Devem-se estabelecer diretrizes para o uso de leitos de UTI? SIM As escolhas de Sofia CAIO ROSENTHAL e MÁRIO SCHEFFER Quem leu a história de William Styron ou assistiu ao filme protagonizado por Meryl Streep comoveu-se com Sofia, a mãe forçada a entregar um filho para tentar salvar o outro. No Brasil, não são poucos os médicos que, no dia-a-dia da profissão, convivem, como Sofia, com a angústia de selecionar prioridades e tomar decisões extremas, muitas vezes alheias à vontade pessoal. Assim, seria mais transparente com a sociedade assumir o que já se faz na prática médica. Serão bem-vindas diretrizes para a internação de pacientes em UTIs. Não é razoável supor que o Ministério da Saúde queira propor medidas capazes de provocar deliberadamente a morte de pacientes removidos das UTIs para dar lugar a outros com melhor prognóstico, como acreditam alguns críticos mais histriônicos. O sistema de saúde preconiza, mas não viabiliza, a igualdade de condições para todos. As iniqüidades no acesso aos serviços de saúde é que têm apressado a doença e levado à morte no país. A independência, a autonomia dos médicos e de profissionais de saúde e os direitos dos pacientes estão ameaçados a toda hora, não apenas nas UTIs, mas também nos prontos-socorros superlotados, nas unidades básicas, nos hospitais públicos e privados. Está aí a barafunda da saúde na cidade do Rio de Janeiro, exemplo acabado de até onde se pode chegar. As "Sofias" da medicina convivem com as filas nas madrugadas, a crise nos serviços de urgência e emergência, o sucateamento de hospitais e a falta de leitos. Igualmente, têm que decidir diante das restrições de coberturas praticadas pelos planos e seguros de saúde, que em seus contratos antigos, a maioria vigente, limitam dias de internação em UTIs, dentre tantas exclusões. E o que dizer da dupla porta de alguns hospitais universitários, que selecionam quem tem plano privado e lançam ao final da fila o cidadão de segunda linha, que, até que chegue sua vez, pode ter seu estado de saúde piorado? Assim, qualquer discussão que pretenda rever rotinas de protocolos assistenciais estará contaminada pelas desigualdades e falhas do sistema de saúde brasileiro, que não conta com a regulamentação da emenda constitucional 29, garantindo financiamento mais decente para o setor. Cabe ao SUS a cobertura da imensa maioria dos procedimentos caros e de alta complexidade. Dentre os 21,5 mil leitos de UTI do país, mais de 75% são públicos. Mesmo assim, muitos cidadãos, por omissão e incompetência governamental, morrem porque encontram fechada ou lotada a porta da UTI, devido ao déficit de mais de 4.000 leitos. Somam-se a má qualidade e o uso irracional dos serviços oferecidos aos pacientes críticos, os recursos humanos pouco qualificados e a dificuldade de fixação de médicos e enfermeiros intensivistas longe dos grandes centros. Solução existe. Vamos olhar para o programa brasileiro de combate à Aids. Em que pese estar hoje assombrado pelo fantasma da falta de medicamentos, seu sucesso reside na determinação dos gestores públicos, na participação da sociedade e no fato de absorver protocolos e práticas avançadas, o que só nos faz acreditar na viabilidade do SUS. A economia de recursos ou o déficit de leitos não podem nortear as mudanças nas UTIs. No entanto é preciso lembrar que o prolongamento da permanência de pacientes em UTIs tem às vezes conseqüências incompatíveis com a qualidade de vida. Diante de situações de pacientes consensualmente considerados irrecuperáveis, devem ser preconizados cuidados paliativos para o controle da dor e dos desconfortos, internação em enfermarias ou atendimento domiciliar, onde é possível o acolhimento solidário dos familiares, alternativas que respeitam muito mais o ser humano em sua dignidade. Por isso, são necessárias recomendações técnicas de parâmetros e condutas em UTIs, desde que aliadas à readequação dos serviços. Nos EUA, as associações médicas de terapia intensiva há muito tempo já sugerem critérios para utilização das vagas disponíveis, inclusive com definição de escalas de prioridade. A Associação Médica Brasileira já elaborou cerca de 120 diretrizes, em diversas especialidades, e não há notícia de que tenham engessado a liberdade do médico ou imposto restrições de atendimento. Pelo contrário, formuladas por renomados especialistas à luz das melhores evidências, ajudam os profissionais na tomada de decisões difíceis, até em momentos que lidam com dramas humanos, limitações e insucessos da medicina. Que fique claro: a palavra final sobre a entrada e a saída de um paciente da terapia intensiva será sempre do médico e, se possível, em conjunto com a família. Quanto à saúde no Brasil, passou da hora de a tirar definitivamente da UTI. Caio Rosenthal, 55, médico infectologista do Hospital do Servidor Público Estadual e do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, é membro do Conselho Regional de Medicina de São Paulo