CARACTERÍSTICAS DO DESMONTE NEOLIBERAL NA SEGURIDADE SOCIAL BRASILEIRA Vinicius Pinheiro de Magalhães1 RESUMO O presente artigo objetiva apreender as características e a densidade do desmonte neoliberal nas políticas de seguridade social, a partir da análise histórica das políticas de previdência social, assistência social e saúde no período pré-constituição de 1988, a fim de compreender a relação histórica do Estado Novo Varguista e do período autocrático burguês da ditadura militar com a instituição das primeiras experiências da proteção social brasileira. Após uma breve explanação acerca do processo histórico de estabelecimento da seguridade social no Brasil, abandonando a lógica do seguro, pretende-se expor as contribuições significativas da Constituição Cidadã nas políticas de Seguridade Social, evidenciando os reais avanços das políticas sociais para a garantia de uma proteção social ampla que cobriu parte significativa da população brasileira. Fazendo as mediações necessárias para uma análise na perspectiva de totalidade, pretende-se, ainda, analisar criticamente as investidas do neoliberalismo contra as prescrições legais das políticas da seguridade social, que afetam diretamente o mercado de trabalho dos profissionais liberais de Serviço Social, e entender quais os mecanismos utilizados pelas forças conservadoras a fim de sustentar o projeto societário burguês. Dessa forma, pretende-se responder as seguintes questões: Quais forças protagonizaram a constituição da proteção social brasileira a partir da CF/1988? Quais forças protagonizam o “desmonte neoliberal” das políticas sociais da seguridade social brasileira? Quais as principais características dos ataques neoliberais para a ineficiência da proteção social brasileira? Conclui-se discutindo os desafios da Seguridade Social para efetivação plena da proteção social no país a partir da defesa intransigente dos direitos sociais conquistados num processo de luta histórica. Palavras-chave: Seguridade Social. Proteção Social. Constituição Federal. Políticas Sociais. Neoliberalismo. 1 Graduando em Serviço Social pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB/ Centro de Artes, Humanidades e Letras – CAHL. 1 1 - INTRODUÇÃO O presente artigo tem a finalidade de compreender quais as principais características do que se chamou de “desmonte neoliberal” da Constituição Federal de 1988 e seus rebatimentos nas políticas de seguridade social brasileira. Para alcançar tal objetivo numa perspectiva de totalidade, isto é, não levando em conta apenas os elementos imediatos e fenômenos aparentes que se manifestam, pretende-se considerar a história da constituição da seguridade social brasileira pré CF/1988 até o período de redemocratização nacional, analisando o surgimento e o desenvolvimento das Políticas de Previdência Social, Assistência Social e Saúde. Levando em consideração a historicidade da seguridade, busca-se, a partir daí, analisar os principais avanços e conquistas da Constituição Cidadã para o sistema de proteção social brasileiro, para então analisar as características do “desmonte neoliberal” nas políticas de seguridade social. Por meio deste objetivo pretende-se responder as seguintes questões: Quais forças protagonizaram a constituição da proteção social brasileira a partir da CF/1988? Quais forças protagonizam o “desmonte neoliberal” das políticas sociais da seguridade social brasileira? Quais as principais características dos ataques neoliberais para a ineficiência da proteção social brasileira? A CF/1988 representou, no cenário brasileiro, um divisor de águas para a política e para os chamados direitos sociais. A Constituição Cidadã expressa uma iniciativa progressista de aderência do Estado, ainda que tardia, ao sistema de bem-estar social. Entretanto, a realidade econômica mundial é contínua e processual, essa realidade dinâmica explica o fato da discrepância histórica do cenário econômico mundial em relação ao Brasil da década de 1980. Isto é, enquanto outros países já haviam aderido ao Estado de bem-estar social desde a década de 1940, no Brasil a iniciativa deste fenômeno iniciará apenas no final da década de 1980, quando o cenário econômico mundial será de desgaste das políticas intervencionistas para a regulação do mercado. Essa discrepância histórica promoverá a pressão externa, da economia mundial, na realidade econômica interna do Brasil, fazendo este aderir a um projeto neoliberal que objetiva diminuir o Estado para o trabalho e maximizá-lo para o capital. 