OS PRESSUPOSTOS VYGOTSKYANOS NA ANÁLISE DO FILME “O ENIGMA DE KASPAR HAUSER” COM VISTAS À EDUCAÇÃO INCLUSIVA LUBITZ, Príscila Nunes Bitencourt1 - FURB FISCHER, Julianne2 - FURB Grupo de Trabalho – Diversidade e Inclusão Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Neste texto apresentamos considerações relacionadas à abordagem histórico-cultural de Vygotsky, tendo como cenário para tal, a análise da vida do protagonista do filme, verídico, “O Enigma de Kaspar Hauser”: um jovem que cresceu encarcerado, privado do convívio socioafetivo, e que apresenta, em decorrência disto, limitações na psicomotricidade e desempenho cognitivo. Ressaltamos que os elementos em destaque nesta análise, os quais são: linguagem, zona de desenvolvimento proximal, processos de subjetivação, relações entre a dimensão biológica e a cultural, são percebidos, assimilados e vivenciados, por meio da história do personagem central. Nesta abordagem de Vygotsky, o ser humano é biológico, mas em sua essência, é um ser social e como tal, tem seu comportamento determinado socialmente. Com este referencial teórico e a aplicação destes pressupostos na análise do conteúdo do filme, procuramos traçar um paralelo com os aspectos que visam à educação escolar inclusiva. Para tanto, resgatamos na história, a trajetória epistemológica da educação até os dias atuais e o período no qual a pessoa com deficiência é levada em conta, por meio de utilização de métodos capazes de lhe atender. Trazemos também o aspecto da relevância de pesquisas e reflexões sobre práticas de ensino inclusivo. Neste ínterim, referimos que a inclusão escolar para todos, pode significar mudança no que for preciso, para que a escola garanta a participação regular para aqueles que estavam segregados. E, desta forma, finalizamos considerando os pressupostos da abordagem histórico-cultural, como conduto mediador da prática educacional inclusiva, uma vez que leva em conta a interação entre aprendizado e desenvolvimento, e privilegia o sentido do ser, enquanto humano. Palavras-chave: Inclusão escolar. Abordagem histórico-cultural. Mediação. 1 Mestranda em Educação no Programa de Pós Graduação em Educação da FURB. E-mail: [email protected]. 2 Doutora em Engenharia de Produção na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Titular e Pesquisadora no Departamento de Educação, no curso de Pedagogia e Programa de Pós-Graduação no Mestrado em Educação e no Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática, com ênfase em processos de ensinar e aprender na educação básica e na educação superior. E-mail: [email protected]. 19906 Introdução Este texto visa compreender de que forma a abordagem histórico-cultural de Vygotsky pode orientar ações e medidas de educação escolar inclusiva a partir da análise do filme “O Enigma de Kaspar Hauser”. Iniciamos este trabalho, trazendo algumas considerações sobre inclusão escolar no viés histórico-cultural. Para tanto, elencamos aspectos para compreensão, do que vem a ser esta abordagem, base para o momento seguinte, no qual refletimos sobre a trajetória epistemológica da educação e como se contextualiza a inclusão escolar no Brasil e em outros países. A seguir, apresentamos o sujeito desta pesquisa, o qual se denomina Kaspar, um jovem alemão que cresceu enclausurado numa torre e completamente privado das relações culturais e socioafetivas. E a partir deste sujeito, entrelaçamos, por meio de análise do filme, algumas considerações que buscam compreender o processo de inclusão escolar do protagonista do filme à luz da abordagem histórico-cultural. No subitem seguinte, desvelamos meios de se efetivar a inclusão escolar, segundo autores da área e conforme os postulados de Vygotsky. Por fim, refletimos sobre a trajetória da educação e, neste ínterim, a possibilidade de se pensar este tema com as concepções da abordagem histórico-cultural como mediadora desta prática. Considerações Sobre Inclusão Escolar No Viés Histórico-cultural Para Vygotsky, desenvolvimento e aprendizagem estão presentes desde o nascimento da criança e um depende do outro. A função da escola no desenvolvimento é explicitada por meio de dois conceitos: conceito cotidiano (aquilo que ela aprende na observação, manipulação e vivência por si só) e conceito científico (aquilo que ela aprende por intervenção intencional e sistematizada na escola). Se o meio ambiente não desafiar e estimular o intelecto, este poderá não alcançar níveis mais elevados de raciocínio. Sendo assim, Rego (2011) esclarece de que a escola tem um papel importante na formação dos conceitos, principalmente dos científicos. Nesta ótica, o texto ratifica sobre Vygotsky “Seus postulados apontam para a necessidade de criação de melhores condições na escola, para que todos os alunos tenham acesso às informações e experiências e possam efetivamente aprender” (REGO, 2011, p. 106). 