Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores

Propaganda
Apostila
Realização:
Parceiros pela “Vida Plena Sem Drogas”
Io Curso para
Formação de
Agentes Multiplicadores
Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
para encaminhamento e triagem
de dependentes químicos
Apoio:
Editoração Eletrônica e Projeto Gráfico:
(11) 4304-0449
(11) 7411-8238
www.ggpublicidade.com.br
Parceiros pela “Vida Plena Sem Drogas”
Esta Apostila é uma reprodução do Livro “Prevenção ao Uso Indevido de Drogas:
Capacitação para Conselheiros e Lideranças Comunitárias”
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD);
e também do Manuscrito de Marcelo Ribeiro
“Ambulatório de Dependência Química”
Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD)
Organização do conteúdo do material:
José Carlos Marcondes Arantes
Alexandre de Souza e Castro Araújo
Carlos Eduardo Damasceno Spósito
Projeto Gráfico:
G&G Publicidade e Eventos - Giovana Garofalo
Revisão:
Adler Koller
Setembro de 2010
Índice
Capítulo 1
Drogas: classificação e efeitos no organismo.................................................................................05
Capítulo 2
Experimentação, uso, abuso e dependência de drogas.............................................................23
Capítulo 3
Aspectos socioculturais relacionados ao uso de álcool e outras drogas.............................31
Capítulo 4
Prevenção: novas formas de pensar e enfrentar o problema...................................................43
Capítulo 5
Redes Sociais...............................................................................................................................................57
Capítulo 6
Tratamento...................................................................................................................................................67
Capítulo 7
Ambulatório de dependência química..............................................................................................79
Agradecimentos especiais:
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD);
Marcelo Ribeiro, autor do manuscrito: “Ambulatório de Dependência Química”;
Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD)
Drogas: classificação e efeitos no organismo
Capítulo 1
Drogas:
classificação
e efeitos no
organismo
5
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
6
Drogas: classificação e efeitos no organismo
O que é droga?
Droga, segundo a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), é qualquer
substância não produzida pelo organismo que tem a pro­priedade de atuar sobre um ou
mais de seus sistemas, produzindo alte­rações em seu funcionamento.
Uma droga não é por si só boa ou má. Existem substâncias que são usa­das com
a finalidade de produzir efeitos benéficos, como o tratamen­to de doenças, e são
consideradas medicamentos. Mas também existem substâncias que provocam malefícios
à saúde, os venenos ou tóxicos. É interessante que a mesma substância pode funcionar
como medica­mento em algumas situações e como tóxico em outras.
Nesta primeira Unidade, você irá estudar as principais drogas utilizadas para alterar o
funcionamento cerebral, causando modificações no esta­do mental, no psiquismo. Por
essa razão, são chamadas drogas psico­trópicas, conhecidas também como substâncias
psicoativas.
A lista de substâncias na Classificação Internacional de Doenças, 10a Revisão (CID-10),
em seu capítulo V (Transtornos Mentais e de Com­portamento), inclui:
álcool;
opióides (morfina, heroína, codeína, diversas substâncias sin­téticas);
canabinóides (maconha);
sedativos ou hipnóticos (barbitúricos, benzodiazepínicos);
outros estimulantes (como anfetaminas e substâncias relacio­nadas à cafeína);
alucinógenos;
tabaco;
solventes voláteis.
Vale lembrar que nem todas as substâncias
psicoativas têm a capacidade de provocar
dependência. No entanto, há substâncias
aparentemente inofensivas e presentes em
muitos produtos de uso doméstico que têm
esse poder.
7
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Classificação das drogas
Há diversas formas de classificar as drogas.
Existe uma classificação - de interesse didático - que se baseia nas ações aparentes das
drogas sobre o Sistema Nervoso Central (SNC), conforme as modificações observáveis
na atividade mental ou no com­portamento da pessoa que utiliza a substância. São elas:
1. drogas DEPRESSORAS da atividade mental;
2. drogas ESTIMULANTES da atividade mental;
3. drogas PERTURBADORAS da atividade mental.
Com base nessa classificação, conheça agora as principais drogas.
Drogas depressoras da atividade mental
Essa categoria inclui uma grande variedade de substâncias, que dife­rem acentuadamente
em suas propriedades físicas e químicas, mas que apresentam a característica comum
de causar uma diminuição da ati­vidade global ou de certos sistemas específicos do
SNC. Como conse­qüência dessa ação, há uma tendência de ocorrer uma diminuição da
atividade motora, da reatividade à dor e da ansiedade, e é comum um efeito euforizante
inicial e, posteriormente, um aumento da sonolên­cia.
8
Drogas: classificação e efeitos no organismo
•Álcool
O álcool etílico é um produto da fermentação de carboidratos (açúca­res) presentes em
vegetais, como a cana-de-açúcar, a uva e a cevada.
Suas propriedades euforizantes e intoxicantes são conhecidas desde tempos préhistóricos e praticamente, todas as culturas têm ou tive­ram alguma experiência com
sua utilização. É seguramente a droga psicotrópica de uso e abuso mais amplamente
disseminada em grande número e diversidade de países na atualidade.
A 1fermentação produz bebidas com concentração de álcool de até 10% (proporção
do volume de álcool puro no total da bebida). São obtidas concentrações maiores por
meio de 2destilação. Em doses baixas, é uti­lizado, sobretudo, por causa de sua ação
euforizante e da capacidade de diminuir as inibições, o que facilita a interação social.
Há uma relação entre os efeitos do álcool e os níveis da substância no sangue, que
variam em razão do tipo de bebida utilizada, da velocidade do consumo, da presença de
alimentos no estômago e de possíveis alte­rações no metabolismo da droga por diversas
situações - por exemplo, na insuficiência hepática, em que a degradação da substância
é mais lenta.
Níveis de Álcool no Sangue
habilidade
Processo anaeróbico de transformação de
uma substância em outra, produzida a partir de
microorganismos, tais como bactérias e fungos,
chamados nesses casos de fermentos.
1
Processo em que se vaporiza uma substância
líquida e, em seguida, se condensam os vapores
resultantes para se obter de novo um líquido,
geralmente mais puro
2
9
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
O álcool induz a tolerância (necessidade de quantidades progressiva­mente maiores da
substância para se produzir o mesmo efeito desejado ou intoxicação) e a síndrome de
abstinência (sintomas desagradáveis que ocorrem com a redução ou com a interrupção
do consumo da substância).
• Barbitúricos
Pertencem ao grupo de substâncias sintetizadas artificialmente desde o começo do
século XX, que possuem diversas propriedades em comum com o álcool e com outros
tranquilizantes (benzodiazepínicos).
Seu uso inicial foi dirigido ao tratamento da insônia, porém a dose para causar os
efeitos terapêuticos desejáveis não está muito distante da dose tóxica ou letal.
O sono produzido por essas drogas, assim como aquele provocado por todas as
drogas indutoras de sono, é muito diferente do sono “natural” (fisiológico).
São efeitos de sua principal ação farmacológica:
a diminuição da capacidade de raciocínio e concentração;
a sensação de calma, relaxamento e sonolência;
reflexos mais lentos.
Com doses um pouco maiores, a pessoa tem sintomas semelhantes à embriaguez,
com lentidão nos movimentos, fala pastosa e dificuldade na marcha.
Doses tóxicas dos barbitúricos podem provocar
surgimento de sinais de incoordenacão motora;
acentuação significativa da sonolência, que pode chegar ao coma;
morte por parada respiratória.
São drogas que causam tolerância (sobretudo quando o indivíduo utili­za doses altas
desde o início) e síndrome de abstinência quando ocorre sua retirada, o que provoca
insônia, irritação, agressividade, ansiedade e até convulsões.
Em geral, os barbitúricos são utilizados na prática clínica para indução anestési­ca
(tiopental) e como anticonvulsivantes (fenobarbital).
• Benzodiazepínicos
Esse grupo de substâncias começou a ser usado na Medicina duran­te os anos 60 e possui
similaridades importantes com os barbitúricos, em termos de ações farmacológicas, com
a vantagem de oferecer uma maior margem de segurança, ou seja, a dose tóxica, aquela
que produz efeitos prejudiciais à saúde, é muitas vezes maior que a dose terapêuti­ca, ou
seja, a dose prescrita no tratamento médico.
10
Drogas: classificação e efeitos no organismo
Atuam potencializando as ações do GABA (ácido gama-amino-butírico), o principal
neurotransmissor inibitório do SNC.
Substância química produzida
pelos neurônios, as células
nervosas, por meio das quais
elas podem enviar informações a
outras células.
Como consequência dessa ação, os benzodiazepínicos produzem:
diminuição da ansiedade;
indução do sono;
relaxamento muscular;
redução do estado de alerta.
Essas drogas dificultam, ainda, os processos de aprendizagem e me­mória, e alteram,
também, funções motoras, prejudicando atividades como dirigir automóveis e outras
que exijam reflexos rápidos.
As doses tóxicas dessas drogas são bastante altas, mas pode ocorrer intoxicação se
houver uso concomitante de outros depressores da ati­vidade mental, principalmente,
álcool ou barbitúricos. O quadro de intoxicação é muito semelhante ao causado por
barbitúricos.
Existem centenas de compostos comerciais disponíveis, que diferem somente em
relação à velocidade e duração total de sua ação. Alguns são mais bem utilizados
clinicamente como indutores do sono, enquanto outros são empregados no controle da
ansiedade ou para prevenir a convulsão.
Exemplos de benzodiazepínicos: diazepam, lorazepam, bromazepam, midazolam,
flunitrazepam, clonazepam, lexotan.
• Opióides
Grupo que inclui drogas “naturais”, derivadas da papoula do oriente Papaver
somniferum), sintéticas e semi-sintéticas, obtidas a partir de modificações químicas em
substâncias naturais.
As drogas mais conhecidas desse grupo são a morfina, a heroína e a codeína, além
de diversas substâncias totalmente sintetizadas em laboratório, como a metadona e
meperidina.
11
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Sua ação decorre da capacidade de imitar o funcionamento de diversas substâncias
naturalmente produzidas pelo organismo, como as endorfinas e as encefálinas.
Normalmente, são drogas depressoras da atividade mental, mas pos­suem ações mais
específicas, como de analgesia e de inibição do reflexo da tosse.
• Causam os seguintes efeitos
contração pupilar importante;
diminuição da 4motilidade do trato gastrointestinal;
efeito sedativo, que prejudica a capacidade de concentração;
torpor e sonolência.
Os opióides deprimem o centro respiratório, provocando desde respi­ração mais lenta
e superficial até parada respiratória, perda da consci­ência e morte.
São efeitos da abstinência:
náuseas;
cólicas intestinais; lacrimejamento;
arrepios, com duração de até 12 dias;
corrimento nasal;
câimbra;
vômitos;
diarréia.
Quando em uso clínico, os medicamentos à base de opióides são receitados para
controlar a tosse, a diarréia e como analgésicos potentes.
Solventes ou inalantes
Esse grupo de substâncias, entre os depressores, não possui nenhuma utilização clínica,
com exceção do éter etílico e do clorofórmio, que já foram largamente empregados
como anestésicos gerais.
Solventes podem tanto ser inalados involuntariamente por trabalhadores quanto ser
utilizados como drogas de abuso, por exemplo, a cola de sapateiro. Outros exemplos
são o tolueno, o xiloi, o n-hexano, o acetato de etila, o tricloroetileno, além dos já
citados éter e clorofórmio, cuja mistura é chamada, frequentemente, de “lança-perfume”,
“cheirinho”ou “loló”.
Capacidade de mover-se
espontâneamente.
4
12
Drogas: classificação e efeitos no organismo
Os efeitos têm início bastante rápido após a inalação, de segundos a minutos,
e também têm curta duração, o que predispõe o usuário a inalações repetidas, com
conseqüências, às vezes, desastrosas. Acom­panhe na tabela os efeitos observados com
o uso de solventes.
O uso crônico dessas substâncias pode levar à destruição de neurônios, causando
danos irreversíveis ao cérebro, assim como lesões no fígado, rins, nervos periféricos e
medula óssea.
Outro efeito ainda pouco esclarecido dessas substâncias (particular­mente dos
compostos derivados, como o clorofórmio) é sua interação com a adrenalina, pois
aumenta sua capacidade de causar arritmias car­díacas, o que pode provocar morte
súbita.
Embora haja tolerância, até hoje não se tem uma descrição característi­ca da síndrome
de abstinência relacionada a esse grupo de substâncias.
Drogas estimulantes da atividade mental
São incluídas nesse grupo as drogas capazes de aumentar a atividade de determinados
sistemas neuronais, o que traz como consequências um estado de alerta exagerado,
insónia e aceleração dos processos psí­quicos.
13
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
• Anfetaminas
São substâncias sintéticas, ou seja, produzidas em laboratório. Existem várias
substâncias sintéticas que pertencem ao grupo das anfetaminas.
São exemplos de drogas “anfetamínicas”: o fenproporex, o metilfenidato, o manzidol,
a metanfetamina e a dietilpropiona. Seu mecanismo de ação é au­mentar a liberação
e prolongar o tempo de atuação de neurotransmissores uti­lizados pelo cérebro, a
dopamina e a noradrenalina.
Os efeitos do uso de anfetaminas são:
diminuição do sono e do apetite;
sensação de maior energia e menor fadiga, mesmo quando realiza esforços excessivos,
o que pode ser prejudicial;
rapidez na fala;
dilatação da pupila;
taquicardia;
elevação da pressão arterial.
Com doses tóxicas, acentuam-se esses efeitos. O indivíduo tende a fi­car mais irritável e
agressivo e pode considerar-se vítima de persegui­ção inexistente (delírios persecutórios)
e ter alucinações e convulsões.
O consumo dessas drogas induz tolerância. Não se sabe com certeza se ocorre uma
verdadeira síndrome de abstinência. São frequentes os relatos de sintomas depressivos:
falta de energia, desânimo, perda de motivação, que, por vezes, são bastante intensos
quando há interrup­ção do uso dessas substâncias.
Entre outros usos clínicos dessa substância, destaca-se a utilização como mode­radores
do apetite (remédios para regime de emagrecimento).
• Cocaína
É uma substância extraída de uma planta originária da América do Sul, popularmente
conhecida como coca (Erythroxylon coca).
A cocaína pode ser consumida na forma de pó (cloridrato de cocaína), aspirado ou
dissolvido em água e injetado na corrente sanguínea, ou sob a forma de uma pedra,
que é fumada, o crack. Existe ainda a pasta de coca, um produto menos purificado, que
também pode ser fumado, conhecido como merla.
Seu mecanismo de ação no SNC é muito semelhante ao das anfetami­nas, mas a cocaína
atua, ainda, sobre um terceiro neurotransmissor, a serotonina, além da noradrenalina e
da dopamina.
14
Drogas: classificação e efeitos no organismo
A cocaína apresenta, também, propriedades de anestésico local que in­dependem de
sua atuação no cérebro. Essa era, no passado, uma das indicações de uso médico da
substância, hoje obsoleto.
Seus efeitos têm início rápido e duração breve. No entanto, são mais in­tensos e fugazes
quando a via de utilização é a intravenosa ou quando o indivíduo utiliza o crack ou merla.
Efeitos do uso da cocaína:
sensação intensa de euforia e poder; estado de excitação;
hiperatividade; insônia;
falta de apetite;
perda da sensação de cansaço.
Apesar de não serem descritas tolerância nem síndrome de abstinência inequívoca,
observa-se, frequentemente, o aumento progressivo das doses consumidas.
Particularmente, no caso do crack, os indivíduos desenvolvem dependência severa
rapidamente, muitas vezes, em poucos meses ou mesmo algumas semanas de uso.
Com doses maiores, observam-se outros efeitos, como irritabilidade, agressividade e
até delírios e alucinações, que caracterizam um ver­dadeiro estado psicótico, a psicose
cocaínica. Também podem ser ob­servados aumento da temperatura e convulsões,
frequentemente de difícil tratamento, que podem levar à morte se esses sintomas forem
prolongados.
Ocorrem, ainda, dilatação pupilar, elevação da pressão arterial e taquicardia (os efeitos
podem levar até a parada cardíaca, uma das possíveis causas de morte por superdosagem).
Fator de risco de infarto e Acidente Vascular Cerebral
(AVC)
Mais recentemente e de modo cada vez mais frequente, verificam-se alterações
persistentes na circulação cerebral, em indivíduos depen­dentes de cocaína. Existem
evidências de que o uso dessa substância seja um fator de risco para o desenvolvimento
de infartos do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais (AVCs), em indivíduos
relativamente jovens. Um processo de degeneração irreversível da musculatura (rabdomiólise) em usuários crônicos de cocaína também já foi descrito.
Drogas perturbadoras da atividade mental
Nesse grupo de drogas, classificam-se diversas substâncias cujo efeito principal é
provocar alterações no funcionamento cerebral, que resul­tam em vários fenômenos
psíquicos anormais, entre os quais destaca­mos os delírios e as alucinações.
Por esse motivo, essas drogas receberam a denominação alucinógenos. Em linhas
15
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
gerais, podemos definir alucinação como uma percepção sem objeto, ou seja, a pessoa
vê, ouve ou sente algo que realmente não existe. Delírio, por sua vez, pode ser definido
como um falso juízo da realidade, ou seja, o indivíduo passa a atribuir significados
anormais aos eventos que ocorrem à sua volta. Há uma realidade, um fator qual­quer,
mas a pessoa delirante não é capaz de fazer avaliações corretas a seu respeito.
Por exemplo, no caso do delírio persecutório, nota em toda parte indí­cios claros embora irreais - de uma perseguição contra a sua pessoa. Esse tipo de fenômeno ocorre
de modo espontâneo em certas doenças mentais, denominadas psicoses, razão pela
qual essas drogas também são chamadas psicotomiméticos.
• Maconha
É o nome dado no Brasil à Cannabis sativa. Suas folhas e inflorescen­cias secas podem
ser fumadas ou ingeridas. Há também o haxixe, pasta semi-sólida obtida por meio de
grande pressão nas inflorescencias, preparação com maiores concentrações de THC
(tetrahidrocanabinol), uma das diversas substâncias produzidas pela planta, principal
responsável pelos seus efeitos psíquicos.
Há uma grande variação na quantidade deTHC produzida pela planta confor­me as
condições de solo, clima e tempo decorrido entre a colheita e o uso, bem como na
sensibilidade das pessoas à sua ação, o que explica a capacidade de a maconha produzir
efeitos mais ou menos intensos.
Efeitos psíquicos agudos
Esses efeitos podem ser descritos, em alguns casos, como uma sensa­ção de bem-estar,
acompanhada de calma e relaxamento, menos fadiga e hilaridade, enquanto, em outros
casos, podem ser descritos como angústia, atordoamento, ansiedade e medo de perder
o autocontrole, com tremores e sudorese.
Há uma perturbação na capacidade de calcular o tempo e o espaço, além de um
prejuízo da memória e da atenção.
Com doses maiores ou conforme a sensibilidade individual, podem ocorrer perturbações
mais evidentes do psiquismo, com predominân­cia de delírios e alucinações.
Efeitos psíquicos crônicos
O uso continuado interfere na capacidade de aprendizado e memori­zação. Pode induzir
um estado de diminuição da motivação, que pode chegar à síndrome amotivacional, ou
seja, a pessoa não sente vontade de fazer mais nada, tudo parece ficar sem graça, perder
a importância.
16
Drogas: classificação e efeitos no organismo
Efeitos físicos agudos
Hiperemia conjuntival (os olhos ficam avermelhados); diminuição da produção da
saliva (sensação de secura na boca); taquicardia com a frequência de 140 batimentos por
minuto ou mais.
Efeitos físicos crônicos
Problemas respiratórios são comuns, uma vez que a fumaça produzida pela maconha
é muito irritante, além de conter alto teor de alcatrão maior que no caso do tabaco) e
nele existir uma substância chamada benzopireno, um conhecido agente cancerígeno.
Ocorre, ainda, uma diminuição de 50% a 60% na produção de testosterona dos homens,
podendo haver infertilidade.
• Alucinógenos
Designação dada à diversas drogas que possuem a propriedade de pro­vocar uma série
de distorções do funcionamento normal do cérebro, que trazem como consequência
uma variada gama de alterações psí­quicas, entre as quais alucinações e delírios, sem que
haja uma estimu­lação ou depressão da atividade cerebral. Fazem parte deste grupo a
dietilamida do ácido lisérgico (LSD) e o Ecstasy.
Atenção! No Brasil, o Ministério da Saúde não reconhece nenhum uso clínico dos
alucinógenos, e sua produção, porte e comércio são proibidos no território nacional.
O grupo de drogas alucinógenas pode ser subdividido entre as seguin­tes características:
alucinógenos propriamente ditos ou alucinógenos primá­rios - São capazes de produzir
efeitos psíquicos em doses que praticamente não alteram outra função no organismo;
alucinógenos secundários - São capazes de induzir efeitos alucinógenos em doses que
afetam de maneira importante diversas outras funções;
plantas com propriedades alucinógenas - Diversas plantas . possuem propriedades
alucinógenas como, por exemplo, al­guns cogumelos (Psylocibe mexicana, que produz
a psilocibina), a jurema (Mimosa hostilis) e outras plantas eventualmente utilizadas na
forma de chás e beberagens alucinógenas.
• Dietilamida do Ácido Lisérgico
LSD Substância alucinógena sintetizada artificialmente e uma das mais potentes com
ação psicotrópica que se conhece. As doses de 20 a 50 milionésimos de grama produzem
efeitos com duração de 4 a 12 horas.
Seus efeitos dependem muito da sensibilidade da pessoa às ações da droga, de seu
estado de espírito no momento da utilização e também, do ambiente em que se dá a
experiência.
17
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Efeitos do uso de LSD
distorções perceptivas (cores, formas e contornos alterados);
fusão de sentidos (por exemplo, a impressão de que os sons adquirem forma ou cor);
perda da discriminação de tempo e espaço (minutos parecem horas ou metros
assemelham-se a quilômetros);
alucinações (visuais ou auditivas) podem ser vivenciadas como sensações agradáveis,
mas também podem deixar o usuário extremamente amedrontado;
estados de exaltação (coexistem com muita ansiedade, angús­tia e pânico, e são
relatados como boas ou más “viagens”).
Dutra repercussão psíquica da ação do LSD sobre o cérebro são os de­lírios. Observe
o quadro:
Outros efeitos tóxicos
Há descrições de pessoas que experimentam sensações de ansiedade omito intensa,
depressão e até quadros psicóticos por longos períodos com o consumo do LSD.
Uma variante desse efeito é o flashback, quando, após semanas ou meses depois de
uma experiência com LSD, o indivíduo volta a apresentar repentinamente, todos os efeitos
psíquicos da experiência anterior, por ter voltado a consumir a droga novamente, com
consequências imprevisíveis, uma vez que tais efeitos não estavam sendo procurados ou
esperados e podem surgir em ocasiões bastante impróprias.
18
Drogas: classificação e efeitos no organismo
Efeitos no resto do organismo
aceleração do pulso; dilatação da pupila;
episódios de convulsão já foram relatados, mas são raros.
O fenômeno da tolerância desenvolve-se muito rapidamente com o LSD, mas também
há um desaparecimento rápido com a interrupção do uso da substância. Não há descrição
de uma síndrome de abstinên­cia se um usuário crônico deixa de consumir a substância,
mas, ainda assim, pode ocorrer a dependência quando, por exemplo, as experiên­cias
com o LSD ou outras drogas perturbadoras do SNC são encaradas como “respostas aos
problemas da vida” ou “formas de encontrar-se”, que fazem com que a pessoa tenha
dificuldades em deixar de consumir a substância, frequentemente, ficando à deriva no
dia-a-dia, sem desti­no ou objetivos que venham a enriquecer sua vida pessoal.
• Ecstasy (3,4-metileno-dioxi-metanfetamina ou MDMA)
É uma substância alucinógena que guarda relação química com as anfetaminas e
apresenta, também, propriedades estimulantes. Seu uso é frequentemente associado a
certos grupos, como os jovens frequenta­dores de danceterias ou boates.
4
Há relatos de casos de morte por hipertermia maligna, em que a par­ticipação da droga
não é completamente esclarecida. Possivelmente, a droga estimula a hiperatividade e
aumenta a sensação de sede ou, talvez, induza um quadro tóxico específico.
Também existem suspeitas de que a substância seja tóxica para um grupo específico
de neurônios produtores de serotonina.
•Anticolinérgicos
São substâncias provenientes das plantas ou sintetizadas em laboratório que têm a
capacidade de bloquear as ações da acetilcolina, um neurotransmissor encontrado no
SNC e no Sistema Nervoso Periférico SNP .
Produzem efeitos sobre o psiquismo quando utilizadas em doses relativamente
grandes e também provocam alterações de funcionamento em diversos sistemas
biológicos, portanto, são drogas pouco específi­cas.
Como efeitos psíquicos, os anticolinérgicos causam alucinações e de­lírios. São comuns
as descrições de pessoas intoxicadas que se sentem perseguidas ou têm visões de pessoas
ou animais. Esses sintomas dependem bastante da personalidade do indivíduo, assim
como das circunstâncias ambientais em que ocorreu o consumo dessas substâncias.
Aumento excessivo da
temperatura corporal.
4
19
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Os efeitos são, em geral, bastante intensos e podem durar até 2 ou 3 dias.
Efeitos somáticos
dilatação da pupila;
boca seca;
aumento da frequência cardíaca;
diminuição da motilidade intestinal (até paralisia);
dificuldades para urinar.
Em doses elevadas, podem produzir grande elevação da temperatura (de 40-41°C),
com possibilidade de ocorrerem convulsões. Nessa situ­ação, a pessoa apresenta-se com
a pele muito quente e seca, principalmente localizada no rosto e no pescoço.
São exemplos de drogas desse grupo: algumas plantas, como certas espécies do
gênero Datura, conhecidas como saia branca, trombeteira ou zabumba, que produzem
atropina e escopolamina; e certos medicamentos, como o tri-hexaprenidil, a diciclomina
e o biperideno.
• Outras Drogas
Você já estudou que as drogas podem ter vários tipos de classificação. Conheça, a seguir,
alguns exemplos de drogas cujos efeitos psicoativos não possibilitam sua classificação
numa única categoria (depressoras, estimulantes ou perturbadoras da atividade mental).
Repare que todas as drogas descritas a seguir são lícitas, ou seja, são comercia­lizadas
de forma legal.
• Tabaco
Um dos maiores problemas de saúde pública em diversos países do mundo, o cigarro
é uma das mais importantes causas potencialmente evitáveis de doenças e morte.
Efeitos
doenças cardiovasculares (infarto, AVC e morte súbita);
doenças respiratórias (enfisema, asma, bronquite crônica, do­ença pulmonar obstrutiva
crônica);
diversas formas de câncer (pulmão, boca, faringe, laringe, esôfago, estômago,
pâncreas, rim, bexiga e útero).
Seus efeitos sobre as funções reprodutivas incluem redução da fertili­dade, prejuízo
do desenvolvimento fetal, aumento de riscos para gra­videz ectópica e abortamento
espontâneo.
20
Drogas: classificação e efeitos no organismo
A nicotina é a substância presente no tabaco que provoca a dependên­cia. Embora
esteja implicada nas doenças cardiocirculatórias, não pare­ce ser esta a substância
cancerígena.
As ações psíquicas da nicotina são complexas, com uma mistura de efeitos estimulantes
e depressores. Mencionam-se o aumento da con­centração e da atenção e a redução do
apetite e da ansiedade.
A nicotina induz tolerância e se associa a uma síndrome de abstinên­cia com alterações
do sono, irritabilidade, diminuição da concentração e ansiedade.
Fumantes passivos - existem evidências de que os não-fumantes expostos à fumaça de
cigarro do ambiente (fumantes passivos) têm um risco maior de de­senvolver as’mesmas
patologias que afetam os fumantes.
• Cafeína
É estimulante do SNC menos potente que a cocaína e as anfetaminas. O seu potencial
de induzir dependência vem sendo bastante discutido nos últimos anos. Surgiu até o
termo “cafeinísmo” para designar uma síndrome clínica associada ao consumo importante
(agudo ou crônico) de cafeína, caracterizada por ansiedade, alterações psicomotoras,
distúrbios do sono e alterações do humor.
• Esteróides anabolizantes
Embora sejam descritos efeitos euforizantes por alguns usuários dessas substâncias,
essa não é, geralmente, a principal razão de sua utilização.
Muitos indivíduos que consomem essas drogas são fisioculturistas, atletas de diversas
modalidades ou indivíduos que procuram aumentar sua massa muscular. Podem
desenvolver um padrão de consumo que se assemelha ao de dependência.
Você sabia que altas doses de cafeína
são encontradas em bebidas ingeridas
diariamente? Além do tradicional cafezinho,
chás e refrigerantes também retêm esse tipo
de droga.
21
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Efeitos adversos
diversas doenças cardiovasculares;
alterações no fígado, inclusive câncer;
alterações musculoesqueléticas indesejáveis (ruptura de ten­dões, interrupção precoce
do crescimento).
Essas substâncias, quando utilizadas por mulheres, podem provocar masculinização (crescimento de pêlos pelo corpo, voz grave, aumento do volume do clítoris). Em
homens, pode haver atrofia dos testículos.
22
Experimentação, uso, abuso e dependência de drogas
Capítulo 2
Experimentação,
uso, abuso e
dependência
de drogas
23
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
24
Experimentação, uso, abuso e dependência de drogas
Introdução
O uso de drogas que alteram o estado mental, aqui chamadas de subs­tâncias
psicoativas (SPA), acontece há milhares de anos e muito prova­velmente vai acompanhar
toda a história da humanidade. Quer seja por razões culturais ou religiosas, por recreação
ou como forma de enfrentamento de problemas, para transgredir ou transcender, como
meio de socialização ou para se isolar, o homem sempre se relacionou com as drogas
Essa relação do Indivíduo com cada substância psicoativa pode, depen­dendo do
contexto, ser inofensiva ou apresentar poucos riscos, mas também pode assumir
padrões de utilização altamente disfuncionais, com prejuízos biológicos, psicológicos e
sociais. Isso justifica os esfor­ços para difundir informações básicas e confiáveis a respeito
de um dos maiores problemas de saúde pública que afeta, direta ou indiretamen­te, a
qualidade de vida de todo ser humano.
Do ultrapassado conceito moral aos sistemas classificatórios atuais
O conceito, a percepção humana e o julgamento moral sobre o consu­mo de drogas
evoluíram constantemente e muito se basearam na re­lação humana com o álcool, por
ser ele a droga de uso mais difundido e antigo. Os aspectos relacionados à saúde só
foram mais estudados e discutidos nos últimos dois séculos, predominando, antes disso,
visões preconceituosas dos usuários, vistos muitas vezes como ‘possuídos por forças
do mal’, portadores de graves falhas de caráter ou totalmente desprovidos de ‘força de
vontade’ para não sucumbirem ao ‘vício’.
