Capítulo II DESENVOLVIMENTO INTELECTUAL E OUTROS FATORES CONTEÚDO, FUNÇÃO E ESTRUTURA Piaget considerou o desenvolvimento cognitivo como tendo três componentes: Conteúdo é o que a criança conhece. Refere-se aos comportamentos observáveis — sensório-motor e conceitual — que refletem a atividade intelectual. Pela sua natureza, o conteúdo da inteligência varia consideravelmente de idade para idade e de criança para criança. Função refere-se àquelas características da atividade intelectual — assimilação e acomodação — que são estáveis e contínuas no decorrer do desenvolvimento cognitivo. Estrutura refere-se às propriedades organizacionais inferidas (esquemas) que explicam a ocorrência de determinados comportamentos. Por exemplo, se uma criança é solicitada a comparar uma fileira de nove peças de jogo de dama a uma outra, mais longa, de oito peças e dizer qual tem mais peças, e ela diz que a de oito tem mais, embora ela conte cada uma das fileiras, pode-se inferir que ela não tem um conceito completo de número. Isto sugere que ela não tem um conceito de número plenamente desenvolvido. Ao confrontar um problema que colocou a percepção contra a razão, sua escolha baseou-se na percepção. Eventualmente, a razão pode prevalecer, mas só depois de as estruturas determinantes terem se desenvolvido. Estas mudanças nas estruturas são um aspecto importante no desenvolvimento intelectual. Flavell escreve: Interpostas entre a função e o conteúdo, Piaget postula a existência de estruturas cognitivas inseridas entre a função e o conteúdo. A estrutura, do mesmo modo que o conteúdo, e diferentemente da função, muda com a idade, e estas mudanças do desenvolvimento constituem o maior objeto de estudo para Piaget. O que são estruturas no sistema de Piaget? Elas são as propriedades organizacionais da inteligência (esquemas), organizações essas criadas através da função e inferidas do conteúdo do comportamento, cuja natureza elas determinam. (FlavelI 1963, p. 17) 25. Piaget ocupou-se fundamentalmente do estudo da estrutura da inteligência, dedicando-se menos às questões da função e conteúdo. Seu estudo consistiu na análise e descrição cuidadosa das mudanças qualitativas do desenvolvimento destas estruturas cognitivas (esquemas). No funcionamento cognitivo, as mudanças qualitativas estruturais são, supostamente, mudanças no funcionamento intelectual — que é comumente chamado de inteligência. AÇÃO E CONHECIMENTO O sistema de Piaget requer que a criança atue sobre o meio ambiente para que ocorra o desenvolvimento cognitivo. O desenvolvimento das estruturas cognitivas é assegurado somente quando a criança assimila e acomoda os estímulos do ambiente. Isto só pode acontecer quando os sentidos da criança entram em contato com o meio ambiente. Quando a criança está agindo no meio, movimentando-se no espaço, manipulando objetos, observando com os olhos e ouvidos, ou pensando, ela está obtendo dados brutos para serem assimilados e acomodados. Estas ações resultam no desenvolvimento de esquemas. Um bebê não pode aprender a diferença entre um bico de seio e uma ponta da manta a menos que atue sobre ambos. À medida que a criança torna-se mais velha, as ações que resultam em mudanças cognitivas tornam-se menos observáveis. Para um bebê, o ato instrumental pode ser um movimento do braço e pegar. Para a criança de 9 anos o ato instrumental pode ser um ato interno, como somar uma coluna de números. Em ambos os casos, a atividade da criança é essencial para o desenvolvimento. Ações necessárias para que ocorra o desenvolvimento são mais do que simples movimento físico. Ações são comportamentos que estimulam o aparato intelectual da criança, podendo ou não ser observáveis. Estes comportamentos produzem desequilíbrio e permitem a ocorrência da assimilação e da acomodação. As ações físicas e mentais sobre o meio são uma condição necessária mas não suficiente para o desenvolvimento cognitivo. Isto é, a experiência sozinha não assegura o desenvolvimento, mas o desenvolvimento não ocorre sem a experiência. A assimilação e a acomodação são também necessárias ao desenvolvimento. A ação é um dos vários determinantes de interagentes do desenvolvimento cognitivo. 