“o enigma de kaspar hauser” com vistas à educação inclusiva

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OS PRESSUPOSTOS VYGOTSKYANOS NA ANÁLISE DO FILME “O
ENIGMA DE KASPAR HAUSER” COM VISTAS À EDUCAÇÃO
INCLUSIVA
LUBITZ, Príscila Nunes Bitencourt1 - FURB
FISCHER, Julianne2 - FURB
Grupo de Trabalho – Diversidade e Inclusão
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Neste texto apresentamos considerações relacionadas à abordagem histórico-cultural de
Vygotsky, tendo como cenário para tal, a análise da vida do protagonista do filme, verídico,
“O Enigma de Kaspar Hauser”: um jovem que cresceu encarcerado, privado do convívio
socioafetivo, e que apresenta, em decorrência disto, limitações na psicomotricidade e
desempenho cognitivo. Ressaltamos que os elementos em destaque nesta análise, os quais
são: linguagem, zona de desenvolvimento proximal, processos de subjetivação, relações entre
a dimensão biológica e a cultural, são percebidos, assimilados e vivenciados, por meio da
história do personagem central. Nesta abordagem de Vygotsky, o ser humano é biológico,
mas em sua essência, é um ser social e como tal, tem seu comportamento determinado
socialmente. Com este referencial teórico e a aplicação destes pressupostos na análise do
conteúdo do filme, procuramos traçar um paralelo com os aspectos que visam à educação
escolar inclusiva. Para tanto, resgatamos na história, a trajetória epistemológica da educação
até os dias atuais e o período no qual a pessoa com deficiência é levada em conta, por meio de
utilização de métodos capazes de lhe atender. Trazemos também o aspecto da relevância de
pesquisas e reflexões sobre práticas de ensino inclusivo. Neste ínterim, referimos que a
inclusão escolar para todos, pode significar mudança no que for preciso, para que a escola
garanta a participação regular para aqueles que estavam segregados. E, desta forma,
finalizamos considerando os pressupostos da abordagem histórico-cultural, como conduto
mediador da prática educacional inclusiva, uma vez que leva em conta a interação entre
aprendizado e desenvolvimento, e privilegia o sentido do ser, enquanto humano.
Palavras-chave: Inclusão escolar. Abordagem histórico-cultural. Mediação.
1
Mestranda em Educação no Programa de Pós Graduação em Educação da FURB. E-mail:
[email protected].
2
Doutora em Engenharia de Produção na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Titular e
Pesquisadora no Departamento de Educação, no curso de Pedagogia e Programa de Pós-Graduação no Mestrado
em Educação e no Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática, com ênfase em processos de ensinar e
aprender na educação básica e na educação superior. E-mail: [email protected].
19906
Introdução
Este texto visa compreender de que forma a abordagem histórico-cultural de Vygotsky
pode orientar ações e medidas de educação escolar inclusiva a partir da análise do filme “O
Enigma de Kaspar Hauser”. Iniciamos este trabalho, trazendo algumas considerações sobre
inclusão escolar no viés histórico-cultural. Para tanto, elencamos aspectos para compreensão,
do que vem a ser esta abordagem, base para o momento seguinte, no qual refletimos sobre a
trajetória epistemológica da educação e como se contextualiza a inclusão escolar no Brasil e
em outros países.
A seguir, apresentamos o sujeito desta pesquisa, o qual se denomina Kaspar, um
jovem alemão que cresceu enclausurado numa torre e completamente privado das relações
culturais e socioafetivas. E a partir deste sujeito, entrelaçamos, por meio de análise do filme,
algumas considerações que buscam compreender o processo de inclusão escolar do
protagonista do filme à luz da abordagem histórico-cultural.
No subitem seguinte, desvelamos meios de se efetivar a inclusão escolar, segundo
autores da área e conforme os postulados de Vygotsky. Por fim, refletimos sobre a trajetória
da educação e, neste ínterim, a possibilidade de se pensar este tema com as concepções da
abordagem histórico-cultural como mediadora desta prática.