Já no século XX, nos EUA, E. M. Jellinek foi talvez o maior expoente, dentre os
cientistas de sua época, a estudar e divulgar o assunto alco­olismo, obtendo amplo apoio
e penetração dentre os grupos de aju­da mútua, recém-formados em 1935, como os
Alcoólicos Anônimos (AA), e exercendo grande influência na Organização Mundial de
Saúde (OMS) e na Associação Médica Americana (AMA).
Na década de 60, do século passado, o programa da saúde mental da Organização
Mundial de Saúde tornou-se ativamente empenhado em melhorar o diagnóstico
e a classificação de transtornos mentais, além de prover definições claras de termos
relacionados. Naquela época, a OMS convocou uma série de encontros para rever o
conhecimento à respeito do assunto, envolvendo representantes de diferentes discipli­
nas, de varias escolas de pensamento em psiquiatria e de todas as partes do mundo
para o programa. Esses encontros trouxeram os seguintes benefícios: estimularam
e conduziram pesquisa sobre critérios para a classificação e a confiabilidade de
diagnósticos, produziram e estabe­leceram procedimentos para avaliação conjunta de
entrevistas grava­das em vídeo e outros métodos úteis em pesquisa sobre diagnóstico.
Numerosas propostas para melhorar a classificação de transtornos mentais resultaram
25
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
desse extenso processo de consulta, as quais foram usadas no rascunho da 8a Revisão
da Classificação Internacional de Do­enças (CID - 8).
Atualmente, estamos na 10a Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID
- 10), a qual apresenta as descrições clínicas e diretrizes diagnosticas das doenças que
conhecemos. Essa é a classificação utili­zada por nosso sistema de saúde pública.
Outro sistema classificatório bem conhecido em nosso meio é o Ma­nual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM - 4) , da Associação Psiquiátrica Americana.
Ambos os sistemas classificatórios refletem nos seus critérios para dependência:
conceitos de Síndrome de Dependência do Álcool, propostos, inicialmente, por Edward
e Gross, em 1976. Interessante é que o diagnóstico da Síndrome de Dependência do
Álcool pode estabelecer níveis de comprometimento ao longo de um contínuo, entre o
nunca ter experimentado até o gravemente en­fermo, considerando os aspectos do grau
de dependência relacionado com o grau de problemas.
Esse conceito de dependência transcende o modelo moral, que con­siderava beber
excessivamente falha de caráter e até mesmo o mode­lo de doença “alcoolismo”,
diagnóstico categorial, em que só se pode variar entre ser ou não portador da doença,
sem permitir graduações de gravidade dos quadros; no qual a perda do controle, a
presença de sintomas de tolerância e abstinência determinam o indivíduo como sendo
ou não alcoólatra (dependente de etílicos).
A conceituação da Síndrome da Dependência do Álcool como importante passo
rumo às abordagens modernas
Conforme conceituaram, na década de 70, os cientistas Edwards e Gross, os principais
sinais e sintomas de uma Síndrome de Dependên­cia do Álcool são os seguintes:
Estreitamento do repertório de beber: As situações em que o sujeito bebe se tornam
mais comuns, com menos variações em termos de escolha da companhia, dos horários,
do local ou dos motivos para beber, ficando ele cada vez mais estereo­tipado à medida
que a dependência avança;
Saliência do comportamento de busca pelo álcool: O su­jeito passa gradualmente a
planejar seu dia-a-dia em função da bebida, como vai obtê-la, onde vai consumi-la e
como vai recuperar-se, deixando as demais atividades em plano secun­dário;
26
Experimentação, uso, abuso e dependência de drogas
Sensação subjetiva da necessidade de beber: O sujeito per­cebe que perdeu o controle,
que sente um desejo praticamen­te incontrolável e compulsivo de beber;
Desenvolvimento da tolerância ao álcool: Por razões bio­lógicas, o organismo do
indivíduo suporta quantidades cada vez maiores de álcool ou a mesma quantidade não
produz mais os mesmos efeitos que no início do consumo;
Sintomas repetidos de abstinência: Em paralelo com o de­senvolvimento da tolerância,
o sujeito passa a apresentar sin­tomas desagradáveis ao diminuir ou interromper a sua
dose habitual. Surgem ansiedade e alterações de humor, tremores, taquicardia, enjôos,
suor excessivo e até convulsões, com ris­co de morte;
Alívio dos sintomas de abstinência ao aumentar o consu­mo: Nem sempre o sujeito
admite, mas um questionamento detalhado mostrará que ele está tolerante ao álcool e
somen­te não desenvolve os descritos sintomas na abstinência, por­que não reduz ou até
aumenta gradualmente seu consumo, retardando muitas vezes o diagnóstico;
Reinstalação da síndrome de dependência: O padrão antigo de consumo pode se
restabelecer rapidamente, mesmo após um longo período de não-uso.
Note que, nesse raciocínio da Síndrome de Dependência do Álcool, se trocarmos
o álcool por qualquer outra droga, com potencial de abuso : até mesmo pelos
comportamentos que eventualmente podem sair do controle (jogo patológico, por
exemplo), percebemos grande semelhança na natureza dos sintomas.
Observe a figura:
Figura 1 Padrões de consumo
27
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Essa figura representa os padrões de consumo do álcool, segundo Edwards (1977),
no qual o eixo horizontal representa o grau de depen­dência e o eixo vertical o grau
de problemas existentes em função do uso do álcool. Se o indivíduo encaixa-se no
quadrante inferior esquer­do, não existe problema em relação ao uso de álcool e
nenhum grau de dependência (uso social). Se se encaixar no quadrante superior esquerdo, observa-se que, embora ele não apresente nenhum grau de de­pendência,
tem problemas devido ao uso de álcool (uso problemático ou abuso). Já no quadrante
superior direito, encontramos o indivíduo que apresenta um quadro de Síndrome de
Dependência do Álcool. O quadrante inferior direito não existe clinicamente, uma vez
que o qua­dro de dependência está sempre associado a algum tipo de problema na
vida do indivíduo. É interessante notar que, apesar de o quadro ter sido, primariamente,
desenvolvido para explicar os padrões de consu­mo do álcool, ele pode ser adaptado
para diversas outras drogas com potencial de causar dependência.
A validação do conceito de Síndrome de Dependência do Álcool permitiu que os
sistemas classificatórios atuais operacionalizassem o conceito psicopatológico da
dependência, ao utilizar critérios práticos e confiáveis.
Mas qual a vantagem de estabelecer precisão em tais critérios? Possibili­tar um bom
diagnóstico, etapa primeira antes de qualquer abordagem.
Padrões de consumo de drogas
Conheça agora a correlação entre uso, abuso e dependência de drogas.
Uso de drogas
É a auto-administração de qualquer quantidade de substância psicoativa.
Abuso de drogas
Pode ser entendido como um padrão de uso que aumenta o risco de consequências
prejudiciais para o usuário.
Segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID), o termo “uso nocivo” é aquele
que resulta em dano físico ou mental, enquanto no Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM), “abuso” engloba também consequências sociais.
28
Experimentação, uso, abuso e dependência de drogas
Para uma melhor comparação veja a seguinte tabela:
Tabela 1 - Comparação entre critérios de abuso e uso nocivo da DSM-IV e CD-10
29
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Dependência
Na tabela seguinte, encontra-se uma comparação entre os critérios de dependência
referidos nas classificações do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
e da Classificação Internacional de Doenças. Esses dois sistemas de classificação facilitam
identificar o de­pendente de substância psicoativa, veja com atenção:
Tabela 2: Comparação entre os critérios para dependência da DSM-IV e CID-10
DSM-IV
Padrão mal-adaptativo de uso, levando a prejuízo ou
sofrimento clinicamente signi­ficativos, manifestados por
3 ou mais dos seguintes critérios, ocorrendo a qualquer
momento no mesmo período de 12 meses:
1. Tolerância: definida por qualquer um dos seguintes
aspectos:
(a) uma necessidade de quantidades pro­gressivamente
maiores para adquirir a in­toxicação ou efeito desejado;
(b) acentuada redução do efeito com o uso continuado da
mesma quantidade.
2. Abstinência: manifestada por qualquer dos seguintes
aspectos:
(a) síndrome de abstinência característica para a
substância;
(b) a mesma substância (ou uma subs­tância estreitamente
relacionada) é con­sumida para aliviar ou evitar sintomas
de abstinência.
3. A substância é frequentemente consumida em maiores
quantidades
ou por um período mais longo do que o pretendido.
4. Existe um desejo persistente ou esfor­ços malsucedidos no sentido de reduzir ou controlar o uso.
5. Muito tempo é gasto em atividades necessárias para a
obtenção e utilização da substância ou na recuperação de
seus efeitos.
6. Importantes atividades sociais, ocupa­cionais ou
recreativas são abandonadas
ou reduzidas em virtude do uso.
7. O uso continua, apesar da consciência de ter um
problema físico ou psico­lógico persistente ou recorrente
que tende a ser causado ou exacerbado pela substância.
30
CID-10
Três ou mais das seguintes manifestações ocorrendo
conjuntamente por pelo me­nos 1 mês ou, se persistirem
por períodos menores que 1 mês, devem ter ocorrido
juntas de forma repetida em um período de 12 meses:
1. Forte desejo ou compulsão para consumir a substância;
2. Comprometimento da capacida­de de controlar o início,
término ou níveis de uso, evidenciado pelo consumo
frequente em quantidades ou períodos maiores que
o planejado ou por desejo persistente ou esforços
infrutíferos para reduzir ou controlar o uso;
3 Estado fisiológico de abstinência
quando o uso é interrompido ou redu­zido, como
evidenciado pela síndrome de abstinência característica
da subs­tância ou pelo uso desta ou similar para aliviar ou
evitar tais sintomas;
4. Evidência de tolerância aos efeitos,
necessitando de quantidades maiores para obter o efeito
desejado ou estado de intoxicação ou redução acentuada
destes efeitos com o uso continuado - da mesma
quantidade;
5. Preocupação com o uso, manifes­tado pela redução
ou abandono das atividades prazerosas ou de interesse
significativo por causa do uso ou do tempo gasto em
obtenção, consumo e recuperação dos efeitos;
6. Uso persistente, a despeito de evi­dências claras de
consequências noci­vas, evidenciadas pelo uso continuado
quando o sujeito está efetivamente consciente (ou esperase que esteja) da natureza e extensão dos efeitos nocivos.
Aspectos socioculturais relacionados ao uso de álcool e outras drogas
Capítulo 3
Aspectos
socioculturais
relacionados
ao uso de álcool
e outras drogas
31
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
32
Aspectos socioculturais relacionados ao uso de álcool e outras drogas
Uma abordagem histórica na relação homem/ drogas.
“Procurou o homem, desde a mais remota antiguidade, encontrar um remédio que
tivesse a propriedade de aliviar suas dores, serenar suas paixões, trazer-lhe alegria,
livrá-lo de angústias, do medo ou que lhe desse o privilégio de prever o futuro, que lhe
proporcionasse coragem, ânimo para enfrentar as tristezas e o vazio da vida.”
Lauro Sollero.
A humanidade possui inúmeros registros históricos evidenciando o uso de drogas no
cotidiano. Na antiguidade, as drogas já eram utilizadas em cerimônias e rituais para se
obter prazer, diversão e experiências místicas (transcendência). Os indígenas utilizavam
as bebidas fermen­tadas - álcool - em rituais sagrados e/ou em festividades sociais.
Os egípcios usavam o vinho e a cerveja para o tratamento de uma série de doenças,
como meio para amenizar a dor e como abortivo. O ópio era utilizado pelos gregos e
árabes para fins medicinais, para alívio da dor e como tranquilizante. O cogumelo era
considerado sagrado por certas tribos de índios do México, que o usavam em rituais
religiosos, indu­zindo alucinações. Os gregos e romanos usavam o álcool em festivida­des
sociais e religiosas. Ainda hoje, o vinho é utilizado em cerimônias católicas e protestantes,
bem como no judaísmo, no candomblé e em outras práticas espirituais (Bucher, 1986).
Nesse sentido, a utilização das drogas não representava, em geral, uma ameaça à sociedade, pois seu uso estava relacionado aos rituais, aos costumes
e aos próprios valores coletivos e, ainda, não se sabia dos efeitos
negativos que elas poderiam causar - não havia estudos científicos.
Esses usos foram raramente percebidos como ameaçadores à ordem
social constituída, exceto durante o período da caça aos heréticos e às
bruxas (Escohotado, 1989).
Foi somente no final do século XIX e Início do século XX, com a aceleração dos
processos de urbanização e industrialização e com a implantação de uma nova ordem
médica, que o uso e abuso de vários tipos de drogas passaram a ser problematizados.
Assim, seu controle passou da esfera religiosa para a da biomedicina, inicialmente, nos
grandes centros urbanos dos países mais desenvolvidos do Ocidente (McRae, 2007).
Ao longo desses últimos 30 anos, os efeitos do álcool e de outras drogas ficaram
mais conhecidos. Em consequência disso, os problemas foram sendo reconhecidos de
maneira mais expressiva. A partir desse proces­so, um novo contexto surgiu e com ele
novas formas de uso e abuso.
33
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
O quadro contemporâneo
Na atualidade, diferentes tipos de substâncias psicoativas vêm sendo usados entre
uma gama de finalidades que se estende desde um uso lúdico, com fins prazerosos até o
desencadeamento de estado de êxtase, uso místico, curativo ou no contexto científico da
atualidade. A experi­mentação e o uso dessas substâncias crescem de forma consistente
em todos os segmentos do País.
Dados do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) apontam
que, no mundo todo, cerca de 200 milhões de pessoas - quase 5% da população entre
15 e 64 anos - usam drogas ilícitas, pelo menos, uma vez por ano. Dentre estas, a mais
consumida no mundo é a maconha.
Os levantamentos domiciliares realizados em 2001 e 2005 pela Secretaria Nacional
Antidrogas (SENAD), em parceria com o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
(CEBRID), mostram a evolução do consumo das drogas mais usadas. As pesquisas
envolveram entrevista­das das 108 cidades com mais de 200 mil habitantes do Brasil.
Tabela 1: Drogas mais usadas - % de uso na vida
Drogas
ÁLCOOL
TABACO
MACONHA
SOLVENTES
OREXÍGENOS
BENZODIAZEPÍNICOS
COCAÍNA
XAROPES (codeína)
ESTIMULANTES
2001
68,7
41,1
6,9
5.8
4,3
3,3
2,3
2,0
1,5
Fonte: Curso Educadores, 2006.
http://www.mundojovem.
org.br/drogas. php?sec=Drogas htpp:// www.indg.com.br/info/ glossano/gtossano.asp?c
34
2005
74,6
44,0
8,8
6,1
4,1
5,6
2,9
1,9
3,2
Aspectos socioculturais relacionados ao uso de álcool e outras drogas
Em nossa sociedade, observa-se que a grande maioria da população faz uso de algum
tipo de substância lícita, como álcool, tabaco e medica­mentos com finalidades diferentes
(aliviar a dor; baixar a ansiedade; re­duzir a sensação de cansaço, de depressão; obter
prazer; entre outras). Das substâncias de uso ilícito, a maconha, a cocaína e os solventes
são as mais utilizadas.
Embora as sociedades apresentem diferenças culturais em relação utilização e às
finalidades do álcool e outras drogas, estas substâncias apresentam algumas funções
presentes em todos os lugares: elas ofe­recem a possibilidade de alterar as percepções, o
humor e as sensações (Bucher, 1986).
A cultura moderna e o papel das drogas
Em uma sociedade focada no consumo, na qual o importante é o “ter” e não o “ser”,
e a inversão de crenças e valores gera desigualdades sociais, favorece a competitividade
e o individualismo, não há mais “certezas religiosas, morais, econômicas ou políticas”.
Esse estado de inseguran­ça, de insatisfação e de estresse constante incentiva a busca de
novos produtos e prazeres - nesse contexto, as drogas podem ser um deles.
Dessa forma, segundo Birman (1999) e Conte (2001), as drogas inse­rem-se no
movimento social da nossa cultura. Algumas delas, no en­tanto, são incorporadas em
nossa cultura a ponto de não serem con­sideradas como drogas. O álcool e o tabaco,
por exemplo, são drogas legalmente comercializadas e aceitas pela sociedade. O álcool
faz parte tanto das festividades sociais - como o carnaval - quanto da economia. Essa
aceitação é determinada, em geral, por valores sociais e culturais.
Quando propomos ações e intervenções em situações relacionadas ao uso abusivo de
álcool e de outras drogas, em nossa comunidade, precisamos entender a relação entre o
homem, a droga e o ambiente, ou seja, o contexto sociocultural onde isso acontece deve
receber uma atenção diferenciada.
A cultura, definida como um complexo dos padrões de comportamento das crenças,
das instituições e de outros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente
e característicos de uma sociedade ou de uma civilização (FERREIRA, 1986). Pode ser
vista,também, como — conjunto de atitudes e modos de agir, de costumes, de instituições
e valores espirituais e materiais de um grupo social, de uma sociedade, de um povo.
0 papel da família, culturas e religiões
A família é a primeira referência do homem; é como uma sociedade em miniatura. E
na família, mediadora entre o indivíduo e a sociedade, aprendemos a perceber o mundo
e a nos situarmos nele. Ela é a principal responsável por nossa formação pessoal, porém
não é a única.
35
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
A família e a influência cultural são fatores importantes na determinação do padrão
do uso e consumo do álcool e outras drogas. Há várias evidências de que os padrões
culturais têm papel significativo no desenvolvimento do alcoolismo. Sem, entretanto,
ignorar as condições preexis­tentes de personalidade que podem favorecer a dependên­
cia de álcool e outras drogas (Buchele, Marques, Carvalho, 2004).
Culturas que seguem rituais estabelecidos de onde, quando e como beber têm menores
taxas de uso abusivo de álcool, quando comparadas a culturas que simplesmente proíbem
o uso (Formigone, 1997). Fortes (1975) considera que existem culturas que ensinam
crianças a beber, e nas quais o ato de beber está intimamente ligado a cerimônias e
rituais religiosos.
Ramos e Bertolote (1990) explicam que na cultura judaica, por exem­plo, o beber é
determinado rigorosamente em algumas festas e ocasi­ões rituais. O que leva à “uma
educação do beber” e, com isto, a uma pequena proporção de dependentes ou de
bebedores-problemas.
O uso de álcool é socialmente mais aceitável do que o de outras drogas. Porém, o que
é ou não socialmente aceitá­vel depende das características da comunidade em questão
- seus valores, sua cultura - e não do risco que a droga representa (XAVIER, 1999).
Vários autores mostram que o alcoolismo atinge as populações de for­ma diferente.
Entre estes autores se pontua Edwards (1999), quando discorre sobre os fatores culturais
envolvidos no alcoolismo, reafir­mando que diferentes posturas frente ao uso do álcool
determinam pa­drões diferentes de respostas. Assim, é aceito que a cultura se constitui
num importante fator determinante na proporção de alcoolistas.
Tradições e usos distintos
A influência cultural não se restringe apenas ao álcool ou a outras dro­gas lícitas.
Observe, a seguir, algumas considerações sobre a planta da coca, matéria-prima da
cocaína, nos seus diferentes aspectos e no seu uso cultural, segundo Figueiredo (2002).
Suas folhas são mastigadas há séculos, nas montanhas e altiplanos, pela população
indígena. O hábito de mastigar a folha da coca - o chamado “coquear” - ocupa um lugar
de destaque na cosmologia, na esfera co­munitária e ritual dessas populações.
“Coquear” faz parte de uma adaptação biológica e sociocultural em contexto
geográfico e climático altamente desfavorável que, evidente­mente, não se deixa mudar
por considerações meramente moralistas. Mastigar a folha da coca tem por objetivo, em
primeiro lugar, evitar o cansaço considerável devido à altitude. Evitam-se, assim, a sede e
a fome (ou pelo menos as suas sensações), e aguenta-se melhor o frio, às vezes, intenso.
36
Aspectos socioculturais relacionados ao uso de álcool e outras drogas
O seu valor cultural e mitológico é ressaltado, em particular, através do seu uso
nos momentos do nascimento e da morte. Ela é aplicada no recém-nascido para a
secagem do cordão umbilical, que, em seguida, é enterrado junto com as folhas de coca,
representando, assim, um talis­mã para o resto da vida do indivíduo. Nas cerimônias
funerais, acredi­ta-se numa verdadeira convulsão dos espíritos (da coca), que devem ser
apaziguados mediante certos rituais, para assegurar a tranquilidade no além, da pessoa
falecida.
Percebe-se, dessa forma, que o uso da coca parece ter algo de “sagra­do”. Ele não
se limita ao mastigar, como consequência de condições socioeconômicas difíceis. Se é
altamente desejável melhorar as con­dições de vida dessa população, não quer dizer que
se deve, para isso, destruir os seus valores culturais milenares.
A cultura comunitária e possíveis projetos de prevenção
Alguns fatores de risco ou de proteção podem contribuir para o uso de drogas.
Estes fatores não são determinantes, apenas aumentam ou diminuem, em diferente
intensidade, a probabilidade de o indivíduo vir ou não a fazer o uso de drogas.
Observe alguns exemplos de fatores de risco e de proteção para o uso de álcool e
outras drogas no domínio comunitário.
Domínio Comunitário
Fatores de proteção
Falta de oportunidades
socioeconómicas para a construção de
um projeto de vida.
Existência de oportunidades de estudo, trabalho,
lazer e inserção social que possibilitem ao indivíduo concretizar seu projeto de vida
Fácil acesso às drogas lícitas e ilícitas
Controle efetivo do comércio de drogas legais e
ilegais
Permissividade em relação a algumas
drogas.
Reconhecimento e valorização, por parte da
comunidade, de normas e leis que regulam o uso
de drogas.
Inexistência de incentivos para que o
jovem se envolva em serviços comunitários.
Incentivos ao envolvimento dos jovens em
serviços comunitários.
Negligência no cumprimento de normas
e leis que regulam o uso de drogas.
Realização de campanhas e ações que ajudem
o cumprimento das normas e leis que regulam o
uso de drogas.
37
Fonte: A Prevenção do Uso de Drogas e Terapia Comunitária
Fatores de risco
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Frente a essas informações, você conselheiro conhece a situação do consumo de
álcool e outras drogas em sua comunidade e/ ou em seu município?
A seguir, você verá exemplos de sucesso desenvolvidos em projetos originados nas
comunidades. Todos eles registraram bons frutos na proteção dos jovens quanto ao
uso de drogas e o desenvolvimento de competências. Algumas ideias de trabalhos com
jovens da sua própria comunidade podem ser extraídas destes exemplos.
Projeto Bola na Rede - Fundação Cuca/Guarabira - PB
Como em outras localidades do nordeste, as crianças e adolescentes da comunidade
Antonio Mariz, popularmente conhecida por “Muti­rão”, no município de Guarabira,
Estado da Paraíba, enfrentam sérios problemas: exploração sexual comercial de crianças
e adolescentes, envolvimento com consumo e tráfico de drogas, violência e trabalho
infantil.
Para fazer frente a essa situação, a Fundação CUCA - Centro Unificado de Capacitação
e Arte criou o projeto “Bola na Rede”, que atende parte das crianças e adolescentes
daquela comunidade.
Desde o início, os jovens foram incentivados a participar ativamente da construção do
projeto. Com a oficina já instalada, os jovens desen­volvem habilidades técnicas de corte,
furo, costura, modelagem e se­rigrafia, estando a maioria já apta a produzir bolas com a
qualidade requerida. Porém, o mais relevante tem sido a participação dos ado­lescentes
na coordenação do projeto, definindo normas e formas de organização.
Foram eles próprios que decidiram a criação do “Embalarte” - um novo projeto que
possibilita o envolvimento das famílias na aprendizagem e produção de produtos como
bolsas e sacolas, utilizando a capacidade ociosa das mesmas máquinas de corte e furo
usadas para a fabricação das bolas.
Hoje, os jovens do projeto, que antes trabalhavam em um lixão da re­gião, conseguem
uma renda individual mensal de até R$ 160,00. Foram criados quatro pontos de venda
dos produtos e a equipe busca a forma­ção de uma cooperativa. Vale destacar que todos
os jovens continuam a estudar.
Com seriedade, dedicação e competência, a equipe conseguiu demons­trar que os
jovens podem ser parte da solução de seus próprios proble­mas. Para isto, só precisam
de uma oportunidade.
38
Aspectos socioculturais relacionados ao uso de álcool e outras drogas
Projeto Cinema à Pampa - Associação de Apoio à Criança Em Risco - Diadema/SP
O Bairro de Eldorado é o segundo maior de Diadema e o mais distante do centro da
cidade, repleto de regiões remotas com habitações pre­cárias e altos índices de violência.
Os jovens convivem com a exclusão social, conflitos familiares, defasagem entre escola e
realidade, desem­prego, subemprego e falta de lazer.
Essa situação começou a mudar com o projeto “Cinema à Pampa -Aprendendo com a
Sétima Arte”, que dá oportunidade para jovens de 13 a 18 anos, do Bairro de Eldorado,
exercerem o protagonismo ju­venil: eles próprios planejam sessões de cinema para a
comunidade e depois participam de debates e oficinas programadas. A experiência é
desenvolvida pela ACER - Associação de Apoio à Criança em Risco -desde o início de
2002 e acompanhada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
de Diadema.
O impacto educativo e cultural do projeto é significativo: crianças, ado­lescentes, ONGs,
escolas e toda a comunidade são beneficiados com a oportunidade de acesso à cultura
através das sessões de cinema e de reflexão com os debates que são realizados após
cada sessão.
A participação no projeto tem gerado vários resultados positivos na vida dos jovens
diretamente beneficiados: eles passam a acreditar em si mesmos, enxer­gar a importância
da escola e melhorar o aproveitamento escolar, melhorar seu relacionamento familiar e
comunitário, formular novos projetos de vida. Alguns deles já têm envolvimento efetivo
nas políticas de atendimento à criança e ao adolescente, através da participação nas
reuniões do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
O projeto “Cinema à Pampa” é um exemplo de como o protagonismo juvenil pode
mudar a realidade de crianças e adolescentes que vivem em situação de vulnerabilidade.
Programa Picasso Não Pichava - Distrito Federal/DF
A Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Gover­no do Distrito
Federal, preocupada com os índices de violência envol­vendo jovens e adolescentes em
todo o Distrito Federal, considerando as motivações individuais e coletivas dos jovens
em situação de risco ou não e as implicações da adesão desses jovens às gangues,
percebeu a necessidade de resgatar e redirecionar o potencial desses jovens para valores
humanísticos e éticos, que pudessem lhes oferecer alguma alternativa de inclusão social
e ao desenvolvimento social. Com esse objetivo, foi criado o Programa Picasso Não
Pichava, em 1999. Já foram atendidos mais de 20 mil alunos em suas unidades, bem
39
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
como nas palestras realizadas em diversas instituições do Distrito Fe­deral, como escolas
públicas e particulares, shoppings, Ministério Pú­blico, entre outros.
O Programa oferece aos jovens cursos de artes, de informática básica e serigrafia,
permeados por orientação para a cidadania e acompanha­mento psicológico, a fim de que
eles possam desenvolver as suas ha­bilidades artísticas e ao mesmo tempo estabelecer
outros padrões de sociabilidade, de realização e valorização pessoal.
Projeto Esporte à Meia-Noite - Distrito Federal/DF
Pesquisa realizada pela UNESCO (Abramovay, Miriam, 1999) entre os jovens que
residem em algumas cidades do Distrito Federal, constatou que, pelo menos, 4.800
jovens entre 15 e 24 anos de idade integram algum agrupamento juvenil, mais conhecido
como gangue ou galera.
O Projeto Esporte à Meia-Noite foi concebido com o objetivo de dimi­nuir, de forma
preventiva, a criminalidade juvenil, por meio do desen­volvimento de ações esportivas,
de qualificação profissional e de lazer, destinadas à expressão de seus valores culturais
e voltadas à construção de sua cidadania. O projeto propicia a participação dos pais
e responsá­veis em suas atividades, promovendo a interação da comunidade com o
sistema de segurança pública, de modo a difundir novas atividades esportivas, culturais e
educativas para adolescentes, no período notur­no, visando a diminuição da criminalidade
juvenil.
O Projeto tem como principal instrumento a implantação de ativida­des esportivas,
culturais e educativas, de fácil aceitação entre os ado­lescentes, como meio de mudança
no comportamento desses jovens. Para isso, coloca à disposição dos interessados um
local permanente e seguro, de segunda a sexta, para desenvolver atividades esportivas
en­tre 23:00 e 02:00 horas. Estas são monitoradas por bombeiros militares, com formação
em Educação Física e Primeiros Socorros. Esta catego­ria foi escolhida por se tratar de um
segmento da segurança pública que conta com maior grau de credibilidade e aceitação
por parte da comunidade, por não apresentar uma função repressiva.
Um profissional de Psicologia e um profissional de Serviço Social desenvolvem o trabalho
psicossocial e educativo dos beneficiários do projeto, por meio de acompanhamento
individual e familiar. Após levantamento do perfil de cada jovem, eles são encaminhados
para cursos de capacitação profissional e para atividades culturais, de acordo com seus
interesses e com os recursos de que a comunidade dispõe.
Durante o desenvolvimento das atividades é servido um lanche com­posto basicamente
de pão e leite aos participantes do projeto.
40
Aspectos socioculturais relacionados ao uso de álcool e outras drogas
Projeto Resgate da Cidadania
O projeto Resgate da Cidadania é uma parceria entre o Viva Rio e a Secretaria Especial
de Direitos Humanos do Governo Federal que visa proporcionar oportunidades de
futuro para jovens do Complexo da Maré e Niterói envolvidos na violência através da
educação, qualifi­cação profissional, esportes, atendimento psicológico e apoio jurídico
para o adolescente e a família.
Resgate da Cidadania é um projeto experimental que atendeu no pri­meiro ano (2o
semestre de 2006 ao Io semestre de 2007) 100 crianças e jovens, no Complexo da Maré
em Niterói. A participação é voluntária e direcionada para aqueles que expressam o
desejo de ser reinseridos na sociedade, mas que não encontram uma porta aberta para
percorrer este caminho.