26. Para Piaget, todo conhecimento é uma construção resultante das ações da criança. De acordo com Piaget, há três tipos de conhecimento: o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático e o conhecimento social. Por razões diferentes, cada um deles requer as ações da criança. O Conhecimento Físico: Descoberta O conhecimento físico é o conhecimento das propriedades físicas de objetos e eventos: tamanho, forma, textura, peso e outras. Uma criança adquire conhecimento físico sobre um objeto, manipulando-o (agindo sobre ele) com os seus sentidos. Por exemplo, uma criança pequena que está brincando com areia pode derramar areia de uma vasilha a outra, senti-la com suas mãos ou colocá-la em sua boca. Através de ações como estas, as crianças descobrem e constroem o conhecimento de areia. Experiências ativas são assimiladas aos esquemas. Na aquisição do conhecimento físico, os objetos em si (por exemplo a areia) “dizem” à criança o que pode ou não ser feito com eles. Feedback ou reforço é proporcionado pelos próprios objetos. Uma criança não pode construir um esquema exato de areia a menos que brinque com ela. Um perfeito conhecimento dos objetos não pode ser adquirido diretamente de leitura, de observação de imagens ou de ouvir o que as pessoas dizem — estas são todas formas simbólicas de representação — mas somente das ações sobre os objetos. Os objetos permitem-nos construir suas propriedades somente na medida em que atuamos sobre eles (Wadsworth 1978). Conhecimento Lógico-Matemático: Invenção O conhecimento lógico-matemático é o conhecimento construído a partir do pensar sobre as experiências com objetos e eventos (Gallagher 27. e Reid 1981). Assim como acontece com o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático só pode se desenvolver se a criança agir, física e mentalmente, sobre os objetos. Mas são diferentes os respectivos papéis das ações e dos objetos na construção do conhecimento lógico-matemático. A criança inventa o conhecimento lógico-matemático; ele não é inerente ao objeto, como é o caso do conhecimento físico, mas ele é construído a partir das ações da criança sobre os objetos. Estes servem apenas como um meio para permitir que a construção ocorra. Os conceitos de número são exemplos de conceitos lógico-matemáticos. Nós observamos as situações em que crianças brincam com um conjunto de objetos. Uma menina pequena pode estar brincando com um conjunto de onze moedas. Ela coloca essas moedas em fileira e conta: há onze moedas. Elas as coloca em um círculo e conta-as novamente. Ainda há onze. A criança empilha as moedas e conta-as novamente: onze moedas. A criança coloca as moedas em uma caixa e empilha-as. Retiradas da caixa e contadas, ainda totalizam onze moedas. Através de muitas experiências ativas como estas, as crianças constroem, eventualmente, o conceito ou o princípio de que o número de objetos em um conjunto permanece o mesmo, independente do arranjo dos seus elementos. A soma é independente da ordem. Esta é uma regra construída ou inventada e um exemplo de conhecimento lógico-matemático. No desenvolvimento deste tipo de conhecimento, o crucial não é a natureza dos objetos, mas unicamente os grupos de objetos para a criança manipular. O conceito que a menina estava desenvolvendo, no exemplo acima, poderia ter sido facilmente desenvolvido com o uso de pedras, lápis de cor, potes e panelas ou flores. A medida que as experiências são repetidas, com diferentes arranjos e com diferentes materiais, estes conceitos vão se tornando cada vez mais refinados. Assim como o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático não é adquirido diretamente da leitura ou do relato de alguém. Ele é construído a partir das ações sobre os objetos. Conhecimento Social O conhecimento social é o conhecimento sobre o qual os grupos sociais ou culturais chegam a um acordo por convenção. Regras, leis, moral, valores, 28. ética e o sistema de linguagem são exemplos de conhecimento social. Estes tipos de conhecimento se originam na cultura e podem ser diferentes de um grupo para outro. O conhecimento social não pode ser extraído das ações sobre os objetos como acontece com o conhecimento físico e o conhecimento lógicomatemático. O conhecimento social é construído pela criança a partir de suas ações com (interações) outras pessoas. À medida que as crianças interagem uma com as outras e com os adultos, elas encontram as oportunidades para a construção do conhecimento social. De acordo com a teoria de Piaget, todo conhecimento é conhecimento físico, conhecimento lógico-matemático ou conhecimento social (Wadsworth 1978). As ações da criança sobre os objetos e as interações com outras pessoas são de importância fundamental na construção do conhecimento. O conhecimento exato não pode ser derivado diretamente de leitura ou de ouvir dizer (por exemplo, os professores). Antes do desenvolvimento das operações formais, o conhecimento exato só pode ser construído a partir da experiência com objetos significativos; ele não pode ser adquirido de representações (por exemplo, palavras faladas e escritas) dos objetos e eventos. A formulação de Piaget sobre o que é o conhecimento tem grandes implicações para a prática educacional. 