1 PIERRE BOURDIEU: EDUCAÇÃO PARA ALÉM DA REPRODUÇÃO Nadia G. Gonçalves (DTPEN/PPGE-UFPR) Sandro A. Gonçalves (Universidade Positivo) Teoria e método: fundamentos, princípios e desenvolvimento multiplicidade de objetos estudados questões de fundo: as culturas e as práticas sociais, com seus mecanismos de produção e manutenção; as relações de força e a produção simbólica, existentes em cada campo na luta por poder e reconhecimento, são preocupações centrais. “[...] o caráter ao mesmo tempo diversificado e sistemático de minhas pesquisas decorre do fato de que tenho como projeto intelectual (se é que podemos caracterizá-lo em poucas palavras) tentar fazer uma economia dos fenômenos culturais e simbólicos” (1985, in Lins, 2000, p.18). Apropriações: Marx presença forte do paradigma da dominação e das relações de força e conflitos sociais daí gerados. rupturas e questionamentos: não reconhece a classe teórica como real e efetivamente mobilizada; considera reducionismo grave da realidade o economicismo; se propõe a romper com o objetivismo, que ignora as lutas simbólicas que ocorrem nos diferentes campos; e adota a noção de capital, que amplia para outros âmbitos, além do econômico, como o social, o cultural e o simbólico. Apropriações: Weber noção de representação, em relação ao sentido conferido pelos agentes para suas ações (dimensão simbólica); Noção de legitimidade, ou a qualidade de adesão, aceitação e reconhecimento de algo pelos agentes. São aplicadas para a compreensão dos mecanismos de dominação e de seu processo de produção, transmissão e manutenção, na sociedade. Apropriações: Durkheim retoma a discussão e defesa da constituição da Sociologia como ciência, buscando identificar as “leis objetivas” que orientam a realidade social e atribuindo uma explicação e ordem ao aparente caos da sociedade. Contribuições teóricas e conceituais Espaço social e Campo O espaço social pode ser compreendido como sistema de posições sociais que se definem umas em relação às outras, que se faz em determinado espaço e tempo físicos, e que tendencialmente se reproduz pela conformação consensual, em geral inconsciente, de seus agentes. Os espaços sociais podem abranger campos distintos, que se interrelacionam. Cada elemento do campo é um agente 2 os agentes de um determinado campo partilham um conjunto de interesses e capital comuns (mais fortes do que os antagonismos que possam ter) Há uma luta concorrencial decorrente de relações de poder internas ao campo. Todos os campos caracterizam-se por possuírem características próprias, com dinâmicas, regras e capitais específicos e por um pólo dominante e outro dominado, com possíveis gradações intermediárias e conflitos constantes, e definidos de acordo com seus valores internos. Há uma luta contínua baseada na força e no sentido, não restringindo-se às disputas materiais, mas compreendendo-as como grandemente decorrentes dos sentidos gerados e legitimados socialmente. Por outro lado, da mesma forma que a lógica do campo leva à busca pela distinção, ela estabelece limites para que essa seja obtida, exercida ou legitimada: os mecanismos e os agentes precisam do reconhecimento do grupo para que a distinção se estabeleça, o que leva ao habitus, que [...] se trata de disposições adquiridas pela experiência, logo, variáveis segundo o lugar e o momento. (2004, p.21) O habitus é ao mesmo tempo coletivo e individual Bourdieu enfatiza sua característica de incorporação no agente, de tal forma que se torna o próprio agente, em um processo de interiorização, reproduzindo internamente nele as estruturas externas do mundo. Contribui significativamente para a reprodução da ordem social, na medida em que esta não pode se dar sem a adesão, o reconhecimento e mesmo a ação dos agentes e instituições envolvidas; porém, este processo se dá de forma sutil, em geral inconsciente por parte dos agentes. Para desvelar a constituição do habitus, é preciso conhecer a sua história, gênese e as estruturas vigentes na sociedade e naquele campo em especial. As funções sociais são ficções, pois forja-se uma imagem social, por meio da representação, e institui-se as funções sociais que, para serem cumpridas, necessitam de adesão do agente ao jogo social. A constituição do habitus implica em uma dialética entre ele e as significações prováveis percebidas pelo agente, no sentido de que este tenderá a observar na realidade elementos que reconhece e pensa compreender, resultando em práticas que reforçam essa visão de mundo. Bourdieu denomina esta situação como “causalidade do provável”, uma vez as disposições incorporadas levam o agente a limitar-se ao que entende como possível, considerando seu lugar no mundo. Dessa forma, os efeitos do habitus são efetivos e desapercebidos, na medida em que são produzidos pelos agentes, que interiorizaram as estruturas: “As disposições tendem a reproduzir não a posição da qual são o produto, captada em um momento dado do tempo, mas o sentido, no ponto considerado, da trajetória individual e coletiva” (1974, in Nogueira e Catani, 2005, p.101). Porém, membros de um mesmo campo podem constituir disposições com nuances distintas, de acordo com a fração do campo que ocupam, ou seja, sua posição nele. O habitus está diretamente relacionado à prática, ou melhor, ela é resultado dele, mas não somente. Bourdieu chega a propor uma fórmula para sua compreensão: [(habitus) (capital)] + campo = prática (2007, p.97). 