No projeto, o jovem recebe orientação individualizada, de acordo com as ne­cessidades
de cada um, para adquirir documentos e certidões ou para trata­mento de dependência
química, além de uma bolsa mensal. Todos voltam a estudar através do programa de
aceleração escolar do Viva Rio, que oferece tur­mas do ensino fundamental e médio, e
têm acesso a programas de qualificação profissional, cursos de informática e práticas
esportivas, além do encaminha­mento para o mercado de trabalho através de uma rede
de empresas parceiras da ONG.
41
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
42
Prevenção: novas formas de pensar e enfrentar o problema
Capítulo 4
Prevenção:
novas formas
de pensar e
enfrentar o
problema
43
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
44
Prevenção: novas formas de pensar e enfrentar o problema
O conceito de prevenção
Poderíamos dizer que, em geral, a prevenção refere-se a toda iniciativa coletiva visando
à sobrevivência da espécie. Na realidade é um conceito recente e poderíamos dizer que
as primeiras instituições na história que estiveram na sua vanguarda foram as religiosas
(CAVALCANTI - 2001).
Podemos ver esse preceito através de práticas religiosas, como a ten­tativa de pregar
o respeito ao próximo. A humanidade foi se desenvol­vendo e conseguindo atualizar
algumas formas de preservação e algu­mas formas de ataque ao seu desenvolvimento.
Sabemos, por exemplo, dos danos que a poluição nos causa e da nossa dificuldade em
cuidar das nossas florestas.
Assim, junto com a humanidade, o uso de drogas foi se modificando. Nos anos 60,
preservávamos um uso ritualístico, hoje, temos um uso que podemos definir como
consumista. Com estas mudanças, novos pensamentos e novas pesquisas foram se
desenvolvendo para que as ações planejadas pudessem ser efetivas e preservadoras.
As mais sérias pesquisas sobre a questão nos mostram um aumento do uso de drogas,
mas, principalmente, mostram-nos a necessidade de planejarmos ações preventivas
adequadas ao grupo que desejamos atingir. Prevenir não é banir a possibilidade de uso
de drogas. Prevenir é considerar uma série de fatores para favorecer que o indivíduo
tenha condições de fazer escolhas.
Diante das necessidades da sociedade, ou seja, dos problemas apresen­tados, o
conceito de prevenção se ampliou a ponto de poder se colocar dentro do conceito de
“Promoção de Saúde”.
Portanto, é fundamental que o agente de prevenção conheça os dife­rentes aspectos
envolvidos no seu trabalho. Nas páginas dessa Unida­de, você se aprofundará neste
assunto.
“Promoção de Saúde é o nome dado ao processo de capacitação
da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida
e de saúde”. (As cartas de Promoção de Saúde. Ministério da
Saúde. Secretaria de Políticas da Saúde. Projeto Promoção de
Saúde - Brasília, 2002)
45
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Os múltiplos fatores que levam às drogas
O uso indevido de álcool e outras drogas é fruto de uma multiplicidade de fatores.
Nenhuma pessoa nasce predestinada a usar álcool e outras drogas ou se torna
dependente apenas por influência de amigos ou pela grande oferta do tráfico. Nós,
seres humanos, por nossa humani­dade e incompletude, buscamos elementos para aliviar
dores e acirrar prazeres. Assim, encontramos as drogas. Algumas vezes experimen­tamos,
outras usamos sem nos comprometermos, e em outras, ainda abusamos.
Existem fatores que convergem para a construção das circunstâncias do uso abusivo,
chamados de fatores de risco. Também existem fato­res que colaboram para que o
indivíduo, mesmo tendo contato com a droga, tenha condição de se proteger. Estes são
os fatores de proteção.
Fatores de risco são os que tornam a pessoa mais vulnerável a ter comportamentos
que podem levar ao uso ou abuso de drogas.
• Fatores de proteção são os que contrabalançam as vulnerabi­lidades para os
comportamentos que levam ao uso ou abuso de drogas.
Mostra-se evidente a inter-relação e a interdependência existentes en­tre o usuário e
o contexto que o circunda. Pensar nesta teia de vulne­rabilidades e nos determinantes
socioculturais em relação ao uso de drogas, em uma sociedade, certamente, amplia e
torna mais complexa a abordagem desse fenômeno (Sodelli, 2005, p. 91).
Os fatores de risco e de proteção podem estar:
• nos aspectos biológicos;
• na cadeia genética;
• nas peculiaridades das relações interpessoais; nas interações familiares;
• nas oportunidades de contato ou convivência com a droga;
• nas sensações provocadas pelo efeito obtido com o uso da droga;
• na cultura que cada um vive, ou seja, na especificidade de cada indivíduo.
Prevenção- novas-formas de pensar e enfrentar o problema
Se examinarmos um fator como a timidez, por exemplo: de um lado, ela pode ser
analisada como fator de risco para o individuo que, por ser tímido, aceita o uso de
drogas para ser integrado a um grupo de usuários. De outro, ela pode ser vista como
fator de proteção quando o indivíduo tímido, por medo, diante do oferecimento da
droga, se recusa a experimentá-la.
46
Prevenção: novas formas de pensar e enfrentar o problema
Este que usou, se não tiver dentro de si um fator biológico importante, se tiver uma
boa relação familiar e se não tiver uma boa sensação com este uso pode, ainda, fazer só
um uso recreacional, mas se suas condi­ções forem de risco ou prazerosas ele poderá vir
a fazer uso regular da droga.
Para que se realize um trabalho sério e cuidadoso de prevenção, com um
determinado grupo, é necessário:
• identificar os fatores de risco - para minimizá-los;
• identificar os fatores de proteção - para fortalecê-los;
• tratar o grupo como específico - para a identificação dos fa­tores acima.
A subdivisão dos fatores de risco e de proteção tem uma utilidade di­dática no
planejamento da ação preventiva. Vejamos alguns exemplos:
Da proteção
Habilidades sociais
Cooperação
Habilidades para resolver problemas
Vínculos positivos com pessoas, instituições e valores
Autonomia
Autoestima desenvolvida
De risco
Insegurança
Insatisfação com a vida
Sintomas depressivos
Curiosidade
Busca de prazer
Fonte: Curso Educadores, 2006
Fatores do Próprio Indivíduo
A curiosidade, colocada na tabela acima como fator de risco porque leva à
experimentação, também é uma característica do adolescente e um fator importante
para o desenvolvimento dele. Um adolescente pouco curioso é um adolescente “pobre.”
47
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Fatores familiares
Como demonstra a tabela a seguir, na família também podem estar contidos tanto os
fatores de risco como os de proteção para o uso das substâncias psicoativas.
Da proteção
Pais que acompanham as atividades
dos filhos Estabelecimento de regras e
de conduta claras Envolvimento afetivo
com a vida dos filhos Respeito aos ritos
familiares Estabelecimento claro da
hierarquia familiar
De risco
Pais que fazem uso abusivo de drogas Pais que
sofrem de doenças mentais Pais excessivamente
autoritários ou muito exigentes Famílias que mantêm
uma “cultura aditiva”
Fonte: Curso Educadores, 2006
Fatores Familiares
A formação de cada um de nós se inicia na família. É função da família proteger seus
filhos e favorecer neles o desenvolvimento de competên­cias, por exemplo, para lidar
com limites e frustrações. Na adolescên­cia, a falta da proteção da família, especialmente,
para o adolescente transgressor que não sabe lidar com frustrações, pode favorecer o
uso indevido de substâncias psicoativas.
De um lado, o cuidado com os filhos na infância leva a uma melhor capacitação
das crianças para o enfrentamento da vida adolescente e adulta (fator de proteção =
acompanhamento dos filhos) (ARMS­TRONG et al., 2000).
De outro, a transformação que os filhos vão sofrendo com sua ado­lescência leva a
família a reorganizar seus papéis e a fazer adaptações em sua estrutura para permitir
o desenvolvimento de seus filhos (fator de risco — impossibilidade de deixar os filhos
crescerem) (SPROVIERI, 1998).
Cultura aditiva é a forma de viver
adotada por uma família na qual as
soluções são dadas como formas de
impedir a reflexão
48
Fatores Escolares
Da proteção
Bom desempenho escolar Boa inserção
e adaptação no ambiente escolar
Ligações fortes com a escola Oportunidades de participação e decisão Vínculos
afetivos com professores e colegas
Realização pessoal
Possibilidades de desafios e expansão
da mente Descoberta de possibilidades
(e “talentos”) pessoais
Prazer em aprender
Descoberta e construção de projeto de
vida
De risco
Baixo desempenho escolar Falta de regras claras
Baixas expectativas em relação às crianças Exclusão
social
Falta de vínculos com as pessoas ou com a
aprendizagem
Fonte: Curso Educadores, 2006
Prevenção: novas formas de pensar e enfrentar o problema
Fatores Sociais
Da proteção
Respeito às leis sociais Credibilidade da
mídia Oportunidades de trabalho e lazer
Informações adequadas sobre as drogas
e seus efeitos
Clima comunitário afetivo
Consciência comunitária e mobilização
social
De risco
Violência
Desvalorização das autoridades sociais
Descrença nas instituições
Falta de recursos para prevenção
e atendimento
Falta de oportunidades de trabalho e lazer
Fonte: Curso Educadores, 2006
A escola é um ambiente privilegiado para a reflexão e formação da criança e do
adolescente, já que é o espaço onde eles vivem muito tem­po de suas vidas.
Algumas questões consideradas sociais podem levar o jovem a supor que só os fatores
externos o levaram ao uso, e que estes mesmos fato­res o levarão a resolução de seus
problemas. Por exemplo: morar em um bairro violento.
Se o jovem vem de uma família desorganizada, mas encontra em sua vida um
grupo comunitário que faz seu asseguramento, oferecendo-lhe alternativas de lazer e
de desenvolvimento de habilidades pessoais, pode vir a ter sua forma­ção garantida,
aprendendo a criticar e se responsabilizar por si próprio e pelo seu grupo social.
49
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Da proteção
Informações contextualizadas sobre
efeitos Regras e controle para consumo
adequado
De risco
Disponibilidade para compra Propaganda que
incentiva e mostra apenas o prazer que a droga
causa Prazer intenso que leva o indivíduo a querer
repetir o uso
Fonte: Curso Educadores, 2006
Fatores Relacionados à Droga
Os dependentes e sua possibilidade de recuperação
O fato de um indivíduo usar ou até ser um dependente da droga não faz com
que esteja condenado a nunca mais se recuperar. Nos anos 70, no Brasil, antes dos
movimentos antimanicomiais, tratávamos os usuários de drogas, dentro dos hospitais
psiquiátricos, como psicopa­tas, ou seja, amorais. Nenhuma diferenciação era feita entre
eles. Isso acontecia porque nós, os técnicos, tínhamos uma posição muito mo­ralista
diante do problema. Se o usuário não era julgado pelo sistema prisional, ele era julgado
pelo sistema psiquiátrico.
Nos anos 80, tivemos que repensar a posição diante do aumento do consumo das
drogas injetáveis e do aparecimento da AIDS.
Foi nesta época que dois conceitos importantes passaram a ser cuida­dosamente
estudados e aplicados: “resiliência” e “redução de danos”. Acompanhe.
a) Resiliência
De acordo com Junqueira e Deslandes (2003, p. 228), resiliência é en­tendida como uma
“reafirmação da capacidade humana de superar adversidades e situações potencialmente
traumáticas”. Ou seja, o indi­víduo resiliente é aquele capaz de superar frustrações e / ou
situações de crise e de adversidades.
b) Redução de Danos
Também chamada de redução de riscos, é um conjunto de medidas individuais e
coletivas, sanitárias ou sociais cujo objetivo é diminuir os malefícios ligados ao uso de
drogas lícitas ou ilícitas.
Estas definições já fazem refletir sobre nossas “pretensões” quando pensamos em um
programa de prevenção. Para o ser humano, a vivên­cia sobre o peso dos chamados
fatores de risco causa mudanças em sua vida, não é inofensiva. Mas também não é
determinante na sua impos­sibilidade de superação. Se este ser humano contar com seus
fatores de proteção, poderá superar suas dificuldades.
50
Prevenção: novas formas de pensar e enfrentar o problema
Você pode então perguntar: mas o que favoreceria essa superação? Será que alguns
de nós teríamos esta condição e outros não? Será que a identificação de j um grande
número de fatores de risco em uma comunidade e um programa de prevenção que
ofereça “fatores de proteção” ajudariam no desenvolvimento destes indivíduos?
Muitos estudos foram feitos com as populações chamadas de “alto risco”. Um
estudo longitudinal (Werner-1986-1993) acompanhou 72 indivíduos (42 meninas e 30
meninos) desde a infância até a idade adul­ta, nascidos numa ilha do Havaí. Eles eram
crianças provenientes de famílias pobres, de baixa escolaridade, além de terem baixo
peso no nascimento ou presença de deficiências físicas e estresse perinatal. Os próprios
pesquisadores se surpreenderam ao verificar, ao final do estu­do, que nenhuma destas
crianças desenvolveu problemas de aprendiza­gem e de comportamento.
Outro grupo estudado era composto por 49 jovens, em que os pais eram pobres,
tinham sérios problemas de abuso de álcool e sofreram conflitos familiares desde cedo.
Aos 18 anos, 41% apresentaram pro­blemas de aprendizagem e 51% não apresentaram
estes problemas.
Apesar de terem características diferentes, os dois grupos foram con­siderados
resilientes. Então, todos temos salvação? Podemos ser ex­postos a qualquer estresse e
sem dúvida sairíamos ilesos? Essas são perguntas muito importantes, pois temos que
estar atentos para não confundirmos resiliência com invulnerabilidade.
Vamos destacar aqui alguns dados para podermos construir uma definição mais ampla
sobre resiliência:
resiliência não é um processo estanque;
resiliência não é o oposto de fator de risco;
desenvolver resiliência não é o mesmo que superação de vi­vências traumáticas;
resiliência é como um “banco de dados” que protege o indiví­duo (Slap-2001);
o conceito de resiliência nos mostra o ser humano como ca­paz de superar
adversidades;
cada um de nós tem uma capacidade psíquica particular para o enfrentamento dos
problemas da vida.
51
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
A sintonia entre as propostas e as necessidades
É preciso que as propostas de prevenção estejam mais sintonizadas com as necessidades
da população de usuários.
Da mesma forma, felizmente, os novos conhecimentos trouxeram no­vas posturas para
quem estudava novas formas de enfrentar o proble­ma das drogas. Uma delas é a de
redução de danos.
BASTOS e MESQUITA (2004, p. 182), fazendo eco com alguns estudio­sos, dizem que:
é tempo de substituir as declarações de fé pelo rigoroso escrutínio científico, partindo de
pressupostos que não se­jam pró ou antidrogas, mas que, de fato, consigam mini­mizar os
danos decorrentes do consumo em um sentido mais amplo. [...] o então crescente número
de usuários de drogas injetáveis infectados pelo HIV/AIDS nos países de­senvolvidos [...]
fez com que estratégias alternativas à pura e simples repressão no âmbito dos danos
secundários ao abuso de drogas, até então restrita a um punhado de ativis­tas e especialistas,
se revestisse de uma dimensão coletiva e global e se tornassem legítimas aos olhos de
dirigentes líderes de paises e comunidades influentes (Bastos e Mes­quita, 2004, p. 182).
Já em 1986 e 1987, com a grande contaminação pelo vírus HIV nos usuários de drogas
injetáveis, na Inglaterra e na Holanda apareceram os primeiros centros de troca de
seringas. A proposta era reduzir os danos que estes usuários causavam a si próprios
compartilhando serin­gas. Esta ação foi considerada eficiente na Europa.
Na França, CAVALCANTI (2001) aponta que, antes dos programas de distribuição, mais
de 50% dos usuários compartilhavam suas seringas e hoje este número é menor que
17%.
No Brasil, na mesma época, também foram feitas tentativas neste sen­tido, mas a
iniciativa tornou-se um caso de polícia. Ainda não conseguí­amos abandonar nossas
posições proibicionistas e tratávamos a preven­ção como uma forma de repressão. Hoje,
já sabemos que a redução de danos é muito maior do que só trocar seringas.
1
Estudos apontam cinco princípios para a redução de danos
1. É uma alternativa de saúde pública aos modelos moral, crimi­nal e de doença.
2. Reconhece a abstinência como resultado ideal, mas aceita al­ternativas que reduzam
danos.
Moreira, Silveira e Andreoli (2006)
citando Marlatt (1999).
1
52
Prevenção: novas formas de pensar e enfrentar o problema
3. É baseada na defesa do dependente.
4. Promove acesso a serviços de baixa exigência, ou seja, ser­viços que acolhem usuários
de forma mais tolerante, como uma alternativa para as abordagens tradicionais de alta
exi­gência, aquelas que, tipicamente, exigem a abstinência total como pré-requisito para
a aceitação ou permanência do usu­ário.
5. Baseia-se nos princípios do pragmatismo empático versus ide­alismo moralista.
Ao pensarmos a redução de danos e colocarmos a abstinência como um resultado ideal
a ser alcançado, estamos admitindo que o real não é o ideal. Com esses conhecimentos
novos, podemos ampliar nossa vi­são para uma visão mais social, pois é essa a demanda
que temos hoje presente em nossa realidade.
O objetivo da prevenção, segundo a OMS, é reduzir a incidência de problemas causados
pelo uso indevido de drogas em uma pessoa em um determinado meio ambiente.
No entanto, as categorias de prevenção primária, secundária e terciária que herdamos
dos modelos médicos não dão mais conta do nosso pro­blema, apesar de ainda serem
utilizadas.
• Prevenção primária - evitar que o uso de drogas se instale, dirigindo-se a um
público que não foi afetado.
• Prevenção secundária - efetuar ações que evitem a evolução do uso para usos mais
prejudiciais.
• Prevenção terciária - tratar os efeitos causados pelo uso da droga, melhorando a
qualidade de vida das pessoas afetadas.
“Hoje, a prevenção se organiza focando o indivíduo ou a população em que estão
implícitos os conceitos de fatores associados à proteção e ao risco, considerando a
multiplici­dade de fatores envolvidos ao uso abusivo e na dependên­cia de drogas.” (Noto.
e Moreira, 2006, p. 314)
Agora, a partir da definição de uma população-alvo, as atividades pre­ventivas passam
a ser chamadas de:
• intervenção global ou universal;
• intervenção específica ou seletiva;
• intervenção indicada.
53
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
O que é?
Onde se aplica
Intervenção global - são programas destinados à população geral, supostamente sem
qualquer fator associado ao risco.
na comunidade, em ambiente escolar e nos meios de
comunicação.
Intervenção específica - são ações voltadas
para populações com um ou mais fatores
associados ao risco de uso de substâncias.
por exemplo, em grupos de crianças, filhos de
dependentes químicos.
Intervenção indicada - são intervenções
voltadas para pessoas identificadas como
usuárias ou com comportamentos violentos
relacionados direta ou indiretamente ao uso
de substâncias, como por exemplo alguns
acidentes de trânsito.
em programas que visem diminuir o consumo de
álcool e outras drogas, mas também a melhora de
aspectos da vida do indivíduo como, por exemplo,
desempenho acadêmico e reinserção escola.
Fatores da proposta de prevenção
Para fazer uma proposta de prevenção, é preciso que alguns fatores sejam considerados.
Dada a complexidade da problemática do uso de drogas, envolvendo a interação de
fatores bio-psico-sociais, o cam­po das ações preventivas é extremamente abrangente,
en­volvendo aspectos que vão desde a formação da persona­lidade do indivíduo até
questões familiares, sociais, legais, políticas e econômicas (ANDRADE e BASSIT,1995).
Sabemos que o problema do uso indevido de drogas é sério e impor­tante. Sabemos,
também, que só nossas boas intenções não são sufi­cientes para planejarmos uma ação
preventiva.
Para tal planejamento, é preciso ter conhecimento científico, e não somente uma
opinião sobre a questão. Dentro deste conhecimento está a identificação; da população
a ser trabalhada, a identificação dos fatores de risco e de proteção desta determinada
população e o planejamento da intervenção que será feita.
Somos seres humanos e muitas vezes não enxergamos o problema de forma completa,
por isso, é muito importante o trabalho em equipe. Na formação da equipe, é importante
contar com especialistas e mem­bros da comunidade local - chamamos isso de apoio.
Os fatores: apoio, conhecimento, criatividade e equipe treinada são essenciais para o
desenvolvimento de um bom trabalho nesta área.
54
Prevenção: novas formas de pensar e enfrentar o problema
Se a função do técnico for a de treinar uma equipe local, é preciso que esta equipe
tenha condições de:
• receber o conhecimento científico e se manter atualizado;
• suportar mudanças lentas e graduais;
tolerar frustração para conseguir ampliar os próprios limites;
• examinar seus erros e seus preconceitos em relação à questão;
• exercer a própria criatividade para criar ações considerando o grupo identificado;
• trabalhar com outros técnicos em atividades grupais.
Para a implantação de um programa, é preciso que se defina seus obje­tivos e as
estratégias, considerando a comunidade onde ele será desen­volvido, além da definição
dos recursos físicos locais para que a inter­venção não precise ser interrompida.
Os processos de mobilização ocorrem mais facilmente se forem iniciados em
comunidades menores.
Para se fazer prevenção, além da preparação da equipe, da definição de objetivos e
do estabelecimento de apoio, temos de contar com dados da realidade externa que
interferem no nosso trabalho e estar atentos a novos fatores que possam interferir nele.
Por exemplo, uma nova droga introduzida no mercado ou novos hábitos que vêm fazer
parte daquela comunidade devem ser considerados.
As ações preventivas na comunidade podem ser orientadas por diferen­tes modelos
que não são excludentes entre si.
Utilizando como exemplo a escola, podemos dizer que uma interven­ção preventiva
será mais eficiente quanto mais ela considerar dados como:
• o respeito à cultura da comunidade e do lugar onde ela está inserida;
• o planejamento das ações;
• o aproveitamento dos recursos já existentes;
• a integração das novas atividades ao currículo escolar; o envolvimento gradual da
comunidade escolar;
• a preocupação com a possibilidade da continuidade das ações planejadas;
• a consideração do fato de que só a informação não basta;
• a identificação dos fatores de risco e proteção.
Tanto quanto o planejamento para iniciar a intervenção preventiva, a avaliação dos
resultados obtidos é de suma importância.
55
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
56
Redes Sociais
Capítulo 5
Redes
Sociais
57
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
58
Redes Sociais
Redes Sociais
O conceito de rede social como um conjunto de relações interpes­soais concretas que
vinculam indivíduos a outros indivíduos vem se ampliando dia-a-dia, à medida que se
percebe o poder da cooperação como atitude que enfatiza pontos comuns em um
grupo para gerar solidariedade e parceria.
O homem, como ser social, estabelece sua primeira rede de relação no
momento em que vem ao mundo. A interação com a família conferelhe o aprendizado e a socialização, que se estendem para outras redes
sociais. É pela convivência com grupos e pessoas que se moldarão muitas das características pessoais determinantes da sua 1identidade social.
Surgem, nesse contexto, o reconhecimento e a influência dos grupos
como elementos decisivos para a manutenção do sentimento de pertinência e de
valorização pessoal.
Todo indivíduo carece de aceitação e é na vida em grupo que ele irá externar e suprir
esta necessidade. Os vínculos estabelecidos tornam-se intencionais, definidos por
afinidades e interesses comuns. O grupo, então, passa a influenciar comportamentos e
atitudes, funcionando como ponto em uma rede de referência composta por outros
grupos, pessoas ou instituições, cada qual com uma função específica na vida da pessoa.
Na prática, a existência humana constitui-se nas interações. O ambien­te poderá
intensificá-las ou diminuí-las de acordo com o surgimento de novos interesses e
necessidades. É o equilíbrio dessas interações que vai determinar a qualidade das
relações sociais e afetivas do indiví­duo com os pontos de sua rede que são: a família, a
escola, os amigos, os colegas de trabalho, entre outros.
Assim, o indivíduo pode constituir ou fazer parte de uma rede, cujo padrão de
interação poderá ser:
• Positivo - privilegiando atitudes e comportamentos que va­lorizam a vida.
• Negativo - marcado por atitudes e comportamentos de agressão à vida.
Identidade social é o conjunto de
características individuais reconhecido pela comunidade da qual a
pessoa faz parte.
1
59
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
É importante salientar que o padrão de interação nem sempre se dá de maneira
estanque. Dificilmente, uma pessoa se relacionará de forma totalmente negativa ou
positiva.
Objetivos das Redes Sociais
• Favorecer o estabelecimento de vínculos positivos, por meio da interação entre os
indivíduos;
• oportunizar um espaço para reflexão, troca de experiências e busca de soluções para
problemas comuns;
• estimular o exercício da solidariedade e da cidadania;
• mobilizar pessoas, grupos e instituições para a utilização de recursos existentes na
própria comunidade;
• estabelecer parcerias entre setores governamentais e não-governamentais, para
implementar programas de orientação e prevenção, pertinentes a problemas específicos
apresentados pelo grupo.
A construção da rede somente poderá ser concretizada à medida que se associam os
princípios da responsabilidade pela busca de soluções com os princípios da solidariedade.
É preciso que cada cidadão busque, dentro de si, o verdadeiro sentido da gratificação
pessoal mediante a participação.
Ao conselheiro, compete potencionalizar a força natural dos indivíduos e da co­
munidade em ações para a formação e fortalecimento de redes voltadas à ga­rantia de
acesso aos direitos sociais e ao exercício da cidadania.
Características a serem identificadas e desenvolvidas no trabalho em rede
• Acolhimento - capacidade de acolher e compreender o outro, sem impor quaisquer
condições ou julgamentos, ou impor-se.
• Cooperação - demonstração do real interesse em ajudar e de compartilhar na busca
das soluções.
• Disponibilidade - demonstração e associação a um compro­misso solidário.
Respeito às diferenças étnicas-econômicas-sociais, reconhecimento e consideração pela
diversidade.
60
Redes Sociais
• Tolerância - capacidade de suportar a presença ou interferên­cia do outro sem
sentimento de ameaça ou invasão.
• Generosidade - demonstração de um clima emocional positi­vo (apoio, carinho,
atenção e “dar” sem exigir retorno).
Na figura abaixo, é apresentado um exemplo da articulação das carac­terísticas de rede.
As Redes Sociais e a prevenção do uso de drogas
O uso de drogas tem se revelado um importante problema de saúde pública com
enorme repercussão social e econômica para a socieda­de contemporânea. Não obstante
os esforços do poder público e da sociedade civil na busca de alternativas, o aumento
do consumo e a precocidade com que os jovens vêm experimentando vários tipos de
drogas, alertam especialistas em uma direção comum: é preciso prevenir! Prevenir no
sentido de educar o indivíduo para assumir atitudes responsáveis na identificação e no
manejo de situações de risco que possam ameaçar a opção pela vida.
Essa visão de prevenção enfatiza a adoção da educação não apenas como um
“pacote” cumulativo de informações sobre drogas, mas como um processo contínuo de
aprendizagem voltado ao desenvol­vimento de habilidades psicossociais que permitam
um crescimento social e afetivo equilibrado ao indivíduo.
61
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
A articulação de diferentes pontos da rede social pode otimizar espaços de convivência
positiva que favoreçam a troca de experiências para a identificação de situações de risco
pessoal e possíveis vulnerabilidades sociais, observando que, segundo a Organização
Mundial de Saúde (OMS), são fatores de risco ao uso de drogas:
• ausência de informações adequadas sobre as drogas; insatisfação com a sua
qualidade de vida;
• pouca integração com a família e a sociedade;
• facilidade de acesso às drogas.
A participação comunitária
O impacto da participação em um projeto social transcende o supri­mento de carências,
pois a vivência comunitária é veículo para a am­pliação da visão de mundo, geração de
conhecimentos, exercício da cidadania e transformação social.
Na ação comunitária, a ideologia preponderante é a cooperação, cuja força se dá no
estabelecimento de uma corrente solidária em que cada pessoa é importante na sua
necessidade ou na sua disponibilidade para ajudar.
As soluções participativas mobilizam as ações de responsabilidade par­tilhada, a
formação, o estreitamento de parcerias e a otimização dos re­cursos existentes na
comunidade, possibilitando o desenvolvimento de trabalhos de prevenção do uso de
drogas com os seguintes enfoques:
• prevenção universal: é dirigida à população em geral. Na co­munidade, esse modelo
de prevenção abrange todos os mo­radores ou um grupo como um todo. Por exemplo:
gincana sobre saúde e qualidade de vida com participação de todos os alunos da escola.
• prevenção seletiva: é dirigida a grupos específicos da comu­nidade, com o objetivo
de identificar os fatores de risco as­sociados ao uso de álcool e outras drogas e atuar
de forma a retardar ou impedir o uso e o abuso. Por exemplo: ação de orientação para
estudantes de ensino médio que comumente frequentam festas onde há consumo de
álcool.
• prevenção indicada: planejada para pessoas que já apresen­tam os primeiros sinais
de uso abusivo de álcool e outras dro­gas. Tem por objetivo prevenir a evolução para um
possível quadro de dependência e suas complicações. O enfoque da intervenção deve ser
específico para cada indivíduo ou gru­po e considerar os problemas escolares, de saúde,
familiares e sociais relacionados ao padrão de consumo. Por exemplo: encaminhamento
de usuário para tratamento externo.
62
Redes Sociais
Experiências de trabalho em rede
Existem inúmeras experiências que demonstram ser possível o traba­lho em rede. Você
irá conhecer algumas Instituições, Organizações, Associações, Projetos, dentre outros,
que realizam esses trabalhos com a intenção de solucionar ou amenizar os problemas
causados pelo uso abusivo de álcool e outras drogas.
Associação Lua Nova
A Associação Lua Nova é uma iniciativa não governamental que tem por objetivo a
reinserção social de jovens mães e seus filhos em situa­ção de vulnerabilidade social.
Com sede em Sorocaba (SP), desenvolve ações de geração de renda, trabalho, estudo,
desenvolvimento comu­nitário e cidadania. Tem como missão “resgatar e desenvolver
a auto­estima, a cidadania, o espaço social e a auto sustentabilidade de jovens mães
vulneráveis, facilitando sua inserção como multiplicadoras de um processo de
transformação de comunidades em risco”.
Para que isso ocorra, a ONG desenvolve uma série de programas. A etapa inicial é
dar residência, alimentação, assistência médica, psico­lógica e educacional às jovens e
seus filhos. A etapa seguinte é cha­mada de Lua Crescente, que fomenta o planejamento
da futura “vida em família” e encoraja os primeiros passos para a independência so­
cioeconómica das residentes. Para chegar a essa independência as residentes participam
de Projetos de Geração de Renda e Trabalho, como por exemplo, o Projeto Criando
Arte - que consiste na for­mação de costureiras e criação, desenvolvimento, produção
e venda de bonecas e brindes. O projeto Panificadora Lua Crescente - tra­balha na
produção e venda de biscoitos artesanais, dentre outros. Através de seu trabalho e
métodos terapêuticos empregados, a Associa­ção Lua Nova pretende tornar-se referência
nacional e um centro mul­tiplicador por excelência de programas de inserção social de
jovens/ adolescentes em situações de risco. A Secretaria Nacional de Políticas sobre
Drogas financiou a sistematização dessa metodologia, com o ob­jetivo de disseminá-la
em outros municípios brasileiros.