29. Uma criança é mais dependente da experiência física e sensória nos primeiros anos de vida, quando ela ainda não possui o poder da representação simbólica (linguagem). Nesta etapa, a interação com o meio ambiente ocorre, basicamente, no nível sensório e motor. A criança, no meio ambiente, atua diretamente sobre os objetos. À medida que o bebê explora o meio, através de seus reflexos, o desenvolvimento prossegue. Uma variedade de objetos é colocada na boca ou chupada via reflexo de sucção. Os objetos são agarrados. Estes comportamentos reflexos ativos permitem ao bebê construir suas primeiras diferenciações em seu meio. Tais ações permitem à criança desenvolver representações sensório-notoras (esquemas) do objeto, à medida que ela faz discriminações. Após os dois primeiros anos em diante, a criança torna-se incrivelmente capaz de representar as ações na mente. As ações da criança sobre o meio ambiente são mediadas pelos símbolos internalizados e pela linguagem, tornando-se menos observáveis. As ações são menos sensório-motoras e mais conceituais. Contudo, a participação ativa da criança permanece necessária para o desenvolvimento cognitivo. O CONTUUM DO DESENVOLVIMENTO Piaget afirmou em todo seu trabalho que, no sentido mais amplo, as mudanças cognitivas e intelectuais resultam de um processo de desenvolvimento. Simplesmente, a hipótese geral de Piaget é que o desenvolvimento cognitivo é um processo coerente de sucessivas mudanças qualitativas das estruturas cognitivas (esquemas), derivando cada estrutura e sua respectiva mudança, lógica e inevitavelmente, da estrutura precedente. Novos esquemas não substituem os anteriores; eles os incorporam, resultando numa mudança qualitativa. Se o menino que classificou a vaca como um cachorro depois de algum tempo decide que vaca não é mais cachorro, mas um novo objeto chamado “vaca”, ele não substituiu os esquemas. O que ele fez foi criar um novo 30. esquema para vaca (acomodação), enquanto manteve seu velho esquema para cachorros, porém, agora, modificado. Dessa forma, ocorreu uma mudança que resulta num conjunto qualitativa e quantitativamente superior de esquemas, sendo que os esquemás atuais incorporam os anteriores. Piaget definiu o desenvolvimento como um processo contínuo ao longo de um continuum. As mudanças no desenvolvimento intelectual são graduais e nunca abruptas. Os esquemas são construídos e reconstruídos (ou modificados), gradualmente. Da perspectiva piagetiana, o desenvolvimento é visto, apropriadamente, como um continuum. Com o propósito de definir o crescimento cognitivo, o desenvolvimento intelectual pode ser dividido em quatro grandes níveis seqüenciais. Piaget tem sido criticado por empregar a palavra estágio em sua teoria. Aqueles que colocam objeção ao emprego de estágios, provavelmente assim agem por uma interpretação equivocada. Piaget não quis sugerir que as crianças mudam de um nível discreto a outro nível discreto, assim como se muda de um degrau a outro enquanto se sobe uma escada. O desenvolvimento cognitivo flui de forma contínua, mas ao observar o continuum do desenvolvimento é útil a comparação de etapas mais curtas em relação ao todo do processo. O pesquisador e teórico pode dividir o longo período do desenvolvimento em períodos de menor duração e, dessa forma, analisá-los de vários ângulos a fim de chegar a uma conceituação mais eficiente. Isto de forma alguma nega a continuidade do processo em seu curso todo, nem significa que os estágios sejam selecionados sem uma justificativa racional. De um modo geral, Piaget (1963b) assim resumiu os estágios do desenvolvimento cognitivo: 1. O estágio da inteligência sensório-motora (0-2 anos). Durante este estágio, o comportamento é basicamente motor. A criança ainda não representa eventos internamente e não “pensa” conceitualmente; apesar disso, o desenvolvimento “cognitivo” é constatado à medida que os esquemas são construídos. 