Entrevista – Brasil Econômico 20/01/2014 "Não tem muita gente produtiva dando sopa" Fernanda Nunes e Paulo Henrique de Noronha ([email protected]) e ([email protected]) 20/01/14 09:20 "Política com base só na Selic é pobre e cara para o governo", diz João Saboia, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ. Foto: Maíra Coelho João Saboia, do Instituto de Economia da UFRJ, defende a qualificação técnica como alternativa para o crescimento da economia Rio - Engenheiro por graduação - a economia aparece em seu currículo apenas no pós-doutorado, na Universidade de Paris -, o professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) João Saboia é um keynesiano por simpatia. Mas se preserva de qualquer rótulo. Isso explica porque defende a política da presidenta Dilma Rousseff de estimular o consumo das famílias, ao mesmo tempo que critica a escolha pela alta da taxa básica de juros como meio de controlar a inflação. Para ele, o programa do governo de desoneração de alguns setores “é uma colcha de retalhos”. Já os programas sociais são considerados por Saboia uma marca positiva do governo petista, de menos peso nas contas públicas do que o aumento da Selic. Em sua opinião, o pessimismo que domina o noticiário é alimentado por economistas ortodoxos: “Para o povo, a economia vai bem”. A aposta no mercado interno resultou em uma acomodação da indústria e chegou a comprometer a competitividade do setor? O Brasil tem o privilégio de ter um mercado interno enorme, é uma característica brasileira que, principalmente em momentos em que a economia mundial está baixa, deve ser aproveitada. Não podemos nos dar ao luxo, em um país com 200 milhões de habitantes, de não dar atenção ao mercado interno. Mas é lógico que o país não pode viver só de mercado interno. Tem ainda a questão de que, se o produto nacional for ruim, vai ser desbancado pelo importado. Alguns economistas chegaram a falar em desindustrialização nos últimos anos. É possível afirmar algo próximo disso? Estou fazendo um trabalho para uma revista acadêmica que vai contra essa tese. Analisamos a indústria de transformação e a extrativa e usamos o conceito do IBGE de divisão do país em mesorregiões (subdivisão dos estados em municípios com similaridades sociais e econômicas) e vimos o que aconteceu a partir de 2003 para cá. Separamos a indústria em três grupos: a tradicional que pega alimentos, calçados, madeira, coisas que em geral estão associadas a uma produtividade mais baixa ou a um menor desenvolvimento; a de commodities; e a difusora, que inclui automóveis, eletrônicos etc. Surpreendentemente, onde cresceram o emprego, os salários e o número de estabelecimentos foi, justamente, na indústria difusora. Ela é chamada assim porque difunde seus processos técnicos para outros segmentos. Isso mostra que a indústria não está tão mal assim, porque esses segmentos mais modernos foram os que cresceram mais nesse período. Eles têm mais produtividade e pagam os melhores salários. Mas tem um problema aí, que é a forte concentração dessa indústria nas regiões Sul e Sudeste do país. Se analisarmos o Nordeste, lá é só indústria tradicional, ou de commodities. A única exceção é Manaus (AM), onde tudo foi criado artificialmente e há uma indústria muito moderna com várias vantagens fiscais. Mas o discurso da desindustrialização é coerente? A indústria de transformação está tendo uma redução em termos de valor adicionado, de emprego, de tudo. E é isso que o pessoal associa à desindustrialização. Mas o que estamos constatando é o seguinte: se você abrir a indústria e ver o que está acontecendo, o resultado é positivo, é surpreendente. Essa parte surpreendente representa a indústria? A indústria brasileira é a tradicional. Mas tem um segmento mais moderno que se deu relativamente bem quando comparado aos outros. Ou seja, a inovação é que faz a diferença? Pois é... Porque esse é o segmento com maior nível de produtividade, o mais competitivo. Se essa indústria consegue ser competitiva convivendo com os mesmos juros e impostos que as demais, significa que a questão tributária não é tão importante quanto o setor reclama? A carga tributária aumentou muito nos últimos 20 anos e hoje tem um nível muito elevado, com relação, digamos ao Produto Interno Bruto (PIB). Ela cresceu bastante e, comparativamente, por exemplo, com a Argentina, é cerca de o dobro. Então, as pessoas têm toda razão de reclamar. A fome fiscal dos governos brasileiros tem sido enorme e a gente sente muito isso, porque bate no nosso bolso com o Imposto de Renda. Mas como essa parcela