Terapia Comunitária
Criada pelo psiquiatra e antropólogo Adalberto Barreto, a metodolo­gia da Terapia
Comunitária (TC) tem como fundamento o reconheci­mento dos potenciais e competências
existentes em cada pessoa, nos grupos e na comunidade, para o enfrentamento dos
problemas em seu cotidiano.
Neste sentido, o trabalho comunitário revela-se como uma importan­te estratégia na
otimização dos recursos, pois, visa trabalhar a saúde comunitária em espaços públicos,
com valorização na prevenção e na participação de todos.
63
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
O Brasil já conta com mais de 12 mil terapeutas formados, que são profissionais
das áreas de saúde, educação, social, segurança, além de outros voluntários. A TC tem
sido, também, um instrumento de mo­bilização de recursos locais e de reflexão sobre o
sofrimento de fa­mílias com problemas decorrentes do uso de álcool ou outras drogas por
parte de algum de seus membros, fortalecendo, assim, os vínculos sociais e as redes de
proteção. Nesta perspectiva, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas promoveu
a capacitação de 720 terapeutas comunitários para qualificá-los especificamente no
atendimento das questões relativas ao tema.
Acesse o site no seguinte
endereço eletrônico:
http://www.abratecom.org.br
Central Única das Favelas - CUFA
A Central Única das Favelas - CUFA - é uma organização criada a partir da união
entre jovens de várias favelas do país, que buscavam espaço para expressar atitudes,
questionamentos ou simplesmente sua vonta­de de viver.
A CUFA promove atividades nas áreas de educação, lazer, esportes, cultura, cidadania.
Como recurso, utiliza graffiti, formação de DJs, break, rap, audiovisual, basquete
de rua, literatura, entre outros. O Hip Hop é a principal forma de expressão da CUFA
e serve como fer­ramenta de integração e inclusão social. A Central produz, distribui
e veicula a cultura Hip Hop através de publicações, discos, vídeos, programas de
rádio, shows, concursos, festivais de música, cinema, oficinas de arte, exposições,
debates e seminários. A equipe CUFA está presente nos 26 estados da União e no
Distrito Federal. É compos­ta, em grande parte, por jovens formados nas oficinas de
capacitação e profissionalização das bases da instituição, oriundos das camadas me­nos
favorecidas da sociedade e que atuam em rede com as comunida­des locais.
Para obter maiores informações sobre a CUFA acesse o
seguinte endereço: http://www.cufa.org.br
64
Redes Sociais
Conheça outros Projetos de trabalho em Rede
• Projeto Pracatum
A Associação Pracatum Ação Social foi fundada em 1994 pelo músico Carlinhos
Brown com o objetivo de desenvolver um trabalho fun­damentado nos temas educação
e cultura, mobilização social e ur­banização. A missão da associação é a melhoria da
qualidade de vida dos moradores da comunidade do Candeal (Salvador - BA), através do
desenvolvimento comunitário, saneamento básico e programas educa­cionais e culturais.
As iniciativas sociais incluem questões de responsa­bilidade social e inserção dos jovens
da comunidade no mercado de trabalho. O lugar é um centro de referência em cursos
de formação profissional em moda, costura, reciclagem, idiomas e oficinas de ca­poeira,
música, dança e de temáticas ligadas à cultura afro-brasileira, além de uma escola infantil.
Informações adicionais sobre este projeto acesse os endereços eletrônicos:
www.carlinhosbrown.com.br
• Projeto AfroReggae
O AfroReggae é uma ONG que também atua como banda musical e tem por objetivo
intervir junto à população afro-brasileira, atuando principalmente na comunidade de
origem de seus membros, Vigário Geral, no Rio de Janeiro. Para tal, foi criado o Núcleo
Comunitário de Cultura que promove atividades de amparo a jovens em situação de
vulnerabilidade, passíveis de envolvimento com a criminalidade. Esses jovens passam
a integrar projetos sociais que envolvem atividades de dança, percussão, futebol,
reciclagem de resíduos e capoeira. No total, o grupo tem mais de 65 Projetos sociais e
atua em todo Brasil e fora dele.
Para maiores informações acesse: http:/www.afroreggae.org.br
• Grupo Cultural Olodum
O grupo Olodum da Bahia possui uma Escola Criativa que desenvolve uma série de
cursos, tais como: oficina de mamulengos, dança, teatro, percussão, dicção e postura de
voz, reforço escolar, iniciação musical, História e Português. Na área de saúde, o projeto
Pró Saúde objetiva educar e informar a população sobre a prevenção de doenças sexual­
mente transmissíveis. O grupo realiza ainda campanhas de limpeza urbana, que visam
manter a comunidade limpa, assim como o reapro­veitamento de parte do lixo como
material reciclável.
Para maiores informações acesse: http://www.facom.ufba.br/com112/olodum_e_timbalada/olodum_
index.htm
65
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
• Programa Social da Mangueira
O Programa Social da Mangueira reúne um conjunto de ações que atendem às áreas
de Esporte, Saúde, Educação para o Trabalho, Lazer e Cultura. As atividades são voltadas
para pessoas de diversas idades, de crianças a idosos. Atualmente o Complexo Olímpico
atende cerca de 2.500 crianças e adolescentes e ainda se estende ao manter ativida­des
para adultos. O reflexo direto desse trabalho é o baixo índice de criminalidade infantil e
o aumento da escolaridade na comunidade da Mangueira. A Vila Olímpica da Mangueira
foi escolhida pela BBC de Londres como o Melhor Projeto Social da América do Sul.
Maiores informações sobre este programa acesse o endereço eletrônico:
http://www.mangueira. com.br/site/conteudo/ programas_sociais.asp
66
Tratamento
Capítulo 6
Tratamento
67
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
68
Tratamento
Introdução
As primeiras abordagens terapêuticas para o tratamento de dependen­tes químicos
datam do século XIX, embora existam relatos de quadros de alcoolismo desde a
antiguidade. Por isso, ainda hoje, são realizadas pesquisas que buscam avaliar quais
tratamentos realmente funcionam. Nesta Unidade, você vai conhecer tratamentos que
apresentam eficá­cia já demonstrada e estão disponíveis em nosso meio.
Os profissionais que trabalham com usuários de substâncias psicoativas (SPA) precisam,
inicialmente, conhecer os efeitos agudos e crônicos das drogas de abuso, suas formas de
uso, a prevalência e os padrões de uso mais típicos.
Atualmente, considera-se que os indivíduos que apresentam proble­mas com droga
compõem grupos heterogêneos e necessitam de tra­tamentos diferentes.
Isso acontece porque a dependência química resulta da interação de vá­rios aspectos
da vida das pessoas: biológico, psicológico e social. Desse modo, as intervenções devem
ser diferenciadas para cada indivíduo e devem considerar todas as áreas envolvidas.
Assim, torna-se fácil entender porque existem tantos tipos de tratamen­to, mas em
todos eles devem ser considerados alguns fatores, como por exemplo, a motivação
para mudança.
Um modelo conhecido por “estágios de mudança”, descrito, primeira­mente, por
Prochaska e Di Clemente (1983), tem sido bastante discu­tido entre os técnicos que
trabalham com dependência química (DQ). Esse modelo propõe que os usuários de SPA
apresentam “fases de mo­tivação” para o tratamento, e proporciona aos profissionais um
melhor entendimento de suas mudanças de comportamento, 1lapsos e recaídas.
Os estágios de mudança não são necessariamente sequenciais, e os indivíduos
usualmente passam por eles várias vezes durante o trata­mento, em ordens aleatórias. Na
Tabela 1, encontra-se uma descrição sucinta de cada estágio e algumas estratégias que
podem ser aplicadas nos diferentes momentos. Acompanhe.
Lapsos são consumos de curta duração que
se seguem a um período de abstinência,
porém não levam o indivíduo ao
comportamento anterior de uso regular.
1
69
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Tabela 1 - Descrição dos estágios de mudança
Estágio
Descrição
Abordagem
Pré-Contemplação
0 indivíduo não percebe os
prejuízos relacionados ao uso de
substâncias psicoativas. Segue
com o uso e não pensa em parar
nos próximos seis meses
Convidar o indivíduo à reflexão;
evitar confrontação; remover
barreiras ao tratamento.
Contemplação
0 indivíduo percebe os problemas
relacionados ao uso, mas não
toma nenhuma atitude em direção
à abstinência. Pensa em parar
nos próximos seis meses.
Discutir os prós e contras do
uso; desenvolver 1discrepânica
(levando-o a refletir: “É possível
atingir os objetivos que busco na
vida se continuar com o uso?”).
Utiliza SPA, porém já fez uma
tentativa de parar por 24 horas, no
último ano. Pensa em entrar em
abstinência nos próximos 30 dias.
Remover barreiras ao
tratamento, ajudar ativamente e
demonstrar interesse e apoio à
atitude do indivíduo.
Conseguiu parar completamente
com o uso nos últimos seis meses
Implementar o plano terapêutico.
Manutenção
Está em abstinência há mais de
seis meses.
Colaborar na construção de
um novo estilo de vida, mais
responsável e autônomo.
Recaída
Retornou à utilização da droga.
Reavaliar o estágio motivacional
do indivíduo.
Preparação
Ação
Incompatibilidade entre o
uso de drogas e os objetivos
de vida do indivíduo.
1
70
Tratamento
Definições de objetivos de um tratamento para dependência química
Como vimos, muitas vezes os dependentes químicos nem percebem que possuem
problemas relacionados ao uso de substâncias. Assim, o primeiro passo do tratamento é
alcançar um nível de participação e motivação suficiente para manter um tratamento a
médio e longo pra­zo. Em seguida, costuma-se propor três objetivos principais: abstinên­
cia, melhora da qualidade de vida e prevenção de recaídas, descritos a seguir.
Abstinência do uso de substâncias psicoativas
O objetivo final da maioria dos tratamentos é o abandono do uso de SPA (abstinência).
Os elementos necessários para alcançá-lo incluem a aquisição de diferentes habilidades
e comportamentos que permitam evitar seu consumo.
Melhorar a qualidade de vida
Independente de o primeiro objetivo ser alcançado, e dado ao fato de nem sempre
estarem presentes as condições psicológicas e sociais pro­pícias para atingi-lo, é de
especial importância a melhora da qualidade de vida, mesmo que o uso de drogas
não tenha sido interrompido. Para estes indivíduos, deve ser reforçada a adesão ao
tratamento e deve ser proposta uma estratégia de redução de danos, que permita
diminuir as conseqüências negativas do consumo. Quem precisa de tratamento?
Fazem parte desta estratégia, entre outras, a prevenção e o tratamento de do­enças
clínicas (como HIV, hepatites) e psiquiátricas (como depressão, psicose).
Prevenção de recaídas
Os indivíduos que aceitam a abstinência completa como meta devem ser preparados
para a possibilidade de recaídas. É importante que este­jam cientes da natureza crônica e
reincidente da dependência química.
Quem precisa de tratamento
Para responder esta pergunta, é necessária uma avaliação cuidadosa e ampla do
indivíduo. Nesta avaliação, deve-se perguntar sobre as subs­tâncias utilizadas, o tipo
de consumo de cada uma delas (se o uso é experimental, recreacional, abuso ou
dependência); tratamentos ante­riores; comorbidades clínicas e psiquiátricas; história
familiar ; perfil 2psicossocial. Quanto maior a gravidade do consumo, mais o indiví­duo
necessita de tratamento. Indivíduos que apresentam padrões de consumo recreacional
e de abuso, em geral, também se beneficiam de tratamento, sendo que, nesses casos,
apenas o aconselhamento pode ser suficiente.
71
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Avaliando comorbidades psiquiátricas
O uso de drogas pode ser causa e/ou consequência de sintomas psi­quiátricos. Quando
a presença desses sintomas demonstra representar uma doença independente - além do
transtorno por uso de substâncias -, identifica-se um subgrupo de indivíduos chamados
de “indivíduos com diagnóstico duplo” ou “comorbidade”, ou seja, com mais de um
diagnóstico psiquiátrico.
Indivíduos com comorbidade psiquiátrica e uso abusivo de SPA cos­tumam apresentar
maiores dificuldades para aderir ao tratamento e, geralmente, não respondem bem
a abordagens terapêuticas direciona­das a apenas um dos transtornos. Desse modo,
é necessário combinar medicações e modificar as terapias psicossociais, incluindo
abordagens para ambos.
Como escolher o tratamento
Antigamente, havia poucas opções disponíveis (internação, grupo de auto-ajuda e
encaminhamento a especialistas), contudo, pesquisas têm demonstrado que tratamentos
breves, conduzidos por não-especialistas, apresentam resultados significativos e com
baixo custo, de maneira que essas técnicas vêm sendo amplamente difundidas.
As abordagens por não-especialistas são realizadas através de aconselhamento
e intervenções breves (detalhadas a seguir). Porém, indivíduos com dificuldade de
aderência ou pouca melhora com o tratamento breve devem ser encami­nhados a
especialistas como psiquiatras ou psicólogos.
Então, quando se deve encaminhar ao especialista? Quando estiverem presentes as
seguintes características:
1. suspeita de outras doenças psiquiátricas;
2. não melhoraram com os tratamentos anteriores;
3. tiveram múltiplas tentativas de abstinência sem sucesso.
Características como idade, cor, nível social,
financeiro, educacional e cultural, assim como
moradia, tipo de família, entre outros
2
72
Tratamento
Além disso, se o usuário é incapaz de cumprir as mínimas combina­ções, ou se ele
apresenta-se frequentemente intoxicado, provavelmente apresenta um quadro de
dependência grave e necessita ser encaminha­do para algum ambiente que envolva mais
estrutura e segurança - para si e para os técnicos que o atendem- ou seja, deve ser
considerada a internação psiquiátrica. Outra indicação de internação ocorre quando a
agressividade do indivíduo implica riscos para sua integridade física ou para os outros.
Quadro 1 - Indicações de internação
• Condições médicas ou psiquiátricas que requeiram observa­ção constante 3(estados
psicóticos graves, ideias suicidas ou homicidas, debilitação ou abstinência grave).
• Complicações orgânicas devidas ao uso ou cessação do uso da droga.
• Dificuldade para cessar o uso de drogas, apesar dos esforços terapêuticos.
• Ausência de adequado apoio psicossocial que possa facilitar o início da abstinência.
• Necessidade de interromper uma situação externa que refor­ça o uso da droga.
As várias formas de tratamento
O tipo de tratamento a escolher depende da gravidade do uso e dos re­cursos disponíveis
para o encaminhamento. A seguir, vamos descrever brevemente os principais modelos
de tratamento que vêm sendo uti­lizados em nosso meio e que são cientificamente
recomendados. Eles devem ser indicados conforme os critérios previamente
estabelecidos e muitas vezes se constituem em abordagens complementares para um
mesmo indivíduo, de modo que não devem ser vistos como excluden­tes.
Desintoxicação
A desintoxicação pode ser realizada em três níveis com complexidade crescente:
tratamento ambulatorial, internação domiciliar e interna­ção hospitalar.
Em qualquer nível, sempre que necessário, podem ser utilizados medi­camentos para o
alívio dos sintomas (4benzodiazepínicos, antipsicóticos, entre outros).
São estados em que o indivíduo se
distancia da realidade, muitas vezes
ouvindo vozes ou tendo pensamentos
estranhos como de perseguição.
3
Calmantes em geral, que costumam
ser utilizados para insônia e ansiedade.
4
73
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Os objetivos da desintoxicação são:
1. alívio dos sintomas existentes;
2. prevenção do agravamento do quadro (convulsões, por exem­plo);
3. vinculação e engajamento do indivíduo no tratamento.
Grupos de autoajuda
É importante estar familiarizado com programas de auto-ajuda, espe­cialmente, o
dos 512 passos empregados pelos Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos
(NA). Estes programas são muito popu­lares e, segundo as pesquisas, costumam ser bem
sucedidos como pro­gramas de recuperação para os transtornos por uso abusivo de
álcool ou outras drogas.
Os grupos de AA/NA são gratuitos e amplamente disponíveis em todo o País.
Estes programas servem de apoio ao dependente químico, pois se orientam pela
experiência dos demais participantes e pela identifica­ção com eles. Frequentemente,
também, os AA ou NA estimulam uma rede saudável de contato e apoio social. Além
disso, a filosofia dos 12 passos divulga algumas ideias psicológicas e espirituais que
facilitam lidar com as pressões de vida diárias e parecem ajudar alguns depen­dentes a
estabelecer e manter um estilo de vida sóbrio.
Comunidades terapêuticas
As comunidades terapêuticas e as fazendas para tratamento de depen­dentes químicos
disponíveis no nosso meio possuem as mais variadas orientações teóricas e, em geral,
utilizam uma filosofia terapêutica ba­seada em disciplina, trabalho e religião. Esse recurso
deve ser reserva­do para indivíduos que necessitam de um ambiente altamente estru­
turado e para aqueles com necessidade de controle externo (nenhuma capacidade de
manter abstinência sem auxílio). Algumas disponibili­zam atendimento médico e devem
ser preferidas quando houver a pos­sibilidade da indicação de uso de medicação por
comorbidade ou por dependência grave.
Trata-se de uma técnica baseada na filosofia dos
Alcoólicos Anônimos, em que são recomendados 12
princípios básicos para manter a abstinência.
5
74
Tratamento
Tratamentos farmacológicos
O tratamento farmacológico para a dependência química funciona com a prescrição
de medicamentos, por profissionais da área médica, tanto em hospitalizações, para tratar
sintomas de intoxicação e absti­nência, quanto no tratamento ambulatorial.
As estratégias medicamentosas aceitas e eficazes têm como finalidade:
tratar sintomas da intoxicação;
tratar sintomas de abstinência;
substituir o efeito da substância (por exemplo: adesivo de nicotina - Fazer efeito
contrário a nicotina no tratamento do tabagismo);
6
antagonizar os efeitos da droga (como o naltrexone, no trata­mento do alcoolismo);
causar aversão à droga (como o dissulfiram que provoca ver­melhidão facial, dor de
cabeça, palpitação, enjôo e sensação de morte, quando o indivíduo ingere álcool).
Tratamentos psicossociais
Entre os vários tipos de tratamento, os psicossociais são os mais am­plamente utilizados.
Costumam estar disponíveis em diversos níveis do sistema de saúde: em postos de saúde,
em Centros de Atenção Psicos­social - Álcool e Drogas (CAPS-ad), e serviços terciários de
atendimen­to (hospitais gerais). As formas mais aceitas de tratamentos psicosso­ciais são
brevemente descritas a seguir.
Entrevista Motivacional
A Entrevista Motivacional foi desenvolvida por William Müller e co­laboradores, e
postula que a motivação dos indivíduos para uma mu­dança de comportamento pode
ser modificada através de estratégias específicas. A técnica de Entrevista Motivacional
constitui-se de um estilo que evita o confronto direto e promove o questionamento e
o aconselhamento, visando a estimular a mudança do comportamento. Ela prioriza a
autonomia do indivíduo em tomar decisões e é baseada em cinco princípios básicos.
1. Expressar empatia: escutar respeitosamente o indivíduo, tentando compreender o
seu ponto de vista, ainda que não concordando necessariamente com ele.
2. Desenvolver discrepância: conduzir o usuário a visualizar os seus objetivos de vida,
contrastando com o seu comporta­mento atual, para poder criar uma percepção de
incompatibi­lidade entre os atos e os seus objetivos.
75
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
3. Evitar discussões: evitar discussões e confrontações diretas, promovendo reflexões
com eventuais aconselhamentos sobre o tema em questão.
4. Fluir com a resistência: não se deve impor novas visões ou metas, mas convidar o
indivíduo a vislumbrar novas perspec­tivas que lhe são oferecidas.
5. Estimular a autoeficácia: a autoeficácia é a crença do próprio indivíduo na sua
habilidade de executar uma tarefa ou resol­ver um problema e deve sempre ser estimulada.
Aconselhamento
É a intervenção psicossocial mais amplamente utilizada em depen­dência química e
contribui para uma evolução positiva do tratamen­to. Consiste, fundamentalmente,
de apoio, proporcionando estrutura, monitoração, acompanhamento da conduta e
encorajamento da abs­tinência.
Proporciona, também, serviços ou tarefas concretas tais como enca­minhamento para
emprego, serviços médicos e auxílio com questões legais.
O aconselhamento deve ser individualizado, enfatizando o retorno da avaliação
realizada.
Pode ser mínimo (3 minutos), breve (3-10 minutos) ou intensivo (mais de 10 minutos).
Pode ser aplicado por qualquer profissional adequada­mente treinado e apresenta quatro
fases:
Avaliação (identificação do problema).
Aconselhamento (estratégias motivacionais).
Assistência.
Acompanhamento.
Intervenção Breve
A Intervenção Breve é uma técnica mais estruturada que o aconselha­mento. Possui um
formato claro e simples, e também pode ser utiliza­da por qualquer profissional.
Quando tais intervenções são estruturadas em uma até quatro sessões, pro­duzem
um impacto igual ou maior que tratamentos mais extensivos para a dependência de
álcool. Terapias fundamentadas na entrevista motivacional produzem bons resultados no
tratamento e podem ser utilizadas na forma de intervenções breves.
76
Tratamento
As intervenções breves utilizam técnicas comportamentais para alcan­çar a abstinência
ou a moderação do consumo. Ela começa pelo esta­belecimento de uma meta. Em
seguida, desenvolve-se a automonitorização, identificação das situações de risco e
estratégias para evitar o retorno ao padrão de consumo problemático. O espectro de
pro­blemas também determina que se apliquem intervenções mais espe­cializadas para
indivíduos com problemas graves, além de adicionais terapêuticos, como manuais de
auto-ajuda, aumentando a efetividade dos tratamentos.
Terapia Cognítívo Comportamental (TCC) e Prevenção de Recaída
Nesta forma de tratamento, procuram-se corrigir as distorções cogni­tivas (pensamentos
e crenças mal-adaptativas) e os comportamentos que o usuário tem em relação à droga.
A abordagem básica da TCC pode ser resumida em “reconhecer, evitar e criar habilidades
para enfrentar”as situações que favorecem o uso de drogas. As ses­sões seguem uma
estrutura padronizada e os indivíduos têm papel ativo no tratamento.
Após a motivação e a implementação de estratégias para interromper o uso da
droga, surge uma tarefa tão ou mais difícil, que consiste em evitar que o indivíduo
volte a consumi-la. O modelo de “prevenção de recaída” (Marlatt, 1993) incorpora os
aspectos cognitivo comporta­mentais e objetiva treinar as habilidades/estratégias de
enfrentamento de situações de risco, além de promover amplas modificações no estilo
de vida do indivíduo.
Terapia de Grupo
O desenvolvimento da técnica de grupoterapia é uma alternativa para atender um
maior número de pessoas, num menor tempo, e, portanto, com um custo mais baixo.
É considerada uma alternativa viável e tam­bém efetiva. O tratamento em grupo de
dependentes de álcool e de outras drogas vem ocupando um espaço amplo, mas o seu
estudo ain­da é restrito, pois exige uma metodologia de avaliação muito rigorosa.
Terapia de família
A comunicação com os familiares traz amiúde novos dados que podem ter fundamental
importância no esclarecimento diagnóstico e trata­mento do paciente. Quando se
percebe que o conflito familiar interfere diretamente no tratamento, costuma-se indicar
terapia de família.
A terapia de familia objetiva aprimorar a comunicação entre cada um de seus
componentes e abordar a ambivalência de sentimentos. Ela pretende reforçar
positivamente o papel do dependente químico na fa­milia, levando a uma melhor
adaptação no seu funcionamento social.
77
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Redução de Danos
Em Saúde Pública, o conceito de Redução de Danos, já abordado nas Unidades 4 e 5, é
utilizado com a finalidade de prevenir ou reduzir as consequências negativas associadas
a um determinado comportamen­to.
Considerando o tratamento de dependencia química, ele é útil, por exemplo na
redução da transmissão de HIV e hepatites através de programas de troca de seringas,
para usuários de drogas injetáveis.
Você conheceu ou reviu uma ampla gama de conceitos e informações sobre drogas,
passando pelos conceitos básicos como experimentação, abuso, questões cul­turais,
prevenção, redução de danos e tratamento, tudo isso entreme­ado com dados recentes
sobre o uso de drogas no Brasil e no mundo. Para encerrar esta etapa, execute a seguinte
atividade: faça uma breve retrospectiva sobre os assuntos estudados e anote todas as
referên­cias importantes relacionadas à sua comunidade que você lembrou durante
os estudos. Então, acesse o fórum e compartilhe com os co­legas as reflexões que
apareceram durante esse período de estudos. Lembre-se que eles vêm de realidades e
áreas de atuação distintas, então, quanto maior a colaboração, mais rico será o debate.
Também é uma boa oportunidade para tirar alguma dúvida sobre o conteúdo ou solicitar
alguma sugestão de ação direcionada ao seu trabalho de conselheiro.
78
Ambulatório
Capítulo 7
Ambulatório
79
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
80
Ambulatório
Ambulatório de Dependência Química
Marcelo Ribeiro de Araújo
Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD)
Prof. Dr. Ronaldo Ramos Laranjeira
Introdução
As substâncias capazes alterar o funcionamento psíquico são velhas conhecidas da humanidade. A necessidade da experiência com essas aparece nos desenhos neolíticos e nos primeiros escritos da Antigüidade. “O mundo tal qual é – e
não um jardim sem dor e morte, onde nenhum leão massacra, de onde nenhum
lobo leva o cordeiro, onde nenhum enfermo dos olhos pede que alguém lhes
faça doer ainda mais - começa com a ingestão de um vegetal silvestre, tão inofensivo e tentador em aparência como a maçã bíblica.” Há antropólogos que
sugerem que essa planta era psicoativa...
Em meio a rituais religiosos e festas profanas, através do refinamento das pesquisas científicas, em meio à expansão comercial e revoluções culturais, a busca
do paraíso perdido jamais foi esquecida. As substâncias psicoativas se diversificaram e se espalharam. Alguém, obviamente, tinha que ganhar dinheiro com
isso: a tráfico de drogas movimenta anualmente 300 bilhões de dólares ou 10%
da economia mundial. Não é de espantar, assim, que as drogas estejam tão presentes em nosso cotidiano. Excluídos o tabaco e o álcool, é certo que muitos
de vocês já tiveram experiências com tais substâncias ou, com certeza absoluta,
sabem de alguém que já teve.
Mas o que acontece num ambulatório de dependência química não é romântico, tampouco poético. Pensar o dependente como ‘um cara muito louco’ ou
achar que tudo o que verão é como uma aventura intermediana ou praieira, é
a visão de quem foi ao Paraíso, mas voltou... Pensemos em um indivíduo que
81
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
provou da maçã e gostou tanto do Paraíso que viu, que para ali ficar não faz
questão de transformar seu mundo anterior na sucursal do rabudo... Talvez aí
comece nosso papel no tratamento do dependente: ele precisa retornar a realidade dos mortais que perdeu, destruiu ou muitas vezes nem chegou a construir.
Precisa parar um consumo e subir degraus que sequer chegou a arquitetar em
vida. Necessita mais que um médico, psicólogo, terapeuta ocupacional ou enfermeiro: acima de tudo, precisa de um consultor confiável, alguém que olhe para
a sua vida, veja como ela está e lhe ensine a cultivar os frutos que poderá ingerir
quando seu suprimento de frutos proibidos acabarem. Afinal, ninguém consegue viver nesse mundo de estômago vazio...
Definição
A ciência moderna se interessa pela dependência química há pelo menos dois
séculos. Os paradigmas que utilizamos hoje foram construídos na década de
setenta, pela escola inglesa. Afirmam Edwards e Gross (1976):
dependência é uma síndrome
“Uma síndrome é uma formulação clínica descritiva que inicialmente tende a
ser agnóstica quanto a causação ou patologia. (...) A observação clínica revela um
repetido agrupamento de sinais e sintomas em certos bebedores (e usuários de
outras drogas) pesados.”
A síndrome de dependência tem severidade variável
“A síndrome de dependência existe em graus de severidade, e não como um
absoluto categórico (a doença existe ou não).” Essa diferença é extremamente
importante, pois deve-se buscar não um sintoma característico e patognomônico de uma condição clínica, mas sim uma série de sintomas, devendo-se avaliar
não só a sua presença, mas também a intensidade dos sintomas ao longo de
um continuum de gravidade, desde a ausência completa dos sintomas até graus
muito intensos de manifestação. A síndrome pode ser reconhecida por certo
agrupamento de sintomas, embora nem todos presentes ao mesmo tempo. No
entanto, a medida que a síndrome se torna mais grave, todos tendem a aparecer
.
82
Ambulatório
A síndrome de dependência é moldada por outras influências
“Sua apresentação pode ser moldada por influências patoplásticas em vez de
ser concreta e invariável.” Ao contrário do que era proposto anteriormente, vários
tipos de aprendizado estariam presentes no desenvolvimento da síndrome10.
A síndrome de dependência deve ser distinguida conceitualmente dos problemas relacionados a essa
“A dependência significa um relacionamento alterado entre a pessoa e sua forma de beber. Um indivíduo pode começar a beber por muitas razões, e quando
fica dependente muitas dessas razões ainda estão presentes. Mas a dependência oferece agora razões para beber que são supra-adicionadas, e que podem
dominar as razões precedentes para o beber e o beber pesado. A dependência
torna-se um comportamento que se auto mantém.”
Portanto, não basta diagnosticar apenas a síndrome
“Uma abordagem mecanicista ao diagnóstico da dependência é insuficiente.
A tarefa diagnóstica não se completa quando definimos que a dependência está
“presente” ou “ausente”. A habilidade está em ser capaz de reconhecer as sutilezas de sintomatologia que revelarão não apenas se esta condição está lá, mas,
se existe, o grau de seu desenvolvimento. O que também precisamos saber é
como as manifestações da síndrome são moldadas pela personalidade, pelas
influências ambientais ou por forças culturais. É a capacidade de reconhecer e
compreender as variações sobre esses temas o que constitui a verdadeira arte.”
