida.”93 Em suma, a norma constitucional deve ser um reflexo da situação fática existente, livre de qualquer oposição entre o social e o jurídico, o que poderia levá-la à sua ineficácia semântica por ausência de uma desejável ressonância na sociedade, por ser inaplicada pelo órgão competente.94 Todavia, nem toda norma jurídica válida é socialmente eficaz, no sentido de que sua força significativa realiza-se socialmente por meio de cumprimento voluntário e coercitivo. Assim, é imperioso precisar quais são os outros elementos que devem se vincular à norma em questão, no caso a constitucional, para que esta possa atingir aquele que é, certamente, o seu fim, ou seja, realizar-se concretamente, de modo que as condutas sociais sejam conformes à sua prescrição. 92 MENEGHELLI, Ruggero. Il problema dell’effettivit à nella teoria della validit à giuridica. Revista di Diritto Civile. Padova: CEDAM, 1964. p.56. 93 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972. passim. 94 CALERA, Nicolas Maria Lopez. La estructura lógico-real de la norma jurídica. Madrid: Istmo, 1969. p.26. 70 Parte desses elementos possui natureza social, econômica, política e/ou cultural, referente, portanto, a circunstâncias extranormativas, relativas à inexistência dos elementos fáticos de que depende a conduta (inexistência dos meios materiais necessários para cumpri-la), ou, à existência de uma profunda contrariedade dos destinatários a seu conteúdo ou a sua legitimidade, ou, ainda, à ineficiência do aparato estatal de fiscalização e punição. Todas estas questões são marcantemente relevantes para um profundo estudo da eficácia social das normas jurídicas e, em especial, da “força normativa”95 de uma Constituição, mas este trabalho não as abordará. Pretende-se, apenas, esclarecer quais as condições própria e exclusivamente jurídicas – estruturais ou normativas – de que depende a eficácia de uma norma jurídica válida. Primeiramente, devemos dizer que quando se fala de eficácia da norma jurídica é necessário fazer uma distinção entre a eficácia jurídico-formal, ocorrente no mundo das normas, onde impera o dever-ser, e eficácia social, que sucede no mundo social onde impera o ser.96 A primeira significa “que a norma está apta a produzir efeitos na ocorrência de situações concretas: mas já produz efeitos jurídicos na medida em que a sua simples edição resulta na revogação de todas as normas 95 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 1991, p.19. 96 ZAVASCKI, Teori Albino. Defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, 1995. p.83-96: entende este autor que “Na linguagem jurídica, quando se fala em eficácia das normas, é possível dar a essa expressão dois sentidos bem distintos. Vista como fenômeno puramente abstrato, eficácia é a aptidão da norma para gerar efeitos no mundo jurídico. Nesse sentido, ‘a eficácia da norma jurídica é a sua incidência’ e esta ‘se passa no mundo dos pensamentos’, ensina Pontes de Miranda. ‘Eficácia jurídica é a que se produz no mundo do direito, como decorrência dos fatos jurídicos, e não, segundo ele, a mudança que atua nas relações jurídicas’.Mas há um segundo sentido para a expressão: o que designa aptidão da norma jurídica para produzir efeitos na realidade social, ou seja, para produzir, concretamente, condutas sociais compatíveis com as determinações constantes do preceito normativo. Aqui, a eficácia é fenômeno que se passa, não no plano puramente formal, mas no mundo dos fatos, e por isso mesmo é denominada eficácia social ou efetividade.” 71 anteriores que com ela conflitam.”97 Por sua vez, “a eficácia social se verifica na hipótese de a norma vigente, isto é, com potencialidade para regular determinadas relações, ser efetivamente aplicada a casos concretos.”98 Assim, entre a validade, como simples pertença formal da norma a um dado ordenamento, e a eficácia social, como sua realização concreta, há uma etapa que a norma deve cumprir, ainda, no mundo das normas – dependentes de condições estruturais intrínsecas à norma e de condições normativas a ela impostas por outras normas – a que se convencionou chamar-se eficácia jurídico-formal. Uma norma, pelo simples fato de ser válida, não produz qualquer efeito, nem mesmo efeitos jurídico-formais. Para que esta venha a produzir algum efeito, é necessário que agregue mais uma característica, a qual costuma ser chamada de vigência. Vigência, então, é a qualidade da norma que significa que ela pode atuar para produzir efeitos concretos, já produzindo, no entanto, efeitos jurídicos.99 A vigência de uma norma depende do cumprimento de determinadas condições de caráter temporal que independem da própria norma, sendo-lhe “impostas” por outras normas.100 97 TEMER, Michel. op. cit., 2001. p.23. Ibidem. p.23. 99 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2001. p.193-194. 100 MACHADO, Hugo de Brito. Vigência e eficácia da Lei. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p.46/47: explica o autor que “A vigência decorre de determinação de norma integrante do ordenamento, que pode ser veiculada pela própria lei (por isso mesmo uma lei pode ser válida e não ser vigente). No período que vai da publicação até o início da vigência, a lei certamente ainda não é vigente, embora tenha validade técnico-formal.” E, mais adiante, que “Não se deve confundir, outrossim, a vigência com o período de vigência da lei, embora a palavra vigência também designe tal período. A vida, como atributo do homem, não se confunde com a sua duração, com a sua dimensão temporal.” 98 72 Em outras palavras, a vigência constitui verdadeira condição de possibilidade da eficácia jurídico-formal. Enquanto a existência da eficácia jurídico-formal de uma norma jurídica – e com ela, obviamente, a revogação de normas anteriores incompatíveis (salvo as superiores), a influência interpretativa oriunda da interrelação normativa e o bloqueio jurídico à criação de normas inferiores incompatíveis – decorrem, integralmente, de sua vigência, a possibilidade de efetiva aplicação da norma a casos concretos, vinculada a sua eficácia-social, depende de uma outra condição, resultante da própria estrutura e natureza da norma, costumeiramente, ainda, que imprecisamente, chamada de aplicabilidade.101 Ou, de forma mais clara, a aplicação de uma norma depende desta possuir eficácia jurídico-formal – sendo indispensável, assim, que a mesma possua vigência, a qual deriva de uma outra disposição normativa que ordene o diferimento ou imediatidade de seus efeitos – garantindo-se, desta forma, que qualquer norma vigente produzirá algum efeito, ainda que este seja apenas jurídico-formal, circunscrito ao mundo do dever-ser. Mas o tipo/grau do efeito produzido dependerá de uma outra condição, decorrente da estrutura analítica (interna e ontológica) da norma.102 Segundo sua estrutura, uma norma pode ser completa, no sentido de não necessitar qualquer regulamentação para sua aplicação a um caso concreto, ou 101 É evidente que a expressão aplicabilidade deveria se referir simplesmente à possibilidade (capacidade, potencialidade) de aplicação da norma, mas, geralmente, sob esse título estudam-se somente os diferentes níveis de aplicação consoante a estrutura e densidade da norma, deixando-se de lado o estudo das questões vinculadas à vigência (se a norma é imediatamente aplicável ou se sua aplicação é diferida em razão de outra norma). Para os fins deste trabalho, tratar-se-á do tema da aplicabilidade nesta acepção mais estrita do termo, visto ser a mais condizente com o típico uso que da expressão fazem os autores nacionais. 102 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2007. p.216. 73 incompleta, quando necessitará de algo mais, que poderá restringir-se, apenas, a uma regulamentação normativa, legislativa ou não, ou até mesmo de outras condições adicionais, extra-regulamentares, de modo a poder conformar uma situação social concreta. Como já assente neste trabalho, todas as normas constitucionais válidas e vigentes produzem efeitos jurídicos e poderão, em alguma medida, ser aplicadas. Assim, claro está que a possibilidade de aplicação de uma norma jurídica (válida, obviamente) será determinada, em termos absolutos, pela sua vigência, e, em termos relativos, pela sua estrutura e densidade normativa, o que se convencionou chamar de aplicabilidade. Diversas são as classificações das normas constitucionais quanto à aplicabilidade. José Afonso da Silva defende que as normas constitucionais quanto à sua capacidade de aplicação podem ser diretivas ou programáticas, quando dirigidas essencialmente ao legislador; normas preceptivas, obrigatórias, de aplicabilidade imediata e normas preceptivas, obrigatórias, mas não de aplicabilidade imediata.103 Reconhece, ainda, uma tríplice característica das normas constitucionais quanto à eficácia e aplicabilidade, discriminando-as em normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata (produzem – ou podem produzir – seus efeitos desde a entrada em vigor da Constituição); normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição ((igualmente produzem – ou podem produzir – todos os seus efeitos desde a entrada em vigor da Constituição, mas é permitido ao legislador ordinário que limite alguns dos seus 103 SILVA, José Afonso da. op. cit., 2007. p.80. 74 efeitos, sob cercas circunstâncias) e normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, porque: Só incidem totalmente sobre esses interesses após uma normatividade ulterior que lhes desenvolva a eficácia, conquanto tenham uma incidência reduzida e surtam outros efeitos não essenciais, ou melhor, não dirigidos aos valores-fins da norma, mas apenas a certos valores-meios e condicionantes.104 As normas de eficácia limitada, na classificação de Silva, abrangem as normas definidoras de princípios institutivos ou organizativos e as normas definidoras de princípios programáticos. As normas institutivas dependem de lei para constituir órgãos e instituições previstos pela Constituição, cuja feição definitiva depende da atuação do legislador ordinário. Por sua vez, as normas programáticas versam sobre matéria eminentemente ético-social, impondo aos órgãos estatais verdadeiros programas constitucionais de ação social, visando ao bem-comum. Outra classificação que merece ser lembrada é aquela proposta por Jorge Miranda, que se baseia na combinação de duas diferenciações assentadas em distintos aspectos normativos, a saber: a primeira entre normas programáticas e normas preceptivas, e a segunda, entre normas exeqüíveis por si mesmas e não exeqüíveis por si mesmas.105 Os dois critérios, ainda que diferentes, podem ser combinados para gerar uma classificação global, composta por três tipos diferentes de normas constitucionais quanto à aplicabilidade: 1) as preceptivas exeqüíveis por si mesmas; 104 105 SILVA, José Afonso da. op. cit., 2007. p.83. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1991. p.246. 75 2) as preceptivas não exeqüíveis por si mesmas; e, 3) as programáticas, que serão, sempre, não exeqüíveis por si mesmas. As normas completas, que dispensam qualquer regulamentação para que possam incidir em situações fáticas, são as exeqüíveis por si mesmas, enquanto que aquelas que necessitam dessa regulamentação para que possam obter eficácia social são as não exeqüíveis por si mesmas. Nas preceptivas exeqüíveis por si mesmas, nada é exigido do Estado (Legislador ou Administrador) para que esta possa se tornar aplicável. Ela é, como já dito, bastante em si para incidir, permitindo sua aplicação e, conseqüentemente, eficácia social. As preceptivas não exeqüíveis por si mesmas necessitam de regulamentação para que possam desenvolver-se com plenitude. Sem a regulamentação sua aplicação resta muito limitada, ainda que possa produzir efeitos jurídicos, com marcantes prejuízos para sua eficácia social. Mas, o essencial aqui é ressaltar que a regulamentação é suficiente, e que, uma vez realizada a regulamentação, a norma preceptiva não exeqüível por si mesma será capaz de aplicação integral. As normas programáticas, por sua vez, também dependem de regulamentação para que possam ser aplicadas, mas aqui, diferentemente das preceptivas não exeqüíveis por si mesmas, esta regulamentação não será suficiente. As normas programáticas distinguem-se, portanto, das preceptivas não exeqüíveis por si mesmas por Exigirem mais do que isso, exigirem não só a lei como providências administrativas e operações materiais. As normas não exeqüíveis por si mesmas preceptivas dependem apenas de factores jurídicos e de 76 decisões políticas; as normas programáticas dependem ainda (e sobretudo) de factores econômicos e sociais.106 3.1 A disposição do artigo 5º, § 1º, da Constituição de República Federativa do Brasil de 1988 A partir do que restou assentado acima, pode ser dito que toda norma constitucional é igualmente válida, mas que a sua eficácia social, como a de qualquer norma jurídica, dependerá de condições fáticas e normativas. Estas últimas associam-se ao que se convencionou chamar de eficácia jurídico-formal. Esta, por sua vez, dependerá do cumprimento pela norma de eventuais exigências de caráter temporal – termo ou circunstância – de modo que a mesma torne-se vigente, sem as quais restará impedido o desenvolvimento de sua eficácia jurídico-formal e, por conseguinte, sua aplicação a casos concretos. Contudo, ainda que toda norma vigente seja suscetível de aplicação, seus efeitos concretos dependerão, além das circunstâncias fáticas supra-referidas, de sua estrutura interna e densidade. Ou seja, se para ser aplicável, basta que a norma seja vigente, diferente serão seus efeitos de acordo com sua aplicabilidade, elemento que só depende da própria norma, sendo-lhe inerente, ontológico. Se a aplicabilidade de uma norma depende, como já se afirmou neste trabalho, exclusivamente de sua estrutura e densidade, o mesmo não se pode dizer de seus efeitos jurídico-formais, que podem ser diferidos por outra norma – suspensão da vigência – ou tornados imediatos. 106 MIRANDA, Jorge. op. cit., 1991. p.248. 77 É este, e apenas este, o sentido da disposição contida no artigo 5º, § 1º da CRFB/88. “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Portanto, a questão da “aplicação imediata” das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais é questão diversa da relativa à sua autoaplicabilidade. A norma que determina a “aplicação imediata” não pretende, o que não seria possível, como bem aponta Manoel Gonçalves Ferreira Filho107, influir na estrutura interna das normas instituidoras de direitos e garantias fundamentais. Pretende, isto sim, determinar a imediata (instantânea) aplicação das normas que os definem. A palavra “imediata”, aqui, quer significar direta, no sentido de independente de regulamentação, mas “neste mesmo instante” (o contrário de diferida, não de indireta). Frise-se, se uma norma constitucional é incompleta (não exeqüível por si mesma), ela não pode ser convertida em uma norma completa (exeqüível por si mesma), nem mesmo por meio de um processo de emenda (artigo 60), no qual ela seja alterada, mediante a inclusão de todos os elementos nela faltantes, pois, neste caso teríamos uma nova norma e não mais a norma antiga que se dizia não exeqüível por si mesma. Não é possível transformar uma norma incompleta em completa por força de uma disposição normativa, ainda que constitucional.108 Sendo assim, quando analisamos o que uma norma pode fazer para influir na aplicação de uma outra, sem 107 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. op. cit., 2001. p.84. Ibidem. p.87: o autor acredita que, “Ora, tornar auto-executável norma incompleta é contrariar a natureza das coisas.” 108 78 alterar o conteúdo desta outra disposição normativa a que se refere, somente duas alternativas reais existem: 1) a norma analisada dispensa a regulamentação legislativa, permitindo a regulamentação judicial, administrativa ou convencional, o que não transforma a natureza da norma tornando-a diretamente aplicável; ou, 2) a norma analisada determina que, ainda que não exeqüível por si mesma, a norma deve ser aplicada imediatamente, no sentido de neste mesmo instante. No primeiro caso, uma norma, a que tem por fim dispensar a regulamentação legislativa, possibilitará a eficácia social da outra norma, a incompleta, sem alterar sua aplicabilidade. Mas a aplicação não será, de nenhum modo, imediata, no sentido de direta, ou seja, sem mediação normativa. Nesta hipótese, a aplicação também seria intermediada por uma regulamentação, contudo, haveria uma diferença, visto que esta regulamentação teria um criador diferente do usual (o Legislador), a saber: o Poder Judiciário ou o Poder Executivo. Esta interpretação é, portanto, incompatível com o texto do parágrafo primeiro do artigo 5º da CRFB/88, visto que nesta alternativa interpretativa a noção de “aplicação imediata”, refletida no texto do referido dispositivo constitucional, carece de qualquer sentido, pois o efeito da norma imaginada por esta hipótese interpretativa nada tem a ver com imediatidade, no sentido de sem intermediação regulamentar ou de instantaneidade (sentido da segunda hipótese interpretativa).109 Resta-nos, portanto, avaliar a segunda alternativa interpretativa. Aquela que determina a aplicação imediata, instantânea, da norma constitucional, ou seja, determina que a norma afetada seja aplicada sem qualquer delonga (passagem temporal). Neste caso, a norma analisada atingiria, diretamente, a eficácia jurídica 109 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit. p.281. 79 da norma incompleta a que se refere, determinando sua vigência instantânea, ainda que respeitando seu limitado grau de aplicabilidade. Parece que a segunda interpretação é a única que confere um sentido possível para a disposição ora analisada (artigo 5º, § 1º, da CRFB/88), dando significado para a expressão “aplicação imediata”. Segundo esta interpretação aplicação imediata significa uma determinação para que os aplicadores do direito confiram aplicação às normas definidoras de direitos fundamentais desde a promulgação da Constituição, instantaneamente.110 3.2 Breves notas sobre os direitos constitucionais É somente com o advento do Estado Constitucional de Direito que alguns dos direitos de liberdade, em razão de sua fundamental importância, ganharam guarida nas Constituições normativas e supremas, podendo ser assegurados, inclusive, contra o Legislador, por meio de limites materiais à sua ação (garantias-barreiras), da jurisdição constitucional das liberdades (garantias procedimentais) e do adequado arranjo das instituições políticas (garantias institucionais). Apenas quando se tornaram verdadeiros direitos subjetivos constitucionais, as liberdades protegidas puderam gozar de proteção geral e absoluta. Trata-se, agora, de direitos que são liberdades e que residem na Constituição. Verdadeiros direitosliberdades constitucionais. Se existem direitos constitucionais previstos em normas que são completas e que dispensam regulamentação para o pleno exercício dos direitos que conferem, 110 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit. p.283-284. (grifo nosso). 80 existem outros, e não são poucos, que necessitam de tal regulamentação, que será suficiente para viabilizá-los. No entanto, existem, também, direitos constitucionais previstos em normas programáticas que exigem para a viabilização do exercício dos direitos que estatuem mais do que regulamentações. Exigem, sim, regulamentações, mas estas não são suficientes para viabilizar o seu exercício, pois elas exigem, por sua vez, atos administrativos materiais de prestação, nos quais o Estado faz ou dá algo para o titular do direito. Estes são os, assim denominados, direitos sociais111, uma subespécie dos direitos a ações positivas fáticas. Tais direitos, chamados de “direitos sociais”, são conceituados por Robert Alexy como: “direitos do indivíduo frente ao Estado a algo que – se o indivíduo possuísse meios financeiros suficientes e se encontrasse no mercado oferta suficiente – poderia obtê-lo, também, de particulares.”112 Realizados esses esclarecimentos, é possível, agora, se aproximar um pouco mais da melhor interpretação da disposição que estabelece o Mandado de Injunção, visto que os direitos que ele tutela devem, de acordo com a expressa disposição do artigo 5º, LXXI, estar com a viabilidade de exercício obstaculizada pela inexistência de norma regulamentadora, não carecendo de nada menos que esta regulamentação, nem, tampouco, nada a mais. 111 O nome, como se vê, é impróprio, visto que faz parecer que os outros direitos existentes não são sociais, como se o Direito, e, por conseguinte, os direitos não fossem sempre “sociais”. 112 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1997b. p.482. (Tradução livre). 