19907 O interesse da abordagem histórico-cultural de Vygotsky recai sobre a gênese dos processos psicológicos no contexto histórico cultural, que, portanto, não separa os indivíduos da situação cultural da qual se desenvolvem. O seguinte texto esclarece este postulado: Seguindo as premissas do método dialético, procurou identificar as mudanças qualitativas do comportamento que ocorrem ao longo do desenvolvimento humano e sua relação com o contexto social. Coerente com este propósito, Vygotsky fez, no final da década de 20 e no início dos anos 30, relevantes reflexões sobre a questão da educação e de seu papel no desenvolvimento humano. (REGO, 2011, p.25). Nesta perspectiva teórica, o fundamento é o materialismo histórico e dialético compreendido pela forma como o ser humano atua no seu meio sociocultural. O homem é visto como um processo social e fenômeno histórico. Neste ínterim também evocamos os processos de subjetivação, no qual o ser humano se percebe como indivíduo, na sua relação com o outro. A vida social é um processo de interações entre o mundo cultural e o mundo subjetivo. Neste processo, o sujeito internaliza as formas culturalmente estabelecidas de funcionamento psicológico. Desta forma, a cultura não é algo que é dado, mas os sujeitos estão em constante movimento de recriação e reinterpretação das informações e significados. Assim compreendido, trazemos à tona a questão da inclusão escolar nos parâmetros da educação vigente. Atualmente a profissionalização do ensino é um movimento praticamente mundial. Aos professores é solicitado para que se tornem profissionais e os conhecimentos profissionais necessitam de formação continuada e evolutiva; implica num profissional que invista em sua autoformação e autorreciclagem, conforme segue: A profissionalização do ensino e da formação para o ensino constitui, portanto, um movimento quase internacional e, ao mesmo tempo, um horizonte comum para o qual convergem os dirigentes políticos da área da educação, as reformas das instituições educativas e as novas ideologias da formação e do ensino (TARDIF, 2006, p. 6). Vale ressaltar, portanto, que a epistemologia da prática profissional é o cerne deste movimento de profissionalização. O que norteia cada profissão são os conhecimentos específicos de cada área. Sobre isto, a literatura expressa as características do conhecimento profissional, peculiarmente apoiado em especialização de longa formação de alto nível, como a universitária; conhecimento pragmático e exclusivo de quem os detém por competência, aplicação e adaptação por meio de reflexão e discernimento; também são considerados evolutivos e demandam para tanto, formação contínua. 19908 Fazendo um apanhado histórico, o emprego sistemático da razão no século XVII, entre os racionalistas, libertou o conhecimento do controle teológico, da tradição, para uma atitude intelectual diante dos fenômenos da natureza e da cultura, pressuposto básico que orienta a educação da época. Segundo Martins (1994), combinando o uso da razão e da observação, os iluministas analisaram e estabeleceram uma série de reflexões sobre a população, comércio, religião, moral, família, escola e, com isso, queriam demonstrar que as instituições eram um obstáculo à liberdade e à igualdade social dos indivíduos. Na sequência, a burguesia tomou o poder monárquico em 1789 e com isso, procurava construir um Estado que assegurasse a autonomia em face da Igreja. Desta forma, o novo Estado promulga uma legislação que transfere para o Estado as funções da educação. Pensadores da época como Saint-Simon, Comte e Le Play falam da Revolução Francesa