2 2 - BREVE HISTÓRICO DO SISTEMA DE SEGURIDADE SOCIAL BRASILEIRO PRÉ 1988 A história da seguridade social brasileira se desenvolve a partir das características das políticas de assistência e previdência (BOSCHETTI, 2006), num contexto onde se estabelece uma política específica para tratar a chamada “Questão Social”. A transição da República Velha para o Estado Novo no período Varguista evidencia a nova abordagem do Estado para o enfrentamento da “Questão Social”, agora não mais tratada apenas como caso de polícia, mas também de política. Um pouco antes do Estado Novo, em 1923, se institui a Lei Eloy Chaves que estabelecia as chamadas Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAP’s) segundo modelo Bismarckiano alemão. As CAPS’s baseavam-se na lógica do seguro social, com características contributivas que serão típicas da política previdenciária brasileira. A partir de 1937, agora sobre a ditadura do Estado Novo, o Estado assume gestões de CAP’s criando os IAP’s (Institutos de Aposentadorias e Pensões): [...] que se expandem na década de 30, cobrindo riscos ligados à perda da capacidade laborativa (velhice, morte, invalidez, doença), naquelas categorias de trabalhadores estratégicas, mas com planos pouco uniformizados e orientados pela lógica contributiva do seguro. (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 106). Os IAP’s diferente das CAP’s tinham caráter público e tripartite, entretanto coexistiam a fim de promover um objetivo em comum: garantir uma proteção social a trabalhadores de setores estratégicos para o desenvolvimento do país. Neste período, onde era fundamental o desenvolvimento do país, apenas os que estavam vinculados ao mercado formal de trabalho eram cobertos pela proteção social brasileira, isto é, apenas os trabalhadores “reconhecidos legalmente” (ou que interessavam para o desenvolvimento nacional) acessavam os serviços das CAP’s e IAP’s, tendo em vista que estes é que eram considerados cidadãos (SANTOS, 1979). O sistema de proteção social no período, como mostra Draibe (1989), permaneceu seletivo (no plano dos beneficiários), heterogêneo (no plano dos benefícios) fragmentado (nos planos institucionais e financeiros). Para Santos (1987), do ponto de vista da constituição da cidadania, antes de aterse a um padrão universalista, a inserção da população moldou-se segundo critérios de inclusão e exclusão seletiva. (CASTRO, 2009, p. 90) 3 A assistência social, ainda neste período do Estado Novo, também foi importante para o desenvolvimento da seguridade social. Em 1942 cria-se a LBA (Legião Brasileira de Assistência) que objetivava “atender às famílias dos pracinhas envolvidos na Segunda Guerra [...]” (BEHRING; BOSCHETTI, 2011). Esta instituição, marcada pelo assistencialismo caritativo e dirigido pela primeira dama Darcy Vargas, se configurará como uma “instituição articuladora da assistência social no Brasil, com uma forte rede de instituições privadas conveniadas [...].” (Ibidem). Também neste período se consolida uma política nacional de saúde voltada para dois eixos: saúde pública e medicina previdenciária. (Ibidem). A saúde pública “era conduzida por meio de campanhas sanitárias coordenadas pelo Departamento Nacional de Saúde, criado em 1937.” (Ibidem). Este é o cenário de fundo para o desenvolvimento da seguridade social no Brasil voltada para as políticas de previdência social, saúde e assistência social. Entretanto, com a crise do populismo e o advento do golpe militar de 1964, ocorre uma ruptura de aliança com os setores populares, para uma [...] reestruturação das políticas sociais, com a expansão do sistema em busca de uma abrangência nacional e, por outro lado, a montagem