81 3.3 Lacunas legais e omissões inconstitucionais Na medida em que alguns direitos constitucionais necessitam de regulamentação infraconstitucional para que seu exercício seja viável, é necessário tratar da possibilidade de inexistência desta regulamentação, isto é, da ausência de uma norma regulamentadora que deveria existir para viabilizar o exercício de um direito constitucional. A existência de lacunas é antes uma característica inerente ao próprio ordenamento jurídico de um Estado de Direito, em razão da impossibilidade de se prever todas as situações faticamente possíveis, inclusive as futuras, do que um vício imputável ao Legislador. Pelo contrário, o Legislador, no seio da teoria das lacunas, é visto como aquele que, na inevitável situação da “identificação” de uma lacuna, pelo juiz, confere a este último a competência para colmatá-la, e fornece-lhe as pautas que deverão ser seguidas na ação integradora.113 As lacunas podem ser pontualmente eliminadas, na medida em que são descobertas, por regulamentações, caso a caso, elaboradas pelos juízes com o consentimento do Legislador, que cria e regula os poderes judiciais de preenchimento das lacunas – artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e artigos 126 e 127 do Código de Processo Civil. Entretanto, sempre e de forma inevitável, o ordenamento será suscetível ao surgimento de novas lacunas.114 Ocorre que essa antiga visão do Legislador, da lei e do papel do juiz como mero aplicador, por meio da subsunção, da lei ao caso concreto, não é mais aplicável ao Estado Constitucional e Democrático de Direito contemporâneo. 113 114 DINIZ, Maria Helena. op. cit. p.297. MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. Mandado de injunção. São Paulo: Atlas, 2004, p. 119. 82 A idéia de um poder legislativo infalível, supostamente porta-voz da vontade geral e soberano, vê-se substituída pela de um poder legislativo falível e subordinado à Constituição, obrigado, portanto, ao seu respeito e à sua realização. É, justamente, desta idéia de Constituição normativa e suprema, capaz de impor-se até ao poder mais democraticamente legitimado dentre os poderes estatais, que brota a noção de omissão inconstitucional. A omissão inconstitucional é a viciada inação daquele Poder constituído (qualquer dos poderes do Estado, inclusive o Legislativo) que está vinculado à realização de alguma atividade constitucionalmente prevista como obrigatória. É óbvio que nem toda omissão (não-fazer) estatal é inconstitucional; apenas aquela que implica no não cumprimento de um dever constitucional de agir.115 O problema central emerge quando esta inação viciada deve ser imputada ao Poder Legislativo por não ter criado uma lei. Ainda que tenham sido criados mecanismos de controle da ação parlamentar pelo Poder Judiciário ou por um órgão/poder específico (Tribunal Constitucional) inexiste uma transferência de poder ilimitado. Ou seja, se de um lado, há um descrédito em relação ao Poder Legislativo capaz de impor-lhe omissões e atuações, não há, de outra parte, em nenhum lugar, um poder que tenha se apropriado desta legitimidade perdida. Em função disto, ainda que as modernas sociedades ocidentais, em geral, admitam o controle jurisdicional das ações comissivas do poder legislativo que não observam seus limites constitucionais, poucas controlam-no quando sua inobservância implica uma omissão. E mesmo aquelas que o fazem, como por 115 QUARESMA, Regina. O mandado de injunção e a ação de inconstitucionalidade por omissão. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 58. 83 exemplo Portugal, Alemanha e Brasil, procuram alcançar o delicado equilíbrio entre a imposição da Constituição e a democracia, evitando o “Governo dos Juízes”116, através de decisões que possuem apenas o efeito de “conselhos” dirigidos ao poder legislativo. Com base na vetusta idéia de que os juízes não criam direito, firmou-se um equivocado entendimento de que nos casos de controle de constitucionalidade por omissão, não se permite ao órgão jurisdicional, que dele está encarregado, a produção de uma norma capaz de suprir a ausência de regulamentação. Este dogma decorreu de uma visão distorcida da doutrina do Estado de Direito e da Separação de Poderes, proveniente de motivações ideológicas e normativas. Mas, como se sabe, a moderna Teoria do Direito, de forma unânime, vem repudiando tal tese.117 A atividade de interpretação do direito, inclusive a judicial, constitui-se sempre como um processo criativo, mas não arbitrário. Como diz metaforicamente Diego Selhane Perez: O juiz interpreta uma disposição normativa de forma tão criativa quanto um pianista interpreta uma partitura; enquanto a criatividade de um dá vida à música, a do outro dá vida ao direito, mas ambas encontram seus limites no conteúdo objetivo do texto, normativo e musical, interpretado.118 Assiste razão, portanto, a Zeno Veloso, quando afirma que considera de máxima importância ressaltar que os métodos teleológicos e sociológicos devem ser 116 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juizes. São Paulo: Saraiva, 2007. p.94. VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p.260. 118 PEREZ, Diego Selhane. Aspectos constitucionais do mandado de injunção. Dissertação. USP, São Paulo. 2000. p.158. 117 84 utilizados pelo intérprete constitucional, visto que só há uma verdadeira interpretação da Constituição se estiver baseada e for dirigida por uma ordem axiológica.119 A solução dependerá da criação de instrumentos constitucionais que possibilitem ao Poder Judiciário preencher essas lacunas, como o Mandado de Injunção, objeto deste estudo. 3.4 Possibilidades e limites da concretização judicial de normas constitucionais no Estado Constitucional e Democrático de Direito A questão que se apresenta não é se a atividade jurisdicional será ou não criativa no Estado Democrático de Direito, mas o quão criativa ela será, dentro de que limites e como se pode controlar essa criatividade. A mesma criatividade que o controle judicial de atos positivos inconstitucionais (inconstitucionalidade por ação) envolve existe no controle judicial de constitucionalidade de omissões inconstitucionais. No entanto, enquanto na primeira é possível solucionar o vício com a declaração de nulidade do ato violador, nesta última a solução do vício de inconstitucionalidade dependerá da realização de atos positivos de natureza material ou normativa, e que encontra seu limite na chamada “reserva do possível”, que dispõe que o juiz, ou mesmo o Poder Público, não pode efetivar ou desenvolver direitos, sem que existam meios materiais para tanto.120 119 PEREZ, Diego Selhane. op. cit. p.260. (grifo no original). THEODORO, Marcelo Antonio. Direitos Fundamentais e sua concretização. Curitiba: Juruá, 2005. p.119-120. 120 85 A solução de omissões de regulamentação de normas constitucionais é questão, no ordenamento brasileiro, inteiramente inédito.121 O desafio para a criatividade jurisdicional incrementa-se, e muito, na medida em que a concretização de preceitos constitucionais deveria, para solucionar a omissão normativa inconstitucional, dar ensejo à criação da regulamentação infraconstitucional deste preceito (concretização regulamentadora). Como já visto neste trabalho, somente as normas constitucionais não exeqüíveis por si mesmas necessitam de regulamentação para obter plena possibilidade de eficácia social. Dentre as normas constitucionais não exeqüíveis por si mesmas, foi visto que as programáticas geralmente dependem de uma regulamentação maior que a regulamentação necessitada por normas preceptivas não exeqüíveis por si mesmas. Além dessas dificuldades, referentes à estrutura das normas, outras se impõem à concretização judicial de normas programáticas, como a escassez de recursos e a necessidade de planejamento para a execução de políticas públicas. Tais dificuldades incrementam-se quando relacionadas com normas programáticas definidoras de direitos sociais, visto que a efetivação destes somente se realizará mediante a realização de atos materiais onerosos, o mais das vezes prestações de serviços públicos.122 Essa concretização dos direitos fundamentais no que se refere a prestações materiais, encontra seu limite na chamada “reserva do possível”123, no sentido de 121 POLETTI, Ronaldo. Controle da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.216. 122 THEODORO, Marcelo Antonio. Direitos fundamentais e sua concretização. Curitiba: Juruá, 2005. p.119. 123 Ibidem. p.119. 86 que o juiz, ou mesmo o Poder Público, não pode efetivar ou desenvolver direitos, sem que existam meios materiais para tanto. A aferição desta disponibilidade é feita em face do orçamento. Todavia, essa barreira orçamentária não pode ser absoluta, intransponível. O esforço concretizador do intérprete não pode ser fadado ao fracasso em face de uma lei orçamentária, que nem sempre é justa.124 É bastante provável que, se inexiste regulamentação suficiente para a norma programática que define o direito social cuja concretização se espera do Poder Judiciário, tampouco existirá a previsão orçamentária para gastos públicos envolvendo a realização concreta de atos administrativos materiais capazes de configurar a prestação de serviços públicos bastantes para que todos possam usufruir dito direito social. Do exposto, evidencia-se que o Poder Judiciário não detém os meios técnicos, quantitativos e qualitativos, adequados para a formulação das regulamentações necessárias à viabilização de direitos definidos em normas programáticas. Isto ocorre porque não tem como aferir as peculiares condições fáticas atuais, situação global de onde partem as políticas públicas, ou todo o complexo de diferentes políticas alternativas, as vantagens e desvantagens de cada uma destas políticas públicas, etc. Todas essas questões demonstram a inaptidão técnica do Poder Judiciário, tal qual estruturado na CRFB/88, para realizar a “concretização regulamentadora” de normas programáticas, definidoras ou não de direitos sociais.125 124 THEODORO, Marcelo Antonio. op. cit. p.120. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.113-114. 125 87 No entanto, nada do que se afirmou acima atinge diretamente a concretização regulamentadora de normas constitucionais preceptivas não exeqüíveis por si mesmas, quer por que estas possuem maior densidade normativa e estrutura condicional, quer por que não envolvem uma terceira instância político-material. O Poder Judiciário, de há muito, tem concretizado esta espécie de normas e, inclusive, grande parte da regulamentação legislativa hoje existente dos direitosliberdades (propriedade, liberdade de associação, p.ex.) e dos direitos políticos, definidos em normas preceptivas não exeqüíveis por si mesmas, inspira-se em decisões jurisprudenciais consolidadas. 3.5 Criação judicial do direito Ainda que a decisão judicial possa se compatibilizar com todos os problemas acima citados deve-se ainda ser enfrentado dois problemas adicionais: a) como evitar que o arbítrio subjetivista de cada juiz venha a determinar o conteúdo da regulamentação; e, b) de que modo impedir que as decisões judiciais, tipicamente caso a caso, impliquem na não-uniformidade de tratamento de situações fáticas equivalentes. O juiz permanecerá submetido ao direito e sua conduta não poderá ser considerada arbitrária quando, submetido diretamente à Constituição, interpretar de forma concretizadora126 uma disposição constitucional preceptiva e regulamentá-la a fim de viabilizar o exercício de um direito nela estabelecido. Para isso, deverá recorrer aos ensinamentos da hermenêutica, à tradição da cultura jurídico- 126 THEODORO, Marcelo Antonio. op. cit. p.56-57. 88 constitucional, à analogia, às experiências de sucesso de ordenamentos jurídicos semelhantes e, em especial, ao sistema constitucional em que se insere a norma a ser concretizada e às suas finalidades valorativas. Ou seja, o juiz deverá encontrar e justificar suas respostas de modo racional, razoável, honesto, claro e público, observando as construções legais e jurisprudenciais relevantes, principalmente as exigências ético-valorativas, associadas ao Estado Constitucional e Democrático de Direito. Enquanto o julgador atuar de acordo com os princípios que informam esse Estado, especialmente o dever de justificar pública, clara e razoavelmente suas decisões, ele terá de se pautar por princípios universais em seus julgamentos, o que gerará pleno respeito e observância ao princípio da igualdade. Em suma, a concretização judicial de normas constitucionais, mesmo quando envolva a regulamentação provisória de normas constitucionais preceptivas, pode ser compatibilizada com os princípios fundamentais do Estado Constitucional e Democrático de Direito, desde que se limitem a normas que definem direitosliberdades, suas garantias e direitos políticos.127 Em síntese, podemos concluir este estudo preliminar acerca dos conceitos enfocados, tecendo o conteúdo essencial de cada um. Norma jurídica válida é aquela produzida em conformidade com os ditames do ordenamento jurídico. A eficácia jurídica identifica-se com a aptidão de produzir efeitos normativos no âmbito da ordem jurídica, ou seja, a qualidade da norma de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos. A eficácia social, por seu turno, corresponde à idéia de a norma estar sendo efetivamente observada e respeitada no 127 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. op. cit., 2006. p.121. 89 mundo dos fatos. A aplicabilidade corresponde à noção de realizabilidade normativa ou executoriedade das diferentes normas em vigor, isto é, a aplicabilidade está relacionada com a possibilidade de aplicação da norma e, nesse sentido, identificase com o conceito de eficácia jurídica, uma vez que a eficácia social está relacionada com o cumprimento efetivo da norma no mundo fático. Para que os direitos e garantias fundamentais tenham não só eficácia jurídica, mas, também, eficácia social, a própria Constituição Federal prevê mecanismos para o seu cumprimento,128 dentre eles os chamados remédios constitucionais, em que se destaca o Mandado de Injunção, objeto deste estudo. 128 NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. op. cit. p.4. 90 4 DA DECISÃO CONCESSIVA DO MANDADO DE INJUNÇÃO 4.1 Mandado de Injunção e efetividade do processo Desde o início deste trabalho, firmou-se a posição de que o Mandado de Injunção é uma ação judicial, tipificada em nível constitucional, destinada à tutela de direitos subjetivos; um remédio constitucional, portanto. Assim, não só a necessidade hermenêutica de garantir a uma disposição constitucional a máxima eficácia possível, mas, também, as noções de instrumentalidade do processo e efetividade da atividade jurisdicional, orientadas à proteção dos direitos subjetivos, determinam que as decisões procedentes em processo de Mandado de Injunção sejam, o mais possível, aptas à proteção dos direitos violados pela ausência de regulamentação infraconstitucional. Do exposto, passa-se à análise crítica das diferentes propostas doutrinárias e jurisprudenciais acerca da eficácia e efeitos da decisão concessiva do Mandado de Injunção, tendo sempre em mente a garantia de máxima efetividade possível para este instrumento. Doutrinariamente129, existem três teses a respeito dos efeitos da decisão proferida em sede de Mandado de Injunção. A primeira sustenta que, ao conceder o Mandado de Injunção, cabe ao Poder Judiciário elaborar a norma regulamentadora faltante, suprindo, assim, a omissão do legislador. A segunda assevera que, concedida a injunção, caberia ao Judiciário declarar inconstitucional a omissão e dar ciência ao órgão competente para a adoção das providências necessárias à 129 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2000. p.151. 91 realização da norma constitucional. Finalmente, a terceira corrente entende que tal decisão visa tornar viável, no caso concreto, o exercício de direito, liberdade ou prerrogativa constitucional que se encontrar obstado por falta de norma regulamentadora. Hodiernamente, já não se pode falar em separação dogmática e absoluta de poderes e, sim, em interdependência. A primeira corrente deve ser vista, portanto, não pela ótica da pretensa usurpação da função legislativa pelo Poder Judiciário e, sim, de exercício de uma atribuição conferida constitucionalmente. E como não é o caso de atividade legislativa stricto sensu, de criação de norma geral e abstrata, o Supremo Tribunal Federal, nessa hipótese, suscitaria um pseudoproblema, não podendo ser acolhida.130 A segunda corrente também não poderia ser acolhida, sob pena de se atribuir ao Mandado de Injunção a mesma finalidade da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, resultando em dois instrumentos jurídicos com igual objetivo. Na interpretação do Supremo Tribunal Federal131, todavia, o Mandado de Injunção é ação que visa obter do Poder Judiciário a declaração de inconstitucionalidade por omissão, desde que caracterizado o silêncio inconstitucional de quem deveria editar a norma faltante, com a finalidade de que se lhe dê ciência dessa declaração para que adote as providências necessárias, de cuja interpretação o STJ não compartilha, entendendo que o Mandado de Injunção destina-se a suprir, via judicial, lacunas legislativas na estrutura normativa.132 130 MACHADO, Carlos Augusto Alcântara, op. cit., p.124. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 219-3. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 19 mai. 1995. p.13989. 132 Idem. MI n. 15. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 4 set. 1989. p.14029. 131 92 Frise-se que no julgamento do MI 232-1, impetrado por entidade beneficente de assistência social, o Excelso Pretório adotou outro precedente, rompendo com a orientação que vinha mantendo, declarando o estado de mora do Congresso Nacional e fixando-lhe prazo de seis meses para que desse efetivação ao disposto no artigo 195, § 7º da Carta de 1988, o qual determina a isenção de contribuição para seguridade social das entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei, sob pena de, vencido o prazo sem legislar, o impetrante passaria a gozar da imunidade requerida.133 Com isso, o Supremo Tribunal Federal converteu uma norma constitucional de eficácia limitada (porque dependente de norma infraconstitucional regulamentadora) em norma de eficácia plena, considerando o Mandado de Injunção instrumento idôneo para se conseguir a regulamentação de qualquer direito previsto na Constituição, e não apenas os direitos e garantias fundamentais constantes de seu Título II. Digno de registro, igualmente, foi o julgamento do MI 283-5, em que se pretendia tornar viável o exercício do direito previsto no artigo 8º, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, direito este dos cidadãos que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica, em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica de nº S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e a de número S-285-GM5, e que faziam jus à reparação de natureza econômica, na forma que dispusesse a lei de iniciativa do Congresso Nacional e a entrar em vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição. No caso, levando-se em conta a mora inconstitucional do Congresso que deixou de elaborar a norma regulamentadora no prazo fixado, o Supremo não 133 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 232-1. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 27 mar. 1992. p.3800. 93 apenas declarou a demora do legislador, comunicando-a ao Congresso Nacional e à Presidência da República, como também fixou o prazo de quarenta e cinco dias, acrescido de quinze dias para a sanção presidencial, a fim de que se ultimasse o processo legislativo da lei reclamada. Além disso, fixou também que, se ultrapassado tal prazo, sem que fosse promulgada a lei, ficaria reconhecida ao impetrante a faculdade de obter contra a União, pela via processual adequada, sentença líquida de condenação à reparação constitucional devida pelas perdas e danos que fossem arbitradas, observando, ainda, que, uma vez prolatada a condenação, a superveniência de lei não prejudicaria a coisa julgada, o que, contudo, não impediria o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, na medida em que lhe fosse mais favorável.134 Assim, em decisão de natureza declaratória, o Supremo Tribunal Federal reconheceu ao impetrante a faculdade de obter contra a União, pela via processual adequada, sentença líquida de condenação à reparação constitucional devida. Conquanto as decisões do MI 232-1 e do MI 283-5 relevem um avanço na orientação jurisprudencial do Supremo, ainda não exprimem toda a potencialidade do Mandado de Injunção, que permite ao próprio Poder Judiciário assegurar ao impetrante o exercício imediato de direitos, liberdades e prerrogativas constitucionais, no caso concreto. 134 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 283-5. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 14 nov. 1991. p.16355: Posteriormente, em Mandado de Injunção impetrado com base na mesma disposição constitucional, o Supremo Tribunal Federal assim decidiu: “Reconhecido o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional – único destinatário do comando para satisfazer, no caso, a prestação legislativa reclamada – e considerando que, embora previamente cientificado no Mandado de Injunção n. 283, absteve-se de adimplir a obrigação que lhe foi constitucionalmente imposta, tornase prescindível nova comunicação à instituição parlamentar, assegurando-se aos impetrantes, desde logo, a possibilidade de ajuizarem, imediatamente, nos termos do direito comum ou ordinário, a ação de reparação de natureza econômica instituída em seu favor pelo preceito transitório.” (MI n. 284-3. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 26 jun. 1992. p.10103). 