2. O estágio do pensamento pré-operacional (2-7 anos). Este estágio é caracterizado pelo desenvolvimento da linguagem e outras formas de representação e pelo rápido desenvolvimento conceitual. O raciocínio, neste estágio, é pré-lógico ou semilógico. 31. 3. O estágio das operações concretas (7-11 anos). Durante estes anos, a criança desenvolve a capacidade de aplicar o pensamento lógico a problemas concretos, no presente. 4. O estágio das operações formais (11-15 anos ou mais). Neste estágio, as estruturas cognitivas da criança alcançam seu nível mais elevado de desenvolvimento, e as crianças tornam-se aptas a aplicar o raciocínio lógico a todas as classes de problemas. O desenvolvimento é concebido como um fluxo contínuo de modo cumulativo, em que cada nova etapa é construída sobre as etapas anteriores, integrando-se a elas. De um modo geral, o fato a ser enfatizado é que o padrão de comportamento, característico dos diferentes estágios, não se sucede um ao outro de modo linear (aqueles de um dado estágio desaparecendo no momento em que o que se segue toma forma), mas como camadas de uma pirâmide (de cima para baixo ou de baixo para cima), em que o novo padrão de comportamento, simplesmente, é adicionado aos velhos para completar, corrigir ou com eles combinar. (Piaget 1952c, p. 329) As idades cronológicas, durante as quais espera-se que as crianças desenvolvam comportamentos representativos de um dado estágio, não são fixas. Os intervalos entre as idades, sugeridos por Piaget, são normativos e de- notam os momentos durante os quais espera-se que uma criança de desenvolvimento típico ou normal apresente os comportamentos intelectuais próprios daquele nível particular. A criança típica entra no desenvolvimento pré-operacional em torno da idade de dois anos. Embora algumas crianças entrem mais cedo neste nível — uma pequena porcentagem entra com um ano de idade no nível pré-operacional —, outras crianças não entram no desenvolvimento pré-operacional antes de 3 ou 4 anos. O desenvolvimento, em crianças severamente “retardadas” ou com desenvolvimento mental atrasado, pode até ser lento. Os comportamentos que são descritos para cada nível de desenvolvimento são típicos apenas para os grupos de idade. As normas estabelecidas por Piaget são para amostras de crianças de Genebra e não são, necessariamente, sustentadas de forma rigorosa para amostras americanas ou outras. Piaget assumiu que a ordem de apresentação fixada (das estruturas de comportamento) não se sustenta sobre uma base hereditária ou da experiência. idade em que um dado tipo de desenvolvimento ocorre pode variar de acordo com a natureza quer da experiência individual, quer do potencial hereditário (Piaget 1952c) . O progresso não é automático (como na teoria da maturação). Um aspecto da teoria de Piaget é invariável: toda criança passa, necessariamente, por todos os níveis de desenvolvimento na mesma ordem. 32. Uma criança não pode mudar intelectualmente do nível pré-operacional ao operacional formal sem passar pelas operações concretas. No entanto, o ritmo de desenvolvimento das crianças pode não ser igual em virtude dos fatores experienciais ou hereditários. Crianças “brilhantes” podem se desenvolver rapidamente; crianças “embotadas” podem progredir mais lentamente, algumas nunca alcançando ou adquirindo completamente as operações concretas. Quer se empregue o conceito de níveis ou de estágios do desenvolvimento intelectual, deve-se ter em mente que é grande a variação dos comportamentos intelectuais dentro de um nível particular. Isto é, embora a criança desenvolva o uso da linguagem durante o nível pré-operacional (2-7 anos), espera-se que aos 7 anos o emprego da linguagem seja qualitativamente diferente do que na idade de dois anos. A capacidade de uso da linguagem verbal começa a se formar e a se organizar na fase inicial do desenvolvimento pré-operacional. O que significa que os comportamentos de comunicação verbal típicos da criança de 3 anos não apresentam a mesma organização e a estabilidade das crianças de 7 anos, embora ambas demonstrem características pré-operacionais. Por isso, espera-se que, no início do desenvolvimento de uma dada função intelectual, os comportamentos sejam menos estáveis e menos sofisticados do que nos momentos finais. FATORES DO DESENVOLVIMENTO Já vimos que o desenvolvimento segue um curso invariável ao longo de um