de um aparelho estatal centralizado. Amplia-se o grau de racionalidade na implementação dos esquemas de políticas sociais, num movimento expresso pela definição de novas fontes de financiamento e de seus princípios e mecanismos operacionais. (CASTRO, 2009, p. 91, grifo meu) O regime militar, por conta de seu caráter despótico, promoveu maior centralização no processo de desenvolvimento das políticas sociais e consequentemente maior racionalidade (burocratização) destes processos. “[...] neste período caracteriza-se a subsunção dos interesses sociais aos interesses econômicos, relegando as decisões ao privatismo da burocracia.” (ANDRADE, 2014). Os setores populares foram substituídos por setores da classe média, tendo em vista que “a proteção social estava fortemente baseada na capacidade contributiva dos trabalhadores, o que reproduz as injustiças e desigualdades predominantes na sociedade.” (CASTRO, 2009). Neste período de autocracia burguesa brasileira as políticas sociais sofreram as seguintes modificações institucionais: A unificação [...] da previdência social no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, [e ainda] retiram [...] os trabalhadores da gestão da previdência social [...]. [...] a previdência foi ampliada para os trabalhadores rurais, por meio do Funrural [...] (1971). A cobertura previdenciária [...] alcançou as empregadas domésticas (1972), os jogadores de futebol e os autônomos (1973), e os ambulantes (1978). Em 1974, cria-se 4 a Renda Mensal Vitalícia para os idosos pobres [...]. O Ministério da Previdência e Assistência Social foi criado em 1974, incorporando a LBA, a Fundação Nacional para o Bem-estar do Menor (Funabem, criada em 1965), [...] [criou-se também] a Central de Medicamentos (CEME) e a Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social (Dataprev). Esse complexo se transformou, [...], no Sistema Nacional de Assistência e Previdência Social (SINPAS), em 1977, que compreendia o INPS, o Instituto Nacional de Assistência Médica (INAMPS) e o Instituto Nacional de Administração da Previdência Social (IAPAS) [...]. (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 136-137) As característica do regime militar brasileiro diante da constituição da seguridade social foram: centralizadoras, burocráticas e de caráter “institucionalizantes” voltadas a um projeto modernizador-conservador. Entretanto, com o advento da crise da economia internacional “Em 1974, começam a transparecer as primeiras fissuras e sinais de esgotamento do projeto tecnocrático e modernizador-conservador do regime [...]” (Ibidem). A década de 1980 no Brasil foi marcada pela grave crise econômica vivenciada pelo país o que fortaleceu o processo de transição democrática enfraquecendo a ditadura que vigia na época. O movimento operário e popular foram os protagonistas do processo de transição democrática no país, Sua presença e sua ação interferiram na agenda política ao longo dos anos 1980 e pautaram alguns eixos na Constituinte, a exemplo de: reafirmação das liberdades democráticas, impugnação da desigualdade descomunal e afirmação dos direitos sociais, reafirmação de uma vontade nacional e da soberania, com rejeição das ingerências do FMI; direitos trabalhistas; e reforma agrária. (Ibidem, p. 141) A Constituição Federal de 1988 e a defesa dos direitos sociais foram conquistas da base popular e do movimento operário que foram estabelecidos num período de desenvolvimento neoliberal no país, o que justificará o desmonte às diversas políticas sociais, dentre elas, as que fazem parte do tripé da seguridade social brasileira. Entretanto, antes de analisar as características do desmonte neoliberal da Constituição Federal de 1988, faz-se necessário analisar quais avanços que esta possibilitou para a proteção social no país. 3 - AVANÇOS E CONQUISTAS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 PARA A PROTEÇÃO SOCIAL BRASILEIRA A CF/1988 foi um divisor de águas no que se refere à prescrição de direitos sociais para garantir uma proteção social aos cidadãos brasileiros. As forças da base, isto é, o 5 movimento