Elementos da síndrome de dependência 22
A síndrome de dependência elaborada por Edwards e Gross são a base dos
critérios diagnósticos dos dois principais códigos psiquiátricos da atualidade: o
CID-10 (OMS) e o DSM-IV (APA) (Quadro 1). São eles:
Estreitamento do repertório
O consumo do bebedor comum é variável: respeita ocasiões, o gosto por certa
bebida e a irregularidade e a variabilidade do uso. O dependente parece au-
83
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
mentar seu repertório nos estágios iniciais, uma vez que busca situações onde
o consumo é facilitado. Conforme a dependência se estabelece, os estímulos
relacionam-se ao alívio ou evitação dos sintomas de abstinência e seu repertório
pessoal torna-se cada vez mais restrito. Bebe a mesma coisa durante o trabalho
ou no fim de semana e a natureza da companhia ou de seu estado de humor
fazem cada vez menos diferença.
Saliência do beber
O avançar da dependência leva o indivíduo priorizar a manutenção do consumo. As reclamações do patrão e de esposa são vistas como falta de compreensão, o dinheiro é preferencialmente gasto com o consumo, em detrimento
da economia doméstica, não encontra tempo para ficar com a família, padrões
morais convencionais são substituídos por súplicas, empréstimos impagáveis ou
contravenções visando ao dinheiro para o consumo.
Aumento da tolerância
É a necessidade de doses crescentes para atingir o efeito experimentado nas
primeiras fases de consumo. Pode haver tolerância cruzada por substância da
mesma classe (p.e. dependentes de álcool também desenvolvem tolerância por
outros depressores, como os barbitúricos e os benzodiazepínicos). Nas fases finais, o indivíduo vai perdendo a tolerância e fica incapacitado com quantidades
de álcool que antes suportaria.
Sintomas de abstinência
Os sintomas de abstinência são mais floridos e evidentes entre os depressores do SNC (álcool, opiáceos, barbitúricos e benzodiazepínicos). No início são
intermitentes e leves, desaparecendo rapidamente, mesmo se o indivíduo não
consumir a substância. Evoluem para quadros floridos, intensos e de extremo
desconforto, sempre que os níveis plasmáticos da substância caem. Quadros
confusionais (delirium) e convulsões aparecem em usuários extremamente graves. Entre os estimulantes e alucinógenos, observa-se um quadro onde predominam os sintomas psíquicos, tais como a ansiedade.
84
Ambulatório
Alívio ou evitação dos sintomas de abstinência pelo aumento da ingestão da
substância
Ao longo do desenvolvimento da síndrome de dependência, o indivíduo
aprende a detectar o aparecimento dos sintomas de abstinência e desenvolve
esquemas cada vez mais rígidos e rituais para antecipá-los. É um bom marcador
de gravidade: assim, aquele que consegue acordar, tomar banho, vestir-se e ler
o jornal antes da primeira dose tem uma dependência menos avançada do que
aquele que precisa de uma dose para conseguir sair da cama.
Percepção subjetiva da compulsão para beber
É percebida pelo paciente como ‘perda de controle’ (“se eu tomar um gole,
não para mais”) e ‘desejo intenso de consumir a substância’ (“estou fissurado por
uma pedra de crack”).
Reinstalação após a abstinência
Um dependente grave, mas abstinente há muito tempo, se começa a beber
novamente, pode ver seus sintomas de abstinência, seus comportamentos evitativos e compulsão para o uso se reinstalaram em poucos dias. O tempo necessário para a reinstalação é proporcional a severidade da síndrome.
Estabelecendo o diagnóstico sindrômico10, 14, 24
dependência e uso nocivo (abuso)
Estabelecer o diagnóstico sindrômico dos transtornos relacionados ao consumo de substâncias é simples e objetivo. Os sinais e sintomas devem ser procurados a partir do que foi descrito na sessão anterior. Para isso, foram elaborados critérios diagnósticos pela Organização Mundial da Saúde (CID-10)14 e pela
American Psychiatric Society (DSM-IV)24, a partir do conceito de síndrome de
dependência.
Peguemos o álcool como exemplo. A Síndrome de Dependência do Álcool traz
consigo a idéia de dependência variando ao longo de um continuum (do con-
85
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
sumo normal à dependência grave) e propõe duas dimensões distintas: [1] uma
relacionada com à psicopatologia do uso e [2] outra enfocando uma série de
problemas decorrentes do uso mal-adaptado. Imaginando essa concepção num
plano cartesiano encontramos no eixo horizontal o comportamento de consumo
e no vertical os problemas a ele relacionados (Figura 1).
86
Ambulatório
No quadrante I, teríamos aquelas situações nas quais, à medida em que o nível de consumo (dependência) aumenta, aumenta também a probabilidade de
desenvolver uma série de problemas (desemprego, separação conjugal, brigas,
acidentes,...). No quadrante II estão aquelas condições onde, apesar do indivíduo não apresentar um comportamento de consumo sugestivo de dependência
(p.e., seu uso não é compulsivo), apresenta problemas sérios relacionados (brigas, acidentes durante a embriaguez,...). No quadrante III estariam os indivíduos
que não apresentam problemas ou dependência em seu consumo de álcool. O
quadrante IV (dependência sem repercussões) é considerado inexistente.
A partir desse esquema, é possível compreender os conceitos de dependência
de substância, já exposta anteriormente, (Quadro 1), e de uso nocivo ou abuso
de substância (Quadro 2). As definições expostas em seguida, foram retiradas do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) 24:
dependência de substância
A característica essencial da dependência de substância (Quadro 1) é a presença de um agrupamento de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos
indicando que o indivíduo continua utilizando uma substância, apesar de problemas significativos relacionados a ela. Existe um padrão de auto-administração
repetida que geralmente resulta em tolerância, abstinência e comportamento
compulsivo de consumo da droga. Um diagnóstico de dependência pode ser
aplicado a qualquer classe de substância, exceto cafeína. Os sintomas de dependência são similares entre as várias categorias de substâncias, mas, para certas
classes, alguns sintomas são menos salientes e, em uns poucos casos, nem todos
os sintomas se manifestam (p.e., não existe síndrome de abstinência para alucinógenos; a fissura é mais evidente entre os estimulantes).
87
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
88
Ambulatório
Uso nocivo ou abuso de substância
A característica essencial é um padrão mal-adaptativo de uso de substância,
manifestado por conseqüências adversas recorrentes e significativas relacionadas ao uso repetido da substância(Quadro 2). Pode haver um fracasso repetido em cumprir obrigações importantes relativas ao seu papel, uso repetido em
situações nas quais isto representa perigo físico, múltiplos problemas legais e
problemas sociais e interpessoais recorrentes. Difere da dependência por não
incluir entre os seus critérios a tolerância, abstinência ou um padrão de uso compulsivo, resumindo-se apenas às conseqüências prejudiciais do uso repetido. Um
diagnóstico de uso nocivo é cancelado pelo de dependência, se o padrão de
consumo pelo indivíduo alguma vez satisfez os critérios para essa.
Esse diagnóstico aplica-se, na maior parte das vezes, apenas às pessoas que
recentemente iniciaram o consumo de alguma substância psicoativa. No entanto, alguns indivíduos continuam apresentando situações adversas relacionadas
ao uso de substâncias por um longo período, sem nunca preencherem critérios
para dependência. A categoria abuso de substância não se aplica à nicotina e à
cafeína.
89
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
90
Ambulatório
A abordagem terapêutica para as situações de abuso e dependência tem algumas diferenças importantes e por isso o tipo de transtorno relacionado ao uso
de substâncias psicoativas deve estar claro antes de qualquer planejamento para
o paciente.
Refinando o diagnóstico 22
Já foi salientado que não basta detectar a síndrome. Essa afirmação está longe de ser uma mera frescura de psiquiatra. Os sinais e sintomas da síndrome
de dependência são claros e objetivos, facilmente detectados numa entrevista,
como qualquer outra patologia clínica, cirúrgica, ortopédica ou ginecológica. Da
mesma forma, não basta diagnosticar uma broncopneumonia e introduzir um
antibiótico a um indivíduo, sem antes saber como andam sua alimentação, sua
qualidade de vida, o tipo de atividade que exerce e o suporte familiar que irá
cuidá-lo em casa. Se não tiver ninguém, é melhor que fique na enfermaria até
melhorar.
Na dependência química, antes de pensarmos em qualquer tratamento devemos saber:
• o tipo de transtorno decorrente do uso de substâncias psicoativas
(dependência, abuso [uso nocivo], uso social)
• os graus de dependência
• a influência da cultura e do meio ambiente
• a influência da personalidade
Alguns outros fatores podem nos auxiliar no deslindamento do caso de alguém que nos procura com um problema de dependência química:
Falamos a mesma língua?
O trabalho clínico depende de estarmos atentos aos significados das palavras
e nuanças das frases que são parcialmente idiossincráticas de cada paciente,
mas em geral refletem a cultura. Devemos estar dispostos a examinar as frases
repetidamente, até haver um lampejo de mútua compreensão. Termos médicos
utilizados pelos pacientes devem ter seus significados por nós investigados. O
uso de termos técnicos com os mesmos, sem explicar-lhes o que significam,
pode também travar a interlocução.
91
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Chegada e intenções pessoais
Entender os motivos específicos que trouxeram o paciente até um serviço de
tratamento de dependência química ajuda-nos na escolha da melhor abordagem para o caso. É preciso saber porque o paciente veio. Foi uma escolha sua, ou
pressão da família? Quem marcou a consulta? Quem descobriu a existência do
nosso serviço? Que tipo de ajuda ele vem esperando? O que mais lhe incomoda
atualmente no seu consumo de substâncias? Dados simples, porém fundamentais em nossa investigação inicial.
Início e tempo de consumo
É bem estabelecido que quanto mais cedo o início do consumo, pior o prognóstico para quem se tornou dependente. Adolescentes que começam a abusar
de álcool e outras drogas, em detrimento de sua formação acadêmica e do seu
desenvolvimento como membro de uma sociedade multifacetada e ampla, terão
mais dificuldades para se adaptarem à abstinência e às exigências sociais e do
mercado de trabalho, quando aos 27 anos, apenas com o primeiro grau, com sua
credibilidade junto à família aos frangalhos e sem amigos, resolvem parar de consumir álcool e cocaína. Já os indivíduos que começaram a utilizar substâncias de
um modo mais problemático após a terceira década de vida e tiveram a oportunidade de estudar, casar, encontrar um bom emprego, terão um ambiente mais suportivo para alcançarem a abstinência. São pessoas que exercitaram suas funções
psíquicas no momento mais importante do seu desenvolvimento: a adolescência.
Possuem, assim, recursos cognitivos e afetivos para lidar com a dependência.
Conseqüências e complicações do consumo
Quando um dependente químico se nos apresenta, é provável que apresente
complicações em todas as esferas de sua vida: biológica, interpessoal, psicossocial e mental.
• biológica
Pode chegar até o tratamento com sintomas de abstinência e fissura, além de
complicações clínicas, tais como desnutrição, descompensações metabólicas e
de doenças prévias (diabetes, HAS), fraturas e lesões decorrentes do consumo,
92
Ambulatório
de acidentes ou brigas, estados crônicos adquiridos no decorrer da dependência
(hepatopatias, estados demenciais, HIV).
• interpessoal
Postura resistente ao tratamento, negando e racionalizando seus problemas
com a família, com o trabalho e seus relacionamentos sociais, os quais abandonou ou negligenciou para consumir substâncias químicas.
• psicossocial
Pode haver problemas tais como remorso, culpa, conflitos morais, sensação
de perda vocacional para o trabalho e das habilidades para conviver com outras
pessoas.
• mental
É de fundamental importância entendermos o papel das comorbidades. Comorbidade é a ocorrência simultânea de duas ou mais patologias num mesmo
indivíduo. Dentro das etiologias possíveis na gênese da dependência química,
o modelo da automedicação, propõe o consumo de substância visando ao alívio de doenças psiquiátricas que já possuída. Pacientes ansiosos e depressivos,
tendem a utilizar o álcool como forma de alívio. Hiperativos têm afinidade por
estimulantes. No caminho inverso, o uso crônico de substâncias pode levar a
uma doença psiquiátrica secundária. Por isso, além da preocupação com o tratamento da dependência, deve-se atentar para a necessidade de tratarmos uma
segunda patologia psiquiátrica. Pacientes com comorbidade têm maior tendência a procurar auxílio especializado, aparecendo em quase metade dos pacientes
atendidos nesses centros.
Avaliação da coerência do quadro
O quadro que emerge da experiência de uma síndrome de dependência de um
paciente deve ser coerente. Se um elemento da síndrome está estabelecido, um
outro não deverá estar ausente: se um paciente relata estar sofrendo de graves
tremores matinais, mas sua ingestão diária é de duas doses de pinga, a história
talvez não esteja bem contada. O paciente deve estar relatando que bebe menos
do que realmente bebe, ou tais tremores possuem origem em outra patologia.
Tais incoerências devem alertar a pessoa que faz o diagnóstico a investigar o
caso cuidadosamente.
93
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Entrevista motivacional 21
Não basta investigar, tem que motivar
É fundamental obtermos um perfil do dependente que se nos apresenta num
ambulatório. O diagnóstico clínico é objetivo: basta identificar os critérios do
CID-10 ou DSM-IV. Além disso, os critérios devem ser quantificados (graus de
severidade) e contextualizados (influências da cultura e da personalidade). A história deve ter coerência interna. O início e a evolução da doença precisam estar
claros. As intenções e os motivos que trouxeram o dependente até nós são nosso ponto de partida.
Mas a entrevista precisa ter um estilo. No caso da dependência química, a
entrevista motivacional é um recurso de suma importância: facilita a obtenção
de informações, reforça o vínculo e o engajamento do paciente e já é por si só
um tratamento.
Até os anos 80, os pacientes que abandonavam o tratamento precocemente,
continuavam a consumir substâncias durante o tratamento ou não se engajavam
aos requerimentos exigidos pela terapia, eram rotulados como resistentes, negadores de sua doença ou desmotivados. Nessa época, o psiquiatra americano
William Miller, elaborou um método de abordagem a partir de algumas evidências científicas:
Existe um movimento natural para a mudança
A maioria dos dependentes de tabaco abandonam a dependência sem o auxílio de profissionais da saúde. Frente às primeiras conseqüências do uso nocivo do álcool, a maioria dos indivíduos adotam padrões sociais ou abandonam
espontaneamente o consumo. Boa parte dos usuários de drogas pesadas consegue abandonar o uso com terapias alternativas e um bom suporte familiar. A
maioria dos fumantes abandona o tabagismo por si só, sem qualquer acompanhamento profissional Portanto, se há a tendência natural para a mudança, cabe
aos terapeutas potencializa-la.
Intervenções breves funcionam
94
Ambulatório
Estudos da OMS mostram que uma pequena entrevista de aconselhamento de
5 a 15 minutos é capaz de suprimir o beber pesado. Abordagens breves reduzem
com a mesma eficácia o consumo de substâncias, se comparadas aos tratamentos longos.
Há elementos fundamentais nas intervenções breves (FRAMES)
Tais elementos podem ser abreviados na palavra FRAMES (frame of mind =
disposição de ânimo).
Feedback (devolução): devolver ao paciente o conteúdo do seu discurso, com
o intuito de organizá-lo e buscar seu posicionamento frente ao que diz. Devese sempre evitar o confronto ou emitir opiniões pessoais sobre o problema do
paciente.
Responsibility (responsabilidade): enfatizar a responsabilidade do paciente por
sua mudança, mas também sua liberdade de escolha.
Advice (aconselhamento): recomendações claras ou conselhos sobre a necessidade de mudança, feitos de maneira suportiva, ao invés de autoritária.
Menu (opções): diversas estratégias devem ser oferecidas ao paciente, provendo-lhe opções dentre as quais escolherá a que lhe pareça a mais adequada.
Empathy (empatia): A empatia, a reflexão, a cordialidade e o suporte, suscitam
um
melhor desfecho do que o confronto.
Self-efficacy (auto-eficácia): o reforço positivo das capacidades de mudança
presentes no paciente, aumentam suas expectativas de sucesso.
O efeito-terapeuta
O tratamento da dependência química varia substancialmente dependendo
do terapeuta que a maneja. Afirma Miller: o comportamento do terapeuta é
parte determinante para motivar o paciente para a mudança. Tal motivação é
dependente da relação interpessoal entre ambos. Vencer a resistência e a am-
95
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
bivalência é um problema e uma habilidade do terapeuta. Se o tratamento não
está funcionando, provavelmente é sinal que a estratégia de abordagem precisa
ser trocada.
O engajamento do paciente
Quanto mais tempo permanecer num tratamento, melhor o prognóstico. Mas
além disso, o paciente deve fazer coisas para que melhore (p.e. comparecer às
sessões, tomar os medicamentos, modificar pequenos hábitos propostos em terapia). A empatia e a crença mútua de sucesso melhoram o desfecho do tratamento.
A motivação para a mudança é maleável
Idéias tais como a negação é um traço da personalidade do dependente, a
motivação tem que estar presente desde o início do tratamento e que o nãoengamento é uma questão de caráter caíram em desuso. A nova ordem: [1] a
motivação é maleável, desencadeada, desenvolvida e mantida dentro do interrelacionamento do paciente e seu terapeuta, [2] a resistência é evocada por uma
abordagem inadequada, [3] o não-engamento é sinal de ambivalência, que faz
parte do processo de mudança.
Existem estágios de mudança
Esse modelo teórico desenvolvido por Prochaska e DiClemente (1986) é de
grande importância para que nos situemos na escolha da melhor abordagem
para cada paciente. Para ambos, a escolha da intervenção deve respeitar o estágio de motivação do paciente. São seis os estágios:
Pré-contemplação
Nesse estágio o indivíduo não considera a mudança, provavelmente por não
ver um problema no seu consumo de substâncias.
contemplação: consegue analisar ambivalentemente a necessidade de mudança e a vontade de permanecer consumindo substâncias, provavelmente pesando
os prós e contras de ambos.
96
Ambulatório
Preparação
Já considera a mudança necessária e está se preparando para ver como poderá
fazê-la.
Ação
Começa a implementar o processo de mudança (abstinência).
manutenção
Se envolve em estratégias que visem a mantê-lo abstinente.
Recaída
É parte normal do processo de mudança. Menos de 5% dos pacientes nunca
recaem após iniciarem o processo de mudança e mais de 70% recaem antes do 3
mês de abstinência. Retornam a algum dos estágios anteriores, para novamente
evoluírem rumo à mudança. Não é o retorno à estaca zero, tampouco motivo
para repreensões ou culpa. É um momento de aprendizado, visando a evitar ou
dificultar recaídas futuras.
A entrevista motivacional
Criada originalmente como um prelúdio para o tratamento, foi aos poucos
fazendo-se presente em todos os estágios do mesmo. Possui cinco princípios
básicos:
• Expressar empatia: “paradoxalmente, a aceitação facilita a mudança”
• desenvolver discrepância: “o consumo de substâncias é compatível com seus
sonhos?”
• Evitar discussão: “o confronto gera defesa e piora o prognóstico de mudança”
• Lidar com a resistência: “a resistência é um convite para novas perspectivas”
97
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
• Suportar a auto-eficácia: “acreditar com otimismo realista no paciente e sua
mudança”
A doença 22
Objetivando-a para melhor trata-la
O alcoolismo é a doença psiquiátrica mais comum e a segunda em termos gerais. Atinge quase 15% da população e está presente em cerca de ¼ dos pacientes que procuram os hospitais gerais por outros motivos. Em 50% dos acidentes
automobilísticos houve consumo prévio da substância. Mas qual a origem da
dependência? Provém de um comportamento intencional ou é o resultado de
um mau hábito? O modelo de doença atual, recusa ambas.
No cerne da patologia, reside um princípio fundamental: a dependência química é uma doença física. Não é um resultado final, tampouco um sintoma de outra
doença de base, mas sim uma doença primária, crônica e progressiva.
Disfunções biológicas e comportamentais
Dois modelos procuram explicar a fisiopatologia da dependência: disfunção
biológica e comportamento de consumo. O consumo continuado de qualquer
substância provoca neuroadaptações, que serão responsáveis pelo aparecimento de comportamentos específicos durante o uso e de sintomas físicos e psíquicos após a abstinência. Tais adaptações resultam do bombardeamento excessivo
do SNC por substâncias químicas, que usurpam o funcionamento de sistemas de
neurotransmissão fundamentais. A dependência química é uma doença psíquica
que marcadamente prejudica a habilidade pessoal em controlar sua busca por
substâncias psicoativas. Tais alterações resultam em um comportamento que vai
do abuso à dependência.
Mas se a dependência resulta de neuroadaptações, permanece a questão sobre a predisposição individual variável para tornar-se dependente. O uso continuado é capaz de gerar dependência em qualquer indivíduo. O uso de morfina
em pacientes acometidos por quadros álgicos crônicos e intensos causa dependência nesses indivíduos. Parece, porém, que alguns indivíduos são particularmente predispostos [1] à procura ou ingestão de substâncias químicas e/ou [2] à
98
Ambulatório
aquisição de neuroadaptação secundária ao uso.
A genética da dependência
Tem sido hipotetizado que a dependência química é o produto final de processos geneticamente interligados que afetam o desenvolvimento do cérebro
e resultam em comportamentos específicos, tais como hiperatividade, ansiedade e tensão. Em estágios iniciais da doença, o consumo de substância traria
alívio para essas disfunções. Portanto, indivíduos com uma disfunção cerebral
geneticamente determinada experimentariam as substâncias psicoativas de um
modo diferente dos não-dependentes, e por isso seriam predispostos ao uso.
Um exemplo disso é a impulsividade, tão comum nos dependentes. Apesar de
aparecer secundariamente em quase todos eles, alguns indivíduos têm uma natureza impulsiva, decorrente de defeitos no sistema serotoninérgico, cujo o consumo de álcool, por exemplo, lhe traz um alívio inicial, para exacerba-lo quando
a síndrome de dependência está bem estabelecida.
A multifatorialidade
Mas a etiologia da dependência química não pode ser reduzida a alguns fatores. Como regra, continua ser vista como uma doença multifatorial, que envolve a cultura, a hereditariedade, fatores sócio-econômicos e ambientais. Se um
dependente grave de cocaína naufragasse numa ilha deserta, seu problema de
dependência estaria resolvido. A facilidade em se obter a substância é um fator
influente. A proibição religiosa para o consumo de álcool no mundo árabe impediu que esse hábito se espalhasse por esses países ou comunidades. Famílias
onde o pai ou a mãe são dependentes de álcool, mas que conseguem manter
uma estrutura de convívio minimamente harmoniosa (almoçam juntos, está unida durante as festas tradicionais do ano, relaciona-se socialmente com outras
famílias e pessoas,...) têm uma incidência significativamente menor de dependência química entre seus filhos, do que aquelas visivelmente desestruturadas.
Portanto, há sementes da dependência em maior ou menor grau em muitos
indivíduos. Precisam no entanto, de cultivo (estímulos) para que possam se desenvolver e tornarem-se uma entidade nosológica autônoma. Há um processo.
É importante que digamos ao paciente que possui um problema que surgiu e
se estruturou decorrente a alterações físicas e por isso é tratável. Depende, no
99
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
entanto, da sua responsabilidade em modificar comportamentos e situações que
estimulam a manutenção de tais neuroadaptações.
Substância per se
É óbvio que a substância psicoativa tem o seu papel na gênese da dependência. Foi capaz de produzir uma resposta satisfatória (reforço positivo) a um
funcionamento cerebral prévio e estava disponível e culturalmente colocada
dentro de uma determinada comunidade. Neurobiologicamente, a capacidade
de uma substância causar dependência provém de sua natureza provocadora
de relaxamento, euforia e bem-estar. Os estimulantes (cocaína, anfetaminas, nicotina e cafeína), em graus variados, atuam dentro de um sistema de natureza
predominantemente dopaminérgica conhecido por sistema de recompensa. Tal
sistema é ativado quando nos vemos em situações prazerosas, constituindo-se
num importante sistema de autopreservação. Quando estimulado pelo consumo
de cocaína, um comportamento de busca repetida por essa substância é ativado.
O sistema opióide também participa desse sistema, além de ser o responsável
pelos efeitos sedativos, analgésicos e de bem-estar procurados pelos dependentes de opiáceos. Aliás, o sistema opióide parece estar envolvido na dependência
dos principais depressores do SNC. Os benzodiazepínicos possuem um sistema
endógeno de receptores no SNC, responsável pelo surgimento de neuroadaptações e de dependência por essas substâncias.
A via de administração, o início, a duração, a qualidade e a intensidade do
efeito produzido também interferem para o surgimento da dependência. O crack
gera dependência com muito mais facilidade do que a forma refinada (inalada).
Apesar de não passarem de apresentações diferentes da cocaína, o crack tem
absorção pulmonar, e por isso, um início de ação imediato, com efeitos estimulantes e eufóricos intensos e de curta duração, fazendo o usuário repetir o
consumo com grande freqüência, muitas vezes visando a antecipação da fissura,
que aparece minutos após a última fumada. Já a forma refinada, absorvida pela
circulação da mucosa nasal, é lentamente captada, leva até 15 minutos para atingir seu pico máximo de ação, que ainda assim é bem menos intenso do que o
produzido pelo crack ou pela administração endovenosa. A duração dos efeitos
é maior, estimulando menos o indivíduo a utiliza-la a cada cinco minutos, como
é observado no crack.
100
Ambulatório
Manutenção da doença
Em adição às propriedades das substâncias reforçadoras do uso, a dependência é mantida pelo surgimento de um elaborado sistema de defesa que essencialmente nega a severidade do consumo ou o comportamento ligado a esse
e suas conseqüências. Tal sistema tende a minimizar o volume de substâncias
consumidas e racionalizar problemas nos quais o dependente se vê envolvido.
Intimidação, distanciamento hostil, manipulação e comportamento de oposição
são alguns dos métodos utilizados para bloquear o acesso terapêutico e manter
o consumo. O sistema de defesa protege o paciente da sua realidade e mascara
as conseqüências do uso de substâncias químicas em sua vida.
Há fatores importantes para a manutenção do consumo:
• fatores psicológicos idiossincráticos
Do ponto de vista fisiológico, há uma organização por parte do paciente para
evitar sintomas de abstinência e fissura. Mas se só isso houvesse, um tratamento de desintoxicação resolveria o problema. Há também uma incapacidade dos
mesmos de experimentarem situações de prazer e recompensa sem substâncias
químicas. As alterações neurobiológicas levam a perda do controle, que consiste
na capacidade de escolher e predizer quando e onde começar e a hora de parar.
Esse é um marcador fundamental no diagnóstico da dependência.
• fatores comportamentais e ambientais
Além dos estímulos internos, os estímulos ambientais são importantes mantenedores da dependência. Nas fases iniciais dos processos de motivação, os pacientes tentem a valoriza-los pouco (“se eu for a um bar não vou ter vontade de
beber”) ou caracteriza-los como uma causa inevitável de recaída (“encontrei um
amigo e aí não teve jeito”). Entender quais são os estímulos mais importantes,
mapea-los e procurar um distanciamento nas fases iniciais é muito importante.
• sistemas sociais originados pela dependência
O dependente químico criou fama e deitou na cama... A partir do seu uso e das
101
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
conseqüências que gerou, uma série de defesas, ressentimentos e desconfianças
são estruturadas por familiares e amigos. O dependente em abstinência recente
ou negando sua condição toma ofensivamente tais comportamentos e não raro
afirmam que recaíram para “dar uma lição na esposa que desconfiou por ter
chegado em casa hora atrasado”, “ou para se vingar da mãe que mexeu em suas
gavetas a procura de drogas”. Uma abordagem familiar e social são necessárias
se tais situações são evidentes.
Tratamento 21,22,23
Do que dispomos
Temos um dependente químico que procurou um serviço médico especializado. Entrevistando-o, vimos que possui critérios para uma síndrome de dependência, numa certa severidade, incluída em e moldada por seu contexto sociocultural e pessoal. Tal condição acarretou-lhe problemas físicos, psicológicos,
interpessoais e sociais. Ele chega com um determinado grau de motivação para
a mudança, mas com diversos fatores biológicos, psicológicos e ambientais que
o estimulam a manter o consumo, que lhe geram indecisão e ambivalência.
Sem esse perfil bem compreendido, o tratamento é inviável. O perfil determina
a estratégia de tratamento que escolheremos. Não vamos propor a um paciente
que fique em casa e evite situações de risco, se ele acha que não há problema
algum em consumir cocaína. O tratamento indicado seria motiva-lo e procurar
mantê-lo no tratamento, fazendo-o entender melhor a sua condição. Deve ser
encaminhado para outras especialidades caso haja problemas clínicos associados. Comorbidades devem ser tratadas.
Tudo isso deve ocorrer em um ambiente de empatia, livre de confrontos e
discussões desnecessárias, onde o cotidiano do paciente poderá ser entendido
e organizado e seus progressos monitorados e elogiados realisticamente. Muito
do que se pode conseguir depende das qualidades centrais, não-verbalizadas,
mas tangíveis do próprio relacionamento: “O que realmente ajudou a superar
aquela fase foi essa enfermeira que parecia ter fé em mim. Ela acreditava que eu
era capaz e eu não podia decepciona-la. Ela sempre tinha tempo para me ouvir.”
Com isso percebemos que o tratamento da dependência química se inicia logo
na primeira entrevista.
102
Ambulatório
I. ATENTANDO PARA O RELACIONAMENTO 22
o relacionamento entre o paciente e o terapeuta é fundamental para o sucesso
do tratamento proposto e a aquisição de ganhos pelo paciente.
o terapeuta deve ter a capacidade de demonstrar empatia pelo paciente e seus
problemas.
o terapeuta deve reforçar as expectativas que o paciente deseja atingir, ao invés de dirigir ou tomar para si responsabilidades reservadas a esse.
Atribuir valor e dar esperança aos maus sentimentos e expectativas do paciente.
II. ATENTANDO PARA OS PRINCÍPIOS GERAIS 22
Continuidade
Quanto maior o tempo permanece no tratamento, melhores as chances de
mudança. A existência de tratamentos prévios não pode ser analisado de forma
isolada: a presença de uma longa história de tratamentos é um sinal de mau
prognóstico e geralmente associada a complicações graves decorrentes do uso:
carreira profissional inexpressiva, atividades ilegais, dentre outras. Por outro
lado, outros pacientes trazem consigo os benefícios dos tratamentos pregressos
e utilizam-nos, melhorando seu prognóstico no tratamento vigente.