continuum. Do nascimento à fase adulta, as estruturas da inteligência — os esquemas — estão em constante desenvolvimento, uma vez que a criança, agindo espontaneamente sobre o seu meio, assimila e se acomoda a um crescente arranjo de estímulos nele presentes. Para fins de análise, o continuum do desenvolvimento é dividido em quatro níveis, anteriormente apresentados. Os papéis da experiência ativa e da equilibração como agentes do desenvolvimento foram, em parte, discutidos. Antes de proceder a uma discussão de cada nível dentro do continuum, vamos considerar, com alguns detalhes, os quatro fatores do desenvolvimento e as relações entre eles. Piaget propôs quatro amplos fatores que são relacionados ao desenvolvimento cognitivo: maturação, experiência ativa, interação social e um progresso 33. geral do equilíbrio (Piaget 1961). Ele considerou cada um desses fatores e suas interações como condições necessárias para o desenvolvimento cognitivo, e nenhum deles sozinho como suficiente para assegurá-lo. A dinâmica no interior de cada nível e entre os níveis de desenvolvimento é uma função da interação entre esses fatores: Maturação e Hereditariedade Piaget é convicto de que a hereditariedade desempenha um papel no desenvolvimento cognitivo, embora ela sozinha não possa responder pelo desenvolvimento intelectual. Ele afirmou que a hereditariedade impõe limites amplos para o desenvolvimento, em qualquer momento. A maturação, a ritmo de manifestação do potencial herdado, é o mecanismo pelo qual estes limites são estabelecidos. Piaget declara: ...Maturação no que se refere às funções cognitivas — conhecimento simplesmente determina o alcance das possibilidades num estágio específico. Ela não causa a atualização das estruturas. A maturação, simplesmente, indica se a construção de estruturas específicas é ou não possível naquele estágio específico. Ela não contém em si uma estrutura pré-formada, mas apenas abre as possibilidades. A nova estrutura tem, ainda, de ser construída (in Green Ford e Flamer 1971, p.193). Assim sendo, a maturação (fatores herdados) coloca amplas restrições ao desenvolvimento cognitivo. Estas restrições mudam à medida que a maturação progride. A realização do potencial subentendido por estas restrições, a qualquer ponto do desenvolvimento, depende das ações da criança sobre o seu meio. Experiência Ativa No início deste capítulo, discutimos a importância das ações das crianças sobre o meio ambiente. A experiência ativa é um dos quatro fatores do desenvolvimento cognitivo. Cada tipo de conhecimento que a criança constrói — físico, lógico-matemático e social — requer sua interação com os objetos ou com as pessoas. Ações podem ser manipulações físicas ou manipulações mentais (pensar) de objetos ou eventos. Experiências ativas são aquelas que provocam assimilação e acomodação, resultando em mudança cognitiva (mudança nas estruturas ou esquemas). 34. Interação Social A interação social é um outro fator de desenvolvimento cognitivo. Por interação social, Piaget quer dizer o intercâmbio de idéias entre pessoas. Como já vimos, isto é particularmente importante para o desenvolvimento do conhecimento social. Os conceitos ou esquemas que a pessoa desenvolve podem ser, assim, classificados: (1) aqueles que, sensorialmente, têm referentes físicos acessíveis (eles podem ser vistos, ouvidos e assim por diante) e (2) aqueles que não têm tais referentes. O conceito árvore tem referentes físicos; o conceito honestidade não tem. Uma criança pode desenvolver um conceito socialmente aceitável de árvore (conhecimento físico), relativamente independente dos outros, porque os referentes (árvores) são freqüentemente acessíveis. Mas a mesma criança não pode desenvolver um conceito aceitável de honestidade (conhecimento social) independente dos outros. Na medida em que os conceitos são “arbitrários” ou socialmente definidos, a criança depende da interação social para a construção e validação dos conceitos. A interação com outras pessoas serve também para provocar desequilibração relativa ao conhecimento físico e ao conhecimento lógico-matemático. Quando as crianças se encontram em situações em que seu pensamento conflita com o pensamento de outras crianças (ou adultos), o conflito pode ser um instrumento para levá-las a questionar seu próprio pensamento (desequilíbrio). Como veremos mais adiante, os conflitos no pensamento podem resultar em desequilibração, mas não