94 No que tange à terceira corrente interpretativa do Mandado de Injunção, que advoga a tese de que o Poder Judiciário, ao conceder a injunção, deve tornar viável, no caso concreto, o exercício do direito, da liberdade ou prerrogativa constitucional, que se encontre obstado por faltar norma regulamentadora, esta parece ser a fórmula mais adequada ao novo instituto, permitindo viabilizar um direito subjetivo constitucional, cabendo ao titular deste direito, pela via da injunction, postular ao Poder Judiciário a edição de decisão que venha a suprir tal omissão. Nesse sentido, afirma Celso Agrícola Barbi que “a fórmula que parece mais adequada é a de o juiz criar, para o caso concreto do requerente do Mandado de Injunção, uma norma especial, ou adotar uma medida capaz de proteger o direito do autor da demanda.”135 Na mesma linha de raciocínio, observa Sérgio Bermudes: Através do Mandado de Injunção, o juiz não apenas edita a norma regulamentadora, como também faz atuar sua vontade concreta. Em outras palavras, e sinteticamente, o juiz compõe a lide; resolve o conflito, assegurando, desde logo, o direito, a liberdade, a prerrogativa, cujo exercício a falta de norma regulamentadora tornava inviável. Não teria sentido o juiz apenas enunciar a norma faltante, quando a injunção se insere no sistema constitucional de garantia de direitos.136 Em suma, no Mandado de Injunção, ao enfrentar as lacunas inconstitucionais, cabe ao Poder Judiciário criar normas jurídicas individuais válidas para o caso concreto, colmatando essas lacunas, sem contudo eliminá-las do mundo jurídico, cuja tarefa pertence ao Poder Legislativo, quando da edição da norma jurídica geral e abstrata faltante. Essa posição, como se vê, esvazia aquela tese proposta por 135 136 BARBI, Celso Agrícola. Mandado de injunção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p.439. BERMUDES, Sérgio. op. cit. p.110. 95 algumas correntes doutrinárias, dentre elas Kelsen e sua Teoria Pura do Direito, que sustenta ser o sistema jurídico fechado, completo e sem lacunas, “em que tudo o que não está proibido está permitido.”137 Ao se defrontar com a ausência de norma regulamentadora que torne viável o exercício de direitos e liberdades constitucionais, ao julgar o Mandado de Injunção, deve o Juiz descobrir normas implícitas do sistema jurídico e recorrer às demais fontes do ordenamento, como a analogia, os princípios gerais do Direito, os costumes e a equidade, no sentido de, colmatando a lacuna, concretizar o exercício de direito constitucional. Deve, portanto, abeberar-se do que dispõe o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que estabelece: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Na mesma linha, o artigo 5º do referido diploma determina: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”138 Permite-se, assim, que o Poder Judiciário possa exercer uma interpretação criativa, construindo, à luz do sistema jurídico, uma solução satisfatória, de sorte a 137 DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. São Paulo: Saraiva, 2007. p.299: Sobre o tema, a autora afirma que: “O direito apresenta lacunas, porém é, concomitantemente, sem lacunas, o que poderia parecer paradoxal se se captar o direito estaticamente. É ele lacunoso, mas sem lacunas, porque o seu próprio dinamismo apresenta solução para qualquer caso sub judice, dada pelo Poder Judiciário ou Legislativo. O próprio direito supre seus espaços vazios, mediante a aplicação e criação de normas. De forma que o sistema jurídico não é completo, mas completável.” 138 CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre derecho y lenguage. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1990. p.49-50: sobre o tema, observa observa o autor que: “Si los jueces no quierem resolver a ciegas o em forma arbitraria los casos de la penumbra, nos les basta con conocer a fondo las normas jurídicas y sus fuentes, ni saber armar com ellas estructuras coherentes. Tienen que poseer, además, uma adecuada información de hechos sobre ciertos aspectos básicos de la vida de la comunidad a que pertenecen, um conocimiento serio de las consecuencias probables de sus decisiones y una inteligencia alerta para clarificar cuestiones valorativas y dar buenas razones em apoyo de las pautas no especificamente jurídicas en que, muchas veces, tienen que buscar fundamento. Algo semejante se requiere de los juristas que no se resignem a ser meros espectadores de um espetáculo que no entienden. De lo contrario, ni unos ni otros estarán en condiciones de cumplir una función social verdaderamente útil.” 96 dar concretude ao direito constitucional do impetrante. Saliente-se que é a própria Carta constitucional que exige do Judiciário mais criatividade na função jurisdicional, a fim de viabilizar os direitos constitucionais fundamentais, suprindo as lacunas que poderiam obstaculizar a aplicabilidade da norma constitucional. Pondera, todavia, José Afonso da Silva, que isso não quer dizer que o juiz está autorizado a legislar, mas se limitará a explicitar o direito para o caso concreto, ou seja, decidirá o caso explicitando o direito esboçado na norma constitucional, em favor do impetrante, “nos termos normativos por ele supostos, mentalizados (como se fora legislador), mas não formulará senão no estabelecimento das condições indispensáveis à correta aplicação da norma constitucional em causa.”139 Trata-se, à evidência, de verdadeiro dever jurisdicional inescusável, que se fundamenta no princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, bem como no princípio da proibição do non liquet, que impõe a obrigatoriedade da decisão, cuja desatenção implica ofensa a todo sistema de comandos. Na ação direta de inconstitucionalidade por omissão, é escusável a não edição da “decisão normativa” quando o dever de legislar não puder ser suprido senão pelo próprio legislador. No Mandado de Injunção, entretanto, não se admite qualquer escusa, haja vista que neste o objeto é o direito, a liberdade ou a prerrogativa constitucional inviabilizados por faltar norma regulamentadora. Adverte Michel Temer que, na apreciação do Mandado de Injunção, cabe ao juiz verificar se há os contornos jurídicos mínimos autorizadores do conhecimento e 139 SILVA, José Afonso da. op. cit., 1989. p.45. 97 da concessão da injunção, o que implica na idéia de discricionariedade dos Tribunais na apreciação do Mandado de Injunção.140 Ressalte-se que o Mandado de Injunção pode ter por objeto qualquer direito constitucional não regulamentado, inclusive os direitos sociais, desde que inviabilizados por ausência de norma regulamentadora. A título de exemplo, podemos citar o artigo 5º, inciso VII da Constituição, que assegura, “nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”. Nesse caso, atendidos os pressupostos de cabimento da injunção, caberia ao órgão jurisdicional competente, na ausência da lei, proferir decisão no sentido de que as entidades civis e militares determinassem locais e horas destinadas à assistência religiosa dos internados. Com isso, se afastaria qualquer recalcitrância do órgão competente que pretendesse argüir a inexistência de lei para não satisfazer aquele comando constitucional. Interessante refletir, mais uma vez, quanto à possibilidade de se impetrar Mandado de Injunção na hipótese de omissão legislativa parcial. No exemplo dado, se a lei elaborada fosse destinada apenas às entidades civis, sem qualquer menção às entidades militares, pergunta-se: seria cabível o Mandado de Injunção? Ou seja, é admissível Mandado de Injunção em caso de omissão legislativa parcial, da qual eventualmente decorra ofensa ao princípio da igualdade? Entende-se que na hipótese seria cabível Mandado de Injunção justamente para estender a disciplina legal existente também às entidades militares, viabilizando o exercício do direito constitucional bloqueado por falta de norma que o regulamente. Em outras palavras, admissível é a impetração de Mandado de Injunção em face de omissão parcial, seja 140 TEMER, Michel. A nova feição do mandado de injunção. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, nov. 1993. p.104. 98 pelo atendimento defeituoso do dever constitucional de legislar, seja pelo estabelecimento de discriminação ofensiva ao princípio da isonomia.141 Com relação àqueles que entendem que o Mandado de Injunção estaria indevidamente transferindo o encargo de legislar para outro poder, distorcendo a concepção da tripartição dos Poderes, pondera-se que, na verdade, não existe tal transferência, posto que não cabe ao Judiciário elaborar normas gerais e abstratas, mas tão-somente tornar viável o exercício de direitos e liberdades constitucionais no caso concreto, em que o Poder Judiciário assume, embora em dimensões mais alargadas, sua função típica e própria, qual seja, a função jurisdicional, respondendo satisfatoriamente ao caso concreto. O princípio da separação dos poderes deve, assim, ser entendido à luz da sistemática de “freios e contrapesos”, ou checks and balances, em que um órgão do Poder há de ser fiscalizado e controlado por um órgão de outro Poder, nos moldes propostos por Montesquieu: “Todo homem que tem o poder é levado a abusar dele. Para que não possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o Poder freie o Poder.” 142 Logo, no Mandado de Injunção, a omissão do órgão 141 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 58-1. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 12 set. 2003. p.4580: Com relação à omissão legislativa parcial, pondera o Ministro Celso de Mello: “Impõese refletir, no entanto, em tema de omissão parcial, sobre as possíveis soluções jurídicas que a questão da exclusão de benefício, com ofensa ao princípio da isonomia, tem sugerido no plano do direito comparado: a) extensão dos benefícios ou vantagens às categorias ou grupos inconstitucionalmente deles excluídos; b) supressão dos benefícios ou vantagens que foram indevidamente concedidos a terceiros; c) reconhecimento da existência de uma situação ainda constitucional (situação constitucional imperfeita), ensejando-se ao Poder Público a edição, em tempo razoável, de lei restabelecedora do dever de integral obediência ao princípio da igualdade, sob pena de progressiva inconstitucionalização do ato estatal existente, porém insuficiente e incompleto.” No entanto, tudo leva a crer que o Supremo Tribunal Federal não venha a acolher o fenômeno da omissão legislativa parcial, em face do precedente judicial em que firmou entendimento de que “o Mandado de Injunção não é meio de corrigir ilegalidade nem inconstitucionalidade” (MI n. 81-6. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 25 mai. 1990. p.4603.), tendo em vista que seu pressuposto é a falta de norma regulamentadora. 142 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Do espírito das leis. São Paulo: Saraiva, 1987. p.198. 99 Legislativo é contida e controlada pelo órgão Judiciário, tendo em mira a interação entre o princípio da prevalência da Constituição e o princípio do controle mútuo entre os poderes. Finalizando este tópico, é oportuno enfatizar que a efetividade do Mandado de Injunção exige, a todo o momento, uma interpretação teleológica de acordo com a lógica social, que redunda em se emprestar um novo sentido à separação dos Poderes, transformando o Poder Judiciário em poder responsável por uma justiça essencial e distributiva, que consagre, como principal valor, a igualdade material e, como paradigma obrigatório e vinculante, os direitos e as garantias fundamentais. Espera-se, portanto, uma participação mais intensa do Judiciário para a construção da sociedade do bem-estar, voltada para as finalidades sociais, conforme preconizado pelo hodierno welfare state.143 4.2 Principais características da decisão regulamentadora Tormentosa a questão de se definir os efeitos da decisão regulamentadora em Mandado de Injunção. Este trabalho compartilha144 o entendimento de que a decisão final procedente em Mandado de Injunção deveria ter eficácia constitutiva, 143 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes irresponsáveis? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1989. p.22- 23. 144 PEREZ, Diego Selhane. op. cit. p.352. Cf. também: SANTOS, Aricê Moacyr Amaral. op. cit. p.29; DANTAS, Ivo. op. cit. p.97. 100 no sentido de que o Poder Judiciário, substituindo-se145 provisoriamente o órgão originalmente competente, deveria criar uma regulamentação suficiente para viabilizar o exercício do direito tutelável pelo mandamus.146 Assim, faz-se agora necessário estabelecer algumas características adicionais dessa decisão. Dentre estas, serão analisadas as relativas a seus efeitos temporais (se retroativos, protelados ou ex nunc), seu âmbito pessoal de incidência (inter partes ou erga omnes) e sua estrutura analítica (concreta ou abstrata). O Mandado de Injunção pressupõe a existência de uma omissão inconstitucional normativa capaz de inviabilizar o exercício de um direito tutelável. Assim, ao se impetrar a ação, a norma regulamentadora inexiste ou é insuficiente, só passando a existir, ou sendo preenchida em sua insuficiência, quando do ato judicial de concessão definitiva do writ, a desejável sentença constitutiva. Somente a partir da publicação da sentença, o direito – até então apenas previsto constitucionalmente e reconhecido como exigível em Mandado de Injunção, cujo exercício estava inviabilizado em função da falta da norma regulamentadora – poderá ser plenamente exercido pelo impetrante da ação injuntiva. Inexiste, portanto, retroatividade dos efeitos regulamentadores dessa decisão, tanto no que tange à garantia constitucional da segurança jurídica (artigo 5º, caput da CRFB/88), que reduz a possibilidade de regulamentações retroativas, quanto em 145 MARCATO, Antonio Carlos. Procedimentos especiais. São Paulo: Malheiros, 2001. p.18: sobre o assunto, este autor explica que “Ao exercer em concreto a atividade jurisdicional, o órgão estatal imparcialmente sobrepõe-se aos sujeitos envolvidos no litígio submetido à sua apreciação e, substituindo-se a eles, torna efetiva a regra geral reguladora do conflito; então, além da natureza substitutiva (já que por meio da jurisdição o Estado faz valer a sua vontade, compatível com a Constituição, sobrepondo-a à vontade das partes envolvidas no conflito), a jurisdição ainda é instrumental, ou seja, valendo-se dela o Estado torna efetiva e concreta a tutela abstrata e genericamente prevista no ordenamento positivo.” 146 PEREZ, Diego Selhane. op. cit. p.352. 101 função da própria natureza do Mandado de Injunção. Isso porque é imprescindível para esse instituto que a viabilidade do exercício do direito tutelável – já que é um pré-requisito do Mandado de Injunção que o exercício do direito se mantenha inviabilizado até a data da sentença, sob pena de restar prejudicada a ação – ocorra somente após tal data, na qual se realiza a regulamentação judicial.147 É óbvio que os requisitos do Mandado de Injunção devem estar presentes desde a propositura até o julgamento deste. Desse modo, a decisão judicial estabelece a norma regulamentar faltante, viabilizando o exercício do direito e, por conseguinte, suscita que se pleiteie seu cumprimento pelo destinatário, o qual somente a partir do momento em que a sentença judicial produz seus efeitos (publicação), estará obrigado a realizar a conduta determinada na norma regulamentadora. É por isso, tendo em vista que a decisão regulamentadora não pode possuir efeitos retroativos, que a eficácia condenatória é imprópria ao Mandado de Injunção, uma vez que o direito do peticionário só aparece integral e suscetível a ser exercido após a publicação da decisão judicial. A hipótese de que a decisão que viria colmatar a omissão inconstitucional tenha seus efeitos suspensos (eficácia protelada) até uma data posterior, mesmo que decidida pelo Judiciário, ou prefixada em lei (quando, por exemplo, regulamenta-se o direito, mas se suspende a regulamentação por um prazo dentro do qual o órgão omisso poderá suprir sua omissão, como decidido nos MI 232 e 283), parece inviável para o Mandado de Injunção, uma vez que, se há omissão 147 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2000. p.305: os autores entendem que a regra geral é que as sentenças condenatórias e declaratórias produzem efeitos ex tunc, enquanto que a constitutiva só produz efeitos para o futuro.” 102 inconstitucional que prejudica o impetrante, a solução de seu problema não deve tardar ainda mais por força de decisão do Poder Judiciário. Tal decisão implicaria na mantença da lesão inconstitucional em face do impetrante, desvirtuando a função judicante que, como se sabe, visa proteger os direitos subjetivos contra lesões ou ameaças de qualquer espécie, inclusive as omissivas. Assim, os efeitos temporais da decisão judicial em Mandado de Injunção se movem para o futuro, produzindo alterações no mundo jurídico a partir da publicação da decisão (efeitos ex nunc). Outra importante controvérsia é saber se os efeitos da decisão concessiva do Mandado de Injunção se restringirão àqueles que foram partes no processo finalizado pela sentença (inter partes), ou se estenderão a todas as pessoas que são titulares do direito constitucional regulamentado (erga omnes). Ou seja, se a regulamentação criada pela sentença será individual – destinada ao impetrante ou ao particular grupo de impetrantes (litisconsórcio) – ou geral – se destinando a todos os interessados na regulamentação. A princípio, infere-se que as decisões se referem apenas àqueles que participaram como partes no processo em que estas são tomadas, assim como a maior parte dos doutrinadores que advogam pela eficácia constitutiva e entendem que a regulamentação produzirá, sempre, como costuma acontecer com decisões judiciais, efeitos inter partes.148 Todavia, outros doutrinadores sustentam que a 148 ACKEL FILHO, Diomar. Writs constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1991. p.128: nesse sentido, afirma este autor que “Em suma, pode-se afirmar que a Constituição Federal, por via do mandado de injunção, criou um sistema peculiar de delegação de atividade normativa (legislativa propriamente não), permitindo ao Judiciário legislar para casos concretos, de modo restrito e exclusivo às demandas propostas, sempre que houver omissão do organismo responsável pela edição do regulamento normativo tido como indispensável para a exeqüibilidade do preceito constitucional do qual derivam os direitos tutelados.” Cf. também: CALMON DE PASSOS, José Joaquim. op. cit. p.127; GOMES, Randolpho. op. cit. p.48; DANTAS, Ivo. op. cit. p.97. 103 decisão do Mandado de Injunção criará uma regulamentação de caráter geral, que fará as vezes, ainda que provisoriamente, da regulamentação que deveria ter sido criada pela autoridade originária e fundamentalmente, segundo a Constituição, da regulamentação da norma constitucional definidora de direito tutelável. Segundo esses autores, por conseguinte, o Mandado de Injunção resultaria, sempre, em uma decisão regulamentadora de caráter geral, aplicável a todas as pessoas que estivessem na mesma situação fática que o impetrante, pessoas essas que não precisariam impetrar um novo Mandado de Injunção, beneficiando-se daquela particular decisão como se ela fosse uma verdadeira lei. Dentre esses autores, defende essa posição interpretativa Herzeleide Maria Fernandes de Oliveira, quando afirma que “na hipótese de omissão de lei ou ato normativo, esses, por terem efeitos genéricos, provocarão decisão do Poder Judiciário que beneficiará a todos, ou seja, produzirá efeitos erga omnes”.149 Tal interpretação, todavia, não se coaduna com a tese desenvolvida neste trabalho, visto que provoca uma verdadeira e imprópria atribuição do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário, ultrapassando, sem necessidade, as finalidades de viabilização do direito concretamente reclamado, e aprofunda a alteração no arranjo de divisão de funções entre os diferentes órgãos constitucionais. Além disso, a concessão, em toda e qualquer situação, de efeitos erga omnes, desnatura a característica do Mandado de Injunção como mecanismo jurisdicional voltado à tutela de direitos subjetivos e o assemelha a um instrumento de tutela da ordem constitucional 149 OLIVEIRA, Herizelde Maria Fernandes de. O Mandado de Injunção. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, out.-dez. 1988. p.57. Cf também: GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989. p.181-184; GOMES, Luiz Flávio. op. cit. p.43; PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. op. cit. p.100. 104 objetiva, como a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, cujas diferenças já foram delineadas neste estudo. Nesse sentido, posiciona-se Celso Agrícola Barbi, afirmando que: A criação de norma regulamentadora, de caráter geral, tem um grave inconveniente, que é a atuação além do caso concreto, o que não é compatível com a natureza da função jurisdicional. Esta, em regra, destina-se a solucionar o caso de quem reclama a proteção jurisdicional e não pretende resolver casos de outras pessoas, ainda que iguais, mas que não foram levados a juízo. Além disso, a criação de norma geral é função típica do Poder Legislativo e não há razão para supor que a Constituição queira fazer tão grande alteração nas funções dos Poderes.150 Refutando também essa distorção das finalidades do instituto injuntivo, argumenta Carlos Augusto Alcântara Machado: Desde logo, registre-se que a corrente concretista geral desvirtua a finalidade do instituto processual sub examine, porquanto sua instituição visou à tutela de direitos subjetivos e não à defesa da ordem jurídica em geral.151 Corroborando tal posição, afirma Flávia Piovesan: Não seria razoável que o Poder Judiciário elaborasse norma geral e abstrata, quando da apreciação de um caso concreto, cujo pedido é a restauração de direito subjetivo violado. Não condiz com a finalidade de um instrumento de tutela de direito subjetivo, o intuito de sanear vícios da ordem jurídica, ou seja, do direito objetivo.152 Contudo, a intransigente observância do princípio da igualdade, apesar de o julgamento ser realizado com efeitos inter partes, deriva, também, de mecanismos processuais como o litisconsórcio, o julgamento simultâneo de causas conexas, a 150 BARBI, Celso Agrícola. Mandado de Injunção. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan.-mar. 1991. p.94. 151 MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. op. cit. p.109. 152 PIOVESAN, Flávia. op. cit., p.130-131. 105 concentração de uma mesma situação carente de regulamentação na esfera de julgamento de um mesmo tribunal e a uniformização de jurisprudência (por força de recursos ou de ofício), somadas ao julgamento por colegiado de juízes imparciais e independentes e à fiscalização dos advogados e do Ministério Público, visto que todos os direitos tuteláveis (direitos-liberdades, suas garantias, direitos políticos e de nacionalidade) são direitos indisponíveis e essenciais para a preservação do Estado Democrático de Direito, conforme preconizado nos artigos 95, 127 e 133 da CRFB/88. Assim, rejeitados os argumentos contrários e reforçada a natureza jurisdicional, ainda que atípica, do Mandado de Injunção, entende-se, contrariamente, que os efeitos constitutivos da sentença devem observar os limites subjetivos do caso em questão, ou seja, a norma regulamentadora criada judicialmente deve atingir, inicialmente, apenas as partes envolvidas no litígio, exceto, é claro, eventuais efeitos indiretos da sentença. A decisão se caracteriza, portanto, por possuir, em princípio, “efeitos apenas para as partes (inter partes).”153 A situação se complica quando os direitos tutelados somente comportam satisfação indivisível, isto é, quando diversas pessoas, vinculadas por uma relação jurídica base de natureza constitucional, são titulares de um mesmo direito constitucional, mas a viabilização do exercício, mediante regulamentação deste direito a um dos titulares importa, necessariamente, na viabilização, simultânea, do exercício do direito de todos os demais titulares, aqui definido como o problema de defesa judicial de direito coletivo e não da defesa coletiva de direitos individuais. 153 PÉREZ, Diego Selhane. op. cit. p.362. 106 Diego Pérez exemplifica com a situação em que o exercício da prerrogativa de votar (direito de sufrágio) esteja obstado pela inexistência de uma lei eleitoral, e que alguém, ou até mesmo um grupo de interessados, requeira a concessão de Mandado de Injunção capaz de regulamentar o artigo 14 da CRFB/88, viabilizando o exercício desse direito político, evidentemente tutelável por Mandado de Injunção. Nesse sentido, afirma que: Seria impensável que tal direito possa ser exercido só pela pessoa ou grupo que impetrou o Mandado de Injunção, visto que o processo eleitoral no Brasil tem de envolver todos os cidadãos integrantes do particular colégio eleitoral a que são afetos. Sendo assim, a regulamentação judicial do direito dos impetrantes teria, necessariamente, de viabilizar, também, o direito de pessoas que não integravam o processo, sob pena de não poder operacionalizar o exercício desse direito sequer para os autores da ação.154 Em outras palavras, ou bem se confere à sentença a possibilidade de que seus efeitos regulamentares atinjam a todas as pessoas que precisam exercer, simultaneamente, aquele direito ou prerrogativa constitucional, ou não se poderá, por razões normativas (natureza, p. ex., do sistema eleitoral), conceder tal viabilização a ninguém, visto que não se pode, p. ex., realizar adequadamente o processo eleitoral sem que todos os legitimados constitucionalmente a dele participar possam exercer sua cidadania. Portanto, dependendo da natureza do direito tutelado, é necessário que a regulamentação viabilize os direitos de toda uma categoria de pessoas e que, conseqüentemente, os efeitos regulamentadores da sentença desdobrem-se ultra partes, atingindo todos os integrantes da categoria legitimada a exercê-lo. Por óbvio, inicialmente, os efeitos sentenciais deverão se restringir às partes (inter partes), com 154 PÉREZ, Diego Selhane. op. cit. p.362-363. 107 a possibilidade de, em situações excepcionais, esses efeitos atingirem também pessoas que não participaram do processo (efeito ultra partes), mas que, em função da específica natureza do direito regulamentado, precisam exercer, juntamente com os impetrantes, o direito definido em face do processo por eles iniciado. Os efeitos sentenciais no processo de Mandado de Injunção, assim sendo, serão determinados secundum eventum litis (segundo o teor da lide), ou seja, dependem do conteúdo da decisão, no que tange à natureza do direito constitucional viabilizado, sendo, em princípio, inter partes e, excepcionalmente, ultra partes. Ressalte-se que nos casos em que, dependendo da natureza do direito a ser efetivado pela sentença que concedeu o mandamus, esta última possua efeitos ultra partes, a cautela do julgador deverá ser mais rigorosa, devendo fundamentar sua decisão dentro da melhor interpretação hermenêutica possível. Provavelmente a última questão que se coloca quanto aos efeitos da decisão regulamentadora é saber se a regulamentação criada pela sentença de Mandado de Injunção será concreta ou abstrata. As decisões judiciais, via de regra, são normas individuais e concretas, mas, de outra banda, normalmente seu conteúdo não é, como no Mandado de Injunção. Assim, a análise da decisão concessiva no writ deve, como já dito, observar as peculiaridades desse processo, para a particular finalidade desse remédio constitucional, visto que este se propõe a viabilizar o exercício de determinados direitos constitucionais por ele tuteláveis não em uma situação concreta, mas para todos os casos em que o impetrante vier a se encontrar diante de uma situação que possa, se desejar, utilizar-se do direito constitucional em questão. Nesse sentido, uma única decisão judicial resolveria, para o autor da ação, o problema da omissão inconstitucional, viabilizando o exercício de um específico 108 direito até que a regulamentação criada pelo Poder, órgão ou autoridade competente viesse a ser editada. Frise-se que a regulamentação criada sentencialmente possui natureza provisória e subsidiária, vigendo até que a regulamentação principal e definitiva seja devidamente elaborada. Trata-se, destarte, não de uma regulamentação voltada a um específico caso concreto, mas a toda e qualquer situação similar que vier a ocorrer – até a regulamentação definitiva a ser criada pelo Poder, órgão ou autoridade omissa – com o impetrante. Este, portanto, não precisa demonstrar em qual específica situação pretende se utilizar da regulamentação que requer ao Poder Judiciário, essencialmente por dois motivos. O primeiro é que toda vez que a ausência de uma norma regulamentadora inviabilizar o exercício de um direito amparável pela injunção, obviamente seu titular estará sendo ameaçado (artigo 5º XXXV) de não poder exercer seus direitos de liberdade ou político como gostaria. O segundo é que os direitos normalmente amparados pelo Mandado de Injunção estabelecem ao seu titular a possibilidade de agir ou não, motivo pelo qual o sujeito ativo pode exigir uma regulamentação apenas para obter a faculdade de agir, uma vez que a não ação (non facere) diante de uma situação em que poderia agir, está inserida no campo da tutela dos direitos de liberdade. Essa estruturação abstrata (regulamentação na forma de uma hipótese de incidência) poderá se vincular a um julgamento com efeitos individuais (inter partes) ou com efeitos gerais (ultra partes). Hipótese de incidência, no dizer de Geralldo Ataliba: É primeiramente a descrição legal – melhor seria dizer jurídiconormativa – de um fato: é a formulação hipotética, prévia e genérica, contida na lei – ou em qualquer outra fonte formal de direito -, de um fato (é o espelho do fato, a imagem conceitual de um fato, é seu 109 desenho). É, portanto, mero conceito, necessariamente abstrato. É formulado pelo legislador – ou por qualquer outra autoridade capaz de criar normas abstratas – fazendo abstração de qualquer fato concreto. Por isso é mera “previsão legal” (a lei é, por definição, abstrata, impessoal e geral).155 Desse modo, a norma regulamentadora decorrente da decisão judicial favorável ao impetrante, possuindo estrutura abstrata (formulada que foi como uma hipótese de incidência), permitirá que a parte subjetivamente atingida pela sentença possa usufruir tal regulamentação, elaborada de forma provisória e subsidiária pelo Poder Judiciário, exercendo o direito ou prerrogativa previstos constitucionalmente, tantas vezes e nas oportunidades que entender conveniente, até que a regulamentação definitiva a ser elaborada pelo poder competente seja editada, substituindo a judicial. Em suma, a regulamentação a ser criada sentencialmente, quando do julgamento de um Mandado de Injunção, deverá ser prospectiva de efeitos imediatos (ex nunc, ou seja, vigente desde a publicação da decisão judicial), provisória (vigente até que a regulamentação definitiva seja criada pelo órgão originariamente competente), abstrata (uma hipótese de incidência) e possuidora, secundum eventum litis (tendo em vista a peculiar natureza do direito tutelado), de efeitos pessoais (âmbito de pessoas atingidas pela regulamentação criada na sentença) inter partes ou ultra partes. 155 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Malheiros, 1992. p.58. 110 4.3 Elaboração judicial regulamentadora e res judicata A regulamentação elaborada quando do julgamento de um Mandado de Injunção terá efeitos apenas provisoriamente, já que se trata de regulamentação transitória, cujos efeitos se conservarão até que o sujeito passivo, inicialmente competente para a regulamentação prevista constitucionalmente, afaste a inconstitucionalidade por omissão. Inexiste eventual incompatibilidade da coisa julgada da decisão judicial em Mandado de Injunção com a regulamentação posterior do direito tutelado, visto que a finalidade do mandamus é exatamente permitir a formulação de uma regra provisória, ficando assegurado pela res judicata que enquanto não vier a norma regulamentadora, editada pelo órgão competente, a disciplina a ser cumprida é aquela determinada na decisão judicial. Por óbvio, quando vier a norma regulamentadora, esta se estenderá a todos os casos que apresentarem as mesmas características, inclusive para aqueles que, eventualmente, já tenham decisão através do writ. Assim, não há o que se falar em choque entre a coisa julgada, numa determinada situação, e a norma regulamentadora que venha a ser editada em seguida. A regulamentação elaborada no Mandado de Injunção, dada sua característica provisória, somente teria efeitos enquanto a falta da norma regulamentadora não fosse colmatada pelo órgão competente. Os efeitos da imutabilidade dessa decisão se restringem à esfera processual, não impedindo que a regulamentação incida sobre a situação concreta que ensejou a concessão da injunção. De fato, como bem observado por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira: 111 [...] a sentença normativa integrativa de lacuna dessa natureza não ostenta, contudo, força de Lei, com o caráter de permanência próprio desta última categoria. Tal sentença é fadada a vigorar si et in quantum, até o suprimento da lacuna pelo órgão próprio, pois prolatada exatamente para esse fim.156 Nesse sentido, Diego Selhane Perez157 exemplifica que se alguém impetra um Mandado de Injunção para a regulamentação do direito-liberdade de associação (artigo 5º, XVII, da CRFB/88), posterior à decisão, concessiva e regulamentadora, mas antes do efetivo exercício do direito pelo autor da ação, o Congresso Nacional complementa a norma viabilizadora do exercício do referido direito-liberdade, essa regulamentação posterior atingirá a anterior como o faria com uma lei, “revogando-a” e regulando todos os fatos e comportamentos futuros. Mas, complementa Diego Selhane Perez, se a regulamentação da norma definidora do direito constitucional tutelável tivesse ensejado o seu efetivo exercício, com a realização de um ato jurídico perfeito (criação de uma associação, por exemplo), ou com o surgimento de nova coisa julgada em outro processo judicial, cuja decisão se fundasse na norma criada pela sentença concessiva do Mandado de Injunção, tal regulamentação posterior respeitaria essas situações consolidadas, como o faria se estas decorressem de uma regulamentação legislativa.158 Destarte, com relação a regulamentações posteriores, a norma criada pela sentença do Mandado de Injunção, em princípio, produzirá os mesmos efeitos que produziria uma regulamentação legal, ainda que, salvo em casos especiais, tenha seus efeitos limitados aos impetrantes. 156 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. A natureza do Mandado de Injunção. Estudos Jurídicos. São Leopoldo, RS: Unversidade Vale Rio, jan.-abr. 1990. p.76. 157 PEREZ, Diego Selhane. op. cit. p.371. 158 Ibidem. p.372. 112 No julgamento do MI 283, todavia, o STF acabou declarando que a relação entre a regulamentação judicial transitada em julgado e a regulamentação superveniente criada pelo órgão originalmente competente observaria o princípio da retroatividade da regulamentação mais benigna.159 Entendeu o STF que um impetrante de Mandado de Injunção não deveria ser prejudicado por valer-se desse remédio constitucional, o que poderia ocorrer se não pudesse desfrutar de uma regulamentação posterior mais benéfica, ainda que decorrente daquele órgão originalmente competente para a criação, erga omnes, dessa regulamentação. Se, por um lado, esse entendimento apresenta, em alguns casos, algum benefício sobre a idéia de absoluta imutabilidade das situações já consolidadas que tenham se fundado em normas criadas em decisões definitivas de Mandados de Injunção, por outro, em algumas situações, ele poderá acarretar uma insegurança jurídica, visto que tal solução provocaria um permanente estado de incerteza no que se refere à manutenção dos atos jurídicos baseados nas regulamentações criadas, com severos reflexos sobre a própria regulamentação judicial, cuja credibilidade ficaria comprometida em função da perda da estabilidade (risco de desprestígio da regulamentação criada em sentenças de Mandado de Injunção). Por tudo isso, Diego Perez sustenta que deveriam ser conservados os efeitos já consolidados por ato jurídico perfeito ou coisa julgada, fundados em uma regulamentação criada por uma sentença proferida em Mandado de Injunção(artigo 5º, XXXVI), salvo em situações excepcionais, verificadas caso a caso, nas quais 159 A ementa do acórdão referido assevera: “a superveniência de lei não prejudicará a coisa julgada (formada em um processo diferente e posterior ao julgamento de um mandado de injunção), que, entretanto, não impedirá o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, nos pontos em que lhe for mais favorável”. (RTJ 135:883). 113 deverão ser ponderados160 os interesses em conflito. Este entendido como o confronto entre a expectativa do titular do direito a um tratamento mais favorável previsto na regulamentação posterior e a expectativa das contrapartes do referido titular do direito, de manutenção do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada – direito à segurança jurídica.161 Por fim, um último problema a ser analisado neste tópico é aquele referente à autoridade de coisa julgada das sentenças proferidas em Mandado de Injunção cujos efeitos atinjam pessoas que não participaram do processo judicial, ou seja, possuam efeitos ultra partes. A princípio, é bom ressaltar que as decisões definitivas em Mandado de Injunção somente produzirão efeitos ultra partes quando procedentes. Isto é assim, justamente, porque tais efeitos decorrem, como visto, da natureza do direito ou da prerrogativa cujo exercício foi viabilizado pela regulamentação judicial (que obviamente só existirá se a sentença for procedente), natureza esta que determina que tal direito ou prerrogativa seja exercido(a), simultaneamente, tanto pelos impetrantes (diretos ou substituídos), quanto por terceiros que não participaram do processo. Em outras palavras, as decisões improcedentes em Mandado de Injunção, não importando a natureza do direito envolvido ou a razão da improcedência, nunca produzirão efeitos ultra partes.162 160 Sobre a técnica de ponderação de direitos, bens ou interesses constitucionais, conferir, dentre outros, ALEXY, Robert. op. cit., 1997b. p.484. 161 Perez, Diego Selhane. op. cit. p.373-374. 162 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit. p.302: Complexa questão – cuja discussão não interfere na solução dos problemas deste trabalho – é a de se saber se uma decisão improcedente produz qualquer efeito, visto que imutabilidade do decidido, característica da autoridade de coisa julgada, é efeito do trânsito em julgado e não um efeito da sentença. Alguns autores entendem que a sentença de improcedência possui eficácia declaratória (geralmente negativa, salvo quando o pedido for declaratório negativo, quando a sentença de improcedência teria eficácia declaratória positiva), produzindo os efeitos correspondentes. MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A coisa julgada no código do consumidor”. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério (coord.). Processo civil. São Paulo: Saraiva, 1995. p.143-145: outros, capitaneados por José Ignácio Botelho de Mesquita, entendem que a sentença improcedente não produz efeito jurídico algum, a não ser o de extinguir o processo. 114 Diego Selhane Perez163 sustenta que os limites subjetivos da autoridade de coisa julgada deverão corresponder ao âmbito pessoal de atingidos pelos efeitos da sentença, em que se tem uma situação de coisa julgada secundum eventum litis, em perfeita vinculação com os efeitos subjetivos da sentença proferida. Disso decorre que se a sentença tiver efeitos inter partes, a coisa julgada a elas se limitará. No entanto, se a sentença produzir efeitos ultra partes, todos os atingidos pelos efeitos da sentença também serão incluídos no âmbito de incidência da autoridade de coisa julgada, o que responde adequadamente às exigências atreladas à necessidade de economia processual e segurança jurídica. Pergunta-se: o que ocorreria com um impetrante de Mandado de Injunção cuja decisão tivesse sido improcedente se, posteriormente, surgisse uma regulamentação (legislativa, administrativa ou judicial) com efeitos ultra partes, versando sobre o mesmo direito por ele anteriormente reclamado? Ele poderia se beneficiar dessa nova regulamentação? Por força dos argumentos já expendidos, adota-se a posição neste trabalho de que o impetrante de um Mandado de Injunção improcedente poderá se beneficiar de uma regulamentação superveniente, relativa ao mesmo direito por ele alegado na ação referida, desde que sua particular situação se enquadre na hipótese de incidência criada em dita regulamentação (legal, administrativa ou judicial com efeitos ultra partes). 163 PEREZ, Diego Selhane. op. cit. p.375-376. 115 5 PESQUISA JURISPRUDENCIAL 5.1 Decisões no Mandado de Injunção perante o Supremo Tribunal Federal Inicialmente, a jurisprudência do STF em relação ao Mandado de Injunção foi no sentido de considerá-lo “uma declaração, pelo Poder Judiciário, da ocorrência de omissão inconstitucional, a ser comunicada ao órgão legislativo inadimplente para que promova a integração normativa do dispositivo constitucional nela objetivado”, cuja decisão foi proferida no Mandado de Injunção 107-DF164, tendo como Relator o Ministro Moreira Alves, o qual será objeto de interpretação no tópico seguinte. Equiparava-se, assim, a injunção à ação direta de inconstitucionalidade por omissão, posição que foi criticada por parte da doutrina, para a qual estaria sendo inócua a providência tomada, não alcançada a sua finalidade constitucional.165 Esta jurisprudência, embora muito discutida, firmou-se com pequena maioria, havendo vários acórdãos dando pela procedência do Mandado de Injunção exclusivamente para que o Poder Legislativo omisso fosse cientificado do julgado e instado a suprir a lacuna.166 Mais recentemente, houve uma evolução na jurisprudência da Suprema Corte, que concedeu o Mandado de Injunção não apenas com o fim de reconhecer a existência da omissão, mas ainda assinando um prazo a fim de que se ultimasse o processo legislativo faltante, sob pena de, vencido o prazo sem legiferação, passasse a requerente a gozar da imunidade requerida nos termos do art. 195, § 7º 164 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 107-3. op. cit p.9782.. MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit. p.259. 166 Entre outros, vide MI 124-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. RTJ 148/653; MI 168-5-RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, RT 671/216; MI 362-0-RJ, Rel. Min. Francisco Rezek, RT 732/139. 