operário e movimentos populares sem dúvida foram os protagonistas do processo de redemocratização nacional, concretizando esta transição na prescrição de direitos que há muito tempo vinham sendo negados a população nacional. Uma novidade que a carta magna de 1988 trouxe para a sociedade brasileira foi a concepção de Seguridade Social que “compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.” (BRASIL, 1988). Os objetivos da Seguridade Social, nos termos da CF, são: I - universalidade da cobertura e do atendimento; II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV - irredutibilidade do valor dos benefícios; V - eqüidade na forma de participação no custeio; VI - diversidade da base de financiamento; VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. (BRASIL, art.194, 1988) Sem sombra de dúvidas a Seguridade Social permitiu maior alcance da proteção social à população brasileira. Em uma sociedade que em alguns anos antes a maioria da população não era coberta pelos serviços de saúde, previdência e assistência, agora a universalidade da cobertura e do atendimento é um avanço muito significativo e importante para a proteção social. A uniformidade de serviços e benefícios às populações urbanas e rurais também marcam o caráter progressista de parte dos objetivos da Seguridade Social, e o caráter democrático e descentralizado da administração favorece uma melhor execução dos serviços com maior aproximação das realidades locais. - Política de Previdência Social Na Previdência Social, a política mais antiga do tripé da Seguridade Social, a Constituição Cidadã trouxe inovações que ampliaram a cobertura em relação à política previdenciária pré 1988. Mesmo já possuindo uma Lei Orgânica, a previdência social ainda estava muito vinculada a lógica da cidadania regulada (SANTOS, 1979), e restrita a categorias profissionais que mais eram necessárias para o desenvolvimento da sociedade brasileira. 6 A CF propõe uma maior cobertura para as categorias profissionais que queiram fazer parte do sistema de Previdência Social, dentre estes: empregados, empregado doméstico, contribuinte individual, trabalhador avulso, segurado especial, e ainda: [...] a categoria dos segurados facultativos, cuja participação é voluntária e corresponde aos indivíduos com 16 anos ou mais de idade que se filiem ao RGPS, mediante contribuição, desde que não estejam exercendo atividade remunerada que os enquadrem como segurados obrigatórios ou estejam vinculados a outro regime de Previdência Social. (RANGEL, et al, 2016, p. 48) A carta magna faz pouca menção da previdência privada, [...] pois além de vedar a subvenção ou o auxílio do poder público às entidades de previdência privada com fins lucrativos, mencionava apenas que estas teriam caráter complementar e facultativo, devendo ser custeada por contribuições adicionais. (Ibidem) O grande avanço, segundo Rangel et al, da Constituição Federal de 1988 em relação a Previdência Social foi a ampliação e uniformização dos benefícios para as populações urbanas e rurais. As mudanças para a população urbana [...] residiram nos seguintes aspectos: aumento do tempo de carência para a requisição do benefício por idade para 180 contribuições mensais; extensão do direito a aposentadoria por tempo de serviço proporcional também às mulheres – aos 25 anos de trabalho – e aumento do salário de benefício para os auxílios doença, que passa a respeitar também o piso equivalente a um salário mínimo. (Ibidem) Entretanto, mudanças mais significativas alcançaram a população rural que historicamente vinha sendo colocada à margem dos direitos previdenciários: Com isso, os valores dos salários de benefício aumentaram para praticamente todos os riscos cobertos. A aposentadoria rural por idade, por exemplo, nos casos em que se comprovasse 30 anos de trabalho, dobrou, tendo passado dos anteriores 50% do maior salário mínimo vigente na economia para 70% do salário de benefício, acrescido de 1% para cada grupo de 12 contribuições mensais. (Ibidem) Portanto, no âmbito da política de Previdência Social, a Constituição Cidadã promoveu inúmeros