como "anarquia", "perturbação", "crise", "desordem"; eles racionalizam a nova ordem, buscando soluções para a desorganização então existente. Segundo Tardif (2006), ascende o positivismo que domina por um tempo, mas vai também se tomar outros rumos, que não somente do estudo estrito da lógica científica para incluir em seus pressupostos, a história das ciências (Ganguilhem), a psicologia de Bachelard e Piaget, a sociologia e a antropologia de Lantour e outros mais. Desde então, e mais evidentemente a partir da década de 60, é que a epistemologia tradicional têm-se aberto a diferentes objetos epistêmicos, tais como, jogos de linguagem, os saberes cotidianos, dos quais, advém, a constituição da realidade social e individual. A questão da educação da pessoa com deficiência tangencia a trajetória epistemológica da educação, quer no Brasil ou em outros países. Na mesma época dos racionalistas, o século XVII caracteriza-se por um período marcado pela rejeição e abandono às pessoas deficientes, conforme Bautista (1997), e a total exclusão social, educacional e até familiar. De igual forma, o autor refere que a partir do século XIX, por influência iluminista, criam-se instituições voltadas à educação do deficiente. E no século XX, a utilização de métodos capazes de atender estas pessoas. Nos Estados Unidos, segundo Stainback e Stainback (1999), foi no final da década de 1700 que um médico, Benjamin Rush, introduziu a concepção de educação de pessoas com deficiência. Mas somente em 1817 que foi oficialmente estabelecido, em Connecticut, um dos primeiros programas de educação especial, por meio de Thomas Gallaudet – Asilo Norte Americano para a Educação e Instrução dos Surdos e Mudos. 19909 E no Brasil, somente após a Declaração de Salamanca (1994), a pessoa com deficiência, no campo da educação, recebeu atenção, mas em meio a debates sobre conceitos, indicadores e políticas sociais. O Ministério da Educação apontou de 2003 a 2005 um aumento de 42,4% na matrícula de alunos com necessidades educacionais especiais. Conquanto os saberes e compreensão sobre deficiências e pessoas com deficiência tenham galgado espaço na educação compulsória nas escolas regulares, o dia-a-dia nestas instituições de ensino traz algumas questões que ainda demandam estudo, profissionalização, reflexão e discussão das leis e diretrizes. Os “alunos de inclusão” ainda são vistos como os “diferentes”, aqueles que impedem o andamento “normal” da aula. São os que demandam “necessidades educacionais especiais”, conforme o 5º artigo da Resolução CNE/CEB Nº 2/2001, que institui as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica no Brasil. O Enigma de Kaspar Hauser Com relação a estes pressupostos teóricos, inserimos a caracterização do personagem central do filme, de cunho verídico, situado no ano de 1828, na Alemanha, na cidade de Nuremberg, quer seja, um jovem, denominado Kaspar Hauser, Este jovem, de origem desconhecida, cresceu isolado da sociedade, enclausurado numa torre, até que foi conduzido num certo dia a uma praça da cidade e ali deixado por um misterioso homem. Com ele foi deixada uma carta que estava endereçada ao capitão da cidade, e que explicava partes de sua história; um livro de orações e alguns outros itens que sugeriam que ele pertencia a uma família nobre. É neste momento que se inicia a sua vida social e cultural, propriamente dita. Até então, ele estava completamente alheio ao mundo afetivo, cultural e social, desprovido das bases que lhe outorgariam as condições de se perceber enquanto ser humano e de ter a ele integrado os aspectos biológicos e sociais inerentes; em situação de exclusão completa. Na análise que segue, utilizamos o enfoque qualitativo, na perspectiva interpretativa, uma vez que “a imagem vai ser substituída por um texto [...]” (WELLER, PFAFF, 2010, p.153). O uso de recurso de mídia, como um filme, “oferece um registro restrito, mas poderoso das ações temporais e dos acontecimentos reais – concretos, materiais [...]” (BAUER, GASKELL, 2012, p. 137). 