1 PRINCÍPIOS GERAIS A prática criteriosa da psicofarmacologia requer conhecimentos amplos de psiquiatria, farmacologia e medicina. Neste capítulo, apresentamos os princípios gerais relevantes para o uso seguro e eficaz de medicações psicotrópicas. Nos capítulos subseqüentes, discutimos as principais classes destas medicações – antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos, estabilizadores do humor, estimulantes e inibidores da colinesterase – e os transtornos para os quais são prescritas. O leitor deve ter em mente que essa nomenclatura é um tanto artificial; por exemplo, muitos medicamentos antidepressivos também são usados para tratar transtornos de ansiedade. Ao longo do livro são utilizados nomes genéricos, sendo que o apêndice traz uma lista de nomes comerciais. AVALIAÇÃO INICIAL A arte da psicofarmacologia, como a de todas as áreas da medicina, baseia-se no diagnóstico adequado e na identificação dos sintomas-alvo que respondam à medicação. Aspectos adicionais incluem a exclusão de causas não-psiquiátricas, como transtornos endócrinos ou neurológicos e abuso de substâncias, a identificação de outros problemas médicos, que influenciem na seleção das drogas, tais como doenças cardíacas ou hepáticas, a avaliação de outras medicações que o paciente esteja utilizando e que possam causar uma interação droga-droga e a avaliação das histórias pessoal e familiar de resposta a medicamentos. 18 Marangell & Cols. SINTOMAS-ALVO Um componente-chave da opção por um medicamento é a identificação dos sintomas-alvo. O médico deve determinar e listar os sintomas específicos a serem tratados e monitorar a resposta à terapia escolhida. Escalas padronizadas de mensuração são ferramentas específicas para avaliar sintomas e comportamentos-alvo, sendo, além disso, úteis para monitorar mudanças decorrentes do tratamento. Na ausência de escalas formais de mensuração, os sintomas-alvo podem ser classificados em uma escala de 1 a 10. Ademais, os clínicos devem monitorar o estado funcional do paciente, pois o objetivo do tratamento não é apenas aliviar os sintomas, mas também restaurar o funcionamento normal na medida do possível. USO DE MÚLTIPLOS MEDICAMENTOS Um erro clínico freqüente e perigoso é tratar sintomas específicos de um transtorno com múltiplas drogas em vez de tratar o transtorno subjacente em si. Por exemplo, é comum o psiquiatra atender um paciente encaminhado que esteja usando um tipo de benzodiazepínico para ansiedade, outro para insônia, um analgésico para queixas somáticas inespecíficas e uma dose subterapêutica de um antidepressivo (p. ex., imipramina 50 mg/dia) para sentimentos de tristeza. Muitas vezes, as queixas somáticas, a insônia e a ansiedade são componentes de uma depressão subjacente, que pode ser agravada pela abordagem polifarmacêutica inerente ao tratamento sintomático. Por outro lado, existem muitos pacientes cujas condições psiquiátricas requerem a prescrição concomitante de diversos agentes psicotrópicos. O uso criterioso e racional de vários medicamentos psiquiátricos deve ser distinguido da polifarmácia inadequada. Um exemplo de associação medicamentosa útil é o acréscimo de lítio à terapia com antidepressivos, no caso de um paciente que tenha alcançado uma resposta parcial ao tratamento com antidepressivos isoladamente. Psicofarmacologia 19 ESCOLHA DOS FÁRMACOS A seleção de um fármaco para determinado diagnóstico ou sintoma se baseia em fatores específicos ao paciente e ao fármaco. Os primeiros incluem transtornos psiquiátricos e médicos co-mórbidos, uso de outras medicações, histórias pessoal e familiar de resposta a medicações e circunstâncias de vida que serão afetadas pelos efeitos colaterais do agente escolhido. Os fatores específicos aos fármacos incluem as preparações disponíveis e o custo. Na maioria dos casos, a dose única diária é preferível pela conveniência e para a melhor adaptação do paciente. SUBSTITUIÇÃO POR GENÉRICOS Os medicamentos genéricos são alternativas mais baratas que as formulações originais patenteadas (nome comercial). No