avanços e conquistas que apenas um ambiente democrático favorável seria capaz de prescrever legalmente. - Política de Saúde 7 A política de Saúde, outrora vinculada a medicina previdenciária, excluindo, desta forma, a maior parte da população dos serviços médicos, foi profundamente afetada com o advento da CF/1988. Um sistema descentralizado e participativo de gestão e operacionalização das políticas de seguridade social proporcionou a promulgação das Leis 8.080\90 e 8.142\90, que tratam do direito à saúde de todo cidadão e da participação da comunidade no sistema de gestão, bem como da implantação do SUS e da participação da comunidade na Conferência Nacional de Saúde. Neste sentido, o modelo do SUS tem por objetivo um rompimento radical com o modelo anterior de gestão da Saúde Pública, [...] tendo em vista que: (i) através da instituição do direito universal e integral à saúde, elimina- se a característica histórica da segmentação de clientelas do sistema de proteção social brasileiro, voltado para o trabalhador formal, no caso do INAMPS; (ii) rompe-se, ainda, através dele, o modelo de financiamento anteriormente vigente, baseado fundamentalmente em contribuições de empregado e empregador; (iii) introduz-se constitucionalmente uma reorganização político-administrativa: “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”, organizado de acordo com as diretrizes da descentralização, atenção integral e a participação da comunidade e, ainda, (iv) define-se como complementar a participação dos prestadores de serviços privados nesse novo sistema (Op. cit.). (MARQUES, MENDES, 2016, p. 221-222) O SUS e a política de Saúde após a CF/1988 promoveram maior efetivação da proteção social brasileira. A ênfase na descentralização permitiu que os municípios tivessem a oportunidade de, a partir das realidades locais, intervirem de acordo com a dinâmica da mesma. Em relação a abrangência do SUS, registram-se em 2007 (Ibidem): 95% dos municípios dispõem de 110 milhões de pessoas atendidas por agentes comunitários, entre os quais 92%, com 87 milhões atendidos por 27 mil equipes do Programa de Saúde da Família (PSF); 2,8 bilhões de procedimentos ambulatoriais; 619 milhões de consultas médicas; 11,5 milhões de internações; 360 milhões de exames laboratoriais; 2,5 milhões de partos; 28 milhões de ações de vigilância sanitária; 150 milhões de vacinas; 15 mil transplantes, 215 mil cirurgias cardíacas, 9 milhões de seções de radio-quimioterapia e o controle mais avançado da AIDS no terceiro mundo, com cobertura de 184 mil pessoas. (p. 228-229) Por fim, os resultados concretos da efetivação do SUS no Brasil é estudado por Noronha et al (apud MARQUES, MENDES, 2016) ao destacar “[...] uma série de indicadores que explicitam a melhoria das condições de saúde da população brasileira” (Ibidem) disponíveis no banco de dados do DATASUS pertencente ao Ministério da Saúde, a saber: 8 i. queda da mortalidade geral, de 6,3 para 5,6 por mil habitantes, entre 1980 e 2002; ii. queda da mortalidade infantil, de 45,3 para 25,1 por mil nascidos vivos, entre 1990 e 2002. iii. mudança no perfil da mortalidade por causas. Em 1980, entre as cinco primeiras causas definidas de óbito, estavam: doenças do aparelho circulatório, causas externas, doenças infecciosas e parasitárias, neoplasias e doenças do aparelho respiratório. Em 2000, as doenças infecciosas e parasitárias, diretamente relacionadas ao abastecimento de água, ao tratamento de esgoto sanitário e à disposição do lixo, deixam de integrar as cinco primeiras causas. (Ibidem, p. 229-230) - Política de Assistência Social Na política de Assistência Social o marco da CF foi mais expressivo do que nas outras duas políticas da seguridade social. Isto porque pela primeira vez a assistência social passa a ser tratada na perspectiva do direito considerando-a como política pública, rompendo com os pressupostos caritativos e assistencialistas que marcaram a história desta. A Constituição Cidadã compreende a assistência social a partir dos artigos 203 e 204: Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e adolescentes