19910 O Processo Inclusivo de Kaspar À Luz da Teoria Histórico-cultural Percebemos o interesse dos legistas ao estudarem o cérebro de Kaspar por ocasião de seu falecimento. Este órgão principal da atividade mental é capaz de assimilar novas funções, ser moldado na sua estrutura de funcionamento, portanto, não é um sistema fixo e imutável quando concebido ao nascer. Este fato concretizou-se ao longo do desenvolvimento paulatino das funções psicológicas superiores em Kaspar, ao aprender a andar, falar, tocar o piano, pensar, refletir, discutir, manifestar sentimentos, como quando diz para sua “mãe” que todos o desprezavam e realmente chora manifestando este sentimento. Nos primeiros momentos de vida social, ele apresenta apenas as funções psicológicas elementares, tais como, a fome, a sede, o medo, a emoção, os reflexos. Na abordagem histórico-cultural de Vygotsky, o ser humano é biológico, mas em sua essência, é um ser social e como tal, tem seu comportamento determinado socialmente. Além disso, de acordo com Rego (2011), o pensamento é culturalmente mediado pela linguagem. E esta, é um instrumento do pensamento. Ambos, pensamento e linguagem, têm origens diferentes e se desenvolvem de forma independente. Ratificando a concepção de que a linguagem é um instrumento de comunicação, planejamento e auto-regulação, e também mediação, temos: [...] a capacitação especificamente humana para a linguagem habilita as crianças a providenciarem instrumentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, a superar a ação impulsiva, a planejar uma solução para um problema antes de sua execução e a controlar seu próprio comportamento. Signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais (VYGOTSKY, 1991, p.31). Assim disposto, a educação para ser inclusiva, segundo Mantoan (2003), compreende desde condições físicas, emocionais, afetivas, sócio-interativas de se ensinar. Na perspectiva educacional, atinge a todos os estudantes para que sejam bem sucedidos, incluindo os estudantes com deficiência e com necessidades educacionais especiais. Corroboram a este parâmetro, os seguintes dizeres, de que a inclusão escolar: Ela é baseada em um sistema de valores que faz com que todos se sintam bem vindos e celebra a diversidade que tem como base o gênero, a nacionalidade, a raça, a linguagem de origem, o background social, o nível de aquisição educacional ou a deficiência. (MITTLER, 2003, p.34). 19911 De igual forma, o mesmo autor sinaliza de que inclusão escolar é para todos e abrange uma mudança no que for preciso, cultura, organização, para que a escola garanta a participação regular para aqueles que estavam segregados. É promover um ambiente de acesso e realização no currículo e tornar-se membro efetivo da comunidade, sendo assim, valorizado por isso. Posto isto, retomamos na análise do filme, a transformação na vida de Kaspar, ao fazer uso da linguagem. Inicialmente, realmente, destituído desta atividade superior, neste aspecto não se distinguia de um animal. Mas com o uso da linguagem, Kaspar experimenta o processo de abstração e generalização que a linguagem possibilita, além da comunicação. Quando descreve como vê a torre onde esteve trancafiado durante tanto tempo, ele analisa, abstrai a característica daquele lugar. Ao se expressar, seu mentor tem condições de perceber como ele compreende a amplitude do local, e percebe a necessidade de guiar o entendimento espacial de Kaspar, para perceber o real sentido de tamanho do quarto na torre e da torre propriamente dita. Convém trazer neste momento também, a interação entre aprendizado e desenvolvimento, no que a teoria histórico-cultural denomina de Zona de Desenvolvimento Proximal. De forma sucinta, entendemos como sendo alguém que auxilia outro no processo de aprendizagem, no espaço que fica entre aquilo que o aprendiz é capaz de fazer e aquilo que o aprendiz realiza em colaboração com outros elementos. O texto sustenta: Portanto, o desenvolvimento pleno do ser humano depende do aprendizado que realiza num determinado grupo cultural, a partir da interação com outros indivíduos da sua espécie. Isto quer dizer que, por exemplo, um indivíduo criado numa tribo indígena, que desconhece o sistema de escrita e não tem nenhum tipo de contato com um ambiente letrado, não se alfabetizará. O mesmo ocorre com a aquisição da fala. A criança só aprenderá a falar se pertencer a uma comunidade de falantes, ou seja, as condições orgânicas (possuir aparelho