165 116 da CRFB/88, conforme consta do julgamento proferido no MI 232-1-RJ, que também será objeto de análise logo em seguida. Em outro Mandado de Injunção, além de declarar a inconstitucionalidade da omissão legislativa, pois o Congresso não elaborou e promulgou a lei prevista no art. 8º, § 3º do ADCT, estabeleceu o STF o prazo para que essa legislação fosse aprovada, bem como estabeleceu uma sanção, embora não quantificada, ao decidir que, caso não fosse ultimado o processo legislativo no prazo fixado, ficava assegurada ao impetrante a faculdade de obter, contra a União, pela via processual adequada, sentença líquida de condenação à reparação constitucional devida, pelas perdas e danos que fossem arbitrados. Essa decisão consta do MI 283-5-DF, que igualmente será objeto de interpretação logo mais adiante. Idêntica posição assumiu o STF no MI 384, julgado em 5 de agosto de 1993, cuja ementa é a seguinte: Com a persistência do estado de mora do Congresso Nacional, que, não obstante cientificado pelo STF, deixou de adimplir a obrigação que lhe foi imposta pelo art. 8º, § 3º, do ADCT/88, reconhece-se, desde logo, aos beneficiários dessa norma transitória a possibilidade de ajuizarem, com fundamento no Direito Comum, a pertinente ação de reparação econômica.167 Por tudo isso, já se pode dizer que a jurisprudência do STF consolidou-se no sentido de que a persistência do estado de mora do Congresso Nacional, quando, embora seguidamente notificado, deixa de editar a norma cabível, autoriza o beneficiário daquela a ajuizar ação de indenização com base no direito comum. 167 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI n. 384. <Disponível http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>. Acesso em 04 out. 2007. em: 117 A cronologia desses julgamentos em Mandado de Injunção pode ser mais bem observada na tabela colocada ao final deste trabalho, como adendo. Todavia, para um instituto que encerrava tantas expectativas, essas decisões têm sido muito tímidas, visto que o STF não tem exercido na sua plenitude a tarefa jurisdicional de dizer o direito no caso concreto, zelando pelas garantias e direitos constitucionais e assegurando o exercício do direito subjetivo garantido na Carta Magna. Esse o motivo pelo qual a doutrina nacional, de forma majoritária, vem perseguindo uma corrente que confira ao Mandado de Injunção sua real missão, qual seja, a de instrumento implementador de direitos constitucionais inviabilizados pela falta de norma regulamentadora, a de instrumento de efetividade da Constituição.168 De qualquer forma, para a adequada compreensão desse instituto, buscaramse elementos que pudessem contribuir com as metas deste trabalho, mediante pesquisas jurisprudenciais que fossem capazes de responder a indagação do que teria levado os julgadores do STF a julgar e processar o Mandado de Injunção como o fizeram. Já na introdução deste trabalho, afirmou-se que as pesquisas jurisprudenciais se concentrariam nas decisões provenientes da mais alta corte de nosso país, o Supremo Tribunal Federal. A justificativa para essa concentração de análise deriva de duas diferentes razões: a primeira relacionada ao fato de o Supremo Tribunal Federal ser a última instância para qualquer processo que envolva o controle de constitucionalidade – já 168 MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. op. cit. p.138. 118 definido que o Mandado de Injunção é uma ação tipicamente dirigida ao controle da omissão inconstitucional para a defesa de determinados direitos constitucionalmente estabelecidos – frente à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o que garante ao Supremo Tribunal Federal a última palavra no que se refere à interpretação do instituto ora analisado. A segunda das razões diz respeito à forma como é realizada a previsão constitucional das competências do Supremo Tribunal Federal no que se refere ao Mandado de Injunção, visto que esta lhe garante o monopólio do controle das omissões normativas dos principais responsáveis pela regulamentação de disposições constitucionais, como se depreende de seu texto: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originalmente: [...] q) o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal. O texto normativo constitucional acima reproduzido evidencia – se analisado em conjunto com a repartição de competências legislativas entre os entes federais (artigos 21 a 25 e 30 da CRFB/88) e com a Organização dos Poderes (Título IV da CRFB/88) – que a quase totalidade das regulamentações necessárias para tornar viável o exercício de quaisquer direitos constitucionais centraliza-se nas mãos dos órgãos cuja omissão deverá ser controlada, em Mandado de Injunção, pelo Supremo Tribunal Federal. Entretanto, com isso, não se está a negar a possibilidade de que outros tribunais possuam, também, competência para conhecer do Mandado de Injunção. 119 Isso se dará sempre que outros órgãos estatais, diferentes dos elencados no artigo 102, I, “q”, estiverem, de forma omissiva, deixando de regulamentar algum direito constitucional, em afronta ao texto da CRFB/88. Apenas se afirma que isso tende a ocorrer mais raramente, em situações mais específicas, e envolvendo ato regulamentar de natureza administrativa (portaria, regimento interno dos tribunais de segunda instância e outras disposições da mesma espécie). Destarte, o conjunto de circunstâncias acima mencionadas justifica a centralização analítica e a restrição da pesquisa jurisprudencial adotadas neste trabalho. Com base nesse foco de atenção, passa-se à análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do Mandado de Injunção. Tendo como fonte a Seção de Pesquisa de Jurisprudência do STF169, obtevese a informação de que, desde a promulgação da Constituição de 1988 até o mês de novembro de 2006, foram impetrados nesse interregno exatos 743 (setecentos e quarenta e três) Mandados de Injunção. Desses, apenas oitenta e nove foram deferidos, expedindo-se as recomendações subseqüentes a fim de que o Poder Legislativo Federal editasse as normas para o efetivo exercício dos direitos e liberdades constitucionais ainda carentes de regulamentação. 169 Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/jurisp.asp?tip=aco>. Acesso em 16 nov. 2006. 120 5.2 Principais interpretações judiciais Analisando-se os writs impetrados, constata-se que a mais importante decisão judicial sobre o Mandado de Injunção foi tomada em 23 de novembro de 1989, no Mandado de Injunção nº 107-DF, na qual foi fixada a primeira posição do STF acerca da matéria. Nesta oportunidade, o Ministro Relator José Carlos Moreira Alves entendeu que o Mandado de Injunção era uma ação a ser proposta por aquele a quem, no caso concreto, é outorgado direito ou liberdade constitucionais, ou prerrogativa inerente à nacionalidade, à soberania ou à cidadania, e que estes não podem ser exercitados por falta de norma regulamentadora. Entendeu ainda que tratava de uma ação ajuizável perante órgão do Poder Judiciário competente, em razão do Poder, do órgão, da entidade ou da autoridade cuja omissão tornasse inviável o exercício do direito, da liberdade ou prerrogativa já referidas.170 Estabeleceram-se, portanto, quatro importantes posições sobre o assunto: a) o caráter de ação civil do instituto; b) a legitimidade ativa ad causam do titular do direito cujo exercício estivesse inviabilizado; c) a necessidade de um estreito nexo causal entre a inviabilidade do exercício do direito e a falta da regulamentação; e d) o fato de a repartição de competências jurisdicionais ter sido realizada ratione personae. Nada foi cogitado, todavia, acerca dos legitimados passivos ad causam, das questões concernentes à natureza e aos efeitos da decisão jurisdicional proveniente do Mandado de Injunção, ou ainda sobre os problemas relativos ao procedimento a ser seguido pelo instituto. Constatou-se, também, um debate doutrinário a respeito 170 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. op. cit., 21 set. 1990. p.9782. 121 dos direitos tutelados pelo writ171, em que duas questões se digladiavam: a primeira relacionada à expressão prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, uma vez que, para alguns autores, poderia gerar dúvida em relação ao conceito de soberania, debate este que o Relator pretendeu solucionar afirmando que a expressão se referia às prerrogativas associadas à soberania popular. A segunda questão, relativa ao significado da expressão direitos e liberdades constitucionais, o Relator resolveu afirmando que seriam aqueles previstos no artigo 5º da Constituição, bem como aqueles outros direitos e garantias constitucionais, inclusive os sociais, cujo exercício estivesse inviabilizado pela falta de normas regulamentadoras.172 Em relação às três outras questões (qual o procedimento, quem são os legitimados passivos, qual a natureza e os efeitos da decisão), o Relator firmou posição no sentido de que o procedimento aplicável seria o do Mandado de Segurança, no que lhe coubesse, bem como que a competência para o processamento e julgamento originários do Mandado de Injunção seria fixada ratione personae, ou seja, em razão da condição dos Poderes, órgãos, entidades ou autoridades a que fosse imputada a omissão regulamentadora, o que, “segundo a técnica processual, se daria quando essas pessoas estivessem em causa, participando, portanto, da relação jurídica processual, na defesa de interesse jurídico.”173 Por fim, o Relator definiu que a natureza ou eficácia da decisão é mandamental, e que seus efeitos se restringiam a dar ciência ao órgão omisso de que o STF o declarou em estado de omissão inconstitucional, no que se refere à 171 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. op. cit., 21 set. 1990. p.9782. RTJ. 133:30 173 RTJ. 133:31 172 122 regulamentação do direito constitucional cuja inviabilidade de exercício, por carência de regulamentação, dera suporte à impetração do writ. Como argumentos dessa decisão, o Ministro Moreira Alves174 ressaltou: a) a regulamentação por via judicial trazia consigo o risco de inobservância do princípio da igualdade, visto que, como a atividade judicial usualmente é feita caso a caso, diferentes regulamentações poderiam surgir de diferentes tribunais; b) o fato de que alguns direitos constitucionais, como as prerrogativas associadas à soberania popular, não eram suscetíveis de uma regulamentação de caráter individual; c) o princípio da legalidade, associado com a democracia e a separação dos Poderes; d) a necessidade de preservação da liberdade de decisão política do legislador; e) nem todos os direitos constitucionais podiam ser viabilizados por meio de uma regulamentação, pois precisaria de uma instância político-administrativa, com a organização de serviços, alocação de recursos e regulamentações de natureza técnica; f) a impossibilidade de modificação da regulamentação, criada pelo tribunal na decisão do Mandado de Injunção, por via legislativa, em função de que esta faria coisa julgada, insuscetível de ser prejudicada em função do disposto no artigo 5º, XXXVI; g) a comparação com a ação de inconstitucionalidade por omissão, prevista no artigo 103, § 2º, que provocaria um ceticismo acerca da existência de alguma razão para que a decisão do Mandado de Injunção, cujo objetivo era a defesa de 174 RTJ. 133:33-37. 123 direitos individuais, fosse constitutiva, já que na ação direta de inconstitucionalidade por omissão, na qual o controle é abstrato e onde o objetivo é a tutela da ordem constitucional objetiva, a eficácia é declaratória ou mandamental; h) se a decisão em Mandado de Injunção fosse constitutiva, esse instituto esvaziaria a ação direta de inconstitucionalidade por omissão; i) a denominação do instituto e sua colocação ao lado do Mandado de Segurança, no inciso que o prevê (artigo 5º, LXXI), indicavam que o mesmo era uma ação mandamental. Quanto aos quatro primeiros argumentos, obviamente que o legislador não é livre para, por meio de sua omissão, inviabilizar o exercício de direitos associados à liberdade política (em seus aspectos de autonomia e de participação), nem tampouco a separação dos poderes, a democracia e o princípio da legalidade podem ser utilizados como justificativas para impedir o incremento do controle das atividades dos órgãos do Estado pelos indivíduos, especialmente quando esse controle é realizado em benefício da liberdade. Com relação às cinco objeções restantes, a última é a que merece menor atenção, pois afirmar que o Mandado de Injunção possui natureza mandamental porque o inciso que o prevê está ao lado do inciso do Mandado de Segurança não serve de argumento, visto que para tanto seria necessária a comprovação que a proximidade de incisos é um critério hermeneuticamente válido, a ponto de se atribuir a um instituto as mesmas características previstas no outro, comprovação esta que não parece ter sido cogitada por qualquer doutrinador conhecido. 124 Da mesma maneira, interpretar uma instituição por seu nomen iuris seria inadequado, uma vez que as razões que levaram o Constituinte a denominar o instituto dessa forma são desconhecidas e, nesse aspecto, irrelevantes. A questão levantada no argumento do item “f”, criado para os proponentes da eficácia constitutiva da decisão do Mandado de Injunção pelo binômio alterabilidade do direito/autoridade de coisa julgada sobre a regulamentação, foi resolvida pelo próprio STF no Mandado de Injunção número 283, em que se definiu que a relação entre a regulamentação judicial transitada em julgado e a superveniente criada pelo órgão original de competência, observaria o princípio da retroatividade da regulamentação mais benigna.175 No que tange ao argumento apresentado no item “g”, o fato de se entender o Mandado de Injunção como possuidor de eficácia constitutiva, não esvazia a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, pelas seguintes razões: 1) o Mandado de Injunção só serviria quando a omissão fosse de natureza normativa (falta de norma regulamentadora), enquanto que a ação direta de inconstitucionalidade é adequada para qualquer tipo de omissão (omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional), seja ela normativa ou não; 2) o Mandado de Injunção só seria adequado para tornar efetivas normas que definissem determinados direitos constitucionais, ao passo que a ação direta de inconstitucionalidade por omissão cabe ainda que a norma não efetiva, em função da omissão, tenha por objeto um dever estatal que não importe em um direito de particulares; e, 3) a ação de inconstitucionalidade por omissão - em razão de ser proposta por órgãos 175 A ementa do acórdão referido assevera: “a superveniência de lei não prejudicará a coisa julgada (formada em um processo diferente e posterior ao julgamento de um mandado de injunção) que, entretanto, não impedirá o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, nos pontos em que lhe for mais favorável.” (RTJ. 135:883). 125 politicamente representativos e por ser analisada em abstrato (inconstitucionalidade em tese) – possui uma maior carga de reprovação e expressão política. Finalmente, no que se refere ao argumento contido no item “e”, é correta a afirmação de que nem todos os direitos constitucionais podem ser viabilizados por meio de uma regulamentação, pois precisam de uma instância políticoadministrativa, com a organização de serviços, alocação de recursos e regulamentações de natureza técnica. Mas daí não decorre, necessariamente, que a eficácia da sentença do Mandado de Injunção não possa ser constitutiva. Na verdade, parece que o Relator do MI 107 fincou a posição de que a ação injuntiva é aplicável a todos os direitos constitucionais – inclusive os que, em razão de necessitarem de ações materiais administrativas para a sua operacionalização, não podem ser viabilizados pela criação judicial de uma regulamentação –, mas, como não é possível solucionar o problema de todos os direitos por meio de regulamentações, estas não seriam criadas para nenhum direito. Ou seja, o mandamus tutelaria todos os direitos, mas seria totalmente destituído de qualquer importância prática, visto que seus efeitos seriam apenas declaratórios. Declaratórios, e não mandamentais, porque estes últimos existem quando a decisão judicial se caracteriza por ser uma verdadeira ordem, um mandado. E, para tal caracterização, é indispensável a presença de uma pena para aqueles que descumprirem a decisão, pena sequer cogitada no MI 107. Destarte, todos os argumentos levantados pelo Ministro Relator foram refutados, não se podendo afirmar que tenham sido capazes de afastar qualquer argumento contra uma interpretação do instituto que procure garantir a ele o máximo de efetividade e de relevância político-constitucional. De outra banda, importante 126 ressaltar que a posição ventilada no MI 107 não deve ser confundida com o entendimento definitivo do Supremo Tribunal Federal, mas deve ser entendida como a posição daquele Tribunal naquele particular momento histórico176, visto que, logo após o julgamento do MI 107, começaram a surgir divergências entre os ministros e alguns deles mudaram suas opiniões, ou ainda pelo fato de que novos ministros passaram a compor a Corte Suprema. Posteriormente, alguns ministros do STF – especialmente Marco Aurélio de Mello, Carlos Mário da Silva Velloso e Ilmar Galvão – têm reconhecido que a concessão do Mandado de Injunção deve resultar na edição de uma regulamentação judicial pela corte judicial competente, conforme afirmou o Ministro Ilmar Galvão, em voto dissidente, quando do julgamento do MI 284: O pedido que prepondera no Mandado de Injunção não é o de que se compila o Poder Legislativo a elaborar a lei faltante, mas o consistente em que se viabilize a concretização da vontade da norma constitucional, mediante a satisfação do direito por ela atribuído ao impetrante. Não se trata, pois, de ação mandamental. Nele, o Tribunal não expede ordem de elaboração de lei. O que lhe cabe é, na falta desta, ditar a regra a ser utilizada no caso concreto. A citação dos órgãos do Poder Legislativo, portanto, tem o sentido de mera ciência, a fim de que tome, se for o caso, as medidas necessárias à expiação de sua mora.177 A primeira alteração significativa do STF surgiu já em 1991, quando do julgamento, em 20 de março, do Mandado de Injunção nº 283, já mencionado no item 4.1 deste trabalho, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, versando sobre um direito indenizatório previsto no § 3º do artigo 8º do Ato das Disposições 176 HAGE, Jorge. Omissão inconstitucional e direito subjetivo. Brasília: Brasília Jurídica, 1999. p.160-167: também é certo, como salienta este autor, que se pode perceber no voto de alguns dos ministros (especialmente Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Célio Borja) a existência, mesmo durante a aclamação unânime do voto do Ministro Relator Moreira Alves, de algumas reticências quanto aos seus resultados. 