carentes; III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. (BRASIL, 1988, art. 203-204) Os artigos refletem os avanços da concepção de assistência social historicamente tratada como clientelista e assistencialista. Observa-se que nesta perspectiva a assistência 9 social não é contributiva e tem caráter universalista, marco da Constituição Cidadã, rompendo também com a lógica da “cidadania ocupacional”, isto é, da assistência social vinculada ao setor previdenciário. Ademais “A CF/ 88 ofereceu a oportunidade de reflexão e mudança, inaugurando um padrão de proteção social afirmativo de direitos que superasse as práticas assistenciais e clientelistas, além do surgimento de novos movimentos sociais objetivando sua efetivação.” (LONARDONI, et al, 2016). A Constituição oportunizou a criação da LOAS2 (Lei n. 8.742/1993) e respectivamente, obviamente que após um hiato histórico muito grande e muito prejudicial para a política de assistência social, a PNAS3 (2004) e a NOB SUAS4 (2005) que estabeleciam de forma específica o público alvo, os objetivos da Política de Assistência e os meios para sua operacionalização. Os benefícios assistenciais responsáveis por maior efetivação da Política de Assistência Social após a CF foram o BPC5 e o PBF6, tendo em vista que, [...] o Estado passou a assumir a responsabilidade por tal política pública e adotou medidas concretizadoras importantes, o que certamente contribuiu na melhora das condições financeiras das pessoas e na redução da desigualdade econômica e social de nosso país [...] (BICCA, 2011, f.15, grifo meu) Observando o gráfico abaixo se constata, dentre outros fatores, o sucesso da Política Nacional de Assistência Social quando se percebe a redução do nível de desigualdade de renda no período que vai de 1988 a 2008. O que pode ser considerado um avanço e uma conquista para a efetivação da proteção social brasileira. 2 Lei Orgânica da Assistência Social Política Nacional de Assistência Social 4 Normas Operacionais Básicas do Sistema Único de Assistência Social 5 Benefício de Prestação Continuada – “Trata-se de uma transferência mensal de um salário mínimo, não condicionada a qualquer contrapartida, destinada a idosos ou deficientes cuja renda familiar per capita não ultrapasse ¼ do salário mínimo.” (BICCA, 2011) 6 Programa Bolsa Família – Programa do Governo Federal (2003) vinculado a um Plano de enfrentamento à fome e miséria. 3 10 Características do desmonte neoliberal nas políticas de seguridade social A década de 1980 no Brasil foi marcada pelas fortes manifestações dos movimentos populares que auxiliaram o país na constituição de uma agenda mais progressista no que se refere aos direitos sociais. Concomitante a este processo, se desenvolvia uma tendência crítica ao intervencionismo estatal, que objetivava uma reestruturação na forma de produção nacional a fim de superar a crise aumentando a taxa tendencial de lucro que havia sido reduzida com o fim do “milagre econômico” brasileiro. O Estado que se gestava, intimamente ligado ao capital mundial, cujos Estado-nação de centro já haviam passado por este processo de contra-reforma, entendia que “assuntos de vocação particular orientam os de vocação geral e de interesse público, no quadro de uma dissociação entre o poder econômico mundializado e o poder político nacional” (BEHRING, 2008). Ou seja, o país aderia a uma agenda neoliberal conservadora voltada aos interesses do capital mundial o que “reforça ainda mais [...] [a] perda de substância dos Estados nacionais” (Ibidem). Neste sentido, o país começa a ter aderência, pressionado pelo capital mundial, leia-se Banco Mundial e FMI7, a um projeto neoliberal fazendo com que o país [...] [reoriente] a parte mais competitiva da economia para a exportação (o que implica [...] um largo processo de desindustrialização e a volta a certas “vocações naturais”), [...] [contenha] o mercado interno e [...] [bloqueie] o crescimento dos salários e dos direitos sociais, e [...] [aplique] políticas macroeconômicas monetaristas, com altas taxas de juros e o estímulo à 7 Fundo Monetário Internacional 