fonador), embora necessárias, não são suficientes para que o indivíduo adquira a linguagem (REGO, 2011, p.71). Desta forma, convém mencionar Tardif (2006), de que o saber profissional é personalizado e situado. Primeiramente, personalizado, porque em profissões que as pessoas lidam com pessoas, o que elas comumente fazem é utilizar seus recursos, capacidades e experiências pessoais. Elas fazem uso “delas mesmas” para controlar seu ambiente de trabalho. A personalidade do profissional é em parte o recurso de mediação e interação. Por isso, na prática docente de como fazer a inclusão escolar, citamos: 19912 Ambientes humanos de convivência e de aprendizado são plurais pela própria natureza e, assim sendo, a educação escolar não pode ser pensada nem realizada senão a partir da ideia de uma formação integral do aluno – segundo suas capacidades e seus talentos – e de um ensino participativo, solidário, acolhedor (MANTOAN, 2003, p.8) Assim, partindo dessas concepções, a diferenciação que não segrega, mas que permite que a criança com deficiência progrida na aprendizagem, pelo uso de métodos pedagógicos apropriados e estratégias para um contexto de trabalho de grupo, é um caminho para professores que buscam mediar a inclusão escolar na sua prática docente. A isto, somam-se, profissionais com características pessoais singulares, personalizadas, com competências desenvolvidas para lidar com o estudante de forma individualizada, tendo ele ou não, necessidades especiais. De sua formação profissional, dos fundamentos epistemológicos dos saberes científicos assimilados, talvez rasos, tenham sido as discussões nesse sentido, uma vez que se trata de características pessoais intrínsecas voltadas à sensibilização e não aos sentidos racionais, nos quais está fundamentada a sua formação técnica. Percebemos no filme, quando o menino ensina alguns vocábulos e logo depois, a menina recita um poema para que Kaspar o repita. O menino então intervém, explicando à menina que um poema ainda é difícil para ele repetir, porque ele recentemente que adquiriu conhecimento de umas poucas palavras. Aqui evidenciamos dois aspectos: embora tendo aparelho fonador, como sugere Rego, Kaspar não sabia como utilizá-lo, porque não lhe foi ensinado, em virtude de não ter contato com outras pessoas. E, em segundo lugar, a didática do menino para ensinar o protagonista do filme a falar suas primeiras palavras, utilizando o corpo, o toque. Cada ser humano tem suas particularidades como indivíduo; e esta singularidade, segundo Tardif (2006) está estampada no trabalho dos professores, pois não são grupos que aprendem, são indivíduos. O processo de ensino e aprendizagem é individual. Conhecer individualmente cada estudante requer do professor percepção, sensibilidade e clareza de propósito para suas ações. Sendo assim, elencamos uma possibilidade de como fazer a escola com vistas à inclusão escolar: 19913 Em suma: as escolas de qualidade são espaços educativos de construção de personalidades humanas autônomas, críticas, espaços onde crianças e jovens aprendem a serem pessoas. Nesses ambientes educativos, ensinam-se os alunos a valorizar a diferença pela convivência com seus pares, pelo exemplo dos professores, pelo ensino ministrado nas salas de aula, pelo clima socioafetivo das relações estabelecidas em toda a comunidade escolar – sem tensões competitivas, mas com espírito solidário, participativo. Escolas assim concebidas não excluem nenhum aluno de suas classes, de seus programas, de suas aulas, das atividades e do convívio escolar mais amplo. São contextos educacionais em que todos os alunos têm possibilidade de aprender, frequentando uma mesma e única turma (MANTOAN, 2003, p.63). Finalmente, referenciamos os processos de construção conceitual nos pressupostos de Vygotsky, os quais englobam suas principais proposições a respeito do desenvolvimento humano, que segundo Rego (2011) inclui: a medição da cultura no modo de funcionamento psicológico do indivíduo, as relações entre pensamento e linguagem e o processo de internalização de conhecimentos e significados elaborados socialmente. Desde o nascimento, uma criança vivencia inúmeras experiências num grupo social, as quais envolvem aspectos variados como