Tanto o paciente como o terapeuta devem manter um senso de progresso e
propósito, e evitar a confusão e a perda dos objetivos. A recuperação presume a
idéia de direção. Isso pode ser obtido de várias maneiras:
• Utilizar a formulação inicial e o estabelecimento dos objetivos
A partir do perfil do paciente e do que ambos entenderam ser relevante para
o tratamento que se inicia, objetivos claros e simples devem ser traçados de comum acordo, respeitando a condição atual do paciente. Uma conduta bastante
utilizada nas primeiras sessões é a experiência da abstinência. Propomos que se
faça uma internação domiciliar, com saídas restritas e sempre acompanhadas até
a sessão seguinte, quando esse período será discutido entre o paciente e seu
terapeuta.
103
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
• Enfatizar o que foi atingido
Em cada sessão o terapeuta deve ajudar o paciente a identificar o que foi
conquistado desde o último encontro e assim reforçar o senso de realização
do paciente – por exemplo, tantos dias de abstinência, uma situação difícil bem
manejada, o início de um novo emprego, uma saída com a família, ou novos
aspectos do auto-entendimento.
• Estabelecer a próxima tarefa a curto prazo
A sessão também deve identificar os próximos passos, com o paciente comprometendo-se a tenta-los. Não se deve trabalhar com generalidades: “buscar
novas experiências”; mas sim, trabalhar com coisas objetivas: “conheço um curso
de cerâmica que pode lhe interessar, o que você acha?” ou “então chegamos a
conclusão que enquanto não arrumar suas gavetas, não localizará todos os documentos de que necessita, que tal organiza-las essa semana?”
• Manter o olho num futuro mais a longo prazo
É importante que o paciente entenda e acredite que o mais importante no
momento é o tratamento da sua dependência. Sem esse, seus sonhos futuros
estão seriamente ameaçados. Nos primeiros dias de abstinência, porém, um turbilhão de planos e desejos lhes toma de assalto. Querem fazer cursos, viagens,
comprar coisas e assumir responsabilidades em casa. Parece que o problema da
dependência é coisa do passado.
É importante pontuar e elogiar essa iniciativa, mas também colocar-lhes que
a dependência é uma doença crônica, cuja a recuperação é marcada por armadilhas inusitadas, que os fazem recair e abandonar tudo o que conquistaram. Aguardar mais algumas semanas ou escolher apenas uma atividade ajuda
o paciente a se situar em seu problema e lhes traz alívio, uma vez que muitas
vezes nem fazem idéia do tamanho e da responsabilidade que tais escolhas lhes
acarretariam.
104
Ambulatório
Monitorar o progresso
Implícita na idéia de compromisso está a expectativa de que esse será cumprido, mas o processo só funciona se o terapeuta conferir o que foi combinado. É
útil para o paciente sentir que o seu progresso está sendo monitorado, e relatórios periódicos feitos ao terapeuta podem ser complementados por um elemento de automonitoração. Combinar uma tarefa e esquecer de conferi-la na sessão
seguinte pode ser interpretado pelo paciente como sinal de desdém em relação
ao seu esforço para cumpri-la.
III. ATENTANDO PARA O TRABALHO TERAPÊUTICO 22
Trabalhar o consumo problemático
Graus de motivação e entrevista motivacional
De acordo com o grau de motivação em que se encontra o paciente, o trabalho
terá significados diferentes. Nessa fase é necessário fazê-lo avançar no espiral da
motivação:
Pacientes nas fases iniciais de motivação (pré-contemplação e contemplação),
onde a ambivalência é ainda pronunciada, estão propensos a comportamentos
de negação e resistência, não cooperando e negligenciando as metas propostas.
A utilização da entrevista motivacional e dos FRAMES são úteis nessa fase da
doença. Avaliarmos os prós e os contras do consumo e da abstinência também
são úteis para elucidar com o paciente seu grau de motivação e clarificar para
esse o porquê da necessidade de mudança.
Pacientes prontos para a mudança (preparação, ação e manutenção) beneficiam-se mais de abordagens orientadas para a ação, focalizadas no conhecimento de sua doença e hábitos ligados ao consumo e recaídas, bem como no
desenvolvimento de novas habilidades e estratégias de mudança. É sempre bom
105
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
lembrar que a entrevista motivacional deve ser sempre retomada, mesmo em estágios avançados de manutenção da abstinência, quando sinais de ambivalência
se manifestarem.
Ênfase na doença
Quando o paciente abandonou o consumo é importante trabalhar diretamente o problema com a substância utilizada. Esse é um momento de consolidação
e não de relaxamento. O modelo da doença deve ser revisado e reforçado para
o paciente, bem como sua responsabilidade em sua cura. A ambivalência nunca
deve ser esquecida, mas sempre trabalhada.
Mapear o cotidiano
É importante centrar-se em questões tais como a intensidade em que o paciente pensa sobre as substâncias ou se sente desejo de consumi-las, os estímulos e as circunstâncias que deflagram estas experiências subjetivas, e as maneiras
pelas quais ele lida com estes sentimentos. É importante ensinar aos pacientes
a pensar nesses termos e a desenvolver estratégias que serão empregadas em
situações difíceis. Na maioria das vezes, as explicações para a recaída são vagas
e simples. O paciente sequer percebe que por detrás de ações inocentes há uma
intencionalidade para recair. São as atitudes aparentemente irrelevantes. A proposta de que faça um diário, no qual colocará os momentos do dia, as situações
e os locais que lhe fizeram sentir vontade de usar, o que pensou sobre isso e
como agiu, são úteis para que estratégias eficazes de evitação sejam estabelecidas. Evitação não é uma atitude covarde. Muitas vezes por pressão de grupo,
acha que deve se testar, expondo-se a situações de risco. Deve-se conversar com
ele e tentar elucidar se isso não é apenas mais uma artimanha de sua vontade
de recair.
Saúde mental e farmacoterapia
O alívio dos sinais e sintomas de abstinência e fissura, o tratamento de comorbidades associadas, além da melhora na aderência ao tratamento são metas da
farmacoterapia, importantes no processo geral de desintoxicação e manutenção
106
Ambulatório
da abstinência. Ausentes o desconforto físico e psíquico, aumenta a disponibilidade do indivíduo para focalizar e vivenciar conflitos internos e externos, que
o deixa vulnerável e predisposto a soluciona-los através do uso de substâncias
psicoativas.
Os pacientes freqüentemente trarão problemas relacionados com seus “nervos”: ansiedade, sintomas fóbicos, irritabilidade, depressão e insônia. Durante
as primeiras semanas, ou meses, tais sintomas podem estar relacionados à abstinência e tendem a melhorar espontaneamente. Mas pode ser que o paciente
seja uma pessoa realmente ansiosa e irritável e durante anos tais características
foram encobertas pelo uso de substâncias. O paciente deve receber uma orientação otimista (vai melhorar ao longo da abstinência) e realista (é necessário
lidar com tais sentimentos, como parte da natureza humana). Há fatores causais
que podem ser trabalhados (dívidas, desentendimentos,...) e estratégias simples
que podem ser introduzidas (esporte, música, telefonemas para amigos...).
Abordagens medicamentosas podem ser utilizadas, mas infelizmente não há
um tratamento consensual. Vale a experiência do profissional no manejo e na
combinação dos fármacos que mostram alguma utilidade para esses pacientes.
O alcance esperado pela farmacoterapia nessa fase são o alívio de sintomas ansiosos, da impulsividade, da irritabilidade, da insônia e da depressão. Há abordagens de substituição, como a utilização de metadona no tratamento da dependência por opiáceos, ou ainda medicamentos capazes de melhorar o desejo de
consumir a substância, tais como o naltrexone (álcool) e a bupropiona (tabaco).
Quando há presença de comorbidade, a segunda patologia deve ser tratada
normalmente, como uma entidade nosológica independente. Os fármacos atualmente utilizados no tratamento da dependência química estão detalhados nos
capítulos referentes a cada substância.
Ajustamento social e familiar
É preciso discutir e monitorar uma série de problemas à medida que o paciente
trabalha para atingir as metas combinadas. Se o paciente não os trouxer espontaneamente, é bom que o terapeuta indague ao menos em termos genéricos, o
que está acontecendo na família, no emprego (ou em sua procura) e como tem
passado seu tempo livre. Problemas financeiros, de moradia e legais também
107
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
merecem ser averiguados. O terapeuta precisa estar interessado em todos os
aspectos da vida do paciente e com ele buscar soluções para esses.
Saúde física
O uso de substâncias químicas está associada à doenças clínicas, discutidas nos
capítulos específicos para cada substância. Tais complicações requerem atenção
e encaminhamento. O terapeuta não deve esquecer de monitorar junto com o
paciente o andamento desses seguimentos. O bem-estar físico redescoberto é
uma das melhores recompensas da sobriedade.
IV. ATENTANDO PARA A MANUTENÇÃO DA ABSTINÊNCIA 21,22
Só haverá sucesso a longo na manutenção da abstinência, se essa se mostrar
recompensadora para o paciente. A relutância em abandonar o consumo aparecerá se houver uma perda sem ganhos. Quando a abstinência não é recompensadora, existe também o perigo da substituição dessa pelo jogo descontrolado
ou pelo consumo excessivo de tranqüilizantes ou sedativos.
Padrões de recuperação
Muitos pacientes descobrem espontaneamente as recompensas e envolvemse amplamente em novas atividades. Na verdade, talvez já possuíam um padrão
de envolvimento positivo com a vida antes do início da dependência. Já um
segundo grupo tem uma recuperação mais tímida, pois com freqüência nunca
tinham alcançado grandes satisfações pessoais na vida. Nesse caso, o consumo
de substâncias não lhe roubou uma vida feliz, mas sim, desenvolveu-se em meio
a um estilo de vida de relacionamentos e atividades não-gratificantes.
Estratégias para melhorar as habilidades
A manutenção da abstinência é a arte de produzir fatos novos. É preciso despertar no paciente interesses que antes não tinha, reavivar ‘dons’ que diz possuir, impeli-lo a novas atividades a que possa se dedicar. Toda a semana, novos
objetivos, por menores que sejam devem ser traçados. Conquistas devem ser
pontuadas e elogiadas com realismo. Dificuldades de relacionamento devem ser
108
Ambulatório
discutidas e estratégias de enfrentamento aos poucos instituídas. Uma vivência
de sucesso acaba sendo generalizada pelo paciente e atinge outras áreas do seu
funcionamento, abrindo-lhe novos leques de possibilidades.
Prevenção de recaída (PR)
Método desenvolvido com a finalidade de manter a mudança alcançada no
curso do tratamento. Tem duas finalidades precípuas: [1] desenvolver habilidades que dificultem o retorno ao consumo e [2] manejar com habilidade as recaídas (se houver), visando a evitar o reinicio do consumo. O modelo adotado
pela PR entende a dependência química como hábito adquirido e aprendido.
Como a substância é utilizada para lidar com situações, emoções e experiências de desprazer, a dependência também é vista pela PR como uma estratégia
de enfrentamento aprendida disfuncional. A etiologia é multifatorial: genética,
ambiental, familiar, por pressão de grupo, experiência precoce de uso, crenças
individuais nas benesses do consumo. A manutenção se dá pelos efeitos de curta duração da substância, capazes de aliviar os desconfortos do indivíduo, que
assim se mantém no consumo. A associação da incapacidade em lidar com situações dolorosas (frustração) combinada à baixa auto-estima e auto-eficácia para a
resolução de problemas perpetua o padrão de consumo. Além disso, o consumo
de algumas substâncias, como o álcool e a nicotina, é estimulado socialmente e
incorporado ao estilo de vida de muitos indivíduos, dificultando sua motivação
para abandona-lo.
Para a PR, no entanto, a etiologia não é importante, mas sim a manutenção
dos comportamentos desadaptados. Trata-se de um modelo compensatório:
“problemas causadores a parte, o indivíduo pode compensa-los assumindo a
responsabilidade pessoal pelo processo de mudança, identificando os determinantes do seu problema e desenvolvendo estratégias de modificação desses
comportamentos.” O indivíduo, assim, é o agente responsável por sua mudança.
Situação de alto risco
Qualquer situação que ofereça risco de algum grau consumo de substância
psicoativa. Podem ser classificadas como possuidoras de fatores intrapessoais e
interpessoais determinantes de recaída. Entender e evitar as situações de risco é
a razão de ser da prevenção de recaída.
Fatores intrapessoais facilitadores de recaída
109
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Estados negativos do humor, tais como raiva, tédio, ansiedade, frustração e depressão. Uma pequena parte dos indivíduos, afirmam que recaíram por estarem
muito bem (estados positivos) ou ainda por estarem testando seu autocontrole.
Fatores interpessoais facilitadores de recaída
Há duas situações predominantes: conflitos interpessoais e pressões sociais.
O primeiro conflitos em andamento (problemas com familiares) ou recentes
(discussão com um amigo). O segundo pode ser direto (Pô meu, tu tá virando
careta? Se liga aí, brodinho!) ou indireto (permanecer em companhia de quem
consome).
O modelo da recaída
Ao entrar em contato com uma situação de risco o indivíduo pode ou não
evocar uma estratégia de enfrentamento, sem a necessidade de recorrer ao consumo da substância da qual deseja se abster. Se a estratégia é utilizada efetivamente, vivencia-se a auto-eficácia e sensação de capacidade para enfrentar
situações futuras com sucesso.
Por outro lado, o indivíduo pode ser incapaz ou não desejar enfrentar uma
situação de risco. Haverá um déficit de estratégias por parte do indivíduo, fazendo que sua ansiedade bloqueie os enfrentamentos aprendidos ou que perceba
tarde demais a situação de risco. Isso prejudica sua auto-eficácia e reforça a
sensação de descrença no tratamento e na cura.
A mudança terapêutica e o modelo da jornada
O modelo da PR procura centrar o tratamento no abandono de comportamentos desadaptados e no aprendizado de outros mais adaptados. A PR usa o modelo da jornada e a divide em três fases: preparação, partida e a jornada per se.
Preparando a jornada
Consiste em aumentar a motivação para aqueles que ainda se encontram pré
ou ainda contemplando a mudança. A ambivalência é a condição-maior entre
aqueles que estão considerando a possibilidade de buscar a abstinência. Algu-
110
Ambulatório
mas intervenções podem estimular o paciente a modificar seus hábitos:
Avaliar os prós e contras do consumo e da abstinência
Além de induzir o paciente à ponderação, ajuda o terapeuta a compreender as
idiossincrasias que motivam o consumo ou desejo de abstinência do indivíduo.
Elaborar uma autobiografia do consumo
Muitas vezes, os dependentes têm uma visão reduzida de sua condição de
consumidores de substâncias psicoativas: sentem-se “usuários”, “adictos”, estigmatizados, ou, por outro lado, têm uma visão romântica de sua dependência.
Visando à focalizar sua auto-imagem, o paciente pode fazer a autobiografia do
seu consumo, abarcando o consumo da substância em sua família, as razões
que o levaram a iniciar o consumo, e os sentimentos, experiências e pessoas
associadas a esse.
Descrevendo a abstinência ou o uso controlado
Ainda visando ao entendimento da motivação e dos objetivos do paciente,
o mesmo pode ser estimulado a descrevê-los como abstinentes e/ou usuários
controlados da substância da qual dependem.
“Quero muito parar, mas tenho certeza que vou falhar”
Indivíduos motivados para a mudança, mas inseguros quanto a sua capacidade
de abstinência (normalmente influenciados por tratamentos anteriores fracassados), beneficiam-se de estratégias de mapeamento das suas dificuldades, investigação de recaídas anteriores e da sua capacidade para enfrentar tais situações.
A elaboração de um diário é importante na elucidação dessas questões.
Princípios básicos e fundamentais na preparação
• o tratamento é uma parceria, no qual o paciente tem responsabilidade conjunta com o terapeuta na busca da cura.
• objetivos a serem alcançados entre as sessões, aliviando a idéia de longevidade do tratamento e aumentando a auto-eficácia do paciente.
111
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
• praticar as estratégias de enfrentamento recém-adquiridas em ambientes
seguros.
• melhorar a auto-imagem estimulando e acreditando na sua capacidade de
mudança.
A partida
O paciente parou de consumir. O que ele pode fazer para evitar ao máximo
uma recaída? Possui a substância ou os objetos que utilizava para consumi-la
em sua casa? Se ainda sente-se susceptível, que locais pode evitar ou a quem
poderá recorrer como companhia quando precisar ir para lá? Se o consumo mais
pesado se dá no dia em que recebe seu salário, quem poderá passar a receber
por ele? Enfim, tudo o que seja sabidamente perigoso e evitável deve ser investigado e estratégias de enfrentamento para isso, instituídas.
A jornada
Nenhuma a viagem é prazerosa e isenta de imprevistos, por mais experiente
e preparado que sejam os passageiros. As recaídas atingem 70% dos pacientes
nos três primeiros meses e eles precisam estar a atentos e equipados para lidar
com essa possibilidade. Haverá, com certeza, a tentação de usar, atitudes aparentemente irrelevantes que o conduzirão à recaída e idéias decorrentes que o
convencerão a permanecer consumindo.
A fissura é o desafio dos primeiros dias. É a lembrança da situação prazerosa e
imediata trazida pelo consumo da substância, em meio ao desconforto que vive
o paciente, fazendo-o assumir um comportamento de busca impulsiva e impensada, cujo o resultado é óbvio. Pode ser desencadeada por diversos fatores, tais
como:
• estímulos condicionados, tais como objetos, músicas, lembranças relacionadas ao momento de consumo.
• exposição a situações de alto risco.
112
Ambulatório
• crenças pessoais e culturais nas benesses do consumo.
• locais onde o consumo é estimulado
Outro fator importante é a crença nos efeitos positivos do consumo, que deve
ser abordada desde o início, conforme já dissemos. Fazer o paciente entender
o modelo da doença e o papel da substância no aparecimento dos sintomas
psíquicos e dos problemas de relacionamento ajuda-o a ponderar a necessidade
de se manter abstinente. A fissura e a busca compulsiva devem ser entendidos
pelo paciente como provenientes de fatores biológicos e comportamentais e soluções para tais devem ser procuradas (p.e. exercícios, massagens, telefonemas
para amigos ou parentes,...). O paciente deve aprender a se posicionar frente a
fissura (“Estou fissurado”), ao invés de sucumbir diante dela (“Preciso beber”),
para poder ativar com sucesso suas estratégias de enfrentamento. A fissura tem
um comportamento de onda: aumenta progressivamente, atinge um pico, para
depois diminuir. Quanto maior a abstinência, menor é a freqüência e intensidade.
A internação domiciliar é a estratégia mais adequada para os primeiros dias.
Propõe-se ao paciente que permaneça em casa, recluso, na primeira semana de
tratamento. O contrato pode (e deve) ser renovado nas semanas seguintes, até
o paciente demonstrar sinais de adesão ao tratamento e a idéia de permanecer
abstinente. Caso o indivíduo trabalhe, estude, ou precise sair de casa, é conveniente analisar as situações de risco que o cercam e propor-lhe que seja acompanhado ou levado e buscado por alguém.
Outra estratégia é a busca de um estilo de vida equilibrado que facilite o processo de mudança. É a criação de novas rotinas, com atividades agradáveis e
estratégias de enfrentamento, que façam frente ao desejo de consumo e recaída. Quando estressores sobrecarregam tais estratégias, o indivíduo pode ver no
consumo o meio mais fácil para recuperar seu senso de equilíbrio (“Cheguei tão
cansado do trabalho e achei que só conseguiria relaxar se fumasse unzinho”).
Um novo estilo de vida equilibrado é aquele no qual as demandas externas e as
atividades não sobrecarregam a rotina do paciente, que lhe provém de prazer
e senso de auto-eficácia. Vivendo sob abstinência o paciente costuma elaborar
planos mirabolantes (“quero estudar, fazer computação, trabalhar para ajudar
minha família e jogar bola à noite...”), os quais não consegue manter por muito
113
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
tempo e o estimulam a recair frente ao fracasso. Devemos estar atentos para tais
planos, analisa-los com o paciente e estimula-lo a agir com mais parcimônia.
O tempo livre e de lazer do paciente precisa ser investigado e novas atividades
longe de locais propícios para o consumo, propostas.
A recaída é um acidente de percurso esperado. Menos de 5% dos que iniciam
um programa de tratamento não recaem até o final desse. Mais de 70% dos pacientes recaem nos primeiros três meses de tratamento. O paciente não deve ter
essa informação logo que inicia o programa, para não usa-la disfuncionalmente,
como uma justificativa natural da ação de sua doença sobre o seu comportamento. Nesse caso, é importante lembra-lo que o mesmo possui uma responsabilidade: entender e modificar seus comportamentos que o expõem a situações
de risco. Caso não assuma a sincera posição de mudança, cometerá, o tempo
todo, atitudes aparentemente irrelevantes, que o conduzirão ao consumo. Um
indivíduo que recai uma única vez deve ser encorajado a permanecer calmo e
desestimulado a entrar em idéias de culpa e autopunição. Os objetivos iniciais
devem ser rememorados, planos de recuperação da recaída, instituídos e as atitudes que levaram a recaída, estudados. Não existe recaída do nada. O paciente
muitas vezes não sabe disso: pensa ser incapaz, que a substância é mais forte
ou que tudo não passou de um acidente. Não. Investigando a situação, sempre
se detecta um processo de construção da recaída, que deve ser entendida em
conjunto com o paciente, para que estratégias de prevenção possam ser criadas.
V. ATENTANDO PARA OS OBSTÁCULOS COMUNS E SINAIS DE ALERTA 22,23
Os indivíduos dependentes de substâncias são especialmente propensos a
terem problemas sérios em suas vidas, como um precipitador de seu ingresso
em uma terapia e/ou repetidamente durante o curso do tratamento. Por isso,
o desenvolvimento típico do tratamento desses pacientes envolve a ocorrência
freqüente de crises.
Mesmo quando parece que os pacientes estão fazendo um progresso importante, seus terapeutas não podem ficar tranqüilos, pois basta apenas uma bebedeira ou um tirinho para que estes causem grandes conflitos nos setores mais
importantes de suas vidas. Isso inclui relacionamentos familiares, situação no
emprego, condição médica, bem-estar financeiro e funcionamento psicológico
114
Ambulatório
geral. Em relação a questões mais complicadas, esses pacientes tendem a responder às crises evitando seus terapeutas, em vez de irem até eles para pedir
ajuda enquanto os problemas são tratáveis.
Por exemplo, não é incomum um terapeuta ver um dependente, cuja terapia
parece estar dando certo, de repente e inexplicavelmente parar de ir às sessões
e negligenciar às mensagens telefônicas de acompanhamento. Algum tempo
depois, o mesmo telefona ao terapeuta em um estado extremamente agitado,
atuando em um nível bastante regredido em relação aos seus contatos prévios,
e então fica claro que reassumiu plenamente, mais uma vez, o consumo de substâncias. Além disso, questionando com cuidado o paciente, freqüentemente se
constatam problemas sérios e agudos afetando-o nesse momento, além do consumo de substâncias por si só. De fato, é mais provável que tenha restabelecido
contato com o terapeuta em resposta a essas dificuldades adicionais, ao invés
da admissão ao uso renovado de substâncias e a um apelo para um novo comprometimento em um tratamento continuado para o problema do consumo de
substâncias. Tais obstáculos são desafios permanentes dentro do tratamento da
dependência química.
Sinais de advertência 23
Dependentes de substâncias são conhecidos por negarem seus problemas. Em
alguns casos, esta é uma tentativa deliberada de negar informações às outras
pessoas; em outros, é uma manifestação de negação cognitiva. Nesse último
caso, os pacientes podem ser absolutamente adeptos da ilusão a respeito da
gravidade de seu consumo e suas repercussões, não-conscientes de suas dificuldades até que seja demasiado tarde. Em qualquer caso, há vários sinais que
sugerem aos terapeutas a possibilidade de seus pacientes estarem em crise.
Sessões em atraso ou perdidas
Um sinal de advertência comum é o paciente chegar habitualmente atrasado
para as sessões ou simplesmente não aparecer. O atraso aqui referido, não se
resume a alguns minutos. É extremo e habitual e às vezes com características
estranhas (liga pedindo um horário mais tarde, liga novamente avisando que
atrasará alguns minutos e chega 40 minutos atrasado, quando chega...).
Quando um paciente falta às sessões, sobretudo sem telefonar para cancelar,
115
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
é grande a probabilidade de que ele esteja novamente consumindo substâncias
psicoativas ou esteja envolvido em dificuldades sérias. Quando isso acontece, o
tempo é crucial: é imperativo que o terapeuta faça todo o esforço razoável para
entrar em contato com o paciente o mais rápido possível. Embora inicialmente
possa ser difícil restabelecer o contato com o paciente, em geral a persistência é
recompensada: o paciente em geral responde às inúmeras chamadas e cartas e
o terapeuta tem novamente a possibilidade de reengaja-lo no tratamento ativo.
Em casos extremos, é aconselhável contatar parentes e responsáveis e autoridades legais, caso esteja sob a supervisão dessas.
Mudanças no humor e no comportamento
A mudança marcante do humor ou do comportamento pode ser um sinal de
recaída. Algumas situações são usualmente encontradas no consultório médico
ou em contatos telefônicos:
• o pensamento outrora bem articulado, parece confuso e desorganizado.
• a ausência de comorbidade ou sintomas psiquiátricos evidentes, dá lugar a
atitudes marcadamente disfuncionais (“quero me matar”).
• a cooperação e o contato amigável são substituídos pela hostilidade em relação ao terapeuta (“recaí porque você me controla, se intromete em minha vida
e não confia em mim”).
• evidência de sentimentos lábeis, como mudanças entre agitação, choro, risos
e idéias frouxas (“como vai você? estava pensando que poderíamos jogar uma
partida de dominó, o que acha?”)
• evidência de sinais e sintomas sugestivos de intoxicação aguda.
Mudanças pronunciadas na atuação de um paciente devem ser resolvidas o
quanto antes. Em tais momentos é requerida uma mistura competente de empatia precisa e confrontação franca. O terapeuta deve salvaguardar o relaciona-
116
Ambulatório
mento terapêutico, ao mesmo tempo que trabalha para estabilizar o paciente,
para que a crise possa ser enfrentada de maneira construtiva.
Relatos de “quase-recaída”
Os pacientes freqüentemente evitam ou resistem a relatar nas sessões suas
recaídas, mas parecem estar mais propensos a discutir “situações próximas”.
Quando os pacientes relatam que quase usaram drogas na semana passada,
pode-se afirmar como quase certo que eles terão pelo menos outra “situação
próxima” também nessa semana. Mais do que provável, eles possivelmente já
fizeram uso na semana anterior e continuaram a fazê-lo na semana seguinte.
Quando a questão aparece na sessão, o terapeuta deve transforma-la em prioridade inconteste, para auxiliar o paciente a se desviar do uso entre as sessões.
Quando não mencionam espontaneamente episódios de quase-recaída, é prudente o terapeuta provocar uma discussão sobre o assunto de forma empática
e direta: “Na semana passada, houve algum momento em que esteve tentado a
usar cocaína? Qual o momento em que esteve mais próximo a usa-la?”
Em resumo, os terapeutas habilidosos na detecção de sinais de advertência de
uso renovado de drogas e outras crises em seus pacientes têm uma oportunidade muito maior de mantê-los abstinentes e em tratamento. Podem ter sucesso
na percepção prévia do problema, tratando as emergências antes que conduzam
a um dano considerável ou à internação.
Situações de crise 23
Overdose e risco de suicídio
A overdose de uma substância química é a falência de um ou mais órgãos por
ação direta ou indireta dessa sobre o metabolismo do organismo. Independe
do tempo de uso, da via de administração utilizada e da dose. Pessoas com
problemas cardíacos (p.e. insuficiência coronariana) têm overdoses com quantidades menores de cocaína, se comparadas a indivíduos sadios. Situações de
117
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
pânico e ansiedade generalizada, onde a sensação de morte iminente aparece,
são intoxicações agudas muito próximas da uma overdose evidente e devem ser
consideradas como tais.
Seja por meio de uma tentativa de suicídio ou acidente no manuseio da substância, a overdose representa uma crise de ameaça à vida. Na maior parte dos
casos, o terapeuta só toma conhecimento do episódio após o dano já ter sido
causado (uma ligação dos pais ou da esposa/marido). Em raras ocasiões o paciente pode ligar para o terapeuta avisando-lhe estar em overdose. Quando não
é intencional, há probabilidade do paciente ficar em agitação ou confusão. O
terapeuta terá algumas prioridades nessa situação:
• localizar o paciente e o seu número telefônico
• os tipos e quantidades de substâncias utilizadas
• o tempo decorrido desde que foram consumidas
• providenciar o envio de socorro especializado ou responsáveis até o local
Como em tais situações o paciente pode estar sozinho e confuso, é útil manter
seus endereços, telefones pessoais e de parentes e amigos tanto no consultório,
quanto em casa.
Quando o paciente telefona para o terapeuta durante uma tentativa de suicídio, é importante que a interlocução seja empática, para evitar que o paciente
desligue. Nesse ínterim, o terapeuta avalia a gravidade da tentativa de suicídio,
tenta instilar um sentimento de esperança, trabalha para enviar um socorro e
para solicitar ao paciente cooperação no resgate.
Perda ou desaparecimento domiciliar
O terapeuta pode testemunhar a expulsão de seus dependentes do local onde
viviam (briga com os pais ou cônjuges, despejo pelo senhorio,...). Nessas situações, quando não há outro parente ou amigos que o acolham, não tem outra
opção a não ser perambular pelas ruas, permanecer em bocadas ou procurar
clínicas de tratamento. A última alternativa é a que o terapeuta buscará para o
118
Ambulatório
seu paciente. Isso resolverá momentaneamente sua situação de sem-teto e poderá ajuda-lo a engajar-se num tratamento, enquanto um planejamento social
é arquitetado. Tal atitude também aproxima a família e propicia a obtenção do
perdão por ela.
Durante a intoxicação, o paciente algumas vezes passa horas ou dias longe de
casa, muitas vezes na rua ou bocadas fazendo uso continuado da substância.
Ao fim da “viagem”, despertam para a dura realidade de terem comprometido
sua situação familiar, profissional, legal e de saúde, muitas vezes já por um fio.
É importante manter contato freqüente com a família, ou se o paciente vive só
e não tem telefone, mandar-lhe correspondências com freqüência. O terapeuta
deve estar preparado para reassumir o caso tão logo o paciente retorne. É muito
trabalhoso evitar uma nova recaída em pacientes que em momentos de crise,
não ponderam as conseqüências do desligamento total de seus laços afetivos
e compromissos sociais. O aumento do número de sessões, melhora do aporte
social e familiar, estratégias como hospitais-noite ou pensões abrigadas, bem
como incrementar a prevenção de recaída é o mínimo que pode ser feito.