entanto, uma certa cautela é necessária, pois os “equivalentes” genéricos nem sempre são realmente equivalentes. Os requisitos atuais da Food and Drug Administration (FDA) norte-americana estão centrados no conceito de bioequivalência. Dois ou mais produtos são bioequivalentes caso não haja diferenças significativas na velocidade ou no grau em que seu ingrediente ativo se torna disponível no sítio de ação, dadas as mesmas doses e condições. Em alguns casos, no entanto, mesmo pequenas diferenças de biodisponibilidade – ou outras pequenas diferenças, tais como o tipo de conservantes ou excipientes – podem ter importância clínica. Por exemplo, um paciente pode ter uma reação alérgica a uma preparação genérica, mas não a outra da mesma droga, devido a diferenças no corante usado na pílula. Em muitas circunstâncias, a substituição por genéricos é uma ferramenta segura e eficaz de redução de custos, mas o clínico deve estar ciente de problemas potenciais e, na eventualidade de uma reação inesperada, deve perguntar ao paciente se a aparência do medicamento foi alterada. Uma mudança de tamanho, formato ou cor, por exemplo, deve alertar o psiquiatra para uma provável mudança na formulação genérica. 20 Marangell & Cols. INTERAÇÕES MEDICAMENTOSAS Uma interação medicamentosa ocorre quando a ação farmacológica de um medicamento é alterada por outra droga (ou substância exógena) administrada concomitantemente. Com o aumento do uso de fármacos psicotrópicos, a importância das interações medicamentosas na psicofarmacologia fica cada vez mais aparente. Além disso, a caracterização de enzimas específicas do citocromo P450 (CYP) tornou possível compreender e prever muitas interações droga-droga. Existem três tipos de interações medicamentosas. As interações farmacocinéticas envolvem uma alteração causada por um segundo agente na absorção, na distribuição, no metabolismo ou na excreção de uma droga, alterando sua concentração plasmática. As interações farmacodinâmicas envolvem uma mudança na ação de uma droga em um receptor ou sítio biologicamente ativo, alterando, assim, o efeito farmacológico de determinada concentração plasmática da droga. As interações idiossincráticas ocorrem imprevisivelmente em um pequeno número de pacientes e são inesperadas, considerando as ações farmacológicas conhecidas das drogas individuais. Enzimas citocromo P450 As interações medicamentosas de importância clínica são causadas, em geral, por mudanças no metabolismo das drogas. As enzimas citocromo P450 metabolizam todas as drogas psicotrópicas, exceto o lítio. Essas enzimas são classificadas em famílias e subfamílias a partir de semelhanças em suas seqüências de aminoácidos, sendo que enzimas da mesma subfamília têm afinidades relativamente específicas com várias drogas e outras substâncias. As enzimas envolvidas primariamente no metabolismo das drogas são os citocromos CYP 1A2, 2C9, 2C10, 2C19, 2D6, 3A3 e 3A4. Se uma dessas enzimas for inibida por outra droga, ocorre uma elevação dos níveis plasmáticos das drogas administradas concomitantemente que se valem da enzima em questão para seu metabolismo. Por exemplo, a 2D6 é essencial para o metabolismo usual dos antidepressivos tricíclicos (ADTs), que são substratos para essa enzima. A fluoxetina inibe a 2D6, e, se um paciente Psicofarmacologia 21 está usando um ADT e passa a receber também fluoxetina, ou vice-versa, os níveis plasmáticos do ADT são elevados, pode resultar em aumento dos efeitos colaterais ou da toxicidade. Ciente do potencial para essa reação, o clínico pode usar uma dose mais baixa do ADT. Esse exemplo ilustra o princípio clínico-chave da prescrição de inibidores de enzimas: na maioria dos casos, a combinação de um inibidor de uma enzima com um medicamento que é substrato para esta enzima não é contra-indicada, mas o paciente deve ser monitorado quanto a sinais e sintomas relacionados ao aumento dos níveis de substratos, e a dose destes deve ser diminuída se necessário. No caso de muitos medicamentos, as enzimas específicas citocromo P450 