3 Ela é compreendida como resultado da relação dialética entre as estruturas e a conjuntura em que elas se inserem, que é intermediada pelo habitus, que por sua vez é constituído nessa relação dialética. Admite-se então um duplo movimento: entre as estruturas e a conjuntura, e entre o habitus e estas estruturas e conjuntura, o que leva à prática. A prática, por sua vez, fundamenta a noção de estratégia, que pode ser individual ou coletiva, e visa à manutenção, apropriação ou expansão do capital disponível e desejado. Elas dependem diretamente do capital disponível e de seu valor em determinado campo e conjuntura. Observa-se que as estratégias dependem e utilizam-se dos diferentes tipos de capital possuído ou desejado. Os campos organizam-se hierarquicamente no interior do campo de poder a partir do capital: social, cultural, e econômico. Bourdieu acrescenta o capital simbólico, que “é um crédito, é o poder atribuído àqueles que obtiveram reconhecimento suficiente para ter condição de impor o reconhecimento [...].” (2004, p.166) O capital simbólico confere poder ou legitimidade – poder simbólico – ao agente ou grupo que o possui, a partir de seu reconhecimento dentro de determinado campo. Essa posse está também relacionada à posição do agente dentro do campo, e se dá em relação aos demais agentes, pressupondo o “desconhecimento da violência que se exerce através dele” (2004, p.194). a noção de violência simbólica complementa esta relação. Ela é “uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrêla” (1997, p.22); e é exercida por agentes dominantes ou instituições, que estabelecem o que é reconhecido como legítimo no campo. Bourdieu compara o funcionamento do campo à organização e desenvolvimento de um determinado jogo, cujas regras não são explícitas, mas são compreensíveis para os agentes que dele participam, a partir de seu habitus. Pode-se falar de regras, desde que se distinga regra de regularidade, pois “o jogo social é regrado, ele é um lugar de regularidade” (2004, p. 83). Nele as coisas se passam de forma regular, mas isso não quer dizer que seja uma regra, mesmo que uma atitude diferente da esperada seja considerada falta. Entretanto, alerta que o risco de se utilizar a imagem do jogo como metáfora para a compreensão das regras sociais traz alguns perigos, como a sugestão de que alguém criou o jogo e instituiu suas regras, ou de que há regras explícitas (até mesmo escritas). Teoria dos campos: [...] uma topologia social capaz de fazer a distinção entre os deslocamentos no interior do espaço próprio de um campo, associados ao acúmulo (positivo ou negativo) da espécie de capital que constitui o objeto específico da concorrência que o define como tal, e os deslocamentos entre campos, associados à reconversão do capital de uma espécie determinada em outra espécie, com aceitação em um outro campo, sendo que ambas as classes de deslocamentos dependem, em seu significado e valor, das relações objetivas entre os diferentes campos, portanto, das taxas de conversão das diferentes espécies de 4 capital, e das mudanças pelas quais estas são afetadas no decurso do tempo, ao término das lutas entre as classes e as frações de classe” (1974, in Nogueira e Catani, 2005, p.125). Cuidado: considerar o processo histórico de constituição de cada sociedade ou campo. Porém, afirma que a história, da forma como a sociologia necessita, não existe: O trabalho histórico que deveria permitir a compreensão da gênese das estruturas tal como elas podem ser observadas em um dado momento nesse ou naquele campo é muito difícil de ser realizado [...]. [...] é evidente que uma sociologia plenamente acabada deveria englobar uma história das estruturas que são num dado momento o resultado de todo o processo histórico. [...]. Trata-se de fazer uma história estrutural que em cada estado da estrutura encontre simultaneamente o produto das lutas anteriores para transformar ou conservar a estrutura, e o princípio, através das contradições, das tensões, das relações de força que a constituem, das transformações ulteriores (2004, p.57-58). Para mudar o mundo, “é preciso mudar as maneiras de fazer o mundo, isto é, a visão de mundo e as operações práticas pelas quais os grupos são produzidos e reproduzidos” (2004, p.166). Para isso, os intelectuais podem muito contribuir com o processo de mudança, mas há limites para essa contribuição. Muitos deles Bourdieu analisa em trabalhos que discutem as lutas internas e a produção intelectual, bem como o campo científico ou campo intelectual, que, como todo campo, repleto de lutas por reconhecimento e pela imposição de compreensões e explicações como legítimas. O discurso científico pode aparecer ou ser utilizado como crítico ou cúmplice de determinadas visões ou explicações. Apesar disso, ele tem esperança neste possível papel social crítico e esclarecedor, em especial tornando-se mais público, bem como as suas produções. Referências BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Tradução Maria L. Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. _______. Coisas ditas. Tradução Cássia R. da Silveira; Denise M. Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 2004. _______. A distinção: crítica social do julgamento. Tradução Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007. LINS, Daniel (org.) O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação – Pierre Bourdieu. Tradução: Roberto L. Ferreira; introdução e revisão técnica: Daniel Lins. Campinas – SP: Papirus, 2000. NOGUEIRA, Maria A. e CATANI, Afrânio (orgs.). Escritos de Educação.Seleção, organização, introdução e notas: Maria A. Nogueira e Afrânio Catani. 7ª ed. Petrópolis – RJ: Vozes, 2005.