11 depressão dos fatores de crescimento, forçando o desaparecimento de empresas e empregos, [...] [encontrando] dificuldades de desempenhar suas funções de regulação socioeconômicas internas. (Ibidem, p. 61, grifo meu) Todo este processo macro desemboca consequências drásticas no universo micro, por exemplo, das políticas sociais. Tendo em vista que o discurso neoliberal as assimila como “[...] paternalistas, geradoras de desequilíbrio, custo excessivo do trabalho, e devem ser acessadas via mercado. Evidentemente, nessa perspectiva deixam de ser direito social.” (BEHRING, 2008). Abre-se espaço, dessa forma, para a mercantilização da proteção social brasileira, a partir da privatização das políticas sociais da seguridade social e da focalização de políticas assistenciais. Dessa forma, a partir da aderência da burguesia nacional a um projeto neoliberal conservador, está posto o cenário para o desmonte e desestruturação da CF/1988 e, sobretudo, das políticas de seguridade social no Brasil. A desestruturação dos direitos sociais são concretizados por meio de uma lógica mercadológica do público, objetivando uma melhor “efetivação” dos serviços. O discurso da “melhor efetivação dos serviços” legitima os processos de terceirização da saúde e da previdência, e também dão o sustentáculo para atuação do chamado “terceiro setor” no âmbito da assistência social. Neste processo de reestruturação produtiva, os conselhos democráticos de controle social tornam-se cada vez mais esvaziados de criticidade, tendo em vista o forte corporativismo de setores privatistas na cooptação destes espaços democráticos. Behring e Boschetti (2011) afirmam que a hegemonia do neoliberalismo perpassa a privatização, a focalização e a descentralização dos direitos sociais. Os direitos sociais assumem outra concepção, não mais vinculada a lógica de “direito”, mas à uma lógica de mercadoria, podendo ser barganhados na concorrência do mercado capitalista. Referente a focalização, [...] pode-se afirmar que à medida que o atendimento da seguridade social se focaliza na população em situação de extrema pobreza, uma parcela do setor médio assalariado é transformada em consumidores de serviços privados complementares, sobretudo na área de saúde e previdência social. (TOBALDINI; SUGUIHIRO, 2011, p. 9) O processo de descentralização das políticas de seguridade social é caracterizado pela transferência de responsabilidade para instituições privadas do terceiro setor, ignorando o “dever do Estado” nas disposições Constitucionais que dão legitimidade e prioridade ao público. 12 Um forte ataque do neoliberalismo às políticas da seguridade social é a questão do financiamento. A saúde e assistência social [...] foram setores que mais perderam em termos de financiamento. Durante o Governo Collor de Mello, momento em que se iniciava a descentralização da saúde e a efetiva implantação do SUS, o montante de recursos destinados à saúde atingiu patamares ínfimos [...] (SENNA; MONNERAT, 2008, p. 207) O pequeno montante para o financiamento dessas políticas (assistência social e saúde) compete com outro problema: a competitividade com o mercado privado dos planos e seguros de saúde e o terceiro setor na assistência. Competição amoral, aética e que expressa uma das principais características do desmonte neoliberal das políticas da seguridade social. Entretanto, o que pode ser considerado como fundamento para os ataques do neoliberalismo é justamente a falta de especificidades da CF/1988. As legislações complementares que dariam legitimidade para as políticas sociais promulgaram-se de forma separada e diferente, como se estas não fizessem parte de um mesmo ideário de seguridade social. Essa lógica de separação das políticas de seguridade social também se concretizou na prática dos governos executivos, tendo em vista que nunca se criara um Ministério da Seguridade Social que discutisse o financiamento e as diretrizes das três políticas, concebendo estas como parte de um mesmo projeto de proteção social. Essa divisão da seguridade promove enfraquecimento de determinadas políticas para