177 RTJ. 139:722 127 Constitucionais Transitórias (ADCT). Nesse processo, o STF decidiu conferir ao Congresso Nacional um prazo para que este regulamentasse a disposição constitucional, sob pena de concessão de efeitos constitutivos para essa decisão judicial. A propósito, veja-se um trecho do memorável acórdão: Premissas, de que resultam, na espécie, o deferimento do Mandado de Injunção para: a) declarar em mora o legislador com relação à ordem de legislar contida no art. 8º, § 3º, ADCT, comunicando-se ao Congresso Nacional e à Presidência da República; b) assinalar o prazo de 45 dias, mais 15 dias para a sanção presidencial, a fim de que se ultime o processo legislativo da lei reclamada; c) se ultrapassado o prazo acima, sem que esteja promulgada a lei, reconhecer ao impetrante a faculdade de obter, contra a União, pela via processual adequada, sentença líquida de condenação à reparação constitucional devida, pelas perdas e danos que se arbitrem; d) declarar que, prolatada a condenação, a superveniência de lei não prejudicará a coisa julgada, que, entretanto, não impedirá o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, nos pontos em que lhe for mais favorável. Em outras palavras, mesmo que de forma disfarçada, o STF, como “punição” pelo desrespeito do prazo por ele fixado, realizou a regulamentação, por meio de efeitos constitutivos de sua decisão, que no MI 107 havia informado não constituir o objeto do Mandado de Injunção, visto que seria, em tese, incompatível com a Constituição. O suposto caráter mandamental atribuído à decisão do MI 107 – meramente declaratório – converteu-se, assim, de modo disfarçado, em eficácia constitutiva. As decisões proferidas nos MI 384, 355 e 447, entre outras, também regulamentadoras do § 3º do artigo 8º do ADCT, se seguiram, sendo que a única diferença entre estas e a tomada no MI 283 é que, por serem posteriores à fruição do prazo de 60 dias concedidas ao Congresso Nacional e ao Presidente da 128 República para a regulamentação, inexistia a concessão de novos prazos, reconhecendo-se desde logo, aos beneficiários dessa norma transitória, a possibilidade de ajuizarem, com fundamento no direito comum, a pertinente ação de reparação econômica, resultando em imediatos efeitos constitutivos para as mencionadas decisões. Dessa forma, nos julgamentos supramencionados, o STF adotou duas diferentes medidas que entendera, no passado, juridicamente impossíveis. A primeira foi ordenar, no sentido propriamente mandamental, as condutas do Presidente da República e do Congresso Nacional, ainda que a pena por descumprimento não recaísse em nenhum dos dois, posto que eventual “sanção” aplicada à União, não pudesse ser considerada uma punição de comportamento dos congressistas e/ou do Presidente da República. A segunda foi a concessão, ainda que de forma discreta, de efeitos constitutivos à decisão do Mandado de Injunção, embora se tenha negado a realizar uma regulamentação detalhada do dispositivo constitucional, transferindo a responsabilidade para os juízes de primeira instância. Estabeleceu-se, assim, a despeito de suas considerações anteriores quanto à eficácia constitutiva da decisão, que entendera impossível, um resultado alternativo e acessório do Mandado de Injunção (punição em caso de descumprimento). O STF decidiu ainda, de forma constitutiva, no MI 232 –- também já mencionado no item 4.1 deste estudo, julgado em 02 de agosto de 1991. Nessa ação, discutiu-se a imunidade prevista no artigo 195, § 7º, da CRFB/88 – que entidades filantrópicas de assistência social tinham de pagar contribuições para a seguridade social, apesar da imunidade legal prevista, uma vez que não havia qualquer critério para as autoridades públicas diferenciarem umas entidades 129 beneficentes de outras, a fim de reconhecer a algumas a imunidade e a outras não. Diante dessa situação, o STF resolveu deliberar de modo semelhante ao que havia feito no MI 283, fixando um prazo para que o legislador regulamentasse o referido dispositivo, findo o qual a impetrante passaria a gozar, automaticamente, da imunidade prevista na norma constitucional. Veja-se trecho do acórdão: Mandado de Injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se impõem para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do art. 197, § 7º, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra passar o requerente a gozar da imunidade requerida.178 Também nesse caso, a “sanção”, na hipótese de descumprimento da determinação de legislar, foi a “regulamentação” da norma constitucional que estabelece a imunidade, bastando a entidade comprovar ter cumprido os dois requisitos constitucionalmente previstos, quais sejam, constituir-se em instituição de assistência social, sem fins lucrativos. Tratou-se, portanto, de decisão constitutiva que importou em substituição, ainda que provisória e restrita ao caso concreto, da atividade legislativa, embora de forma disfarçada e sob a aparência de uma sanção no caso de descumprimento do que fora decidido. Esse estranho caráter de sanção, que a eficácia regulamentadora/constitutiva possui nas decisões retro-mencionadas, é confirmado expressamente pelo Ministro Sepúlveda Pertence que, no julgamento do MI 361, asseverou: A mim me parece que o prazo só é adequado, no dispositivo do Mandado de Injunção, quando seja possível cominar conseqüências à sua superação, in albis, como fizemos no Mandado de Injunção nº 178 RDA. 199:155 130 283, Caso Daudt, porque se tratava de obrigação imputável à União, vale dizer, à pessoa jurídica responsável pela mora legislativa.179 Evidente que “conseqüências à [...] superação in albis” do prazo estabelecido pelo STF é uma sanção que atribui, ainda que de forma velada, o caráter constitutivo à decisão judicial concessiva do Mandado de Injunção, desde que a pessoa obrigada a cumprir o conteúdo da regulamentação seja a mesma à qual possa ser imputada a omissão inconstitucional. Tal condição adicional, todavia, não descaracterizou o fato de o STF ter, nos casos alinhavados, conferido eficácia constitutiva ao Mandado de Injunção. O ex-Ministro Néri da Silveira, em pronunciamento realizado em 16 de março de 1995, descreveu a situação das posições do STF da seguinte maneira: Há, como sabemos, no julgamento dos Mandados de Injunção, três correntes: a majoritária, que se formou a partir do Mandado de Injunção nº 107, que entende deva o Supremo Tribunal Federal, em reconhecendo a existência da mora do Congresso Nacional, comunicar a existência dessa omissão, para que o Poder Legislativo elabore a lei. Outra corrente, minoritária, reconhecendo também a mora do Congresso Nacional, decide, desde logo, o pedido do requerente do Mandado de Injunção e provê sobre o exercício do direito constitucional previsto. Por último, registro a minha posição, que é isolada: partilho do entendimento de que o Congresso Nacional deve elaborar a lei, mas também tenho presente que a Constituição, por via do Mandado de Injunção, quer assegurar aos cidadãos o exercício de direitos e liberdades, contemplados na Carta Política, mas dependentes de regulamentação. Adoto posição que considero intermediária. Entendo que se deva, também, em primeiro lugar, comunicar ao Congresso Nacional a omissão inconstitucional, para que ele, exercitando sua competência, faça a lei indispensável ao exercício do direito constitucional assegurado aos cidadãos. Compreendo, entretanto, que se o Congresso não fizer a lei, em certo prazo que se estabelece na decisão, o Supremo Tribunal Federal pode tomar conhecimento da reclamação da parte, quanto ao prosseguimento da omissão, e, a seguir, dispor a respeito do direito in concreto. É, por isso mesmo, uma posição que me parece concilia a prerrogativa do Poder Legislativo de fazer a lei, como o órgão competente para a criação da norma, e a possibilidade de o Poder Judiciário garantir aos cidadãos, assim como quer a 179 RTJ. 158:385 131 Constituição, o efetivo exercício de direito na Constituição, assegurando, mesmo se não houver elaboração de lei.180 Essa declaração demonstra que, pelo menos, Néri da Silveira tinha absoluta consciência de que a posição assumida nos MI 283 e 232, e em outros processos semelhantes, assegurava à sentença do Mandado de Injunção uma eficácia constitutiva regulamentadora, ainda que posterior a uma nova oportunidade de regulamentação para o órgão omisso. Por tudo isso, o STF não poderá continuar a insistir por muito tempo na linha argumentativa do MI 107, que ele mesmo já vem rejeitando, ainda que de forma velada, restando-lhe converter sua posição atual naquela que é defendida pelos Ministros Marco Aurélio de Mello e Celso de Mello, ou seja, concessão de eficácia constitutiva e tutela de todos os direitos constitucionais181, ou o abandono de sua posição atual e a adoção de uma nova linha interpretativa, mais compatível com a ordem constitucional brasileira. 5.3 Cotejo das decisões em face do Poder Legislativo Conforme já se ressaltou neste trabalho, a pesquisa jurisprudencial realizada no STF acerca do Mandado de Injunção revelou que de um total de 743 mandamus 180 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ata da 7ª Sessão Extraordinária . Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 4 abr. 1995. p.8265-6. 181 A própria posição tomada nos MI 232 e 283, é perfeitamente assimilável na posição dos referidos Ministros, visto que, em última análise, essas decisões são constitutivas, regulamentando o direito constitucional pleiteado em juízo. Nesse sentido, oportuno ressaltar o julgamento do RMS nº 22.307, julgado em 19/02/1997, no qual o STF realizou uma extensão de benefício incompatível com o princípio da igualdade, atribuindo aos funcionários públicos civis impetrantes do mandado de segurança o mesmo reajuste de vencimentos que havia concedido aos militares, uma vez que se tratava de “revisão geral dos vencimentos” que, portanto, por força da Constituição, deveria ser estendida a todos os funcionários públicos federais. Nessa decisão, o STF afastou-se de sua orientação tradicional (caracterizada pela Súmula 339 – necessidade de lei para a concessão de reajuste de vencimentos), e realizou o reajuste judicialmente. 132 já impetrados desde a Carta de 1988, apenas 89 foram deferidos pela Corte Suprema, alguns de forma parcial, mas todos recomendando ao Poder Legislativo Federal a edição da norma faltante e exigível constitucionalmente. Os resultados da pesquisa em questão, como já mencionado, foram obtidos da Seção de Pesquisa de Jurisprudência182 daquela Corte, por correspondência eletrônica, cuja documentação enviada foi cuidadosamente analisada e conferida, inclusive confrontando-se os acórdãos existentes no mesmo sentido, evitando-se, assim, eventual duplicidade que poderiam comprometer a metodologia desenvolvida neste estudo. De posse de tais importantes informações oficiais, adquiridas diretamente do órgão responsável para julgar o remédio constitucional, objeto deste trabalho, passou-se à segunda fase da pesquisa, visando responder ao objetivo inicialmente proposto, qual seja, se o Mandado de Injunção garante ou não eficazmente os direitos fundamentais preconizados na Constituição de 1988. Nesta segunda fase, a busca se concentrou no Poder Legislativo Federal, mais precisamente na Câmara dos Deputados, em Brasília, visando aferir quantas recomendações emanadas do STF em Mandados de injunção teriam sido recepcionadas naquela Casa de Leis e, mais do que isso, quantas recomendações resultaram na edição da norma regulamentadora indicada pelo Poder Judiciário competente. Neste sentido, o Centro de Documentação e Informação (CEDI)183, localizado no Anexo II da Câmara dos Deputados, expediu e disponibilizou o histórico de todos os expedientes recebidos naquela Casa de Leis provenientes do Supremo Tribunal 182 183 Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/jurisp.asp?tip=aco>. Acesso em 26 nov.2006. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/conheca/estruturaadm/cedi>. Acesso em 18 dez. 2006. 133 Federal, relativamente a Mandados de Injunção, contendo a tramitação desses documentos até sua final decisão. Ou seja, disponibilizou amplo levantamento efetuado no acervo existente a respeito de Mandados de injunção recebidos pela Câmara a partir de 1988, cujo resumo pode ser conferido ao final deste trabalho. O material recebido foi cuidadosamente analisado e confrontado com as recomendações oriundas do STF acerca do assunto, oportunidade em que a pesquisa revelou que, dos expedientes recepcionadas pela Câmara dos Deputados, ao longo desses anos, nenhum se transmudou na edição da lei recomendada pelo STF no bojo de Mandado de Injunção impetrado naquela Corte. Repita-se, nenhuma recomendação recepcionada pelo Poder Legislativo Federal resultou na edição da norma indicada pelo Poder Judiciário. A pesquisa realizada no banco de dados do Supremo Tribunal Federal revelou, ainda, que no período de 1988 a 2006, o STF julgou um total de 1.013.959 processos, dos quais apenas 705 se referiam a Mandados de Injunção, ou seja, menos de um por cento desse total (na verdade, cerca de 0,069%).184 Vide tabela comparativa ao final deste trabalho, no item Anexos. Ou seja, é muito significativo que menos de um processo em mil, ou seja, menos do que 0,1% de todos os processos apreciados na Suprema Corte, seja relativo ao Mandado de Injunção, o que demonstra o descrédito que veio a caracterizar o instituto. Obviamente que, referente às matérias ventiladas nos mandados deferidos pelo STF, uma lei ou outra foi editada, como por exemplo a Lei 10.101, de 19.12.2000, que dispôs sobre a participação dos trabalhadores nos lucros ou 184 Disponível em: <http:/www.stf.gov.br>. Acesso em 7 out. 2007. 134 resultados da empresa, prevista no artigo 7º, XI, CRFB/88. Todavia, nenhuma foi editada em função das recomendações oriundas de Mandados de injunção, mas sobretudo resultantes de projetos de leis já existentes acerca do assunto, de livre iniciativa do poder competente, sem qualquer nexo com as decisões proferidas na ação injuntiva. No caso da Lei mencionada, o que ocorreu foi a conversão da Medida Provisória nº 1982-77, de 23.11.2000, editada pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso185, sem qualquer vínculo com as recomendações emanadas pelo STF em Mandados de injunção acerca dessa matéria. A pesquisa revelou que a maioria das recomendações recepcionadas pela Câmara dos Deputados versava sobre a regulamentação do artigo 192, § 3º, da Constituição de 1988, que dispunha sobre os juros reais de 12% ao ano, cujo artigo, como se sabe, nunca foi regulamentado, visto que revogado pela Emenda Constitucional número 40, de 29 de maio de 2003. 5.4 Reflexões sobre o resultado da pesquisa No cotejo das informações recebidas do STF e da Câmara dos Deputados, conclui-se que, se a eficácia jurídica (leia-se: a possibilidade de aplicação da norma, no sentido de possibilidade de produção de efeitos) do mandamus vem se afirmando ao longo do tempo, o mesmo não se pode falar acerca de sua desejável eficácia social (ou efetividade, na preferência de alguns autores), no sentido de ser obedecida e aplicada pelos órgãos competentes. 185 Disponível em: <http:/www.planalto.gov.br>. Acesso em 9 fev. 2007. 135 Tal conclusão é preocupante, na medida em que uma omissão normativa inconstitucional que inviabilize o exercício de um direito-liberdade constitucional ou uma prerrogativa política é sempre danosa ao Estado de Direito e à Democracia, que não podem existir sem a defesa dos direitos fundamentais e sem a plena viabilidade do exercício dos direitos políticos. A criação do Mandado de Injunção como remédio constitucional supridor dessas omissões visava justamente conferir garantia de efetividade aos direitos constitucionais delineados em nossa jovem Constituição de 1988 e que precisavam ser regulamentados pelo órgão competente. Nesse sentido, ao possibilitar a criação de soluções regulamentares provisórias, o Mandado de Injunção poderia ter o condão de desestimular a manutenção de omissão inconstitucional, visto que: 1) a autoridade competente não poderia auferir qualquer vantagem derivada da não regulamentação da norma constitucional definidora do direito ou prerrogativa tutelável; 2) geraria uma grave censura de natureza política, pois demonstraria que a regulamentação é possível, comprovando assim que a omissão seria apenas o resultado de uma inatividade dolosa ou culposa do Poder, órgão ou autoridade omisso. Diante dessa inércia legislativa inviabilizando a desejada eficácia social (ou efetividade) que se esperava desse tão importante remédio constitucional, este 136 trabalho defende a tese, com amplo apoio doutrinário186, de que, na decisão de procedência no processo de Mandado de Injunção, o Poder Judiciário agiria substituindo o Poder, órgão ou autoridade omissos, exarando uma sentença de eficácia constitutiva, capaz de criar uma regulamentação infraconstitucional suficiente para garantir ao sujeito ativo a plenitude do exercício do seu direito amparado constitucionalmente. Nesse diapasão, Vicente Greco Filho187 propôs que o Tribunal elaborasse a norma, admitida a alternativa de antes ser dada a oportunidade para que o poder competente o fizesse e, se isto não ocorrese, o Judiciário o faria para que exercesse então o direito constitucional. Talvez essa seja a solução mais adequada para que o Mandado de Injunção possa cumprir sua função precípua, permitindo ao cidadão exigir as condições legais para o exercício dos direitos fundamentais que lhes são assegurados pela Constituição de 1988, e que ainda dependem de norma infraconstitucional regulamentadora. 186 VELOSO, Carlos Mário. As novas garantias constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p.7-17: o autor acredita que “no mandado de injunção, reconhecendo o juiz ou tribunal que o direito que a Constituição concede é ineficaz ou inviável, em razão da ausência de norma infraconstitucional, fará ele, juiz ou tribunal, por força do próprio mandado de injunção, a integração do direito à ordem jurídica, assim tornando-o eficaz e exercitável.” Cf. também BACHA, Sérgio Reginaldo. A evolução do mandado de injunção na Suprema Corte Brasileira. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul.-set. 1997, quando afirma que “o Poder Judiciário deverá, a exemplo do que já ocorre com a função da sentença, formular uma norma para o caso concreto, viabilizando assim o exercício dos direitos constitucionais e das liberdades públicas.” 187 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989. p.183-184. 137 6 POSSÍVEIS SOLUÇÕES PARA VIABILIZAR MAIOR EFICÁCIA AO MANDADO DE INJUNÇÃO 6.1 O processo de investidura dos Ministros do Supremo Tribunal Federal Como é cediço, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 101, exige apenas três requisitos para a investidura de Ministro do STF: a idade entre 35 e 65 anos, o notável saber jurídico e a reputação ilibada, que, uma vez presentes, habilitam indicação e nomeação pelo Presidente da República, após a aprovação do seu nome pela maioria absoluta do Senado Federal, que sabidamente nunca reprovou nenhum candidato. Nos Estados Unidos da América, que dispõe de mecanismo semelhante, a Suprema Corte cumpre sua missão constitucional, mas no Brasil esse método de escolha, que deveria servir de equilíbrio, definitivamente não funciona, haja vista nossa cultura, centralizadora e autoritária, em que o Poder Executivo normalmente é preponderante. De outra banda, ao dar maior ênfase ao controle concentrado de constitucionalidade, como se tem visto ultimamente, relegamos a segundo plano o eficiente controle difuso, num retrocesso sem precedentes. Urge, portanto, substituir o atual método de escolha dos Ministros do STF, por qualquer outro que seja mais democrático e eficaz, a fim de que a jurisdição constitucional possa ser, de fato, independente. Sugestões não faltam, como é óbvio. Alexandre Nery de Oliveira, ao discorrer sobre a reforma do Judiciário, sugere um sistema de cooptação, com a participação dos próprios Ministros do STF, desde 138 que a escolha recaísse em magistrados de Tribunais Superiores, o que deveria ser capaz de impedir as investiduras com base em critérios políticos, ou ainda, que a investidura dos ministros do Supremo fosse feita a partir de listas encaminhadas pelos Tribunais Superiores, pelo Ministério Público e pela OAB.188 A respeito, Alexandre de Moraes defende a transformação do Supremo em Corte Constitucional, e a participação mais efetiva dos três Poderes na escolha de seus membros, que deveriam ter mandatos limitados, proibida a recondução.189 Mais coerente com a nossa tradição jurídica, Dalmo Dallari sugere, apenas, uma restrição ao processo atual, através da apresentação de listas tríplices, pela OAB, pela Magistratura e pelo Ministério Público.190 Sem dúvida o processo de escolha dos Ministros do STF assume atualmente uma grande importância, principalmente pela opção em favor do sistema concentrado de constitucionalidade, que tende a sobrepujar o sistema difuso, concentrando o poder decisório no STF. 6.2 Sentenças manipulativas aditivas Infirmada a constitucionalidade do preceito discriminatório “naquilo que faltou fazer”, supera-se a omissão relativa pela incidência obrigatória de norma constitucional auto-aplicável, nos moldes já desenvolvidos na Espanha e na Itália, 188 OLIVEIRA, Alexandre Nery. A reforma do Judiciário - IV. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em 5 ago. 2006. 189 MORAES, Alexandre de. Jurisdição constitucional e tribunais constitucionais. São Paulo: Atlas, 2000. p.324. 190 DALLARI, Dalmo de Abreu. op. cit. p.119. 139 pelas chamadas sentenças “manipulativas aditivas”.191 É certo que mesmo nesses países o assunto ainda é polêmico, haja vista que alguns doutrinadores sustentam que tais mecanismos convertem o órgão controlador em “legislador positivo”. De qualquer forma, segue prevalente a tese de que o tribunal constitucional, como acima sustentado, apenas faz emergir, por via da interpretação, norma autoaplicável e já presente no texto constitucional.192 Na defesa desse tipo de controle sobre as omissões relativas, Diaz Revorio pondera que, em muitos casos, as exigências constitucionais podem impor a extensão do regime previsto no preceito discriminatório, já que a supressão da regulação favorável iria contra certos mandamentos contidos na própria Constituição. Se a disciplina deficiente representa, ainda que de modo incompleto, a atuação da Constituição, o realizado na disciplina não pode ser “desatuado” contra a vontade da norma fundamental.193 Por isso, num contexto constitucional com grande elenco de direitos sociais, é justificável o fato de a Corte Constitucional espanhola preferir considerar a legislação antiisonômica como portadora de “insuficientes generalizações” a benefícios em sentido inconstitucional. 191 BERNARDES, Juliano Taveira. Novas perspectivas do controle da omissão inconstitucional no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em 24 abr. 2006. 192 CAMPO, Jimenez Javier. La declaración de inconstitucionalidad de la ley. In: LLORENTE, Francisco Rubio. Estudios sobre jurisdicción constitucional. Madrid: McGraw-Hill, 1998. p.135136: para Jimenez Javier Campo, a reparação da inconstitucionalidade omissiva relativa, por parte do tribunal constitucional, não pode acarretar atividade de legislação positiva. Entende o jurista espanhol que, por isso, tal reparação haveria de ser necessariamente mediada pela intervenção da lei ou de outra decisão judicial que viesse a ser depois editada pelo juízo ordinário. Destarte, quando implementa a reparação imediata daquele tipo de vício, o TC espanhol trabalha sob a falsa premissa segundo a qual, por intermédio da anulação da negação implícita contida na lei, é possível introduzir no enunciado legal as determinações por cuja falta o legislador incidiu em inconstitucionalidade. Nesses casos, porém, como a nulidade é sanção puramente ablativa, a reparação da inconstitucionalidade por omissão não nasce da invocação da própria nulidade. Surge, na verdade, de nova ordenação abstrata, materialmente legislativa, baixada pelo próprio TC, com desrespeito aos limites da jurisdição constitucional. 