podem resolvê-la automaticamente. A interação social pode ser de várias maneiras: interações com colegas, pais e outros adultos. Em salas de aula, as ocorrências são, freqüentemente, interações de estudantes com outros estudantes e com seus professores. Há, também, as interações com os pais e com outras pessoas do ambiente. Todas as formas de interação e de experiência sociais são importantes para o desenvolvimento intelectual. Equilibração Maturação, experiência e interação social não são suficientes para explicar o desenvolvimento cognitivo. Um outro fator, segundo Piaget, é a equilibração. Parece haver duas razões para invocar este quarto fator (equilibraço). A primeira: desde que temos três outros fatores, deve haver algum tipo de coordenação entre eles. Esta coordenação é uma espécie de equilibração. A segunda: na... construção... um sujeito recorre a muitas tentativas e erros e muitas regulações que, em grande parte, são auto-regulações. A verdadeira natureza da equilibração são as auto-regulações. (Piaget 1977, p. 10) 35. Desta maneira, Piaget usou o conceito de equilibração para explicar a coordenação dos outros fatores e a regulação do desenvolvimento, em geral. Ocorre a construção do conhecimento à medida que as crianças têm experiências. E ocorre a coordenação do conhecimento prévio com o novo conhecimento (assimilação e acomodação). Há um controle geral interno e uma regulação deste sistema. A equilibração é o regulador que permite que novas experiências sejam incorporadas, com sucesso, aos esquemas. Grande parte do controle do desenvolvimento é interno e afetivo. Piaget considerou este controle como um processo auto-regulatório, havendo equilibração do mecanismo para a auto-regulação. Quatro são os fatores necessários para o desenvolvimento cognitivo: maturação, experiência ativa, interação social e equilibração. Mas somente a interação entre eles oferece a condição suficiente para o desenvolvimento cognitivo. Desenvolvimento Afetivo Na teoria de Piaget, o desenvolvimento intelectual é considerado como tendo dois componentes: um cognitivo e outro afetivo). Até agora, basicamente, nós discutimos os aspectos do desenvolvimento que se ocupam em descrever como as estruturas do conhecimento (esquemas) se desenvolvem. Paralelo ao desenvolvimento cognitivo está o desenvolvimento afetivo. Afeto inclui sentimentos, interesses, desejos, tendências, valores e emoções em geral. Para Piaget o afeto se desenvolve. No que se refere ao desenvolvimento intelectual, estamos interessados em dois aspectos da afeto. Um deles tem a ver com a motivação ou energização da atividade intelectual. “Para uma estrutura de conhecimento funcionar, algo deve acioná-la, originar o esforço a ser desenvolvido a cada momento e desligá-la” (Brown & Weiss 1987, p. 63). O segundo aspecto tem a ver com a seleção. A atividade intelectual é sempre dirigida para objetos ou eventos particulares. Por que estes em particular? 36. O interesse, associado ao “gostar” e ao “não gostar” é um exemplo poderoso e comum da afetividade no trabalho, afetando nossa seleção das atividades intelectuais. Muitas vezes, quando somos interrogados por que fazemos uma determinada coisa, a resposta tem a ver com o interesse. Ao ler um livro sobre construção de casas de madeira (em vez de ler um livro sobre a Guerra Civil), se eu assimilar o conteúdo do livro em minha estrutura cognitiva eu vou ampliar meus esquemas sobre construção de casas de madeira (mas não sobre Guerra Civil). Na visão piagetiana, esta seleção não é provocada pelas atividades cognitivas, mas pela afetividade — neste caso, o interesse. Embora pensemos o afeto como sendo diferente da cognição, no funcionamento intelectual eles formam uma unidade. Eles são os dois lados de uma mesma moeda, assim falando (Cowan 1981). Todo comportamento tem ambos os elementos: o afetivo e o cognitivo. Piaget escreve: É impossível encontrar um comportamento oriundo apenas da afetividade, sem nenhum elemento cognitivo. E, igualmente, impossível encontrar um comportamento composto só de elementos cognitivos... embora os fatores afetivos e cognitivos sejam indissociáveis num dado comportamento, eles parecem ser diferentes quanto à natureza... E óbvio que os fatores afetivos estao envolvidos mesmo nas formas mais abstratas de inteligência. Para um estudante resolver um problema de álgebra ou para um matemático descobrir um teorema, deve haver um interesse