Perda do emprego
Um paciente que perde o emprego, seja ou não em decorrência do consumo
de substâncias químicas, costuma acentuar o desespero e o sentimento negativo
do fracasso. É comum ouvir de recém-abstinentes: “Lutei tanto para me libertar
das drogas, e olhe o que me tornei: nada! Se é para ser assim, posso muito bem
sair e me drogar de novo!”
A perda do emprego requer ação imediata e prioritária por parte do terapeuta.
Deve-se buscar junto com o paciente novas fontes legais de renda (seguro-desemprego, reverter a demissão para afastamento por motivo de saúde – “caixa”)
e maneiras de procurar uma nova ocupação. Coisas muito tranqüilas e fáceis de
se conseguir nesse país tropical...
Naturalmente, o terapeuta deve também se concentrar no problema do abuso
de substâncias. Caso contrário, os maus hábitos do paciente com relação ao trabalho vão resultar em um desemprego prolongado e/ou intermitente.
Ruptura e perda de relacionamentos pessoais íntimos
119
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
O conflito, a separação e a perda dos relacionamentos importantes são uma
fonte comum de crise para os dependentes de substâncias químicas. Há disforia,
raiva e desespero quando os pais os rejeitam, os cônjuges rompem com eles,
o contato com seus filhos lhes é negado (pelo parceiro ou tribunal) e quando
membros de sua família ou de ser círculo de amigos morrem.
Nessas circunstâncias, o paciente pode buscar conforto em suas substâncias
preferidas, esperando amortecer a dor da perda interpessoal. Ou, deliberadamente, podem se envolver em um comportamento autodestrutivo, devido à raiva, desespero, culpa ou desejando manipular a outra parte (“minha mãe duvidou
de minha abstinência, brigamos e resolvi beber para me vingar dela”).
Uma faceta dos relacionamentos interpessoais e o consumo de substâncias
psicoativas é a violência doméstica. O terapeuta deve buscar fontes de apoio
adicionais para o paciente (grupos de apoio, delegacias especializadas,...) e estar
atento para o uso nessas ocasiões como estratégia de enfrentamento por parte
do paciente. Caso o paciente seja menor de idade, o terapeuta deve comunicar
as autoridades competentes (conselho tutelar, juizado de menores,...).
A postura do terapeuta frente tais situações deve ser colaborativa e reconfortante, propiciando ao paciente algum tipo de controle sobre muitas dessas perdas, para fazê-lo enfrentar o fato de que ele mesmo possa ser responsável por
elas e ser também capaz de facilitar a reconciliação ou novos relacionamentos
como uma conseqüência da mudança terapêutica.
Finalmente, quando morre uma pessoa a quem o paciente era ligado, o terapeuta deve reagir com grande sensibilidade à tristeza do cliente, e ainda chamar
sua atenção para o risco, agora aumentado, de ele vir a consumir substâncias.
Emergências médicas
O consumo de substâncias químicas aumenta o risco de crises médicas em relação à população geral. Exemplos são a cirrose hepática, lesões térmicas nas vias
aéreas superiores nos consumidores de crack e o risco de elevado de contaminação pelo vírus da AIDS e DSTs, além dos danos do consumo durante a gestação.
Quando o terapeuta suspeita que seu paciente está experimentando graves
120
Ambulatório
crises de saúde, é imperativo instruí-lo a buscar tratamento médico o mais rápido possível. Isso pode ser realizado fazendo o paciente telefonar para um serviço
especializado, o seu convênio ou médico particular, dirigir-se ao hospital mais
próximo, ou simplesmente chamando uma ambulância se a situação for crítica.
A família deve ser comunicada, em casos graves, quando o paciente se recusa a
procurar ajuda médica especializada.
Crises legais
O consumo de substâncias ilícitas podem envolver o paciente em diversas situações ilegais: porte, tráfico, roubo, brigas e destruições e até crimes de maior
gravidade. Obter dinheiro para o consumo é uma causa freqüente de contravenções. Se não houver suporte social, o terapeuta deve pesquisar junto com o
paciente em alternativas para resolver sua situação ilegal (encaminhá-lo para departamentos de auxílio jurídico, estimula-lo buscar o entendimento com a parte
lesada,...). Sem tomar qualquer atitude moralista, o terapeuta pode ajudar o paciente a avaliar os prós e os contras dos comportamentos ilegais, assim como as
vantagens e desvantagens dos métodos legais para se atingir o objetivo.
Quando as coisas não dão certo 22
Você leu esse texto, leu artigos e sentiu-se imbuído de uma confiança fenomenal. Mas na prática, tomou uma lavada do seu paciente. O paciente não só recaiu,
como piorou seu padrão, utilizou-se do tratamento para praticar uma série de
manipulações, sua família não quer te ver e o tratamento acabou com o abandono do dependente que lhe rotula de uma série de coisas... Não vamos pedir para
que esqueça tudo o que leu... O objetivo principal desse texto foi tratar a questão
da dependência química com objetividade. Mas vamos corrigir agora qualquer
caricatura acidental e considerar alguns problemas clínicos que podem surgir no
consultório de qualquer terapeuta e nas casas de nossos pacientes.
O espírito terapêutico
A pessoa que deseja tratar a dependência química precisa saber avaliar as
maneiras pelas quais um tratamento pode não dar certo. Ela precisa reconhecer rapidamente essas situações geradoras de fracasso no tratamento. Precisa
aprender a examinar a extensão em que o terapeuta ou o paciente está errado,
121
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
e analisar especialmente o que está faltando na interação. Ela não deve desanimar ou se sentir derrotada com esses eventos, mas usá-los, na medida do possível, terapeuticamente. Não podemos tratar a dependência sem que as coisas
muitas vezes dêem errado, e a essência do tratamento geralmente é uma série
de tentativas e erros, e não uma linha reta de avanços. Tal afirmação não deve
ser interpretada como uma permissão para a complacência – é verdade que as
coisas podem dar errado, e não podemos nos deixar dominar por isso, mas é
igualmente verdade que essa situação precisa ser reconhecida e devemos fazer
um esforço para revertê-la.
Nem oito, nem oitenta
Grande parte da terapia consiste em encontrar o equilíbrio entre as metas fundamentais para o sucesso do tratamento na visão do terapeuta e do paciente.
Deve-se modificá-lo rapidamente se sinais de desentendimento começarem a
aparecer.
Enfatizar o beber/enfatizar tudo o mais
Entendemos a dependência química como uma síndrome de etiologia multifatorial. Predisposições genéticas, influências familiares e sociais e questões do desenvolvimento, levaram um indivíduo, no momento em que entrou em contato
com uma substância (dentro de uma certa cultura), a desenvolver um consumo
disfuncional e dependente dessa. Existe agora uma doença a parte, autônoma,
uma entidade com vida própria. A árvore da vida gerou a semente da dependência química. Tratá-la somente não impedirá que a nova árvore da dependência
continue a crescer. Por outro lado, a árvore da vida lança folhas e frutos ao chão,
ajudando a adubar e perpetuar a nova árvore.
As coisas podem dar errado porque o tratamento passou a centrar-se tão exclusivamente no beber do indivíduo, esquecendo que esse indivíduo foi criado e
vive dentro de um meio social e nele vive as dificuldades criadas durante o seu
desenvolvimento. O desequilíbrio complementar é a percepção sensível da vida
global do indivíduo, não se levando em consideração a realidade das substâncias
químicas como uma aspecto destrutivo dessa situação.
122
Ambulatório
Metas muito ambiciosas/metas muito modestas
Às vezes as coisas não dão certo porque o terapeuta e o paciente perdem a
medida em relação a uma expectativa razoável de que as mudanças podem ser
obtidas ou do ritmo dessas mudanças. Este dilema pode ocorrer em qualquer
fase do tratamento. O erro pode ser em adotarmos um ritmo rápido demais,
o que pode levar o paciente a romper o contrato, mas também pode estar na
inércia.
Muita indulgência/muita rigidez
Existe um equilíbrio referente ao grau em que o relacionamento oferecido pelo
terapeuta ao paciente de apoio sem julgamento, em contraposição a um relacionamento com expectativas rígidas e duro confronto. Há ocasiões em que é
terapeuticamente útil ser protetor e indulgente e outras em que é melhor e mais
construtivo o desafio aberto. Esta é uma outra dimensão em que a questão do
equilíbrio deve ser avaliada em todos os procedimentos terapêuticos.
Diretividade excessiva/medo de assumir uma posição
A alternativa de impor nossa opinião ao paciente não é necessariamente a de
não ter nenhuma opinião. Um terapeuta pode ter dificuldades para tratar problemas da dependência química, porque dá aos pacientes a impressão de estar
inseguro num momento em que eles precisam terrivelmente que alguém lhes
ofereça algumas certezas.
Defesas vendedoras
Que as defesas do paciente precisam ser identificadas, sua utilidade para o
paciente compreendida e sua existência adequadamente manejada são idéias
comuns no tratamento de muitas condições diferentes do alcoolismo, e as defesas que o bebedor emprega não são específicas para esta condição. Mas o
terapeuta que vai trabalhar com problemas com substâncias químicas terá de
ficar muito atento a como as defesas se manifestam neste cenário. Uma resposta
inadequada às defesas do paciente é uma das razões mais comuns para as coisas
darem errado.
123
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Negação pura ou mista
Por negação nos referimos a uma defesa contra a ameaça da realidade, baseada numa recusa a admitir a existência da mesma. A finalidade é enganar o
próprio indivíduo, e não os outros. Na sua forma pura, o mecanismo é descrito
como operando no plano inconsciente, sendo assim diferenciada de uma mentira consciente destinada a enganar outras pessoas. Muitas vezes, a dificuldade
inicial do paciente em enfrentar a ameaça trazida pelas substâncias é uma manifestação tanto de negação no sentido clássico, quanto uma mentira. Na prática,
é difícil determinar a extensão em que os dois elementos estão contribuindo
para uma dada apresentação, e processos conscientes e inconscientes parecem
fundidos. Encontramos muitas vezes, pacientes utilizando algumas substâncias
de modo grave, com repercussões clínicas evidentes e completamente disfuncionais, jurando não beberem além do social ou nem isso.
Entra na sala o Sr. José Corvo, proprietário de um restaurante mexicano no
centro da cidade. Sua esposa e seu irmão o acompanham. Ao exame mostra-se
visivelmente alcoolizado, atóxico, olhos avermelhados e caídos, hálito alcoólico.
O irmão afirma que há dias não aprece no restaurante, deixando tudo nas mãos
do gerente. Há meses que o negócio vai muito mal. Não liga mais para os parentes e falta a todas as reuniões familiares, sempre inventando alguma desculpa.
Há duas semanas forçou-o a ir a um clínico que detectou uma esteatose hepática. Há sinais de hematoma em algumas partes do corpo. Ontem, ao descer do
carro, tropeçou e bateu a cabeça no chão. A esposa afirma que o marido chega
tarde em casa, inventa compromissos e reuniões e não é encontrado nesses
locais conforme dissera. A conta-conjunta tem perdas financeiras misteriosas e
vira-e-mexe encontra garrafas de tequila escondidas em armários da casa. Os filhos pequenos já reparam no comportamento do pai e questionam a mãe sobre
a natureza daquilo.
O Sr. Corvo rebate-os prontamente, afirmando que das vezes que o irmão
ligou estava providenciando mercadorias para o restaurante e que há dois dias
está direto em casa fazendo planos para modernizar o estabelecimento. Os negócios vão mal porque o país está em crise. Gosta muito do irmão (“uma pessoa
fantástica”), mas o fato de estar muito atribulado em seu serviço, o faz exagerar
um pouco quanto a ele. Já a esposa é sua razão de viver, mas gosta de gastar um
124
Ambulatório
pouco demais no shopping e precisa controlar melhor o cheque, nega a existência de garrafas e que os filhos o amam tanto, que perguntariam a ele mesmo,
caso percebessem algum problema. O ferimento que traz na testa aconteceu
ao sair do carro e pisar numa pedra solta do calçamento, que o fez perder o
equilíbrio.
Como nunca devemos perder a esperança, a melhor abordagem poderia ser
tentar compreender as razões que levam o paciente a erguer essa muralha. Normalmente, não há apenas um motivo. Todos nós utilizamos mecanismos defensivos ao longo da vida. A negação pode aparecer para o dependente como uma
das poucas alternativas defensivas que seu repertório limitado pelo consumo lhe
permite. Outra possibilidade é produzir uma postura passivo-agressiva ao que
ele concebe como um ataque a sua integridade (“meu irmão é uma pessoa fantástica, mas está muito atribulado e exagera...”). Ele vê o irmão e a esposa como
pessoas querendo dominá-lo e reage com uma teimosia infantil e zangada.
Com essas suposições em mente, o terapeuta poderia sentar-se a sós com o
paciente, tirando da sala os outros atores. Sem nenhuma implicação de ataque,
poderia começar uma conversa a partir de uma suposição clara de que ambos
sabem que a realidade está sendo negada:
Terapeuta: José, longe de mim transformar essa situação num interrogatório,
mas vejo que coisas graves estão acontecendo em sua casa. Não importando
agora quem está com a razão, o que é evidente é que vocês não estão se entendendo. Parece que você está tendo problemas com seu consumo de álcool e é
natural que nessa situação, o receio de assumir tal condição e ser desprezado e
rebaixado lhe faça agir assim. Mas seria demasiado interessante se pudéssemos
reservadamente discutir essa situação, se for da sua vontade.
José Corvo: Doutor, vejo que é uma pessoa muito bacana e só o fato de conhecê-lo hoje já valeu ter estado aqui. Mas estou sendo vítima de um terrível
equívoco, causado por dificuldades de meus familiares, que acabam descontando em mim.
O que poderia ser feito? Talvez uma solução fosse deixar a defesa como está.
Permitir que o paciente continue pensando que está tudo bem e pedir que volte
mais algumas vezes para discutirem problemas domésticos. Esse acordo dificilmente funciona: o paciente não volta, ou quando o faz, incorpora o discurso do
125
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
terapeuta e o contato se torna inútil. Uma outra abordagem às vezes bastante
útil é concentrar-se na saúde física do paciente. Isso lhe dá feedbacks objetivos:
terapeuta: Vejo que o seu ultrassom evidencia a existência de uma esteatose
hepática ou fígado gorduroso, uma fase intermediária de irritação desse órgão
decorrente do consumo de álcool. Há também alterações nas enzimas mais sensíveis às alterações do fígado. Tal situação é totalmente reversível se o consumo
de álcool for abolido, mas pode evoluir para a cirrose, que evolui para a morte do
fígado, mesmo se aquilo que está agredindo o órgão for eliminado.
José Corvo (versão otimista): Sabe doutor, já que tocou nesse assunto, sinto
que minha saúde poderia receber alguma atenção nesse momento. O médico
que me atendeu anteriormente disse-me que não adiantava eu inventar desculpas: ou parava de beber ou morreria. Uso no máximo uma dose de tequila no fim
do dia, com amigos do restaurante. Mas não fazia um check-up há muito tempo
e já que apareceu esse problema, não me oponho a ficar sem beber até que esse
problema melhore e a causa verdadeira possa ser encontrada. Pensando bem,
me fará bem ficar sem o álcool. Talvez minha esposa fique mais tranqüila. Peço
que me acompanhe nessa fase e me indique outro clínico.
José Corvo (versão pessimista): Deve haver alguma outra causa para esse problema. De fato tenho comido muita gordura ultimamente... Prometo ao senhor
que procurarei moderar meu consumo de gorduras. Obrigado pela sua atenção,
mas sei que seu dia é cheio e não quero mais tomar seu tempo.
Se nenhuma dessas abordagens der resultado, a única saída pode ser deixar o
paciente com uma mensagem clara de que ele precisa abrir os olhos, e com uma
advertência dos perigos da negação da mentira, se essas continuarem, e propor
que os contatos ocorram apenas se partirem da sua vontade. A esposa pode ser
ajudada nessa fase, melhorando seu bem-estar e posicionando-a melhor em
relação à dependência do marido, ajudando-o também a aderir ao tratamento.
A internação nessas situações será discutida adiante.
Não vamos negar que ocasionalmente ocorrem negações tão profundamente
arraigadas que são intratáveis. A tentação é, quase literalmente, de erguer a voz
na esperança de que o paciente consiga ouvir, ou confrontá-lo com todas as
126
Ambulatório
provas positivas e esperar que as muralhas de suas defesas desmoronem drasticamente. Em resumo, somos tentados a recorrer a mareta. Infelizmente, as conseqüências desse ataque provavelmente serão o fortalecimento das muralhas
defensivas.
A doença como defesa
Às vezes o paciente afirma que continua a consumir substâncias porque é, de
fato, um “viciado”. Ele sofre de uma doença, que é a explicação de seu comportamento, e a responsabilidade de curar essa doença cabe ao terapeuta. O paciente
pretende continuar bebendo, tendo estabelecido a confortável posição de que
a culpa é do terapeuta. As coisas poderão dar certo se inicialmente aceitarmos
essa posição, mas certamente darão errado se o terapeuta automaticamente
assumir que essa pessoa está fazendo um jogo ou preparando algum truque
intencional. Ele pode estar assumindo esta versão do papel de doente porque
realmente acredita que está doente, prejudicado e não consegue mais controlar
o próprio comportamento. Isso não seria tanto uma manifestação de defesa
quanto de sintomas de uma desesperança aprendida. Os dois significados diferentes de apresentação externas semelhantes precisam ser distinguidos. Cortar
o paciente com uma análise clara e agressiva do jogo que ele está fazendo provavelmente terá como resultado o terapeuta livrar-se de um paciente difícil, mas
nada além disso. Seria mais útil tentar fazer essa pessoa perceber que é capaz de
assumir a responsabilidade por não beber, que ela realmente tem mais recursos
do que imagina e que seria enganador alguém assumir a responsabilidade por
ela. A tarefa é aumentar a auto-eficácia e reforçar a motivação.
Absolvição
O paciente em busca do terapeuta bonzinho
O paciente pode defender-se da dor que o levaria a mudar seu comportamento se encontrar um médico ou conselheiro que aceite absolvê-lo regularmente.
Ao mesmo tempo, ele pode apresentar um quadro de pseudo-insight: intelectualmente, ele sabe o sofrimento que está causando a si mesmo e aos outros, mas
consegue separar esta compreensão de qualquer sentimento mais profundo,
desde que receba doses regulares de perdão. Na verdade, ele está buscando a
127
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
conivência do terapeuta num jogo repetitivo e improdutivo.
Carolina, funcionária pública, casada e mãe de dois filhos, procurou um serviço
especializado após ter sido afastada da sua função devido ao excesso de faltas e
ter sido flagrada consumindo cocaína durante o expediente. Após a triagem, foi
encaminhada para grupos de dependência e para o atendimento psiquiátrico.
Compareceu assiduamente até a resolução de seu processo, apesar de manterse consumindo. Em seguida, retornava sempre que as coisas no emprego ou em
casa pioravam. Queria medicamentos específicos e se não os conseguia, negligenciava o uso dos outros prescritos.
Sabia que era uma dependente de cocaína e mostrava-se entristecida e preocupada com sua situação. Relatava quão mau e ausente era para a marido e os
filhos e como colocava em perigo seu emprego, sua única fonte de renda. Ficava
desolada com o seu consumo, mas em todas as sessões tinha uma justificativa
para a recaída da semana anterior. Ela se lamentava imensamente. Sentia que
tratava o esposo como um animal e sentia-se muito envergonhada por desapontar o terapeuta mais uma vez. Sempre pedia algo mais: “além da consulta médica
e do grupo, acho que preciso de psicoterapia individual.”
As coisas darão errado se o terapeuta tomar uma posição de ajudar e confirmar
este ciclo de comportamento. Essa história não é incomum, e o paciente pode ser
um antigo freqüentador do serviço, mas alguém que conseguiu obter muito pouco desse contato. Está muito longe de entender a real filosofia daquele serviço. É
inútil o terapeuta manter o contato nesta base não-terapeutica ou antiterapêutica.
O melhor é devolver a responsabilidade ao paciente e colocar-lhe claramente que
está trabalhando a favor de sua doença, numa dinâmica da qual o terapeuta não
participará. Um elemento de desafio e confrontação pode trazer novas possibilidades, mas sempre existe o risco de o paciente abandonar o tratamento e encontrar
outro terapeuta que, pelo menos temporariamente, o absolva.
A defesa romântica
A dependência leva peculiarmente a uma defesa romântica, uma identificação
com os famosos poetas e dramaturgos que bebiam.
Maria Joana, estudante secundarista, começou tratamento após receber suspensão escolar por excesso de faltas e queda do rendimento escolar. Há dois
128
Ambulatório
anos fuma cerca de cinco baseados por dia. Chegou para a psicoterapia de grupo com uma série de máximas que coletara de um livro de citações, feitas por
figuras famosas:
“Mostre-me um homem que não beba e lhe provarei que ele é parte camelo.”
(W.C. Fields)
“O melhor amigo do homem é o uísque. O uísque é o cachorro engarrafado.”
(Vinícius de Morais)
“Não consigo ficar sóbrio o tempo suficiente para achar graça em estar sóbrio.” (F. Scott Fitzgerald)
“Quem disse que cocaína vicia? Cheiro isso a anos e nunca me viciei.”
(Tallulah Bankhead)
“Um dia a maconha será legalizada. Todos os estudantes de Direito a fumam.”
(Lenny Bruce)
“Nunca tive problemas com drogas. Só com a polícia.”
(Keith Richards)
“Uma vez em Londres experimentei LSD. E, quer saber? É uma boa droga.”
(Caetano Velloso)
De posse de tão famosos argumentos, começou a contar no grupo, quão importante foram as drogas no processo criativo de artistas e poetas como Bob
Marley, Charlie Parker, Fernando Pessoa e outros. Afirmava, inclusive, que Buda
utilizou a maconha para meditar... Portanto ela não pode aceitar nenhuma ajuda
que tenha como condição o abandono completo do uso da maconha.
Neste caso, a defesa do paciente obscurecerá o julgamento do terapeuta que
seduzir-se pelo argumento da substância psicoativa simbolizando “a vida criativa”. Encobre-se, assim, o fato da paciente estar suspensa da escola, onde seu
rendimento caiu drasticamente, devido ao consumo excessivo de maconha.
Se aceitarmos essa posição, as coisas certamente darão errado, com a paciente
129
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
continuando a fumar maconha e o terapeuta neutralizado como um espectador e admirador de um modo de vida fascinante, tendo perdido sua posição
terapêutica. No início do contato, o terapeuta deve manter a posição de que a
substância em questão precisa ser desmistificada e encarada em sua realidade. O
paciente pode ter uma sensação imediata de alívio ao descobrir que pode parar
de fingir que aquela autodestruição é uma brincadeira romântica.
O paciente conhece alguém que consome muito mais que ele
Um fator causador de fracasso no tratamento é a afirmação, por parte do paciente, de que conhecem alguém que consome alguma substância muito mais
do que ele, ou que consome muito e nunca teve nenhum prejuízo.
João Caminheiro Vermelho, durante uma entrevista em que seus padrões de
consumo de álcool estavam sendo investigados com seu terapeuta e naturalmente iam colocando em xeque sua noção inicial de consumo, argumentou:
tudo bem, eu bebo um pouco. Mas vou lhe dizer uma coisa: meu pai morreu aos
86 anos e bebia muito mais do que eu. Era uma rotina, ele nunca saía de casa
sem colocar uma garrafa de pinga no bolso, da mesma forma como apanhava
sua lata de fumo.
É totalmente inútil entrar num debate com esse paciente para saber se ele
bebe mais ou menos do que o pai bebia. Os dados sobre o beber do paciente
provavelmente estão incertos nesse estágio, e os dados sobre o beber do pai
serão muito falsificados, de modo que o paciente está numa posição de manter
sua defesa, revisando todos os elementos da comparação conforme lhe convier.
Se concordarmos em entrar nesse debate, provavelmente seremos envolvidos
num “papo de bar”, com afirmações altamente improváveis, mas indiscutíveis. A
melhor maneira de não se envolver nesses debates improdutivos é dizer que o
pai do paciente não veio à consulta, e que deve ficar do lado de fora.
Discussões intermináveis
Os problemas trazidos pela defesa intelectual são conhecidos em qualquer
área de psicoterapia. No trabalho com a dependência química, a intelectuali-
130
Ambulatório
zação tende a seguir direções especiais: o paciente desvia a discussão de qualquer conteúdo terapêutico real e transforma a entrevista num simpósio sobre
definição de dependência ou sobre os determinantes do comportamento de
consumo. A resposta terapêutica deve ser afastar o paciente das generalizações
e trazê-lo de volta à imediação de sua própria posição. De outra forma, o terapeuta se verá envolvido numa longa análise do “conceito de doença”, enquanto
o paciente continua a consumir substâncias psicoativas.
VI. ATENTANDO PARA A INTERNAÇÃO COMO OPÇÃO TERAPÊUTICA
O aprimoramento do atendimento ambulatorial e suas técnicas de abordagem, e surgimento nos países desenvolvidos de opções intermediárias entre
esse e a internação, tem deixado essa cada vez mais como a última opção dentro
do tratamento da dependência química. O Brasil caminha (a passos bem lentos)
na mesma direção.
A internação em desuso: motivos
Eficácia ambulatorial equivalente
Estudos tem demonstrado que o seguimento ambulatorial é capaz de produzir
resultados semelhantes ou melhores do que a internação. Dentro das diversas
opções de internação, também não se encontrou diferenças entre as longa e
curta duração.
Opções intermediárias
A criação de opções que interferem pouco na autonomia do paciente, tais
como pensões, repúblicas e casas terapêuticas, hospitais-noite, centros de convivência e equipes comunitárias de tratamento, permitem um acompanhamento
diário e próximo, permitindo que o paciente continue a trabalhar e estudar, estar
em contato com seus parentes e amigos, ao mesmo tempo em que está sob supervisão profissional direta. Esse contato mais íntimo, permite a equipe conviver
com o jeito de ser dos pacientes e detectar com mais sensibilidade momentos
de maior dificuldade e de provável recaída. O paciente tem uma referência cons-
131
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
tante a que pode recorrer quando desejar, e, por mais que tenha livre acesso a
todos os locais, sabe que está habitando um ambiente destinado ao tratamento
de dependentes químicos.
Melhora do atendimento ambulatorial
Além de técnicas de abordagens efetivas, tais como a prevenção de recaída e
a entrevista motivacional, a melhora da compreensão da dependência química
permitiu a criação de ambulatórios bem equipados, com grupos apoio específicos para as diversas fases da abstinência, abordagens que respeitam o estágio
de motivação do paciente, atendimento interdisciplinar e uma farmacoterapia
mais diversificada. O atendimento é flexibilizado, de acordo com a disponibilidade de tempo ou as necessidades do paciente: funciona nos três períodos do dia,
quantas vezes na semana o paciente necessitar. Nos países desenvolvidos e no
atendimento mais elitizado no Brasil, o acompanhamento terapêutico especializado permite que o paciente seja supervisionado em casa, onde seus problemas
podem ser melhor entendidos e resolvidos in loco. Atividades terapêuticas, tais
como a terapia ocupacional dão ao paciente a oportunidade de vivenciar experiências construtivas, com começo, meio e fim. Outras instituições oferecem cursos e atividades de lazer. Um ambulatório moderno e dinâmico é uma internação
a céu aberto®.
Baixo custo
A abordagem ambulatorial é evidentemente menos onerosa e por isso capaz
de se proliferar com mais rapidez e eficácia nos diversos locais onde sua presença é necessária.
Qualidade de vida do paciente
Por mais breve que seja, a internação compromete o cotidiano de pacientes
que ainda possuem laços sociais presentes (emprego, estudo, família,...). Internações longas muitas vezes, além de não mantê-los longe do consumo após a
alta, eliminam os ganhos que haviam obtido ambulatorialmente ou os laços que
mantinham com a sociedade (por mais tênues que fossem). Tornam-se também
motivo de estigmatização para o paciente, já que nesses casos, uma gama maior
de pessoas fica ciente do problema do paciente, principalmente no ambiente
132
Ambulatório
de trabalho. Ambulatorialmente, tais problemas poderiam passar despercebidos.
Quando a internação é uma opção terapêutica
Como já foi dito, não possuímos a mesma qualidade ambulatorial, tampouco
opções intermediárias em grande quantidade para desprezarmos a internação
como opção terapêutica. Além disso, a cultura da dependência no Brasil vê na
internação a melhor opção tratamento, entendendo muitas vezes que o paciente
sairá de lá curado e nada mais precisará ser feito. A recomendação do tratamento ambulatorial pelo profissional de saúde é visto com desconfiança pelos
familiares, pensando estarem sendo ‘enrolados’ por esse, que não tem ou se
recusa a lhes ceder uma vaga na rede pública. De qualquer forma, a preferência é
o tratamento ambulatorial. Há algumas situações onde a internação é preferível
ou necessária:
Presença de comorbidades psiquiátricas graves
Quando o uso de substâncias gera quadros psiquiátricos graves ou desequilibra preexistentes, tais como crises psicóticas, de mania, depressões graves, tentativas de suicídio e episódios de agitação psicomotora e agressividade durante
a intoxicação, a internação é a primeira indicação de tratamento. A comorbidade
deve ser tratada como uma patologia independente e muitas a abordagem da
dependência química só será possível após a resolução ou melhora da primeira.
Presença de complicações clínicas
Essa acontece preferencialmente em hospitais gerais, mas ocorrem com freqüência em hospitais psiquiátricos. Os quadros de abstinência por sedativos são
os mais comuns. Pacientes que chegam para uma primeira avaliação com sinais
evidentes de abstinência do álcool ou opiáceos, com histórico de síndromes de
abstinência pregressas complicadas, com convulsões e/ou delirium , devem ser
internados até a resolução do quadro. O acometimento de órgãos vitais também
indicam o tratamento clínico acima de qualquer outra coisa.
Necessidades diagnósticas
Por diversos motivos, dúvidas diagnósticas sobre determinados casos podem
ocorrer. Muitas vezes o paciente chega excessivamente medicado, com sinais e
sintomas que não sabemos se atribuímos ao consumo, a uma patologia prévia
133
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
(clínica e/ou psiquiátrica) ou ao uso de medicações. Nesses casos, pode ser interessante internar o paciente por alguns dias, para que a medicação possa ser
repensada e uma abstinência mínima atingida, visando a elucidar melhor a origem dos fenômenos observados.
Perda do suporte familiar
Em qualquer situação médica, a presença da família é capaz de reduzir o tempo de internação em qualquer especialidade médica. Não se dá alta para um
paciente de rua enquanto sua ferida cirúrgica não estiver totalmente cicatrizada.