Considerações Sobre Inclusão Escolar No Viés Histórico-cultural
Para Vygotsky, desenvolvimento e aprendizagem estão presentes desde o nascimento
da criança e um depende do outro. A função da escola no desenvolvimento é explicitada por
meio de dois conceitos: conceito cotidiano (aquilo que ela aprende na observação,
manipulação e vivência por si só) e conceito científico (aquilo que ela aprende por
intervenção intencional e sistematizada na escola). Se o meio ambiente não desafiar e
estimular o intelecto, este poderá não alcançar níveis mais elevados de raciocínio. Sendo
assim, Rego (2011) esclarece de que a escola tem um papel importante na formação dos
conceitos, principalmente dos científicos. Nesta ótica, o texto ratifica sobre Vygotsky “Seus
postulados apontam para a necessidade de criação de melhores condições na escola, para que
todos os alunos tenham acesso às informações e experiências e possam efetivamente
aprender” (REGO, 2011, p. 106).
19907
O interesse da abordagem histórico-cultural de Vygotsky recai sobre a gênese dos
processos psicológicos no contexto histórico cultural, que, portanto, não separa os indivíduos
da situação cultural da qual se desenvolvem. O seguinte texto esclarece este postulado:
Seguindo as premissas do método dialético, procurou identificar as mudanças
qualitativas do comportamento que ocorrem ao longo do desenvolvimento humano e
sua relação com o contexto social. Coerente com este propósito, Vygotsky fez, no
final da década de 20 e no início dos anos 30, relevantes reflexões sobre a questão
da educação e de seu papel no desenvolvimento humano. (REGO, 2011, p.25).
Nesta perspectiva teórica, o fundamento é o materialismo histórico e dialético
compreendido pela forma como o ser humano atua no seu meio sociocultural. O homem é
visto como um processo social e fenômeno histórico. Neste ínterim também evocamos os
processos de subjetivação, no qual o ser humano se percebe como indivíduo, na sua relação
com o outro. A vida social é um processo de interações entre o mundo cultural e o mundo
subjetivo. Neste processo, o sujeito internaliza as formas culturalmente estabelecidas de
funcionamento psicológico. Desta forma, a cultura não é algo que é dado, mas os sujeitos
estão em constante movimento de recriação e reinterpretação das informações e significados.
Assim compreendido, trazemos à tona a questão da inclusão escolar nos parâmetros da
educação vigente. Atualmente a profissionalização do ensino é um movimento praticamente
mundial. Aos professores é solicitado para que se tornem profissionais e os conhecimentos
profissionais necessitam de formação continuada e evolutiva; implica num profissional que
invista em sua autoformação e autorreciclagem, conforme segue:
A profissionalização do ensino e da formação para o ensino constitui, portanto, um
movimento quase internacional e, ao mesmo tempo, um horizonte comum para o
qual convergem os dirigentes políticos da área da educação, as reformas das
instituições educativas e as novas ideologias da formação e do ensino (TARDIF,
2006, p. 6).
Vale ressaltar, portanto, que a epistemologia da prática profissional é o cerne deste
movimento de profissionalização. O que norteia cada profissão são os conhecimentos
específicos de cada área. Sobre isto, a literatura expressa as características do conhecimento
profissional, peculiarmente apoiado em especialização de longa formação de alto nível, como
a universitária; conhecimento pragmático e exclusivo de quem os detém por competência,
aplicação e adaptação por meio de reflexão e discernimento; também são considerados
evolutivos e demandam para tanto, formação contínua.
19908
Fazendo um apanhado histórico, o emprego sistemático da razão no século XVII, entre
os racionalistas, libertou o conhecimento do controle teológico, da tradição, para uma atitude
intelectual diante dos fenômenos da natureza e da cultura, pressuposto básico que orienta a
educação da época. Segundo Martins (1994), combinando o uso da razão e da observação, os
iluministas analisaram e estabeleceram uma série de reflexões sobre a população, comércio,
religião, moral, família, escola e, com isso, queriam demonstrar que as instituições eram um
obstáculo à liberdade e à igualdade social dos indivíduos. Na sequência, a burguesia tomou o
poder monárquico em 1789 e com isso, procurava construir um Estado que assegurasse a
autonomia em face da Igreja. Desta forma, o novo Estado promulga uma legislação que
transfere para o Estado as funções da educação.
