Devem-se estabelecer diretrizes para o uso de leitos de UTI? NÃO Decisão deve ser médica GIOVANNI GUIDO CERRI É , no mínimo, precipitada a posição do Ministério da Saúde de propor normatizações para a internação em leitos de unidades de tratamento intensivo, as UTIs. Tão prematura que, pouco mais de 24 horas depois de o assunto ter se tornado público, o próprio governo federal recuou e suspendeu a intenção de editar a norma técnica. Se o adiamento é positivo, a fim de que os setores ligados à saúde possam ser ouvidos, é preocupante que a proposta tenha sido feita antes da devida consulta a esses setores. Agora mesmo há no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP uma comissão, subordinada à sua diretoria clínica, formada com a finalidade de discutir a questão das UTIs. Certamente esse grupo e vários outros ligados a entidades médicas teriam muito a contribuir nesse debate. Mais sério que a forma com que foi lançado o tema, entretanto, é o assunto em si. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a situação do país referente ao número mínimo de leitos de UTI está longe da considerada adequada pela Organização Mundial da Saúde. Enquanto a OMS revê seu padrão para de 7% a 10% das vagas totais da rede hospitalar direcionadas às UTIs, no Brasil os leitos disponíveis correspondem a apenas 3,78% do total (menos que os 4% previstos pela organização na década de 80). O mais dramático é que esse percentual inclui as vagas na rede privada, pelas quais poucos podem pagar. E a questão não é apenas de distribuição regional: faltam leitos em todo o país, embora com níveis de gravidade diferentes em cada Estado. Se a situação pior está em Rondônia, onde o percentual de vagas de leitos em UTI é de apenas 1,05% do total, São Paulo, onde a oferta de vagas é maior, também não atinge os índices propostos pela OMS: são apenas 5% de leitos de UTI. Trazer a público neste instante a questão da regulamentação do uso das UTIs é desviar a atenção de um problema estrutural. Não será normatizando quais pacientes devem ter direito à utilização da terapia intensiva que será resolvida a questão da insuficiência e má distribuição das vagas. Ao contrário, apenas estarão colocando um problema financeiro, ou seja, a falta de investimento, acima dos interesses dos pacientes. Falar em uma "cultura de UTI" enquanto ainda vivemos uma situação de déficit é temerário. Somente com a devida ampliação dos leitos do setor público, contemplando todas as regiões do país, é que se poderá discutir sua melhor utilização. No momento, a realidade de grande número de equipes médicas do país ainda é a de escolher, entre vários pacientes com indicação para UTI, qual vai ocupar a -às vezes única- vaga disponível. É uma situação cruel tanto para o médico quanto para o paciente e sua família. Sua solução antecede qualquer discussão ou norma. Por outro lado, é importante que o governo tenha claro que a idéia de uma normatização que tire do médico o poder (e dever) de decisão a respeito do adequado tratamento ao seu paciente é extremamente nociva à população. A internação ou não em UTI é uma decisão clínica: somente o médico, responsável pelo atendimento e profundo conhecedor do caso de determinado paciente, tem condições de avaliar qual o procedimento mais adequado naquela situação específica. Substituir essa avaliação por uma norma editada é subordinar a prática médica à burocracia. A decisão por uma determinada conduta terapêutica não é um procedimento automático. É extremamente complexa, porque envolve diversos fatores científicos e humanísticos. Trata-se de uma conduta fina que, como tal, dificilmente pode ser traduzida para o papel como uma regra matemática. É o médico, entre todos os profissionais de saúde, aquele que recebe formação suficiente para avaliar e tomar a decisão final, inclusive fazendo as modificações necessárias ao longo do tratamento. Portanto é a ele que cabe a palavra final sobre a entrada e a saída de um paciente da UTI, inclusive porque legalmente é quem responde diante de um eventual problema. Para ser favorável à sociedade brasileira, qualquer proposta do Ministério da Saúde quanto às UTIs deveria contemplar esses três pontos: ampla consulta aos especialistas e entidades médicas, oferta de vagas suficientes para atender à demanda e respeito ao princípio de que cabe ao médico a decisão sobre a melhor conduta para o seu paciente. Giovanni Guido Cerri, 51, médico, é diretor da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Conselho Deliberativo do Hospital das Clínicas ([email protected]).