da indústria consegue ser competitiva mesmo assim? É uma boa pergunta. Eu não sei te responder. De repente, ela é menos competitiva do que poderia ser, devido à carga tributária. Quanto da dificuldade atual pode ser atribuída ao ritmo mais lento da indústria? A crise chegou tarde no Brasil. De 2004 a 2008, a economia estava crescendo bastante, a quase 5%, a gente até já se esqueceu disso. Aí veio a crise. O ano de 2010 foi atípico, após um 2009 muito ruim. Agora, estamos nessa situação, com um clima muito ruim, de muito pessimismo. Esse pessimismo é nosso, de alguns jornalistas, de alguns setores da economia. Para o povo, a economia está indo muito bem. Quando ele olha para trás, vê que a situação melhorou muito. A renda do pessoal mais pobre aumentou muito. E a média da população não está tão pessimista assim. Desde o governo Lula para cá, houve uma melhora importante. O foco do governo de Dilma Rousseff é a indústria, justamente o que não está indo bem. O que deu errado? A indústria está sofrendo uma concorrência estrangeira grande e isso vem lá de trás. A China produz a preço de banana e isso quase destruiu vários setores que tinham um nível de desenvolvimento mais baixo. O fato concreto é que, até 2008, a indústria vinha com um bom desempenho. Mas, após a crise, não conseguiu dar a volta por cima, com todo o incentivo do governo. É um problema de investimento - nossa taxa de investimento está muito baixa. É preciso modernizar mais a indústria e ter mais produtividade. A produtividade do trabalho cresceu muito pouco. Atualmente, a concorrência externa é grande em vários segmentos, como o de automóveis. Mas não faltam incentivos do governo para isso. O aumento da renda, que poderia estar dirigido ao consumo do produto brasileiro, está escapando para os produtos importados, há muito tempo. Agora o câmbio está desvalorizado, mas e há dois anos? A sensação de riqueza era enorme. A moeda valia muito, comprar produtos importados era muito barato. Agora estamos em um momento mais favorável para a indústria. Apesar de ela ainda não ter engatado, é favorável por causa do câmbio. Essa mudança pode dar um efeito positivo. Ainda neste ano? Isso é lento. A tendência é de favorecer a indústria em dois sentidos: de que ela se torne mais competitiva para vender os seus produtos a preços mais baixos e na redução da concorrência. Assim, é possível aproveitar mais o mercado interno. Ainda mais com a renda crescendo. O real se desvalorizou ainda no primeiro semestre de 2013. Podemos esperar algum efeito já em 2014? Como tendência, esperaria que tivesse algum efeito. Mas não sei se será já agora. Com esse câmbio já tendendo para R$ 2,40, R$ 2,50 (por um dólar), há vantagens para a indústria. A Selic mais alta, em compensação, prejudica a indústria. E, pelo jeito, vai continuar aumentando... Eu não gosto. A Selic está muito alta, se comparada ao padrão internacional. Ela está em 10,5%, com uma inflação de 6%. A taxa real está muito alta, demais de 5%. Qual país tem um taxa real de 5%? Isso segura a economia. O crédito fica mais caro. Mas economia é assim mesmo, cada vez que se mexe em um ponto, tem efeito sobre outro. O problema é que eu não sei até que ponto a alta da Selic é eficaz. Porque a inflação é muito localizada em alimentos. Até que ponto aumentar a Selic vai segurar a inflação de alimentos? Pode ser um problema de oferta (de alimentos). E a outra parte da inflação que é alta, a de serviços, em que os preços são determinados por oferta e demanda? Eu tenho dúvidas até que ponto é por aí. Alguns acham que é. É política monetária, ou fiscal. Se a política fiscal está mais frouxa, então, faça política monetária. Qual seria a solução? É possível fazer política monetária de outras formas. Têm as medidas macroprudenciais. Pode tentar controlar o volume de crédito, por exemplo, os depósitos obrigatórios dos bancos. Política monetária que fica basicamente em cima da taxa de juros é pobre, incompleta. E é muito cara. O governo tem que gastar menos. Aumentando a Selic em meio ponto, o quanto aumenta de juros, nessa brincadeira, que o governo tem que pagar? O pessoal fica discutindo se é a partir do déficit primário ou nominal que tem que ser medido. É claro que, se tem mais juros para pagar, é o nominal que cresce, e aí a coisa vai para o brejo. É preciso mostrar capacidade de estabilizar o coeficiente da dívida. Mas como estabilizar, pagando taxas de juros tão elevadas? Já está em um nível altíssimo. Estamos chegando nos nove meses (de defasagem entre a alta dos juros e reflexo na inflação). Agora, vamos