responsáveis por seu metabolismo ainda não são conhecidas, mas as informações a respeito do papel das mesmas no metabolismo das drogas estão se acumulando rapidamente. A Tabela 1.1 apresenta uma lista dos substratos e inibidores mais conhecidos e de maior relevância clínica das enzimas citocromo P450 envolvidas com maior freqüência no metabolismo de medicamentos. Na maioria dos casos, os inibidores e os substratos de enzimas podem ser combinados de forma segura, desde que a dose do substrato seja diminuída segundo a necessidade. Os efeitos dos inibidores ocorrem com relativa rapidez (de minutos a horas) e são reversíveis em um espaço de tempo que depende da meia-vida de cada inibidor. Existe uma grande variação interindividual no metabolismo dos fármacos e na propensão dos inibidores de enzimas a alterá-lo. Parte dessa variação resulta do polimorfismo genético, que é uma alteração hereditária da enzima. As enzimas citocromo P450 2C19 e 2D6 costumam exibir polimorfismo. Os indíviduos que apresentam um polimorfismo genético, o qual causa uma grande redução na quantidade de enzima ativa, são conhecidos como maus metabolizadores e têm risco de elevação dos níveis determinados medicamentos, podendo provocar toxicidade. Em contraste, algumas pessoas, denominadas metabolizadores ultra-rápidos, têm quantidades maiores de certa enzima e, por isso, podem ter uma redução dos níveis dos fármacos metabolizados por ela, resultando em menor eficácia. O polimorfismo responde por muitas das diferenças interindividuais relacionadas ao metabolismo de medicamentos e nas interações droga-droga mediadas pelas enzimas citocromo P450. Substratosa Olanzapina Propanolol Tacrina Teofilina Verapamil Aminofilina Amitriptilina Cafeína Clozapina (em parte) Imipramina Metadona CYP 1A2 Fenitoína Warfarina CYP 2C9/10 Barbitúricos Diazepam Divalproex CYP 2C19 (continua) Buspirona Bloqueadores dos canais de cálcio Carbamazepina Ciclosporina Donepezil Etossuximida Galantamina Lamotrigina Lidocaína Midazolam Anticoncepcionais orais Oxcarbazepina Pimozida Propafenona Inibidores da protease Quinidina Estatinas Flecainida Galantamina β-bloqueadores lipofílicos Mexiletina Oxicodona ADTsb Tramadol Trazodona Antiarrítmicos do tipo IC Venlafaxina Acetaminofen Alprazolam Amiodarona Antiarrítmicos CYP 3A3/4 A maioria dos antipsicóticos Codeína Donepezil Encainida CYP 2D6 TABELA 1.1 Lista parcial de substratos e inibidores de relevância clínica para o citocromo P450 22 Marangell & Cols. Cimetidina Ciprofloxacina Enoxacina Fluvoxamina Suco de grapefruit Cetoconazol Norfloxacina Cimetidina Fluoxetina Fluvoxamina Modafinil Ritonavir CYP 2C9/10 Fluoxetina Fluvoxamina CYP 2C19 ADT= antidepressivo tricíclico. a Medicamentos e substâncias metabolizados por determinada enzima. b A enzima 2D6 é a rota final comum para o metabolismo dos ADTs. c Podem elevar os níveis dos substratos. Fonte. Callahan et al., 1996; Greenblatt et al., 1998, 1999; Michalets, 1998. Inibidoresc Substratosa CYP 1A2 Bupropiona Cimetidina Fluoxetina Paroxetina Fenotiazina Quinidina Ritonavir Sertralina CYP 2D6 Diltiazem Fluvoxamina Suco de grapefruit Agentes antifúngicos com imidazol (p. ex., cetoconazol) Alguns macrolídeos Nefazodona Inibidores da protease Verapamil CYP 3A3/4/5 Esteróides Tamoxifeno Triazolam CYP 3A3/4 TABELA 1.1 Lista parcial de substratos e inibidores do citocromo P450 de relevância clínica (continuação) Psicofarmacologia 23 24 Marangell & Cols. Além disso, as enzimas citocromo P450 podem ser induzidas. A indução faz com que fígado produza uma quantidade maior da enzima, o que pode aumentar a eliminação e reduzir os níveis plasmáticos de um segundo fármaco ou seus metabólitos. Se a redução nos níveis plasmáticos de um medicamento diminuir sua eficácia clínica, a dose do fármaco afetado deve ser maior para alcançar a mesma concentração sérica. Os efeitos dos indutores costumam ter um intervalo de dias a semanas, pois esse processo envolve a síntese de enzimas. Barbitúricos, carbamazepina, fenitoína, rifampina, dexametasona, o tabagismo e o uso