Pensadores da época como Saint-Simon, Comte e Le Play falam da Revolução
Francesa como "anarquia", "perturbação", "crise", "desordem"; eles racionalizam a nova
ordem, buscando soluções para a desorganização então existente. Segundo Tardif (2006),
ascende o positivismo que domina por um tempo, mas vai também se tomar outros rumos,
que não somente do estudo estrito da lógica científica para incluir em seus pressupostos, a
história das ciências (Ganguilhem), a psicologia de Bachelard e Piaget, a sociologia e a
antropologia de Lantour e outros mais. Desde então, e mais evidentemente a partir da década
de 60, é que a epistemologia tradicional têm-se aberto a diferentes objetos epistêmicos, tais
como, jogos de linguagem, os saberes cotidianos, dos quais, advém, a constituição da
realidade social e individual.
A questão da educação da pessoa com deficiência tangencia a trajetória
epistemológica da educação, quer no Brasil ou em outros países. Na mesma época dos
racionalistas, o século XVII caracteriza-se por um período marcado pela rejeição e abandono
às pessoas deficientes, conforme Bautista (1997), e a total exclusão social, educacional e até
familiar. De igual forma, o autor refere que a partir do século XIX, por influência iluminista,
criam-se instituições voltadas à educação do deficiente. E no século XX, a utilização de
métodos capazes de atender estas pessoas.
Nos Estados Unidos, segundo Stainback e Stainback (1999), foi no final da década de
1700 que um médico, Benjamin Rush, introduziu a concepção de educação de pessoas com
deficiência. Mas somente em 1817 que foi oficialmente estabelecido, em Connecticut, um dos
primeiros programas de educação especial, por meio de Thomas Gallaudet – Asilo Norte
Americano para a Educação e Instrução dos Surdos e Mudos.
19909
E no Brasil, somente após a Declaração de Salamanca (1994), a pessoa com
deficiência, no campo da educação, recebeu atenção, mas em meio a debates sobre conceitos,
indicadores e políticas sociais. O Ministério da Educação apontou de 2003 a 2005 um
aumento de 42,4% na matrícula de alunos com necessidades educacionais especiais.
Conquanto os saberes e compreensão sobre deficiências e pessoas com deficiência
tenham galgado espaço na educação compulsória nas escolas regulares, o dia-a-dia nestas
instituições de ensino traz algumas questões que ainda demandam estudo, profissionalização,
reflexão e discussão das leis e diretrizes. Os “alunos de inclusão” ainda são vistos como os
“diferentes”, aqueles que impedem o andamento “normal” da aula. São os que demandam
“necessidades educacionais especiais”, conforme o 5º artigo da Resolução CNE/CEB Nº
2/2001, que institui as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica no
Brasil.
O Enigma de Kaspar Hauser
Com relação a estes pressupostos teóricos, inserimos a caracterização do personagem
central do filme, de cunho verídico, situado no ano de 1828, na Alemanha, na cidade de
Nuremberg, quer seja, um jovem, denominado Kaspar Hauser, Este jovem, de origem
desconhecida, cresceu isolado da sociedade, enclausurado numa torre, até que foi conduzido
num certo dia a uma praça da cidade e ali deixado por um misterioso homem. Com ele foi
deixada uma carta que estava endereçada ao capitão da cidade, e que explicava partes de sua
história; um livro de orações e alguns outros itens que sugeriam que ele pertencia a uma
família nobre.
É neste momento que se inicia a sua vida social e cultural, propriamente dita. Até
então, ele estava completamente alheio ao mundo afetivo, cultural e social, desprovido das
bases que lhe outorgariam as condições de se perceber enquanto ser humano e de ter a ele
integrado os aspectos biológicos e sociais inerentes; em situação de exclusão completa.
Na análise que segue, utilizamos o enfoque qualitativo, na perspectiva interpretativa,
uma vez que “a imagem vai ser substituída por um texto [...]” (WELLER, PFAFF, 2010,
p.153). O uso de recurso de mídia, como um filme, “oferece um registro restrito, mas
poderoso das ações temporais e dos acontecimentos reais – concretos, materiais [...]”
(BAUER, GASKELL, 2012, p. 137).