ver o efeito. A decisão de aumentar a Selic tem como objetivo comunicar o que a quem? Aumentar juros é sinalizar à sociedade que o combate à inflação está sendo levado a sério. É uma mensagem de que a autoridade monetária considera a inflação muito alta e que ela tem que ser enfrentada. O recado é esse para a sociedade. Será que a sociedade entende os efeitos da alta da taxa Selic? A parcela da sociedade do setor produtivo, do financeiro, quem tem poder de controlar a economia do país, como as grandes empresas e os grandes bancos, é óbvio que entendem perfeitamente. O povão não está nem aí, nem lê jornal. O povão está interessado no seu bolso. E o bolso está bom. O bolso está crescendo, mesmo com essa inflação, os ganhos são reais. Qualquer fonte de dado, como a PME (Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE), demonstra que a renda média, até novembro (de 2013), continua superior à do ano passado. O sr. acha que a atual política fiscal é eleitoreira? Isso é um juízo de valor. Pode ser, ou não. A política fiscal tem uma questão da qual o governo não vai abrir mão, que é o custo dos programas sociais. Essa é a marca do PT. Não dá para querer que o PT seja o PSDB, porque não é. Isso interfere na política fiscal. Mas crescimento de juros interfere muito mais. Se compararmos o quanto se gasta com programas sociais neste país e no pagamento de juros da dívida pública, veremos que os programas sociais custam uma gota d'água. O que dizer da eficácia das desonerações concedidas a alguns segmentos industriais? O ruim dessas desonerações é que são pontuais, podem acabar a qualquer momento. É meio uma colcha de retalhos. De repente, um empresário de um determinado setor está reclamando de alguma coisa, ganha uma desoneração aqui, outra ali. É ruim. Parece que não há organização. É muito pontual e não sei dos seus efeitos. Em 2009, tudo bem, era fundamental, foi uma medida emergencial. Se a nossa economia caiu em 2009, poderia ter caído muito mais. Só que, de repente, virou uma política corriqueira. Alguns setores ficam reclamando: "Por que ele e não eu?". Vira uma questão de lobby mesmo. Se a gente pensar assim, ninguém tem um lobby melhor do que o setor automotivo... O segmento automobilístico é o coração da nossa indústria. Ela demanda produtos de todos os setores. E o volume é muito grande. Esse tem poder. As cidades estão todas cheias de automóveis, o trânsito está péssimo, e vai piorar cada vez mais. O segmento automobilístico tem muita força. O programa Inovauto (de inovação no setor automobilístico) é um caminho alternativo à desoneração? Tudo que seja no sentido de modernização, de melhoria técnica, deve ser incentivado porque o Brasil tem um problema de produtividade, que está muito baixa. Tem duas maneiras de crescer: ou se coloca mais gente para trabalhar, ou se aumenta a produtividade. E estamos numa situação que não tem muito mais gente para colocar para trabalhar. É possível manter a taxa de desemprego tão baixa por muito tempo? Acho que o desemprego não vai aumentar, pelo menos no curto prazo. Não tem muita gente produtiva dando sopa. Os empregos são gerados no comércio e nos serviços, que pagam menos e são menos produtivos. Nesse sentido, o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego) é muito bem-vindo... O Pronatec é um excelente programa, porque a gente não tem tradição no Brasil de ensino técnico. As pessoas que concluem o ensino médio são generalistas. De forma geral, o ensino é de baixíssimo nível. O pessoal quer entrar no mercado de trabalho, consegue o diploma de ensino médio, mas, em geral, mal sabe fazer conta. Universidade não é para todo mundo, é para quem está disposto a continuar a estudar. Na verdade, não tem que ir todo mundo para a universidade. A população tem que terminar o ensino médio qualificada para o mercado de trabalho. É ótimo pegar a garotada e colocar no Pronatec. A alternativa é a pessoa se formar dentro da empresa, para aprender trabalhando. Mas, se puder aprender antes, melhor. Educação ainda é um nó no Brasil? Enorme! No passado, tínhamos analfabetismo, o que existe cada vez menos. Agora, tá todo mundo na escola. Mas que escola? Quem cuida da escola, no ensino básico, são as prefeituras, e tem todo tipo de prefeitura. Educação é fundamental. A saída da produtividade é por aí. Só é possível crescer a economia com o mesmo número de pessoas se elas se tornarem mais produtivas. Há economistas que defendem o desemprego para melhorar a produtividade e, consequentemente, a economia... O mundo ideal é aquele em que as pessoas