valores, ideias, objetos concretos, etc; e estas interações possibilitam inúmeros aprendizados. Neste caso de formação de conceitos, isto depende principalmente do contexto em que o indivíduo se insere. A formação de conceitos é imprescindível, no desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, tidos como conceitos científicos que exigem raciocínio, atenção concentrada, usam de palavras e memória lógica. Já o processo de construção conceitual cotidiano é formado por um conjunto de teorias cotidianas sobre o mundo que é construído pelos indivíduos – não como um exercício intelectual de aproximação à verdade – sua gênese encontra-se na relação concreta e empírica que o sujeito mantém com os objetos, que, com auxílio da linguagem, organiza-se em um contexto que é culturalmente determinado – formam as representações. O texto sustenta esta ideia: [...] o desenvolvimento dos processos, que finalmente resultam na formação de conceitos, começa na fase mais precoce da infância, mas as funções intelectuais que, numa combinação específica, formam a base psicológica do processo de formação de conceitos, amadurece, se configura e se desenvolve somente na puberdade (VYGOTSKY, 1987, p. 50). Diante disto, percebemos na vida de Kaspar exatamente estes níveis de desenvolvimento, mas já na fase adulta dada as circunstâncias da sua vida de clausura. De qualquer forma, interessante pontuar a conversa inquietante que ele tem com a governanta, sobre a função das mulheres, pois não se dá por satisfeito com a resposta que obteve com seu tutor. Esta atitude denota, possivelmente, que naquele momento de conhecimentos e conceitos 19914 cotidianos e científicos adquiridos, ele percebia que as mulheres teriam condições, tanto quanto ele, que por anos ficou detido em uma torre, de resignificar a existência por intermédio de outras experiências. Em virtude de ter se apropriado de conceitos científicos, este jovem talvez sinta o desejo de libertar a governanta de seu contexto perceptual imediato. Neste caso, o movimento de inclusão escolar partiu do estudante em processo de “inclusão escolar” e não da escola (casa do tutor). Dessa perspectiva, é percebido que os saberes teóricos proporcionados pela formação docente, raro outorgam ou legitimam aos saberes dos professores, em termos de práticas inclusivas. Como Ficam os “Kaspar Hauser” Que Estão em Nossas Escolas? Buscamos outra citação de Mantoan, no que tange o como fazer inclusão na escola, onde fica evidente que o conhecimento universitário elaborado pela área de ciências da educação fica renegado a um segundo plano, pois no fazer prático, prevalece a atuação pontual baseada nos saberes acima discorridos, que estão impregnados de subjetividade, pessoalidade, personalidade e disposição mental para fazer o que precisa ser feito de fato, afim de que os objetivos e as necessidades reais sejam alcançados e supridos: As escolas que reconhecem e valorizam as diferenças têm projetos inclusivos de educação e o ensino que ministram e diferem radicalmente do proposto para atender às especificidades dos educandos que não conseguem acompanhar seus colegas de turma, por problemas que vão desde as deficiências até outras dificuldades de natureza relacional, motivacional ou cultural dos alunos. Nesse sentido, elas contestam e não adotam o que é tradicionalmente utilizado para dar conta das diferenças nas escolas: as adaptações de currículos, a facilitação das atividades e os programas para reforçar aprendizagens, ou mesmo para acelerá-las, em casos de defasagem idade/série escolar (MANTOAN, 2003, p.61). De acordo com Mittler (2003), o melhor investimento, em longo prazo, que pode existir em termos de assegurar uma boa prática e experiência inclusiva, é garantir que os professores recentemente qualificados possam compreender o ensino inclusivo e a escola inclusiva. Talvez ao iniciar sua carreira docente, estes jovens recém-formados pudessem receber horas de exposição ao ensino de crianças deficiente. Por fim, outro aspecto relevante para a prática inclusiva é “pesquisas e reflexões críticas sobre suas próprias práticas de ensino” (TARDIF, 2006, p. 276). Dúvidas e receios são admissíveis neste processo, porque tornar esta prática uma realidade exige superação