19910
O Processo Inclusivo de Kaspar À Luz da Teoria Histórico-cultural
Percebemos o interesse dos legistas ao estudarem o cérebro de Kaspar por ocasião de
seu falecimento. Este órgão principal da atividade mental é capaz de assimilar novas funções,
ser moldado na sua estrutura de funcionamento, portanto, não é um sistema fixo e imutável
quando concebido ao nascer. Este fato concretizou-se ao longo do desenvolvimento paulatino
das funções psicológicas superiores em Kaspar, ao aprender a andar, falar, tocar o piano,
pensar, refletir, discutir, manifestar sentimentos, como quando diz para sua “mãe” que todos o
desprezavam e realmente chora manifestando este sentimento. Nos primeiros momentos de
vida social, ele apresenta apenas as funções psicológicas elementares, tais como, a fome, a
sede, o medo, a emoção, os reflexos.
Na abordagem histórico-cultural de Vygotsky, o ser humano é biológico, mas em sua
essência, é um ser social e como tal, tem seu comportamento determinado socialmente. Além
disso, de acordo com Rego (2011), o pensamento é culturalmente mediado pela linguagem. E
esta, é um instrumento do pensamento. Ambos, pensamento e linguagem, têm origens
diferentes e se desenvolvem de forma independente. Ratificando a concepção de que a
linguagem é um instrumento de comunicação, planejamento e auto-regulação, e também
mediação, temos:
[...] a capacitação especificamente humana para a linguagem habilita as crianças a
providenciarem instrumentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, a superar a
ação impulsiva, a planejar uma solução para um problema antes de sua execução e a
controlar seu próprio comportamento. Signos e palavras constituem para as crianças,
primeiro e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funções
cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma
nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais
(VYGOTSKY, 1991, p.31).
Assim disposto, a educação para ser inclusiva, segundo Mantoan (2003), compreende
desde condições físicas, emocionais, afetivas, sócio-interativas de se ensinar. Na perspectiva
educacional, atinge a todos os estudantes para que sejam bem sucedidos, incluindo os
estudantes com deficiência e com necessidades educacionais especiais. Corroboram a este
parâmetro, os seguintes dizeres, de que a inclusão escolar:
Ela é baseada em um sistema de valores que faz com que todos se sintam bem
vindos e celebra a diversidade que tem como base o gênero, a nacionalidade, a raça,
a linguagem de origem, o background social, o nível de aquisição educacional ou a
deficiência. (MITTLER, 2003, p.34).
19911
De igual forma, o mesmo autor sinaliza de que inclusão escolar é para todos e abrange
uma mudança no que for preciso, cultura, organização, para que a escola garanta a
participação regular para aqueles que estavam segregados. É promover um ambiente de
acesso e realização no currículo e tornar-se membro efetivo da comunidade, sendo assim,
valorizado por isso.
Posto isto, retomamos na análise do filme, a transformação na vida de Kaspar, ao fazer
uso da linguagem. Inicialmente, realmente, destituído desta atividade superior, neste aspecto
não se distinguia de um animal. Mas com o uso da linguagem, Kaspar experimenta o processo
de abstração e generalização que a linguagem possibilita, além da comunicação. Quando
descreve como vê a torre onde esteve trancafiado durante tanto tempo, ele analisa, abstrai a
característica daquele lugar. Ao se expressar, seu mentor tem condições de perceber como ele
compreende a amplitude do local, e percebe a necessidade de guiar o entendimento espacial
de Kaspar, para perceber o real sentido de tamanho do quarto na torre e da torre propriamente
dita.
Convém trazer neste momento também, a interação entre aprendizado e
desenvolvimento, no que a teoria histórico-cultural denomina de Zona de Desenvolvimento
Proximal. De forma sucinta, entendemos como sendo alguém que auxilia outro no processo
de aprendizagem, no espaço que fica entre aquilo que o aprendiz é capaz de fazer e aquilo que
o aprendiz realiza em colaboração com outros elementos. O texto sustenta:
Portanto, o desenvolvimento pleno do ser humano depende do aprendizado que
realiza num determinado grupo cultural, a partir da interação com outros indivíduos
da sua espécie. Isto quer dizer que, por exemplo, um indivíduo criado numa tribo
indígena, que desconhece o sistema de escrita e não tem nenhum tipo de contato
com um ambiente letrado, não se alfabetizará. O mesmo ocorre com a aquisição da
fala. A criança só aprenderá a falar se pertencer a uma comunidade de falantes, ou
seja, as condições orgânicas (possuir aparelho fonador), embora necessárias, não são
suficientes para que o indivíduo adquira a linguagem (REGO, 2011, p.71).