a lógica do mercado, pelo fato de que o controle social passa a ser fragmentado, e os conselhos e a participação popular amortizadas no combate aos ataques do capital. [...] com a extinção do INAMPS em 1993, o Ministério da Saúde acumulou as funções deste e passou a exercer o comando único, na esfera federal, da política de saúde, sendo assim denominado até os dias atuais. Já as políticas de previdência e assistência social compunham um único Ministério, o da Previdência e Assistência Social (MPAS), desde 1974. No ano de 2003, o governo Lula criou o Ministério da Assistência Social e alocou neste todas as atividades da política de assistência social. Todavia, os resultados dessa experiência foram considerados insatisfatórios pelo governo, que instituiu no ano seguinte um novo ministério, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), no qual a assistência social ocupa uma das seis secretarias que o conforma. Enquanto isso, a previdência social manteve-se também separada em outro Ministério. Deste modo, na tríade da ideia do que seria a Seguridade Social brasileira, além da separação das três políticas em Ministérios específicos, cada uma vem processando o seu reordenamento organizacional e administrativo separadamente, assim sendo, possuem Fundos orçamentários próprios, bem como Conselhos, Fóruns e Conferências. (BERGER, 2011, p. 6) 13 A concreção fiel do projeto neoliberal diante das políticas de seguridade social se manifesta nos mecanismos e instrumentos político-econômicos como a Desvinculação de Receitas da União (DRU), que permite o desvio de recursos dos orçamentos de políticas sociais para outras ações do executivo (pagamentos de dívidas – internas e externas), criando, desta forma, nos termos da economia, o chamado superávit primário. “A seguridade social é a área que mais sofre o impacto deste mecanismo de ajuste fiscal. [...] apenas no ano de 2004, por meio da DRU, foram desvinculados R$ 24 bilhões das receitas arrecadadas para a seguridade social.” (TOBALDINI; SUGUIHIRO, 2011) Portanto, o desmonte neoliberal legitima um projeto societário burguês que promove e objetiva a manutenção do modo de produção capitalista. Compreendido isto, entende-se também que nada se tem de novidade no neoliberalismo, exceto pelos novos instrumentos político-econômicos utilizados para promover coerção/consenso na defesa de um projeto econômico conservador. 4 - CONCLUSÃO Sem sombra de dúvidas a CF/1988, conquista histórica dos movimentos sociais, estabeleceu um marco na proteção social do país, principalmente no que se refere a lógica da seguridade social em substituição a lógica dos seguros, alcançando uma parte significativa da população brasileira que ainda não estava inserida num sistema de proteção social. Entretanto, o desmonte que se arquiteta na década de 1990 às políticas da seguridade social colocam em xeque, tanto a democracia; por desconsiderar os anseios dos movimentos populares, como os direitos humanos; por desconsiderar os direitos sociais convertendo-os em mais um instrumento lucrativo para o mercado. Nesse sentido, a restauração da seguridade social depende da luta pela defesa intransigente dos direitos e garantias constitucionais à revelia dos anseios do mercado e da lógica acumulativa e centralizadora do capital. Os espaços de controle social para promover o acompanhamento da sociedade civil nos processos deliberativos das políticas sociais, também podem contribuir na luta pelos direitos e por seu caráter público. Portanto, as políticas de seguridade social ainda têm um caminho longo a ser trilhado na busca por uma integralidade da proteção social, e apesar das políticas sociais darem respostas à “questão social” no limite da sociedade capitalista, faz-se necessário a defesa intransigente do que temos para superarmos a subsunção do trabalho pelo capital. 14 REFERÊNCIAS ANDRADE, Fabrício Fontes de. A institucionalidade da Assistência Social na proteção social brasileira. In: ROZENDO, Francisco Henrique da Costa. et al. Serviço social, trabalho e direitos. 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