crônico de álcool induzem as enzimas citocromo P450. Há relatos de que a erva-de-são-joão diminui os níveis e/ou a eficácia da ciclosporina (Ahmed e col., 2001; Breidenbach et al., 2000; Karliova et al., 2000) e dos inibidores da protease (Durr et al., 2000). Ligação com proteínas Os medicamentos são distribuídos para seus sítios de ação através do sistema circulatório. Na corrente sangüínea, todos os medicamentos psicotrópicos, exceto o lítio, ligam-se a proteínas plasmáticas em graus variáveis. Um fármaco é considerado altamente ligado a proteínas se mais de 90% dele se liga às proteínas plasmáticas. Existe um equilíbrio reverso entre o fármaco ligado e o livre: a fração livre é farmacologicamente ativa, enquanto a ligada é inativa e, portanto, não pode ser metabolizada ou excretada. Quando dois fármacos estão presentes simultaneamente no plasma, ocorre uma competição pelos sítios de ligação das proteínas. Isso pode causar um deslocamento do fármaco ligado, que, em estado livre, passa a ser farmacologicamente ativo. As interações que ocorrem por meio desse mecanismo são denominadas interações por ligação protéica, e são transitórias. Embora a concentração plasmática do fármaco livre de início aumente, ela passa a estar sujeita a redistribuição, metabolismo e excreção, produzindo uma nova concentração em equilíbrio dinâmico. Esse tipo de interação geralmente não tem relevância clínica, a menos que os fármacos envolvidos apresentem alta ligação protéica (produzindo uma grande alteração na concentração plasmática do fármaco livre a partir de um deslocamento de pouca monta) e tenham um baixo índice terapêutico ou janela terapêutica estreita Psicofarmacologia 25 (situação em que pequenas alterações nos níveis plasmáticos podem resultar em toxicidade ou perda de eficácia) (Callahan et al., 1996). Absorção e excreção Alterações nos níveis plasmáticos, decorrentes de mudanças na absorção ou excreção, são menos comuns com medicamentos psiquiátricos. O lítio, porém, sofre alterações de concentração plasmática com maior freqüência devido a alterações da excreção, por depender da excreção renal. (ver Capítulo 5). Interações farmacodinâmicas Nas interações farmacodinâmicas, o efeito farmacológico de um medicamento é alterado pela ação de um segundo agente em um receptor ou sítio bioativo comum. Por exemplo, os antipsicóticos de baixa potência e os ADTs de amina terciária têm efeitos anticolinérgicos, anti-histamínicos, de antagonismo αadrenérgico e semelhantes aos da quinidina. Por isso, a administração concomitante de clorpromazina e imipramina resulta em sedação cumulativa, constipação, hipotensão postural e depressão da condução cardíaca. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Ahmed SM, Banner NR, Dubrey, SW: Low cyclosporin-A level due to SaintJohn’s-wort in heart transplant patients (letter). J Heart Lung Transplant, 20: 795, 2001. Breidenbach T, Hoffmann MW, Becker T, et al: Drug interaction of St John’s wort with cyclosporin (letter). Lancet, 355: 1912, 2000. Callahan AM, Marangell LB, Ketter TA: Evaluating the clinical significance of drug interactions: a systematic approach. Harv Rev Psychiatry, 4: 153158, 1996. Durr D, Stieger B, Kullak-Ublick GA, et al: St John’s Wort induces intestinal P-glycoprotein/MDR1 and intestinal and hepatic CYP3A4. Clin Pharmacol Ther, 68: 598-604, 2000. 26 Marangell & Cols. Greenblatt DJ, von Moltke LL, Harmatz JS, et al: Drug interactions with newer antidepressants: role of human cytochromes P450. J Clin Psychiatry, 59 (suppl 15): 19-27, 1998. Greenblatt DJ, von Moltke LL, Harmatz JS, et al: Human cytochromes and some newer antidepressants: kinetics, metabolism, and drug interactions. J Clin Psychopharmacol 19: 23S-35S, 1999. Karliova M, Treichel U, Malago M, et al: Interaction of Hypericum perforatum (St. John’s wort) with cyclosporin A metabolism in a patient after liver transplantation. J Hepatol, 33: 853-855, 2000. Michalets EL: Update: clinically significant cytochrome P-450 drug interactions. Pharmacotherapy, 18: 84-112, 1998.