Desta forma, convém mencionar Tardif (2006), de que o saber profissional é
personalizado e situado. Primeiramente, personalizado, porque em profissões que as pessoas
lidam com pessoas, o que elas comumente fazem é utilizar seus recursos, capacidades e
experiências pessoais. Elas fazem uso “delas mesmas” para controlar seu ambiente de
trabalho. A personalidade do profissional é em parte o recurso de mediação e interação. Por
isso, na prática docente de como fazer a inclusão escolar, citamos:
19912
Ambientes humanos de convivência e de aprendizado são plurais pela própria
natureza e, assim sendo, a educação escolar não pode ser pensada nem realizada
senão a partir da ideia de uma formação integral do aluno – segundo suas
capacidades e seus talentos – e de um ensino participativo, solidário, acolhedor
(MANTOAN, 2003, p.8)
Assim, partindo dessas concepções, a diferenciação que não segrega, mas que permite
que a criança com deficiência progrida na aprendizagem, pelo uso de métodos pedagógicos
apropriados e estratégias para um contexto de trabalho de grupo, é um caminho para
professores que buscam mediar a inclusão escolar na sua prática docente.
A
isto,
somam-se,
profissionais
com
características
pessoais
singulares,
personalizadas, com competências desenvolvidas para lidar com o estudante de forma
individualizada, tendo ele ou não, necessidades especiais. De sua formação profissional, dos
fundamentos epistemológicos dos saberes científicos assimilados, talvez rasos, tenham sido as
discussões nesse sentido, uma vez que se trata de características pessoais intrínsecas voltadas
à sensibilização e não aos sentidos racionais, nos quais está fundamentada a sua formação
técnica.
Percebemos no filme, quando o menino ensina alguns vocábulos e logo depois, a
menina recita um poema para que Kaspar o repita. O menino então intervém, explicando à
menina que um poema ainda é difícil para ele repetir, porque ele recentemente que adquiriu
conhecimento de umas poucas palavras. Aqui evidenciamos dois aspectos: embora tendo
aparelho fonador, como sugere Rego, Kaspar não sabia como utilizá-lo, porque não lhe foi
ensinado, em virtude de não ter contato com outras pessoas. E, em segundo lugar, a didática
do menino para ensinar o protagonista do filme a falar suas primeiras palavras, utilizando o
corpo, o toque.
Cada ser humano tem suas particularidades como indivíduo; e esta singularidade,
segundo Tardif (2006) está estampada no trabalho dos professores, pois não são grupos que
aprendem, são indivíduos. O processo de ensino e aprendizagem é individual. Conhecer
individualmente cada estudante requer do professor percepção, sensibilidade e clareza de
propósito para suas ações. Sendo assim, elencamos uma possibilidade de como fazer a escola
com vistas à inclusão escolar:
19913
Em suma: as escolas de qualidade são espaços educativos de construção de
personalidades humanas autônomas, críticas, espaços onde crianças e jovens
aprendem a serem pessoas. Nesses ambientes educativos, ensinam-se os alunos a
valorizar a diferença pela convivência com seus pares, pelo exemplo dos
professores, pelo ensino ministrado nas salas de aula, pelo clima socioafetivo das
relações estabelecidas em toda a comunidade escolar – sem tensões competitivas,
mas com espírito solidário, participativo. Escolas assim concebidas não excluem
nenhum aluno de suas classes, de seus programas, de suas aulas, das atividades e do
convívio escolar mais amplo. São contextos educacionais em que todos os alunos
têm possibilidade de aprender, frequentando uma mesma e única turma
(MANTOAN, 2003, p.63).