193 REVORIO, Francisco Javier Diaz. Las sentencias interpretativas del Tribunal Constitucional. Valladolid: Lex Nova, 2001. p.207. 140 Embora não se devam chancelar privilégios injustificados, a solução aditiva, quando contrastada com a opção de decretar a inconstitucionalidade do regime favorável, é mais respeitosa com as exigências constitucionais.194 Em suma, a sentença aditiva é uma maneira de salvar, ao menos parcialmente, a decisão tomada pelo legislador. Oportuno salientar, entretanto, que não são todos os casos de omissão que admitem livremente sentenças “manipulativas” aditivas. A Corte Constitucional italiana, com base no rigoroso princípio da legalidade em matéria penal, não admite sentenças aditivas in malam partem.195 Por outro lado, conhecendo o problema financeiro que a solução judicial pode ensejar, a doutrina italiana tem diferenciado decisões “aditivas de gastos” ou de “prestação” (additive di spese e additive de prestazione) daquelas “aditivas de garantias”. Com isso, questiona-se a constitucionalidade de precedentes da Corte Constitucional italiana nos quais não houve indicação da fonte de recursos necessários para suportar o aumento de despesas decorrentes da extensão, mediante sentenças “aditivas de prestação”, do original programa normativo da lei deficitária. Essa discussão se funda no artigo 81, § 4º, da Constituição italiana, o qual exige - de forma até mais contundente que o artigo 63 da CRFB/88 – que qualquer lei que implique novos ou maiores gastos deve indicar os meios para lhes fazer frente. A saída para esse problema, tanto no Brasil quanto na Itália, parece estar no raciocínio exposto por Romboli, para quem o artigo 81, § 4º, da Constituição italiana não vincula diretamente os pronunciamentos judiciais, mas deve ser visto como princípio a ser considerado e valorado pela Corte no momento de julgar a 194 195 REVORIO, Francisco Javier Diaz. op. cit. p.208-215. CERRI, Augusto. Corso de giustizia costituzionale. Milano: Giuffrè, 2001. p.237-238. 141 legitimidade constitucional de uma lei.196 Logo, a decisão do tribunal não poderá indicar uma regra que traduza a solução constitucional obrigatória, senão apontar princípio ou princípios que nortearão as posteriores modalidades de atuação normativa necessárias para corrigir a disciplina incompleta. É importante enfatizar que, nas decisões aditivas (também ditas modificativas ou manipulativas), a inconstitucionalidade detectada não reside tanto naquilo que a norma preceitua, quanto naquilo que ela não preceitua; ou, por outras palavras, a inconstitucionalidade acha-se na norma na medida em que não contém tudo aquilo que deveria conter para responder aos imperativos da Constituição. E então, o órgão de fiscalização acrescenta (e, acrescentado, modifica) esse elemento que falta.197 Sustenta Jorge Miranda que o órgão de fiscalização não se comporta aqui como legislador, pois não age por iniciativa própria e nem segundo critérios políticos; age em processo instaurado por outrem e vinculado aos critérios de interpretação e construção jurídica inerentes à hermenêutica constitucional.198 6.3 A questão da “separação de poderes” Numa versão sintetizada de alguns capítulos de sua tese de doutoramento defendida na Faculdade de Direito da USP, Rubens Beçak afirma em artigo homenageando Sérgio Resende de Barros, que os poderes estatais exercem funções que, em tese, não lhes seriam atinentes, mas que em realidade o fazem como atribuições necessárias à realização de suas próprias tarefas, e que não é a 196 ROMBOLI, Roberto. Revista Española de Derecho Constitucional. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, set.-dez. 1996. p.105-106. 197 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.514. 198 Ibidem. p.515. 142 realização de atividades secundárias por um determinado poder que o desvia da consecução de sua atividade principal.199 Pois bem. Em pelo menos duas decisões, o Supremo Tribunal Federal, deixando de lado sua dogmática posição de não agir como “legislador positivo”, culminou por realizar autênticas “adições normativas”, contemplando situações que eram frontalmente contrárias à “vontade negativa” do Legislativo. Numa delas, estendeu aos proventos de servidores inativos aumentos remuneratórios que os discriminaram, utilizando-se do mesmo raciocínio adotado para justificar as sentenças manipulativas aditivas, já mencionadas, argumentando que o Tribunal pode desconsiderar a norma infraconstitucional discriminatória a pretexto de aplicar uma outra norma, auto-aplicável, já prevista na Constituição da República. Senão, vejamos: ISONOMIA – ATIVOS E INATIVO - § 4º DO ARTIGO 40 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – APLICABILIDADE. A garantia insculpida no § 4º do artigo 40 da Constituição Federal é de eficácia imediata. A revisão dos proventos da aposentadoria e a extensão aos inativos de quaisquer benefícios e vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade pressupõem, tão-somente, a existência de lei prevendo-os em relação a estes últimos. O silêncio do diploma legal quanto aos inativos não é de molde a afastar a observância da igualação, sob pena de relegar-se o preceito constitucional a plano secundário, potencializando-se a atuação do legislador ordinário como se a este fosse possível introduzir, no cenário jurídico, temperamentos à igualdade. Uma vez editada lei que implique outorga de direitos aos servidores em atividade, dá-se, pela existência da norma constitucional, a repercussão no campo patrimonial dos aposentados. A locução contida na parte final do § 4º em comento – “na forma da lei” – apenas submete a situação dos inativos às balizas impostas na outorga do direito aos servidores da ativa.200 199 BEÇAK, Rubens. A legiferação pelo Executivo: evolução e situação atual no Brasil. In: CASTARDO, Hamilton Fernando; et. al. (coords.). Lições de direito constitucional em homenagem ao Prof. Dr. Sérgio Resende de Barros. Campinas, SP: Millennium, 2007. p.183. 200 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 198.129 . Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 30 mai. 1997: referiu-se à redação original do § 4º, da CF/88. Atualmente, por força da EC 41/2003, a mesma regra está no § 8º do citado artigo 40. 143 No mesmo sentido foi a decisão do Supremo Tribunal Federal no RMS 22.307/DF, conforme ementa extraída do acórdão: REVISÃO DE VENCIMENTOS – ISONOMIA. A revisão geral de remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data – inciso X – sendo irredutíveis, sob o ângulo não simplesmente da forma (valor nominal), mas real (poder aquisitivo) os vencimentos dos servidores públicos civis e militares – inciso XV, ambos do artigo 37 da Constituição Federal.201 Extrai-se desses dois exemplos que o Supremo Tribunal Federal constatou a ocorrência de implícita omissão relativa “determinada”, e então decidiu aplicar a regra constitucional obrigatória ao caso, e como tais decisões resultaram em acréscimo de gastos não previstos na legislação guerreada, os efeitos “aditivos” implementados pelo Supremo foram classificados como “aditivo de prestação”, ou seja, o mais complicado deles. Após a decisão proferida no RMS 22.307/DF, outras a ela se seguiram de forma semelhante por toda a Justiça Federal, culminando na edição de Medida Provisória do Presidente da República, estendendo os efeitos daquele julgamento do Supremo.202 Por fim, não menos importante, o julgamento proferido pelo STJ em matéria penal, atribuindo efeito aditivo “de garantia” ao interpretar o artigo 2º da Lei 10.259, de 12.07.2001. Como é cediço, esse dispositivo fixou a competência dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal, para o julgamento das infrações 201 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Min. Marco Aurélio. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 13 jun. 1997. p.26722: nesse caso, conforme havia decidido no Processo Administrativo 19.426-3 – em que se consideraram, entre outros fatores, “a auto-aplicabilidade e, portanto, a imperatividade, com eficácia imediata, da norma constitucional asseguradora da revisão geral da remuneração de civis e militares na mesma data, sem distinção de índice” -, com base no inciso X do artigo 37 da CF/88 (em sua redação original), estendeu a outros servidores públicos a revisão salarial concedida somente a determinadas categorias pelas Leis 8.622, de 10 de janeiro de 1993, e 8.627, de 19 de fevereiro de 1993. 202 Atual Medida Provisória 2.169-43/2001. 144 de menor potencial ofensivo e o parágrafo único do mesmo artigo assim as definiu: “Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”. Ocorre que, no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais e do Distrito Federal, o legislador já havia estabelecido o conceito dessas no artigo 61 da Lei 9.099, de 26.09.1995, dispondo que estas somente se restringiam aos delitos criminais cuja pena máxima não fosse superior a um ano. Ora, como tal disparidade implicaria tratamento discriminatório, o STJ, estribado exatamente no princípio da isonomia, passou a entender que a nova definição de crimes de menor potencial ofensivo acabou por derrogar aquela prevista no artigo 61 da Lei 9.099/95, a despeito da regra de exclusão explícita, contida no mencionado parágrafo único do artigo 2º da Lei 10.259/01, que restringia o novo conceito de crimes de menor potencial ofensivo apenas para os efeitos da própria Lei 10.259/01. Em outras palavras, o STJ acabou considerando inconstitucional omissão relativa expressa, pretensamente cometida pelo legislador e, em razão do princípio da isonomia, estendeu a nova definição de crimes de menor potencial ofensivo também para o âmbito Estadual, não obstante a cláusula explícita de exclusão contida na Lei 10.259/01. Destarte, com todos esses exemplos, tudo indica que as sentenças aditivas efetivadas no controle concreto de constitucionalidade brasileiro podem e devem avançar em direção ao âmbito da fiscalização abstrata. A propósito, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn 2.652/DF, corrigiu, na redação da Lei 10.358/2001, omissão relativa que excluía advogados vinculados a entidades estatais da exceção prevista no artigo 14 do CPC. Referido 145 dispositivo ressalvava da imposição de multa por obstrução à Justiça tão-só “os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB”. Assim, da forma como editada, a expressão “exclusivamente” deixava claro que a regra legal continha inequívoca vontade de excluir da ressalva os advogados e procuradores de entidades públicas, já que sujeitos também à disciplina estatutária dessas entidades. Contudo, por entender violado o princípio da isonomia, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido para, sem reduzir o texto da disposição atacada, “dar interpretação ao parágrafo único do artigo 41 do CPC, conforme a Constituição Federal, e declarar que a ressalva contida na parte inicial desse artigo alcança todos os advogados, com esse título atuando em juízo, independentemente de estarem sujeitos também a outros regimes jurídicos.” (Rel. Min. Maurício Correa, DJU de 14.11.2003). Este trabalho compartilha o entendimento que a função do Poder Judiciário no Mandado de Injunção é a de resolver a omissão constitucional apresentada no caso concreto, oportunidade em que o órgão jurisdicional não estaria legislando203, mas resolvendo um litígio concreto individual, sem efeito erga omnes.204 6.4 A indenização por danos decorrentes de omissão inconstitucional Embora sedutora a idéia de que a procedência do pedido de uma ação docontrole abstrato de constitucionalidade contra atos omissos – no caso a Ação 203 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p..227: entende esta autora que “o não cumprimento da Constituição por falta de regulamentação legislativa, quando existe um expresso dever de legislar, pode e deve ser declarado inconstitucional, violador da Lei Fundamental. O problema aqui não se resume em fazer política, em substituir o legislador pelo juiz, mas apreciar a inconstitucionalidade da política.” 204 NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. op. cit. p.278. 146 Direta de Inconstitucionalidade por Omissão - daria margem a que a parte lesada reclamasse perdas e danos, se o órgão inadimplente permanecesse omisso, essa tese esbarra em vários problemas.205 O primeiro deles se encontra na quantificação dos pretensos prejuízos, o que exigiria presumir virtualmente qual a disciplina que o órgão inadimplente deveria ter editado, para daí extrair o quantum que eventualmente indenizaria o prejuízo sofrido pela pessoa lesada. Isso levaria ao problema da substituição, pelo juiz, da discricionariedade do legislador quanto às escolhas disponíveis em relação às providências tendentes a equacionar a aplicabilidade da norma constitucional conspurcada pela omissão. Restaria ainda o problema da legitimidade passiva do pedido reparatório, haja vista que o órgão omisso geralmente está obrigado a implementar a aplicabilidade de normas constitucionais que disciplinam relações jurídicas estranhas ao ente federativo ao qual pertence, como por exemplo, numa situação de fixação de salário-mínimo em valores insuficientes, matéria de competência legislativa da União. Como responsabilizar a União em face de prejuízos decorrentes da insuficiência salarial cujo pagamento é da responsabilidade de terceiros? Do exposto, a procedência do pedido feito em controle abstrato de constitucionalidade omissiva não assegura direito geral de indenização, uma vez que o interesse de agir é do tipo objetivo, inexistindo amparo constitucional para essa hipótese, salvo naquelas situações contra as quais caiba Mandado de Injunção. 205 CARRAZZA, Roque Antonio. op. cit. p.401. 147 Mesmo nos casos de Mandados de Injunção julgados pelo Supremo Tribunal Federal, não houve condenação indireta à indenização pela omissão, mas apenas o afastamento da necessidade de intermediação normativa para que se obtivesse aquilo que a própria norma constitucional violada havia garantido.206 Assim, só existiria direito à indenização no controle abstrato quando também houvesse direito subjetivo à edição das providências normativas não implementadas, quando o pleito indenizatório não se baseasse na mera insuficiência da providência incompleta, bem como quando a pretensão do lesado tivesse por fundamento reparação prevista na própria norma constitucional, cuja aplicabilidade fosse inviabilizada pela omissão impugnada, ou ainda quando a mesma entidade responsável pela omissão devesse suportar a reparação prevista na norma constitucional, se esta tivesse sido regulamentada. Tal indenização, por certo, somente seria possível quando da declaração de omissão relativa indefinida própria, e, mesmo assim, somente a partir do momento em que tivesse início a eficácia da sanção de nulidade aplicada à norma discriminatória inconstitucional (“naquilo que faltou fazer”) ou após a fluência em branco do prazo eventualmente assinalado ao órgão inadimplente. 206 Cite-se o caso em que o Supremo Tribunal Federal, em se tratando de omissão decorrente da inobservância de prazo estipulado na própria Constituição Federal (mora qualificada), assinou prazo para que a norma constitucional fosse regulamentada, após o que a impetrante poderia gozar da imunidade inviabilizada pela inércia legislativa (RTJ 137:965). Ou ainda no julgamento do MI 543/DF, Rel. Min. Octávio Gallotti, DJU de 24 de maio de 2002, p.55, calcado no artigo 8º, § 3º, do ADCT, deferindo parcialmente o pedido e assegurando direito à imediata ação de liquidação do ressarcimento advindo da omissão normativa, independentemente de sentença condenatória. 148 Nesse caso, o fundamento da indenização deve estar não na norma constitucional violada, mas na própria disciplina na qual se detectou a discriminação arbitrária.207 6.5 O Mandado de Injunção, a Inconstitucionalidade por Omissão e a troca de sujeito Revolucionária e polêmica é a tese defendida por Walter Claudius Rothenburg, em sua obra Inconstitucionalidade por Omissão e Troca de Sujeito, a qual admite que outro sujeito, inicialmente não dotado de atribuição constitucional, implementasse o comando constitucional. Sustenta o autor que o controle de constitucionalidade, realizado por órgão e procedimentos legítimos, poderia chegar a esse ponto: destituir um sujeito constitucionalmente previsto e autorizar outro a dar efetividade à Constituição.208 Ou seja, para o autor, importa mais a finalidade de cumprir a Constituição do que o sujeito (órgão) a quem as atribuições (competências) foram conferidas.209 Assim, argumenta Rothenburg que o controle judicial em tese da constitucionalidade em situações de omissão não se prende exclusivamente à omissão normativa, e que seria perfeitamente possível a destituição do sujeito omisso, com a conseqüente designação de outro, a fim de se concretizar a vontade da Constituição. Como exemplo, pode-se citar o fato do Presidente da República que, não nomeando Ministros para o Supremo Tribunal Federal, por interregno 207 BERNARDES, Juliano Taveira. op. cit. 24 abr. 2006. ROTHENBURG, Walter Claudius. Inconstitucionalidade por omissão e troca de sujeito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. (nota do autor). 209 Ibidem. p.89. 208 149 inexplicável, perderia essa faculdade (poder-dever) em proveito de seu sucessor constitucional provisório, no caso o Presidente da Câmara dos Deputados, nos moldes do artigo 80 da Constituição, do que resultaria uma troca de sujeitos, ou seja, uma substituição institucional do Executivo pelo Legislativo.210 Nessa esteira, não sendo, por exemplo, realizado concurso para provimento dos cargos de Defensor Público do Distrito Federal (cuja responsabilidade é da União: artigo 21, XIII da CF/88), ao próprio Distrito Federal poderia ser entregue a competência (os gastos seriam então computados como crédito em face da União).211 Esse tipo de troca de sujeito apresentar-se-ia, dessa forma, como uma espécie de evolução dos comandos constitucionais, bem como destinar-se-ia a satisfazer uma exigência cada vez maior de efetiva implementação das normas constitucionais programáticas. Destarte, o Poder Judiciário seria o órgão, dentro do controle de constitucionalidade, como o mais adequado para conduzir (e às vezes mesmo assumir) esse câmbio. Esse câmbio também é possível de ocorrer de forma inversa, isto é, o Poder Legislativo conferindo máxima eficácia a direito fundamental, quando de eventual inoperância do Poder Judiciário. Vale mencionar a polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 197.807-RS, relator Ministro Octávio Gallotti, em 30 de maio de 2.000, estabelecendo não ser possível estender à mãe adotiva o direito à licença, instituído em favor da empregada gestante pelo inciso XVIII do art.igo 7º da Constituição Federal, cuja matéria ficaria sujeita ao legislador ordinário. A repercussão negativa 210 211 ROTHENBURG, Walter Claudius. op. cit. p.89. Ibidem. p.90. 150 do julgamento sensibilizou o Congresso Nacional, que aprovou a Lei 10.421, de 15 de abril de 2002, a qual estendeu à mãe adotiva o direito à licença-maternidade.212 Reconhecendo sua ousadia, o autor se justifica alegando tratar-se de (mais) um discurso de reforço da legitimidade do tribunal constitucional nos tempos atuais, e que, longe de parecer eventual menosprezo aos outros sujeitos (em especial o legislador), o tribunal ficaria cingido à finalidade constitucionalmente determinada e, via de regra, não se colocaria no lugar do sujeito “inadimplente”, mas apenas autorizaria a atuação de outro sujeito com condições para, na situação, dar cumprimento ao comando constitucional.213 Nesse diapasão, Carlos Frederico Marés de Souza Filho, ex-Diretor da Funai e Professor Titular do Programa de Mestrado em Direito Econômico e Social da PUC-PR, chega mesmo a sugerir, na hipótese de caracterizada omissão legislativa (através de Mandado de Injunção, presume-se), que o Judiciário afaste o legislador e assuma a própria atividade legislativa primária (genérica e abstrata), conquanto de forma provisória: Se é possível a adoção de medidas provisórias, por exemplo, pelo Poder Executivo (ao gosto e ao abuso, como está ocorrendo no Brasil hoje), sem que se veja nisso um duro e profundo rompimento da ordem democrática, por que não seria pensável uma medida provisória do Judiciário para colmatar lacuna de regulamentação de direitos constitucionais?214 Encerrando a polêmica tese, adverte Rothenburg que a troca de titular como sanção pela incompetência em atuar nos comandos constitucionais, no entanto, deve ser aceita apenas excepcionalmente, quando outros mecanismos menos 212 ROTHENBURG, Walter Claudius. op. cit. p.74. Ibidem. p.11. 214 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O direito constitucional e as lacunas da lei. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, jan.-mar. 1997. p.63. 