de dificuldades. Por isso: 19915 Os professores precisam de oportunidades para refletir sobre as propostas de mudança que mexem com seus valores e com suas convicções, assim como aquelas que afetam sua prática profissional cotidiana. É importante que a inclusão não seja vista apenas como uma outra inovação (MITTLER, 2003, p.184). E se ainda levarmos em conta o aspecto da afetividade, que tanto permeia os estudos e escritos na abordagem histórico-cultural, perceberemos de que o professor, nesta abordagem, deixa de ser o ser detentor de todo saber e formação dos alunos, mas torna-se o ser que age em prol do desenvolvimento individual, o mediador entre as crianças e os objetos de conhecimento. É uma proposta de mudança de paradigma. Levando em conta este aspecto, o modelo norte americano de inclusão escolar se vale dos sistemas de aprendizagem com colegas da mesma idade. Os grupos de ensino, como são chamados, dispensam a necessidade de instrução especial separada, porque o apoio ocorre dentro da sala de aula. Nesta dinâmica, encontramos a afetividade e a zona de desenvolvimento proximal atuando da seguinte forma: na afetividade, a interação com colegas da mesma idade, resulta em interação social e aumento da autoestima. Já na zona de desenvolvimento proximal percebemos que: Os grupos aproveitam as diversas abordagens de conhecimento e de instrução de seus membros e também uma proporção mais elevada de instrutores em relação ao número de alunos, o que permite um diagnóstico mais imediato e preciso das necessidades do aluno e de uma aprendizagem mais ativa (STAINBACK; STAINBACK, 1999, p. 204). Portanto, a inclusão escolar admite formatos múltiplos a fim de perfazer um ambiente de desenvolvimento e aprendizagem formal mais ativa e para todos; independente de ter ou não uma deficiência, permitindo uma abordagem mais precisa nas necessidades de todos os alunos. Considerações Finais A escola de hoje reflete a trajetória histórica da educação e suas bases e pressupostos epistemológicos. A educação esteve intimamente ligada às demandas sociais e econômicas, a fim de que preparasse trabalhadores que pudessem corresponder às necessidades de mão de obra do contingente econômico da época. A inserção de saberes cotidianos, por meio dos quais, a realidade social e individual é constituída, têm um apelo às competências e habilidades; e carregam as marcas do seu objeto, que é o ser humano. 19916 Ainda há o que ser feito em vistas a uma formação docente embasada e experimentada por um novo espectro na fundamentação epistemológica dos saberes docentes; que não se sustente apenas do lógico e racional, uma vez, como foi dito, lida com seres humanos e o intermediador é também ser humano, marcado e encharcado de crenças, vivências, experiências, competências intrínsecas e outras mais, desenvolvidas ao longo da prática docente. Neste ínterim, a abordagem histórico-cultural pode orientar a trajetória da docência com vistas à inclusão escolar, levando em conta a interação entre aprendizado e desenvolvimento, ora compreendida como a zona de desenvolvimento proximal, a linguagem, os processos de subjetivação, a compreensão das relações entre a dimensão biológica e a cultural. Todos estes pressupostos, procuramos sustentar e exemplificá-los nos recortes feitos do filme, cujo personagem, Kaspar Hauser, vivenciou-os esclarecidamente. A inclusão escolar sem reservas, assimilada e compreendida como ideal para o desenvolvimento de todos os estudantes e docentes ocorre quando é direcionada para as experiências que esta prática traz aos que a vivenciam, nas reflexões que descaracterizam o preconceito. Um ambiente de inclusão escolar privilegia o sentido do ser enquanto humano e único, em detrimento do produzir para ser e ter. A inclusão escolar parte de outras bases que não as de um modelo idealizado pela sociedade econômica. Ela parte da singularidade do professor em mudar sua própria trajetória, em buscar caminhos diferentes, de sentir que pode ensinar de outro modo. REFERÊNCIAS BALTRUSCHAT, Astrid. A interpretação de filmes segundo o método documentário. In: WELLER, Wivian; PFAFF, Nicolle (Orgs.). Metodologias da Pesquisa Qualitativa em Educação. 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