Finalmente, referenciamos os processos de construção conceitual nos pressupostos de
Vygotsky, os quais englobam suas principais proposições a respeito do desenvolvimento
humano, que segundo Rego (2011) inclui: a medição da cultura no modo de funcionamento
psicológico do indivíduo, as relações entre pensamento e linguagem e o processo de
internalização de conhecimentos e significados elaborados socialmente. Desde o nascimento,
uma criança vivencia inúmeras experiências num grupo social, as quais envolvem aspectos
variados como valores, ideias, objetos concretos, etc; e estas interações possibilitam inúmeros
aprendizados. Neste caso de formação de conceitos, isto depende principalmente do contexto
em que o indivíduo se insere. A formação de conceitos é imprescindível, no desenvolvimento
dos processos psicológicos superiores, tidos como conceitos científicos que exigem
raciocínio, atenção concentrada, usam de palavras e memória lógica. Já o processo de
construção conceitual cotidiano é formado por um conjunto de teorias cotidianas sobre o
mundo que é construído pelos indivíduos – não como um exercício intelectual de
aproximação à verdade – sua gênese encontra-se na relação concreta e empírica que o sujeito
mantém com os objetos, que, com auxílio da linguagem, organiza-se em um contexto que é
culturalmente determinado – formam as representações. O texto sustenta esta ideia:
[...] o desenvolvimento dos processos, que finalmente resultam na formação de
conceitos, começa na fase mais precoce da infância, mas as funções intelectuais que,
numa combinação específica, formam a base psicológica do processo de formação
de conceitos, amadurece, se configura e se desenvolve somente na puberdade
(VYGOTSKY, 1987, p. 50).
Diante disto, percebemos na vida de Kaspar exatamente estes níveis de
desenvolvimento, mas já na fase adulta dada as circunstâncias da sua vida de clausura. De
qualquer forma, interessante pontuar a conversa inquietante que ele tem com a governanta,
sobre a função das mulheres, pois não se dá por satisfeito com a resposta que obteve com seu
tutor. Esta atitude denota, possivelmente, que naquele momento de conhecimentos e conceitos
19914
cotidianos e científicos adquiridos, ele percebia que as mulheres teriam condições, tanto
quanto ele, que por anos ficou detido em uma torre, de resignificar a existência por intermédio
de outras experiências. Em virtude de ter se apropriado de conceitos científicos, este jovem
talvez sinta o desejo de libertar a governanta de seu contexto perceptual imediato.
Neste caso, o movimento de inclusão escolar partiu do estudante em processo de
“inclusão escolar” e não da escola (casa do tutor). Dessa perspectiva, é percebido que os
saberes teóricos proporcionados pela formação docente, raro outorgam ou legitimam aos
saberes dos professores, em termos de práticas inclusivas.
Como Ficam os “Kaspar Hauser” Que Estão em Nossas Escolas?
Buscamos outra citação de Mantoan, no que tange o como fazer inclusão na escola,
onde fica evidente que o conhecimento universitário elaborado pela área de ciências da
educação fica renegado a um segundo plano, pois no fazer prático, prevalece a atuação
pontual baseada nos saberes acima discorridos, que estão impregnados de subjetividade,
pessoalidade, personalidade e disposição mental para fazer o que precisa ser feito de fato,
afim de que os objetivos e as necessidades reais sejam alcançados e supridos:
As escolas que reconhecem e valorizam as diferenças têm projetos inclusivos de
educação e o ensino que ministram e diferem radicalmente do proposto para atender
às especificidades dos educandos que não conseguem acompanhar seus colegas de
turma, por problemas que vão desde as deficiências até outras dificuldades de
natureza relacional, motivacional ou cultural dos alunos. Nesse sentido, elas
contestam e não adotam o que é tradicionalmente utilizado para dar conta das
diferenças nas escolas: as adaptações de currículos, a facilitação das atividades e os
programas para reforçar aprendizagens, ou mesmo para acelerá-las, em casos de
defasagem idade/série escolar (MANTOAN, 2003, p.61).
De acordo com Mittler (2003), o melhor investimento, em longo prazo, que pode
existir em termos de assegurar uma boa prática e experiência inclusiva, é garantir que os
professores recentemente qualificados possam compreender o ensino inclusivo e a escola
inclusiva. Talvez ao iniciar sua carreira docente, estes jovens recém-formados pudessem
receber horas de exposição ao ensino de crianças deficiente.