213 151 drásticos de controle de constitucionalidade se mostrem ineficientes e se revele adequado levar as possíveis soluções jurídicas a tais conseqüências, desde que seja realizado o ideal constitucional.215 6.6 O artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e o Mandado de Injunção Na sua obra “O direito constitucional e a efetividade de suas normas”, Luis Roberto Barroso acena com uma proposta de reformulação do Mandado de Injunção, posto que este já teria cumprido seu ciclo histórico e seria melhor substituílo por fórmula mais simples, célere e abrangente.216 Tal proposta se afastaria dos anteprojetos de regulamentação do writ atualmente em discussão, pois se fundaria no fato de que toda norma constitucional é dotada de eficácia jurídica e deve ser interpretada e aplicada em busca de sua máxima efetividade. Assim, juízes e Tribunais devem pautar suas atividades por tais pressupostos, cabendo ao Poder Judiciário integrar a ordem jurídica, quando isto seja indispensável ao exercício do direito. Nesse sentido, bastaria aplicar o que já vem expresso de longa data no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”217 Entende o autor da proposta que isso não importaria no exercício excessivo de competências normativas pelo Poder Judiciário, posto que as normas materialmente constitucionais de organização, como aquelas que constituem o 215 ROTHENBURG, Walter Claudius. op. cit. p.210 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.264. 217 Ibidem. p.265. 216 152 exercício do poder político, não ensejam a impetração de Mandado de Injunção ou decisões integrativas, enquanto que as normas programáticas – que indicam fins públicos, sem especificar a conduta a ser adotada, como por exemplo, aquela prevista no artigo 217, caput, 218 e § 1º – não ensejam a exigibilidade de qualquer conduta positiva. Posto isso, “somente as regras definidoras de direitos subjetivos constitucionais, cuja eficácia e efetividade estejam condicionadas à edição de uma norma infraconstitucional, ensejam a impetração de Mandado de Injunção ou a necessidade de decisões integrativas”218, de hipóteses limitadas. Nesse sentido, inexistindo, por exemplo, norma legal que defina “pequena propriedade rural”, a colmatar o preceito instituído no artigo 5º, inciso XXVI, da Carta Magna, o proprietário que quisesse impedir a penhora de sua propriedade poderia, em tese, impetrar Mandado de Injunção, para que fosse dada ciência ao Congresso da omissão ventilada, conforme aliás orientação do próprio Supremo Tribunal Federal. Pelo entendimento da maior parte da doutrina, caberia igualmente Mandado de Injunção, também perante aquela Corte, no qual se pediria que se definisse, para o caso concreto, o sentido de “pequena propriedade rural”. Já pela proposta apresentada, caberia ao juiz da causa esta definição, “com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de direito”, de cuja decisão caberiam os recursos próprios.219 Concluindo a proposição, Barroso afirma que o Mandado de Injunção: [...] na atual quadra, tornou-se uma complexidade desnecessária. Mais simples, célere e prática se afigura a atribuição, ao juiz natural do caso, da competência para a integração da ordem jurídica, 218 219 BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p.265. Ibidem. p.266. 153 quando necessária para a efetivação de um direito subjetivo constitucional submetido à sua apreciação.220 220 BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p.266. 154 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao término deste trabalho, infere-se que o Mandado de Injunção é garantia constitucional prevista pela primeira vez na Constituição de 1988, sem precedente no Direito comparado, sendo uma criação tipicamente brasileira, podendo ser usado por qualquer cidadão que, em face da ausência de norma regulamentadora, por omissão (total ou parcial) de medida para tornar efetiva a norma constitucional, se veja inviabilizado de exercer seus direitos e suas liberdades constitucionais ou suas prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Mandado de Injunção é, portanto, uma garantia ou remédio constitucional, mediante o qual se tenta obter o exercício de quaisquer direitos fundamentais e liberdades constitucionais mencionados pela CRFB/88, mormente aqueles catalogados nos artigos 5º ao 17, inclusos os direitos sociais, bem como os direitos individuais decorrentes do regime e de Tratados internacionais (artigo 5º, § 2º, da CF), sempre que se verifique a ausência de norma regulamentadora obliterando a eficácia plena daqueles direitos e liberdades. Buscando-se informações diretamente das fontes, por meio de pesquisas documentais oriundas dos órgãos competentes (STF e Câmara dos Deputados), constatou-se que, desde a criação do instituto na Constituição de 1988, já se impetraram na Corte Suprema deste País nada menos que 743 writs, dos quais apenas 89 foram deferidos. Constatou-se ainda que foram enviadas recomendações ao Poder Legislativo Federal para a edição da lei faltante, suficiente para se colmatar a ausência da norma regulamentadora constitucional, e nenhuma dessas recomendações se transmudou nas leis indicadas pelo Poder Judiciário, motivo pelo 155 qual se pôde concluir, com base científica e metodológica, que o Mandado de Injunção carece de efetividade (ou eficácia social), embora sua eficácia jurídica tenha evoluído gradativamente. Destarte, o questionamento proposto como tema deste trabalho encontrou solução após exaustivas pesquisas realizadas, que não se limitaram a pinçar uma ou outra decisão judicial a respeito do assunto, evitando-se cair no mesmo lugar comum em que esse tipo de trabalho costuma resvalar. Ao contrário, buscou-se coletar todos os dados existentes nas fontes disponíveis, sem qualquer exceção, obtendose assim dados confiáveis, dentro de um método científico. A análise desses dados revela que tão importante instrumento de garantia constitucional merece uma nova proposta interpretativa no que se refere à sua eficácia, com o objetivo de uma correta compreensão desse instituto, em seus requisitos, objetivos, efeitos, significado político-constitucional e efetividade. Conforme demonstrado, tal instituto possui como requisito a inibição do exercício de direito no que se refere aos direitos e às liberdades constitucionais (liberdadesautonomia) ou às prerrogativas inerentes à nacionalidade, à cidadania e à soberania popular (liberdades-participação), causada, exclusiva e diretamente, pela ausência de uma norma regulamentadora, derivada de uma omissão inconstitucional do Poder, órgão ou autoridade estatal originalmente competente para sua criação. Seus objetivos são, diretamente, permitir aos cidadãos uma forma de viabilizar o exercício dos direitos subjetivos mencionados e, indiretamente, agir como um instrumento de controle das omissões normativas inconstitucionais, evitando-se que tais omissões possam prejudicar o exercício de um direito-liberdade 156 constitucional ou uma prerrogativa política, que não podem existir sem a defesa dos direitos fundamentais e sem a plena viabilidade de exercício desses direitos. Dessa forma, seu propósito final visa - ou deveria visar - a garantia de determinados direitos constitucionais fundamentais, abolindo eventuais omissões normativas inconstitucionais, preenchendo, ainda que de forma provisória, as lacunas por elas provocadas, mediante a atuação substitutiva do Poder Judiciário, e estimulando a ação regulamentadora do Poder, órgão ou autoridade originalmente competente. Além disso, com essa garantia constitucional, ficariam resguardados os valores máximos da liberdade, segurança, igualdade e justiça e as instituições democráticas e do Estado de Direito. Isso tudo somente pode ser obtido por uma solução interpretativa equilibrada, em que tais valores não apenas são preservados, mas, sobretudo, revigorados. Ao permitir a criação de soluções regulamentares provisórias, o Mandado de Injunção provoca um desestímulo à mantença do estado de omissão inconstitucional, uma vez que a autoridade competente não pode obter qualquer vantagem resultante da não regulamentação da norma constitucional que demarca o direito ou a prerrogativa tutelável, e que ocasiona, via de regra, grave censura de natureza política, pois comprova, dessa forma, que tal regulamentação é possível, evidenciando que a omissão é o fruto de uma inatividade dolosa ou culposa do Poder, órgão ou autoridade omissa. Eventuais obstáculos à criação judicial da regulamentação infraconstitucional, como por exemplo aqueles relacionados ao princípio da legalidade, na separação dos Poderes ou na supremacia do Legislativo para criação do direito, embora significantes, não podem ser considerados como uma barreira para a atuação 157 judicial substitutiva, direcionada à viabilização dos direitos amparados pela ação injuntiva. O Mandado de Injunção, se corretamente compreendido e empregado, objetiva proteger tais direitos contra omissões estatais que ameaçam a sua efetividade, ou pelo menos deveria ser administrado com esse objetivo. Na verdade, ao criar uma regulamentação provisória vigente apenas até a efetivação de regulamentação definitiva para determinado caso em discussão, suficiente para dar concretude ao exercício daqueles direitos mencionados no artigo 5º, LXXI, da CRFB/88, o Mandado de Injunção contribui para o equilíbrio entre os Poderes, visto que assegura mais uma possibilidade de controle de um Poder pelo outro, o que determina uma salutar proteção às liberdades públicas dos cidadãos. O conteúdo de eficácia procedente da decisão exarada em Mandado de Injunção tem sua sustentação na fonte de legitimidade intrínseca do Poder Judiciário, no que se refere à defesa dos direitos subjetivos – em especial daqueles direitos fundamentais considerados cláusulas pétreas (direitos e garantias individuais – artigo 60, § 4º, IV; e direitos de participação política – artigo 60, § 4º, II) – contra qualquer tipo de ameaça ou lesão (artigo 5º, XXXV). Se a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito e tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, é óbvio que o Mandado de Injunção pode e deve provocar uma decisão constitutiva criadora da norma para o caso concreto, apta a viabilizar o exercício dos direitos humanos fundamentais do indivíduo e do cidadão, garantindo, conseqüentemente, os freios e contra-pesos do Poder Estatal, e, com isso, aprimorando o funcionamento 158 de mecanismos constitucionais, tais como a separação dos Poderes e a Democracia, direcionadas a esse fim. Nesse diapasão, Sérgio Resende de Barros afirma numa de suas principais obras sobre o assunto: A possibilidade de um governo eficaz – aquele que realiza ao máximo a comunidade nas individualidades e as individualidades na comunidade da sociedade – implica diversas condições cráticas, mas que se resumem em estabilidade institucional e eficiência funcional, ambas se correlacionando entre si e com eficácia social do Estado, na qual resultam. Todas, enfim, condicionando o exercício do poder político, terminando por possibilitar o seu melhor exercício.221 Assim, a eficácia da sentença deve ser constitutiva e implica, forçosamente, que garanta de fato aqueles direitos fundamentais constantes do inciso LXXI do artigo 5º da CRFB/88. Como se procurou demonstrar neste trabalho, a eficácia social do instituto deixa muito a desejar, visto que, ao longo dos anos em que o writ existe no ordenamento normativo, raramente foi aplicado, seja por inadequada utilização do instituto ou pela timidez da decisão judicial dele exarada. Além disso, nas poucas oportunidades em que o Poder Judiciário (leia-se o STF) recomendou ao Poder Legislativo (leia-se Câmara dos Deputados) a edição de lei regulamentadora, visando suprir lacuna inconstitucional normativa, este se quedou inerte e jamais editou a lei faltante atendendo àquelas recomendações, embora o tenha feito em casos esporádicos sobre os mesmos assuntos, através de outras fontes inspiradoras que não a ação injuntiva. 221 BARROS, Sérgio Resende. Direitos humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p.449. (grifo no original). 159 Dessa forma, infere-se que o Mandado de Injunção ainda está longe de produzir os efeitos imaginados pelo Constituinte, posto que, em diversos aspectos, há dificuldades em sua aplicação, seja pela falta de regulamentação – que gera inúmeras dúvidas, principalmente quanto ao seu procedimento – seja pelas diversas interpretações que o instituto suscita. De qualquer forma, se o Mandado de Injunção for um dia adequadamente compreendido, ele se transformará não só em um dos importantes institutos do novo constitucionalismo brasileiro, mas também em uma das mais significativas contribuições da experiência constitucional pátria para garantia de direitos humanos fundamentais. Por outro lado, apesar dessas constatações, percebe-se que tal desiderato possa ser realizado num tempo não tão distante, considerando que o STF – no julgamento realizado no dia 07 de junho de 2006222, referente ao Mandado de Injunção nº 712-PA – tenha sinalizado que, se o Congresso não cumprir seu papel de legislar, o Tribunal o fará, quando o direito previsto na Constituição não puder ser exercido por omissão dos parlamentares. Com a nova posição, o dispositivo que tinha efeito declaratório apenas, assume caráter constitutivo. O novo entendimento se revelou com o voto do Ministro Gilmar Mendes, que se manifestou no sentido de que, se o Legislativo não cumpre seu papel de regulamentar a lei, cabe ao Supremo interferir e fazer o direito do cidadão valer mesmo assim. No caso em questão, o que se discutia era o direito de greve dos servidores públicos. Para Mendes, se não há lei que regulamente esse direito, devem valer as mesmas regras que se aplicam para os trabalhadores do setor privado, no caso, a Lei 7.783/89. 222 Informativo STF 430. 160 O passo dado pelo ministro acompanha o entendimento revolucionário do Ministro Celso de Mello em matéria similar.223 Ao julgar quebras de sigilos determinadas por Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIs), o Ministro acenou positivamente para a interferência do Judiciário no Legislativo sempre que este cometer abusos, colocando-se um freio na até então intocável independência dos três Poderes. O posicionamento de Mendes contrariou o voto do relator, ministro Maurício Corrêa, já aposentado, para quem o Judiciário não pode substituir o legislador, conforme aliás já preconizava o ex-ministro Moreira Alves, também aposentado, considerado o porta-voz do conservadorismo no STF durante a transição para a democracia. Agora, a corrente deve mudar. O julgamento no Plenário do Supremo foi suspenso por pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowski, adiando uma decisão final sobre a matéria. Mas, a aceitação e o reconhecimento ostensivo da tese sustentada por Gilmar Mendes indicam que uma nova era está nascendo nas relações entre os três Poderes. È justamente a necessidade de uma nova relação entre os Poderes o que se procurou demonstrar ao longo deste trabalho. De fato, assumir posições é ousar. Neste tempo, parece ser imperativo que se tenha a ousadia de se provocar a consolidação do verdadeiro Estado Constitucional e Democrático de Direito, uma vez que uma intenção que não se compromete é ideologia que ilumina as mentes, mas não produz eficácia social. 223 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 25668. Brasília, DF: Diário de Justiça da União, 4 ago. 2006. p.0027. 161 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACKEL FILHO, Diomar. 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Inviabilidade do exercício de direitos individuais Artigo 5º, LXXI, CF Base Legal Objeto Competência para julgamento Supremo Tribunal Federal – Artigo 102, I, a, CF (concentrada) Legitimação ativa Múltipla (Artigo 103, CF) Órgão público responsável por medida que torne efetiva norma constitucional Admoestação/Mandamental Legitimação passiva Natureza jurídica Admissibilidade Liminar Efeitos Eficácia Advogado Geral da União Procurador Geral da República Objetivo da tutela Fiscalização da Inconstitucionalida de Direito líquido e certo amparado constitucionalmente (Federal ou Estadual) Supremo Tribunal Federal – Artigo 102, I, “q” e II, “a”, CF; STJ – Art. 105, I, “h”, CF. (obs: Tribunais dos Estados, se houver previsão). – (De certa forma, difusa). Qualquer pessoa Ente privado ou público que deve viabilizar o direito Declaratória-constitutiva (há controvérsia) Não exige relevância Idem Não cabe Não cabe Erga omnes Inter partes Três correntes: a) Declara inconstitucional a omissão e dá ciência ao órgão competente para a adoção das providências Ciência ao Poder competente necessárias à realização da para adotar providências. Se norma constitucional; b) elabora órgão administrativo, deve a norma regulamentadora fazê-lo em 30 dias faltante, suprimindo a omissão do legislador, ou, c) torna viável, no caso concreto, o exercício do direito postulado). Não Não Sim Não Direito Objetivo Direito Subjetivo Abstrata Concreta 171 CRITÉRIOS AIO MI Objetivo Tornar efetiva norma constitucional. Conferir efetividade à norma constitucional, atacando a inconstitucionalidade em tese Tornar viável o exercício de um direito Tornar viável o exercício de um direito fundamental no caso concreto Finalidade 172 Anexo 2 - Cronologia do Mandado de Injunção a partir da CRFB de 1988 MANDADO DE INJUNÇÃO 107 283 232 384 361 447 712 DATA DE JULGAMENTO DECISÃO O Mandado foi indeferido, porém fixou-se a natureza meramente declaratória do instituto, em que o STF se 21/11/1990 limitaria a dar ciência ao órgão omisso quanto ao seu estado de omissão, castrando, assim, essa garantia constitucional O STF julgou procedente o MI, que versava sobre direito indenizatório previsto no § 3º do artigo 8º da ADCT, declarando em mora o legislador e concedendo o prazo de 60 dias para a edição da lei faltante e sua 20/03/1991 sanção, sob pena do impetrante obter, pela via processual adequada, sentença líquida de condenação à reparação pelas perdas e danos sofridos. Ou seja, concedeu uma espécie de efeito constitutivo ao MI. O STF julgou procedente o MI e concedeu um prazo de 6 meses para que o legislador editasse a lei que concederia a imunidade prevista no artigo 195, § 7º, da CF/88, para que entidades filantrópicas de assistência 2/8/1991 social não tivessem que pagar contribuições para a seguridade social, findo o qual, passariam a gozar, automaticamente, da imunidade prevista na norma constitucional. Novamente deu eficácia constitutiva ao instituto. Idem ao MI 283, exceto que o STF não fixou prazo para a edição da norma, reconhecendo desde logo aos 5/8/1993 beneficiários daquela norma, a possibilidade de ajuizarem a pertinente ação de reparação econômica. Eficácia constitutiva. Concedeu caráter constitutivo ao MI, desde que a pessoa obrigada a cumprir o conteúdo da 8/4/1994 regulamentação fosse a mesma a qual pudesse ser imputada a omissão inconstitucional 5/5/1994 Idem ao MI 384 Ainda sem Surge um novo entendimento no STF acerca do julgamento. Mandado de Injunção com o voto do Ministro Gilmar Relator: Ministro Mendes, que se manifestou no sentido de que, se o Eros Grau. Em Legislativo não cumpre seu papel de regulamentar a lei, 7.6.2006 o cabe ao STF interferir e fazer o direito do cidadão valer Ministro Ricardo mesmo assim. No caso em questão, o que se discute é Lewandowski o direito de greve dos servidores públicos. Para pediu vista do Mendes, se não há lei que regulamente esse direito, processo devem valer as mesmas regras que se aplicam para os trabalhadores do setor privado, no caso, a Lei 7.783/89 173 Anexo 3 - Mandados de injunção julgados no período de 1988 a 2006 e a relação com o total de processos julgados no STF: CRITÉRIOS 1988 - 2006 Mandados de Injunção Impetrados 743 Total de processos Julgados 1.013.959 Mandados de Injunção Julgados 705 Mandados de Injunção Deferidos 89 % entre os julgamentos de Mandados de Injunção e total de processos 0,069 Fonte: <http://www.stf.gov.br/portal/cms>. 174 Anexo 3 - Levantamento de Mandados de Injunção recebidos pela Câmara dos Deputados Nº DOCTO/PROCESSO ANO ORIGEM SOLUÇÃO 651 – SGM/P 056 808- SGM/P 428 809 – SGM/P 348 810 – SGM/P 561 811 – SGM/P 560 812 – SGM/P 736/01 813 – SGM/P 336/01 06/92 – OF. SM/001/02 292/92 – OF. 98/P 608/92 4791/92 – OF SM 652/92 5658 – OF SGM/P 188 5662 – OF SGM/P 315 3216 1262 – OF SM 271/94 1295 – OF SM 278/94 2285 – OF 780/P 2615 – OF SM 557/94 2638 – OF 1251/P 2926 – OF 1480/P 558 – OF 79/P 1454 – OF 429/P 2553 – OF 763/P 3118 – OF 1424 3176 – OF 608/96 655 – OF 290/SF 774 – OF 351 SF 910 – OF 373 SF 3291 – OF 852/97 3294 – OF 852/97 3299 – OF 852/97 3302 – OF 852/97 3307 – OF 678/97 3311 – OF 852/97 1212 – 848/98 1342 – 924/98 1808 – OF 765/98 1877 – OF 1523/98 1908 – OF 793/98 552 – OF 249/98 697 – OF 146/98 846 – OF 210/98 1171 – OF 479/99 2273 – OF 1068/99 3487 544 – OF 106/99 1991 1991 1991 1991 1991 1991 1991 1991 1992 1992 1992 1992 1992 1993 1994 1994 1994 1994 1994 1994 1994 1995 1995 1995 1996 1996 1996 1996 1997 1997 1997 1997 1997 1997 1998 1998 1998 1998 1998 1998 1998 1998 1999 1999 1999 1999 STF Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem idem Idem Idem Idem Arquivado Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Em andamento Arquivado Idem Idem Em andamento Arquivado Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem 175 Nº DOCTO/PROCESSO ANO ORIGEM SOLUÇÃO 1035 – OF 739/00 1092 – OF 763/00 767 – OF 454/00 3513 – OF 1310/01 2962 – OF 1043/02 1237 – OF 232/03 2426 – OF 1538/03 558 – OF 804/04 1009 – 2000 2000 2000 2001 2002 2003 2003 2004 2005 Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Idem Fonte: Centro de Documentação e Informação – CEDI