intrínseco, um interesse extrínseco ou uma necessidade de partida. Enquanto trabalha, estados de prazer, desapontamento, ansiedade tanto quanto sentimentos de fadiga, esforço, aborrecimento, etc., entram em cena. Ao finalizar o trabalho, sentimentos de sucesso ou fracasso podem ocorrer; e, finalmente, o estudante pode experienciar sentimentos estéticos fluindo da coerência de sua solução. (1981b, pp. 2-3) O aspecto afetivo tem uma profunda influência sobre o desenvolvimento intelectual. Ele pode acelerar ou diminuir o ritmo de desenvolvimento. Ele determina sobre que conteúdos a atividade intelectual se concentrará. O sistema afetivo é, assim dizendo, o guarda-portão. De acordo com Piaget, o aspecto afetivo, em si, não pode modificar as estruturas cognitivas (esquemas), embora, como já vimos, ele possa influenciar quais estruturas modificar. Piaget escreve: “...embora a questão afetiva cause o comportamento, embora ela acompanhe constantemente o funcionamento da inteligência e embora ela acelere ou freie o ritmo de desenvolvimento, ela, em si mesmo, no entanto, não pode gerar estruturas de comportamento e não pode modificar as estruturas em cujo funcionamento ela intervém”. (1981b, p. 6) Muitas pessoas acreditam que os aspectos afetivos da vida humana surgem de alguma fonte interna, de forma mais ou menos predeterminada. Para Piaget, o aspecto afetivo não é mais predeterminado do que a inteligência, propriamente dita. Na sua visão, há notável paralelo entre os aspectos afetivo e cognitivo. Primeiro, o afeto se desenvolve no mesmo sentido que a cognição ou inteligência. Quando examinamos o raciocínio das crianças sobre questões 37. morais, um aspecto da vida afetiva, nós percebemos que os conceitos morais das crianças são construídos do mesmo modo como os conceitos cognitivos. A criança da pré-escola ou de níveis elementares que, acidentalmente, sofre uma batida de uma outra criança, não vê o incidente como um acidente, em grande parte porque ela ainda não construiu o conceito de intencionalidade. A medida que os aspectos cognitivos se desenvolvem, há um desenvolvimento paralelo da afetividade. Os mecanismos de construção são os mesmos. As crianças assimilam as experiências aos esquemas afetivos do mesmo modo que simulam as experiências as estruturas cognitivas. O resultado é o conhecimento. Piaget argumentou, também, que todo comportamento apresenta ambos os aspectos: o afetivo e o cognitivo. Não há comportamento cognitivo puro, como não há comportamento afetivo puro. A criança que “gosta” de matemática faz rápidos progressos. A criança que “não gosta” de matemática não faz rápidos progressos. Em cada caso, o comportamento é influenciado pela afetividade. “E impossível encontrar um comportamento oriundo apenas da afetividade, sem nenhum elemento cognitivo. E, igualmente, impossível encontrar um comportamento composto somente de elementos cognitivos”. (1981b, p. 2) RESUMO Piaget concebeu a inteligência como tendo dois aspectos, o cognitivo e o afetivo. O aspecto cognitivo tem três componentes: o conteúdo, a função e a estrutura. Piaget identificou três tipos de conhecimento: o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático e o conhecimento social. O conhecimento físico é o conhecimento das propriedades dos objetos e é derivado das ações sobre os objetos. O conhecimento lógico-matemático é o conhecimento construído com base nas ações sobre os objetos. O conhecimento social é o conhecimento sobre coisas criadas pelas culturas. Cada tipo de conhecimento depende das ações físicas ou mentais. As ações instrumentais do desenvolvimento são aquelas que geram desequilíbrios e conduzem ao esforço de estabelecer o equilíbrio (equilibração). Assimilação e acomodação são os agentes de equilibração, o auto-regulador do desenvolvimento. Quatro fatores e suas interações são necessários para o desenvolvimento: maturação, experiência ativa, interação social e equilibração. O desenvolvimento cognitivo, enquanto processo contínuo, pode ser dividido em quatro estágios para fins de análise e descrição. O desenvolvimento afetivo (valores, sentimentos e interesses) ocorre de modo semelhante ao desenvolvimento cognitivo. Isto é, as estruturas afetivas são construídas como as estruturas cognitivas são construídas. O aspecto afetivo é responsável pela dinamização da atividade mental e pela seleção dos objetos ou eventos sobre os quais agir. Ele é o guardaportão. 38.