Por fim, outro aspecto relevante para a prática inclusiva é “pesquisas e reflexões
críticas sobre suas próprias práticas de ensino” (TARDIF, 2006, p. 276). Dúvidas e receios
são admissíveis neste processo, porque tornar esta prática uma realidade exige superação de
dificuldades. Por isso:
19915
Os professores precisam de oportunidades para refletir sobre as propostas de
mudança que mexem com seus valores e com suas convicções, assim como aquelas
que afetam sua prática profissional cotidiana. É importante que a inclusão não seja
vista apenas como uma outra inovação (MITTLER, 2003, p.184).
E se ainda levarmos em conta o aspecto da afetividade, que tanto permeia os estudos e
escritos na abordagem histórico-cultural, perceberemos de que o professor, nesta abordagem,
deixa de ser o ser detentor de todo saber e formação dos alunos, mas torna-se o ser que age
em prol do desenvolvimento individual, o mediador entre as crianças e os objetos de
conhecimento. É uma proposta de mudança de paradigma.
Levando em conta este aspecto, o modelo norte americano de inclusão escolar se vale
dos sistemas de aprendizagem com colegas da mesma idade. Os grupos de ensino, como são
chamados, dispensam a necessidade de instrução especial separada, porque o apoio ocorre
dentro da sala de aula. Nesta dinâmica, encontramos a afetividade e a zona de
desenvolvimento proximal atuando da seguinte forma: na afetividade, a interação com colegas
da mesma idade, resulta em interação social e aumento da autoestima. Já na zona de
desenvolvimento proximal percebemos que:
Os grupos aproveitam as diversas abordagens de conhecimento e de instrução de
seus membros e também uma proporção mais elevada de instrutores em relação ao
número de alunos, o que permite um diagnóstico mais imediato e preciso das
necessidades do aluno e de uma aprendizagem mais ativa (STAINBACK;
STAINBACK, 1999, p. 204).
Portanto, a inclusão escolar admite formatos múltiplos a fim de perfazer um ambiente
de desenvolvimento e aprendizagem formal mais ativa e para todos; independente de ter ou
não uma deficiência, permitindo uma abordagem mais precisa nas necessidades de todos os
alunos.
Considerações Finais
A escola de hoje reflete a trajetória histórica da educação e suas bases e pressupostos
epistemológicos. A educação esteve intimamente ligada às demandas sociais e econômicas, a
fim de que preparasse trabalhadores que pudessem corresponder às necessidades de mão de
obra do contingente econômico da época. A inserção de saberes cotidianos, por meio dos
quais, a realidade social e individual é constituída, têm um apelo às competências e
habilidades; e carregam as marcas do seu objeto, que é o ser humano.
19916
Ainda há o que ser feito em vistas a uma formação docente embasada e experimentada
por um novo espectro na fundamentação epistemológica dos saberes docentes; que não se
sustente apenas do lógico e racional, uma vez, como foi dito, lida com seres humanos e o
intermediador é também ser humano, marcado e encharcado de crenças, vivências,
experiências, competências intrínsecas e outras mais, desenvolvidas ao longo da prática
docente.
Neste ínterim, a abordagem histórico-cultural pode orientar a trajetória da docência
com vistas à inclusão escolar, levando em conta a interação entre aprendizado e
desenvolvimento, ora compreendida como a zona de desenvolvimento proximal, a linguagem,
os processos de subjetivação, a compreensão das relações entre a dimensão biológica e a
cultural. Todos estes pressupostos, procuramos sustentar e exemplificá-los nos recortes feitos
do filme, cujo personagem, Kaspar Hauser, vivenciou-os esclarecidamente.
A inclusão escolar sem reservas, assimilada e compreendida como ideal para o
desenvolvimento de todos os estudantes e docentes ocorre quando é direcionada para as
experiências que esta prática traz aos que a vivenciam, nas reflexões que descaracterizam o
preconceito. Um ambiente de inclusão escolar privilegia o sentido do ser enquanto humano e
único, em detrimento do produzir para ser e ter. A inclusão escolar parte de outras bases que
não as de um modelo idealizado pela sociedade econômica. Ela parte da singularidade do
professor em mudar sua própria trajetória, em buscar caminhos diferentes, de sentir que pode
ensinar de outro modo.
REFERÊNCIAS
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