são produtivas e que tem emprego para todo mundo. É isso que se almeja. A taxa de desemprego está positiva, mas a renda média não é tão favorável assim, a ponto de estimular o PIB? A renda média está crescendo, mas o patamar é baixo, de cerca de R$ 2 mil mensais. O salário mínimo vem crescendo desde o governo Fernando Henrique. Mas o crescimento com maior intensidade se deu no governo Lula. E agora temos essa regra, de dar reajuste baseado na inflação mais o crescimento do PIB. Com o PIB crescendo pouquinho, o salário-mínimo continua crescendo, só que pouquinho em termos reais. Neste ano, por exemplo, o aumento real do mínimo foi de 1%, que foi o crescimento da economia em 2012. Mas, naquele ano, o repasse foi de 7,5%. Se a inflação permanecer alta, vai haver um ganho salarial mínimo. Isso quando passou a valer essa regra, porque antes não tinha regra nenhuma. Antes, o pessoal discutia no Congresso e dava um reajuste. Então, houve um crescimento muito grande. Nos últimos dez anos, dá quase 100% de aumento. Isso é uma revolução no país, porque mexe com o mercado de trabalho e com todo mundo que está aposentado. É um aumento do poder aquisitivo fantástico. E mexe com o mercado de consumo... É claro. O que vem segurando a economia é o crescimento do consumo das famílias. Você olha os dados das contas nacionais, é o consumo das famílias que vem crescendo há mais de 40 trimestres, quase dez anos. O consumo das famílias está segurando a economia. Mas uma economia não pode ser segura só por consumo familiar. Ela tem que ser sustentada por uma combinação de consumo das famílias e investimento. Aí que volta o problema, tem que ter um aumento dos investimentos, que ainda estão muito limitados no país, crescendo pouco. O sr. falou em uma revolução na questão do salário-mínimo. Já que o PIB não está crescendo mais na mesma intensidade, podemos prever um freio nessa revolução? Acho que sim. Mas, de qualquer maneira, o positivo é que o mínimo sempre será reajustado acima da inflação. Porque mesmo no ano em que ele teve crescimento negativo, o governo não teve coragem de jogar para baixo o salário-mínimo. Por isso, acho que o pessoal preocupado com a legislação do salário-mínimo devia baixar a bola. Em geral, a preocupação é com as contas públicas. Eles não têm coragem de dizer: "O salário-mínimo está altíssimo, vamos baixar o mínimo". Eles dizem o seguinte: "Como salário-mínimo aumentando, as contas públicas do governo pioram; então, tem um problema fiscal, porque você gastaria mais do que deveria etc.". Mas acho que o pessoal deveria se acalmar, porque não prevejo nenhum aumento importante para o salário-mínimo até 2016, que será o reajuste baseado no crescimento deste ano de 2014. Essa não é uma questão importante para o pessoal que está aí tão preocupado com a reavaliação da legislação do salário-mínimo, prevista para o final de 2015. Isso não vai ser nenhum problema do ponto de vista de contas públicas. Essa redução do mínimo vai influenciar o consumo? Podemos esperar uma queda no consumo das famílias até 2016? Não irá reduzir, vai crescer menos. Provavelmente, irá desacelerar, mas não a ponto de reduzir o consumo das famílias. O que o governo poderia fazer para estimular o investimento? Deveria ser feito um esforço enorme para criar um clima favorável. Tem um lado muito pessimista, esse é o problema. Há uma desconfiança muito grande que tem que acabar. O governo tem que dizer claramente o que quer. A gente precisa, urgentemente, ter mais otimismo e repassar isso para quem toma as decisões de investimento, ou seja, para os empresários. Eles precisam sentir mais segurança no governo, que tem que passar mais firmeza a eles. O governo tem que dizer, sem ter vergonha, o que pensa e o que quer, de tal maneira que os empresários acreditem naquilo. Eles não podem ficar na dúvida. A alta da Selic vai um pouco nesse sentido, não? É. Mas a alta da Selic é do Banco Central. O BC, em princípio, está preocupado com a inflação, não é governo. Por mais que não haja autonomia total, em princípio, o Banco Central está cuidando da política monetária. O senhor está pessimista? Está chato ler jornal, ver as pessoas discutindo. Há um grupo majoritário de economistas mais ortodoxos, que têm muita força, que dominam as notícias, os meios de comunicação, que pensam muito parecido. Eles são contra o governo, têm outra visão. Eles querem ter o Aécio (Neves, senador do PSDB) lá (na Presidência da República). Poderia dizer que eu estou pessimista no curto prazo, mas acho que, no longo prazo, o país vai melhorar muito.