Já um paciente bem assistido por sua família poderá ir para casa e voltar em
dez dias para retirar os pontos. O paciente que perde o apoio da família e acaba
na rua, ou simplesmente vive só na cidade e não está conseguindo um suporte
para se manter abstinente, tem na internação uma oportunidade de reforçar
sua motivação e planejar seu retorno ao ambulatório com mais acertividade.
Também pode ser um “álibi” para a reaproximação entre o paciente e sua família,
namorado(a), amigos.
“Férias” para a família
Há casos em que o sucesso do tratamento é pouco ou nenhum, mesmo após
longas tentativas, passando por várias internações, diferentes profissionais e linhas de tratamento. O sentimento geral é de desânimo e descrença. Mesmo
assim, o paciente continua a conviver com a família, que tenta contê-lo fatigadamente. Após graves recaídas reinterna-lo por algum período proporciona a família um tempo de recuperação e uma nova oportunidade para que ambos sejam
trabalhados no sentido de melhorar seu relacionamento e função após a alta.
Mau desempenho ambulatorial associado ou não a complicações sociais
Pacientes que não conseguem a abstinência ambulatorial podem ser estimulados a permanecerem internados por um curto período, para darem um ‘pontapé
inicial’ no tratamento. Nesse curto período, passa por atividades motivacionais,
examina e planeja as estratégias de tratamento que seguirá após a alta. Outras
vezes, o paciente, além de não conseguir a abstinência, envolve-se com freqüência em situações que comprometem sua integridade física e de terceiros: consome a substância e envolve-se em brigas, comete delitos, machuca-se em dema-
134
Ambulatório
sia, falta no emprego e fica na iminência de uma demissão. Nesses momentos a
internação é uma saída segura e preventiva.
Negação da doença e internação
Há pouco, quando discutíamos a negação intransponível do paciente da presença de problemas relacionados ao consumo de uma substância, falamos que
em alguns casos o paciente deve ser diretamente alertado sobre o seu problema
e estimulado a voltar apenas se quiser. Ocorre aí um dilema médico. Sabemos
que a abstinência melhora traços disfuncionais da personalidade do paciente, e,
passando um período abstinência é capaz de abordar e elaborar questões relacionadas ao seu consumo, o que antes seria impossível. Negando o problema
e continuando a consumir, se expõe a situações que vão minando seu suporte
familiar, prejudicando seu desempenho social e profissional e a perigos em bocadas, brigas, sendo muitas vezes preso. É comum a família não suportar mais
encontrar a filha estendida no chão da sala da seu apartamento completamente
alcoolizada, fazendo escândalos quando é por ela acordada. No dia seguinte
promete não mais beber, mas a promessa dura apenas algumas horas... Outras
vezes, o filho promete nunca mais consumir crack e dois dias depois é detido
pela polícia numa bocada.
Frente a históricos como esse, um plano ambulatorial deve ser instituído, mas
a internação proposta e discutida como alternativa desde o início, não como
ameaça, mas sim, como um tentativa radical de atingir sua doença. Promessas
do paciente devem ser escritas e servirem como marcadores da necessidade
urgente de internação. A família pode ser orientada a interna-lo em momentos
de crise (“após uma overdose ou um porre, que o debilitou em casa ou levou-o a
um hospital”) ou na vigência de intercorrências do consumo (brigas seguidas de
detenção, arrependimento após ter vendido vários objetos da casa para fumar
crack,...) que deixam o paciente momentaneamente sensível a aceitar a internação. A internação a revelia, com auxílio de equipes especializadas, também pode
ser cogitada.
A internação frente a negação extrema aparece como a última cartada contra a
negação do paciente. A idéia é mantê-lo a revelia, na esperança de observarmos
sinais de motivação, passada a fase da síndrome de abstinência. Pode representar um fato novo importante na recuperação do paciente, ou a ruptura entre o
médico e o paciente, após a alta.
135
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Tipos de internação 22
Além de indicar a internação é preciso definir o tempo de permanência do paciente nessa. Deve ser pensada a partir da situação atual do paciente, para que possa
ser frutífera e não apenas um jeito qualquer de impedi-lo de consumir substâncias.
Internação breve
É a mais difundida e desejável. Mexe menos no cotidiano do paciente, tem objetivos específicos e nos faz pensar na alta desde a internação: o objetivo é planejar as estratégias de enfrentamento para o paciente lidar com a abstinência de
modo favorável. Provê ao paciente um ambiente seguro para vivenciar a fase de
síndrome de abstinência, onde sintomas floridos ou fissuras intensas impedemno de mantê-lo longe do consumo. Pode ser uma opção para aqueles que estão tendo dificuldades para abandonar o consumo ou uma maneira radical para
bloquear uma recaída repentina, mas grave, que está pondo em risco o bom
andamento do tratamento. Muitos pacientes conseguem passar bons períodos
abstinentes, trabalhando e convivendo relativamente bem com os seus, mas têm
recaídas graves. Esse período muitas vezes só é amenizado pela internação breve. Uma opção viável quando alguma coisa não está dando certo e não se quer
perder o pouco que já existe.
Internação longa (“sítios”)
É uma opção discutível. O necessário é ponderar até que ponto o afastamento
prolongado (forçado o não) contribui para a abstinência, sem atrapalhar ainda
mais a reabilitação social do indivíduo. Por isso é a última das últimas alternativas
de tratamento. Casos extremamente graves, como pacientes que usam substâncias químicas desde a adolescência, não conseguiram estudar e não trabalham,
nunca permaneceram estáveis em alguma atividade, estão freqüentemente envolvidos em problemas decorrentes do consumo e não têm qualquer noção de
limite, talvez possam se beneficiar de internações longas em sítios, onde uma
estrutura hierárquica rígida, com regime de trabalho e atividades bem estabelecidos dão-lhe uma organização concreta e objetiva. Normalmente estão associados a entidades religiosas e ao método dos 12 passos (AA,NA), abordagens de
136
Ambulatório
assimilação baseadas na autopiedade e na libertação espiritual. Os pacientes são
estimulados a ficarem e tornarem-se monitores de novos internados. Enfim, às
vezes pode ser tudo o que lhe restou fazer na vida, pois a fase mais importante
do seu desenvolvimento, passou usando alguma substância ou tudo aquilo que
havia conquistado foi completamente destruído pela dependência.
VII. ATENTANDO PARA O FRACASSO DO TRATAMENTO 22
Ainda assim, deu tudo errado...
Há momentos em que tudo parece dar errado, não só em termos de um determinado paciente, mas com vários pacientes apresentando dificuldades sérias
num período de poucas semanas. Esses períodos ocorrem, e o terapeuta que
os enfrenta precisa lembrar (e ser lembrado pelos colegas) que o tratamento
da dependência química às vezes é inevitavelmente pesado e perturbador. O
terapeuta pode estar selecionando todos os casos mais difíceis, e é possível que
esteja exigindo muito de si mesmo, esteja esgotado ou descuidado. Mas é mais
provável que as coisas tenham se agrupado aleatoriamente e que o terapeuta
precise de um apoio para a sua autoconfiança, ao invés de se culpar.
Às vezes as coisas dão errado por esquecimento e distração: a necessidade de
um exame físico não é valorizada, a esposa não é entrevistada, o que o paciente está tentando dizer não é escutado. Talvez o maior perigo seja o terapeuta
ficar excessivamente confiante, não ter dúvidas e supor que sabe tudo, e que
se o paciente não responde é porque está precisando de mais medicação. Em
algumas ocasiões também é necessário examinar cuidadosamente o sistema de
tratamento. Pode ficar evidente que dificuldades se originam na interação inadequada da equipe ou de tensões pessoais entre os seus membros.
Quando as coisas não dão certo, a resposta terapêutica positiva para os possíveis problemas podem ser:
• compartilhar os problemas com colegas
• compreender o seu próprio comportamento, atitudes e expectativas, assim
como os do paciente (problemas ocorrem nos dois sentidos)
137
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
• identifique os bloqueios na sua abordagem e nos mecanismos de defesa
utilizados pelo paciente.
• a necessidade de melhorar mais a prontidão do paciente para a mudança
• revise a formulação inicial, revise o caso e faça um novo planejamento em
conjunto com o paciente e recupere a situação terapêutica
• ninguém é onipotente e o terapeuta tem necessidades legítimas
Tratar o dependente de substâncias psicoativas é mobilizá-lo, com todas as
estratégias possíveis, para uma aliança com sua própria recuperação. A arena
mais rica de aprendizagem é o contato real, a experiência de que as coisas as
vezes não dão certo, e a descoberta de que com paciência, flexibilidade e esforço
mútuo as coisas, felizmente, dão certo.
AS SUBSTÂNCIAS
farmacocinética e farmacodinâmica das substâncias
farmacoterapia das complicações específicas
• Álcool
• Cocaína
• Opiáceos
• Canábis
• Benzodiazepínicos
• Barbitúricos
• Anfetaminas e derivados
• Alucinógenos
• Solventes ou inalantes
• Nicotina
Álcool
O álcool é a substância psicoativa mais utilizada em nossa sociedade. Tem am-
138
Ambulatório
pla aceitação cultural, diversas apresentações, modos de consumo e fácil acesso
ao usuário. Apresenta por isso, maior incidência de complicações relacionadas
ao uso continuado e/ou abusivo (Tabela 1) ou à interrupção desse em usuários
crônicos (síndrome de abstinência).
Mecanismo de ação16
A farmacologia do álcool é pouco caracterizada e relativamente inespecífica. O
modelo proposto atualmente é demasiado simplista para os numerosos efeitos
sobre grande variedade de sistemas de neurotransmissores, receptores, membranas e enzimas apresentados pelo álcool.
O álcool atua estimulando o sistema GABA A, o sistema inibitório do SNC.
Além de aumentar a neutransmissão inibitória, ele também reduz a neurotransmissão excitatória no subtipo NMDA do receptor do glutamato; ou seja, o álcool
aumenta a inibição e diminui a excitação, e isto pode explicar sua caracterização
como depressor do funcionamento neuronal do SNC.
Os efeitos de reforço do álcool podem ser mediados predominantemente pela
liberação de dopamina no sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical. O
álcool também pode liberar serotonina, e esta liberação pode causar ações indiretas sobre neurônios dopaminérgicos na via mesolímbica-mesocortical. Há depleção dos níveis de serotonina no uso crônico. Um papel para o sistema opióide
na dependência causada pelo álcool é sugerido pelo fato do antagonista opióide
naltrexona diminuir o intenso desejo pelo álcool e aumentar a abstinência em
139
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
indivíduo dependentes. Além disso o álcool pode provocar liberação de opióide
endógenos, particularmente sobre os neurônios dopaminérgicos mesolímbicos,
sugerindo outra maneira pela qual o álcool estimularia os neurônios dopaminérgicos mediadores do prazer.
ABORDAGEM AMBULATORIAL
Desintoxicação ambulatorial 22
Algumas alternativas farmacológicas estão disponíveis para o tratamento ambulatorial da dependência do álcool. O dependente de álcool que decide abandonar o consumo está exposto à síndrome abstinência. A presença de sinais
matinais de abstinência deve ser bem investigada, assim como a ocorrência de
quadros de abstinência, convulsões e delirium anteriores. Uma avaliação clínica
e laboratorial (Tabela 3) deve ser providenciada.
Nos primeiros quinze dias, a introdução de benzodiazepínicos (BDZ) de duração prolongada (diazepam, clordiazepóxido) ou com baixa metabolização hepática, para idosos e hepatopatas (lorazepam), deve ser introduzida. Por mais que
não haja sinais clínicos visíveis de abstinência, há sempre aumento da ansiedade,
irritação e impulsividade, que também pertencem à síndrome. Pode-se iniciar
com 10mg de diazepam três vezes ao dia (doses-equivalência para outros BDZ –
Tabela 14), aumentando a dose na presença de sinais de abstinência ou reduzindo frente a ocorrência de sedação, apatia e ataxia. A medicação é retirada num
período de 10 a 15 dias. É importante que receba aporte vitamínico, em especial
o complexo B e o ácido fólico, durante as três refeições do dia. Nessa fase o
paciente deve ser acompanhado diariamente. Assim é possível controlarmos a
síndrome de abstinência e o uso de BDZ e motivá-lo a atravessar o período de
desintoxicação.
É possível que haja doenças psiquiátricas primárias ou secundárias ao uso prolongado de álcool. Os transtornos depressivos e ansiosos, principalmente o pânico são os mais prevalentes. Devem ser investigados e tratados separadamente.
Os quadros secundários melhoram com a abstinência, mas devem ser tratados
dependendo de sua intensidade.
140
Ambulatório
Síndrome de abstinência não-complicada
O sintoma de abstinência mais comum é o tremor5,10,13, acompanhado de
irritabilidade, náuseas e vômitos. Aparecem algumas horas após a diminuição
ou parada da ingesta e são normalmente observados no período da manhã. Os
tremores tem magnitude variável. Algumas pessoas referem apenas tremores
internos3. Pioram frente à atividade motora e ao estresse emocional, bem como
à extensão dos membros superiores e protrusão da língua. Outros sintomas que
acompanham os tremores estão relacionados à hiperatividade autonômica, tais
como taquicardia, aumento da pressão arterial, sudorese, hipotensão ortostática
e febre (< 388).
Aproximadamente 90% dos casos não evoluem para além de um quadro efêmero, brando e marcado por tremores, insônia, agitação e inquietação psicomotora, com auto-resolução entre 5 a 7 dias, ou menos13.
Apenas uma pequena parte dos usuários ingere quantidades de álcool por um
período de tempo suficientes para desenvolver uma sintomatologia mais intensa
e completa, conforme aparece na Tabela 213. O quadro clínico é florido e de fácil
identificação: tremores grosseiros e generalizados (óbvios nas extremidades e
141
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
na região perilabial), sudorese profusa, aumentos significativos da pressão arterial, dos batimentos cardíacos e da temperatura. Esse estágio de abstinência
é atingido em 48 horas após a última dose de álcool ingerida. Seu ponto alto é
alcançado com o aparecimento de alucinações.
Normalmente são auditivas, mas podem ser também visuais. Nessa fase, o indivíduo conserva consigo a crítica necessária para julga-las como inverossímeis,
apesar de presentes.
Avaliação diagnóstica
Durante a anamnese e o exame físico, deve-se ter em mente que o indivíduo
em abstinência do álcool é um usuário crônico e pode utilizá-lo em detrimento do seu autocuidado. Torna-se, desse modo, suscetível a complicações5 tais
como a desnutrição (anemia, déficit vitamínico, hipoglicemia) e descompensações hidro-eletrolíticas (desidratação, hipopotassemia, hiponatremia e hipomagnesemia). A ação direta do álcool sobre a medula óssea e/ou o estado nutricional
deficitário comprometem sua imunidade, expondo-o a diversos agentes infecciosos. Os aparelhos gastrointestinal, circulatório, respiratório e SNC devem ser
cuidadosamente investigados (Tabela 1). Alguns exames laboratoriais de rotina
devem ser sempre solicitados10 (Tabela 3). Os sinais e sintomas indicam a gravidade e servem de parâmetro na avaliação da eficácia do tratamento escolhido.
142
Ambulatório
Tratamento suportivo
São dois os princípios básicos do tratamento da abstinência alcóolica13: aliviar o desconforto e prevenir as complicações diretas (convulsões e delirium) e
indiretas (gastrites, hepatites, pancreatites, descompensações, TCEs...) causados
por essa. Todos os pacientes abstinentes devem receber 100mg de tiamina intramuscular por 3 dias para prevenir complicações neurológicas. Os níveis glicêmicos e os eletrólitos devem ser investigados e corrigidos prontamente: podem
provocar quadros confusionais semelhantes ao delirium tremens, convulsões e
comprometimento do funcionamento cardíaco. Sempre que a correção de glicose for necessária, a aplicação intramuscular de 100mg tiamina deve precedêla, uma vez que suas reservas são agudamente depletadas pela administração
da glicose e podem precipitar a encefalopatia de Wernicke (quadro 1). Outros
procedimentos básicos são o aporte hídrico endovenoso e nutricional. A maioria
dos abstinentes respondem a esses procedimentos5,10,13.
Tratamento farmacológico
Para aqueles que não respondem aos procedimentos suportivos, o tratamento
farmacológico deve ser instituído. O objetivo da farmacoterapia é o controle dos
sintomas através de um sedativo com tolerância cruzada com o álcool, aliviando
os sintomas e prevenindo complicações. De todos os sedativos disponíveis, os
benzodiazepínicos (BZD) são os mais seguros e eficazes. Além disso, têm ação
anticonvulsivante e preventiva eficaz para o delirium tremens13,510.
Há diversas opções de BZD e modos de prescrevê-los, de acordo com as necessidades de cada paciente e a experiência do profissional em utiliza-las. BZD
de meia-vida longa (diazepam e clordiazepóxido) são os mais indicados, pois
protegem o paciente por mais tempo. Naqueles cuja a função hepática encontra-se comprometida (hepatopatas e idosos), é preferível utilizar BZD que passam apenas pela conjugação hepática, como o lorazepam (1 - 4 mg a cada 6-8
horas) e o oxazepam (15 - 60 mg a cada 6-8 horas)13,5. Em mulheres grávidas, o
fenobarbital é a melhor opção, devido os riscos de malformação cardíaca oferecidos pelos BZD13. As equivalências entre as doses dos benzodiazepínicos mais
utilizados no tratamento da abstinência estão na Tabela 15.
143
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
O paciente bem instruído, com quadro de abstinência leve ou moderada, sem
complicações associadas e possuidor de bom aporte social, pode ser tratado
ambulatorialmente10,13: diazepam 10 - 20mg (ou equivalente) a cada 6 horas.
Deve haver visitas diárias para avaliação da resposta e da necessidade de aumentar/diminuir a dose instituída. Após o controle da sintomatologia, retira-se a
medicação gradualmente ao longo de uma semana.
quadro 1: Síndrome de Wernicke-Korsakoff
A síndrome de Wernicke-Korsakoff pertence ao grupo dos Transtornos Mentais Devido a uma Condição Médica Geral e está associada ao déficit de tiamina
no organismo. Qualquer patologia alteradora do processo de obtenção de tiamina pelo organismo (síndrome mal-absorção, anorexia, hiperemese gravítica,
obstrução gastrointestinal, alimentação parenteral prolongada, tireotoxicose e
hemodiálise) pode desencadea-la, mas o consumo excessivo e prolongado do
álcool é a causa principal5,10,13. O álcool inibe a absorção ativa da tiamina no
intestino e geralmente há prejuízo na ingestão de alimentos pelos usuários acometidos. Estima-se que a síndrome corresponde a 3% do total de distúrbios
relacionados com o consumo de álcool.
A tiamina tem papel fundamental na oxidação dos carboidratos e parece desempenhar função independente na condução nervosa periférica. A metabolização da glicose pelas células nervosas depende da tiamina pirofosfato, coenzima
da qual a tiamina é precursora. O consumo de glicose pelos neurônios diminui
até 60% com a deficiência da tiamina. Os resultado são lesões focais do tálamo,
hipotálamo, corpos mamilares e assoalho do quarto ventrículo, degeneração do
verme cerebelar e neuropatia periférica. Histologicamente encontram-se células
inflamatórias, hemorragias petéquiais e perda neuronal.
A encefalopatia de Wernicke tem início abrupto e manifesta-se através de
confusão mental, distúrbios oculomotores e ataxia cerebelar. O sintoma mais
comum é a confusão mental (82%), seguida de distúrbios oculares (29%) e ataxia (23%)5,10,13. Portanto o diagnóstico pode ser estabelecido sem a presença
completa da tríade. Os distúrbios oculomotores incluem desde o nistagmo até a
paralisia ocular completa. A ataxia pode preceder a confusão mental em dias. É
uma das causas metabólicas a serem aventadas em casos de coma a esclarecer.
A ausência de resposta clínica clara em 48-72 horas sugere mau prognóstico. A
mortalidade é ao redor de 17% e embora a tríade desapareça em torno de um
144
Ambulatório
mês após o tratamento, a síndrome amnéstica (Korsakoff) acompanha ou seguese à encefalopatia de Wernicke em 80 a 85% de todos os casos.
Tratamento
Por se tratar de uma situação emergencial, deve administrar 100mg de tiamina
endovenosa até a oftalmoplegia desaparecer. O desaparecimento da ataxia pode
levar dias ou semanas. Uma das causas de não-resposta ao tratamento é a hipomagnesemia; portanto o sulfato de magnésio (1-2ml em solução de 50%) deve
ser administrado por via intramuscular concomitantemente10,13.
A síndrome de Korsakoff é classicamente descrita como uma condição crônica
na qual ocorre um predomínio de amnésia retrógrada (até vários anos antes do
início da doença) e anterógrada. O quadro clínico freqüentemente aparece o curso crônico da encefalopatia de Wernicke ou após delirium tremens. Em alguns
casos pode progredir de forma insidiosa. A confabulação, considerada o sintoma
típico, nem sempre está presente. Podem ocorrer alterações de comportamento
sugestivas de lesão no lobo frontal (apatia, inércia, perda de insight). O paciente
sente dificuldade em ordenar os eventos e preenche lacunas com falsas lembranças, ou em parte verdadeiras, mas em seqüências erradas (confabulação)13.
Tratamento
A contrário do que ocorre com a encefalopatia de Wernicke, o quadro clínico
da síndrome de Korsakoff não reverte após a reposição de tiamina. O tratamento
por vezes requer hospitalização e o diagnóstico diferencial com demência alcóolica nem sempre é fácil.
A clonidina (0,3mg 2 vezes ao dia), tem sido associada à melhora discreta da
memória recente. Propanolol (20mg/kg/dia) também tem sido utilizado no controle dos sintomas agudos. Infelizmente nenhum desses tratamentos parece ser
muito eficaz13.
O paciente internado5,10,13 recebe diazepam 20 mg (ou equivalente) a cada
hora até atingir-se uma sedação leve. A dose eficaz obtida é então dividida em
3-4 tomadas diárias e retirada gradualmente ao longo de uma semana. A via oral
145
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
é sempre a mais indicada. O diazepam e o clordiazepóxido têm absorção intramuscular errática. O mesmo não ocorre com o lorazepam, mas o mercado brasileiro não dispõe de sua apresentação em ampolas. Quando a via endovenosa é
a única possível, deve-se evitar a administração no soro fisiológico ou glicosado,
pois a estabilidade dos BZD nessas soluções é pobre. A melhor alternativa é a
injeção direta e lenta do diazepam (5mg em 2 minutos), a fim de evitar o risco
de parada respiratória.
A sedação branda alivia parcialmente os sintomas e expõe o paciente ao risco
de convulsões e delirium tremens. A supersedação aumenta o risco de quedas,
diminui o reflexo da tosse e acumula secreção pulmonar e atrasa a reabilitação
do paciente. Portanto, devem ser bem mensuradas a fim de evitar os extremos13.
Manutenção da abstinência 21,22
Aspectos farmacológicos
Medicamentos que atenuam o comportamento de beber
Naltrexona
A naltrexona é um antagonista opióide, utilizado classicamente nas intoxicações por opiáceos ou nas salas de recuperação anestésica. A ação reforçadora do
uso do álcool parece estar relacionada ao estímulo do sistema opióide cerebral.
A ação bloqueadora da naltrexona é capaz de reduzir a ação do álcool sobre o
sistema opióide, diminuindo o prazer e o desejo de consumir a substância.
A dose diária é única: 50mg. É relativamente segura, tendo como efeitos colaterais freqüentes náusea, vômito, dor abdominal, cefaléia e letargia, que melhoram ao longo do uso. Foram relatadas anormalidades hepáticas e trombocitopenia, em casos raros.
Acamprosato (homotaurinato de cálcio)
O acamprosato é uma droga segura que não interage com o álcool ou o diazepam e parece não ter nenhum potencial de criar dependência. O mecanismo
146
Ambulatório
de ação é incerto: parece estimular a transmissão inibitória GABA e antagoniza
aminoácidos excitatórios, especialmente o glutamato. A dose diária recomendada é de 1998mg e 1332mg para um peso corporal acima e abaixo de 60kg
respectivamente.
Medicamentos aversivos ao consumo de álcool
Dissulfiram (o “tira-álcool”)
A metabolização hepática do álcool passa por alguns estágios: por ação da
enzima álcool desidrogenase, o álcool é convertido em acetaldeído, uma molécula tóxica, capaz de produzir um quadro de rubor facial e do tronco superior,
taquicardia, cefaléia intensa, náusea, vômito e mal-estar. A enzima aldeído desidrogenase, transforma o acetaldeído em acetato, de baixa toxicidade, que é
eliminado pela urina.
O dissulfiram atua inibindo a aldeído desidrogenase, fazendo a metabolização
do álcool parar no acetaldeído. Os efeitos acima relatados iniciam rapidamente
após o consumo de álcool (de 10 a 30 minutos) e duram várias horas. A gravidade é muito variável: pode ser tão leve que o paciente ‘segue bebendo’, ou tão
grave a ponto de colocar sua vida em risco. Está cont,ra-indicado para pacientes
com cardiopatias, hipertensão, disfunção hepática ou renal, doença respiratória,
diabete ou epilepsia. Vitamina C intravenosa e anti-histamínicos estão recomendados como antídotos. Além da ação inibitória sobre a aldeído desidrogenase,
parece aumentar os níveis de dopamina no sistema mesolímbico, reduzindo o
desejo de beber.
O objetivo do dissulfiram é proporcionar ao paciente um motivo concreto para
não beber. Deve ser prescrito dentro de um ambiente de empatia e parceria
entre o terapeuta e o paciente, onde o último sinta que será de fato “uma força
a mais” para sua motivação e não um objeto de controle e submissão. Todos os
perigos devem ser rigorosamente explicados.
147
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
A dose diária preconizada vai de 100 a 200mg por dia. Efeitos colaterais incluem
letargia e fadiga iniciais, vômito, halitose, impotência e dificuldade respiratória
essencial. Sinais e sintomas mais raros são: psicose, dermatite alérgica, neurite
periférica e dano celular hepático. Interage aumentando o efeito-warfarina, inibe
o metabolismo dos antidepressivos tricíclicos, fenitoína e benzodiazepínicos.
O dissulfiram oral supervisionado parece ser eficaz quando incorporado a um
programa abrangente, quando utilizado em associação com um plano de manejo das contingências, uma abordagem de reforço comunitário ou no aconselhamento.
ABORDAGEM NA SALA DE EMERGÊNCIA
Intoxicação aguda
A intoxicação aguda, de maneira geral, caracteriza-se pela ingesta de uma ou
mais substâncias em quantidades suficientes para interferir nos sistemas de suporte do organismo13. Seus estágios variam de uma embriaguez leve à anestesia, coma, depressão respiratória e, raramente, morte. A intoxicação aguda
provoca alterações variáveis e idiossincráticas do comportamento e do afeto,
tais como excitação e alegria, desponderação, irritabilidade, agressividade, depressão e ideação suicida. Cognitivamente ocorrem lentificação do pensamento,
prejuízo da concentração, raciocínio, atenção e julgamento. Há maior susceptibilidade para acidentes automobilísticos, agressões físicas, suicídios e homicídios
e outros acidentes. Alterações psicomotoras incluem fala pastosa, prejuízo no
desempenho motor e ataxia5,10,13.
A Tabela 4 apresenta os níveis plasmáticos de álcool (mg%) e as alterações
fenomenológicas relacionadas5,10. A velocidade da ingesta, ingestão prévia de
alimentos, fatores ambientais e o desenvolvimento de tolerância aos efeitos do
álcool interferem nessa relação13. O nível plasmático de álcool legalmente permitido para a condução de veículos deve ser inferior a 0,06mg%.
148
Ambulatório
Tratamento
A maioria dos casos de intoxicação aguda pelo álcool não leva o indivíduo ao
pronto socorro. Costumam chegar para atendimento médico de urgência, intoxicações pronunciadas, com alterações do comportamento (p.e. agitação, quadros ansiosos e/ou depressivos, tentativa de suicídio, auto/heteroagressividade,
...), sedação e/ou confusão mental, ou associadas a sinais e sintomas clínicos
maiores (p.e. letargia, vômitos, perda da consciência...)5. A intoxicação aguda é
passageira (o organismo metaboliza cerca de 0,015mg% de álcool/hora10). Na
maioria dos casos é necessário apenas assegurar a interrupção da ingesta de álcool pelo indivíduo e proporcionar-lhe um ambiente seguro e livre de estímulos,
onde possa passar algumas horas. Diálogos objetivos e esclarecedores, voltados
para a realidade, situam e acalmam o indivíduo. Casos extremamente graves
podem ser tratados com hemodiálise10.
Um exame físico cuidadoso deve ser feito logo na entrada, a fim de detectar
sinais de complicações (p.e. aspiração brônquica, crises hipertensivas, TCEs, ...)
149
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
e sinais de cronicidade ou comorbidades (hepatomegalia, desnutrição, infecções,...). Caso seja possível, obtenha a história de uso do álcool e outras drogas
(pregressa e atual), patologias crônicas (clínicas e psiquiátricas) e medicamentos
em uso e queixas presentes do paciente. Pacientes comatosos requerem abordagem de emergência (quadro 2)13.
quadro 2: o paciente comatoso5
Aplicável para intoxicações por qualquer substância
O paciente inconsciente é uma emergência médica e requer uma abordagem
especial. Prioridades de suporte à vida devem ser estabelecidas rapidamente,
a fim de compensar sua incapacidade de fornecer à equipe de socorro dados
objetivos para a formulação do diagnóstico e do plano terapêutico. As intoxicações são apenas um dos fatores causais. As condutas iniciam-se mesmo frente à
inexistência de um diagnóstico firmado.
Primeiro passo: Sinais vitais e acesso endovenoso
• se ausentes, iniciar reanimação cardiorespiratória de imediato.
• infusão de soro fisiológico 0,9% ou ringer lactato em pacientes desidratados/
hipotensos
Segundo passo: Vias aéreas livres
• retificação da cabeça.
• remoção de corpos estranhos da garganta.
• ausculta cárdio-respiratória
• respiração artificial/intubação orotraqueal se necessário
• se a intubação é desnecessária: lateralização o decúbito do doente (afim de
evitar a aspiração de vômitos) e monitorização do padrão respiratório.
Terceiro passo: Circulação adequada
• aparelho de monitorização cardíaca
• parada cardíaca/fibrilação: massagem/desfibrilador
Quarto passo: Exame físico rápido
• condições da pupila/nistagmo
• marcas de agulha na pele
• odor do hálito
• palpação do fígado
• investigação de traumas (observar oto/rinorragia)
150
Ambulatório
Quinto passo: Exames laboratoriais
• testes toxicológicos (10ml de sangue)
• hemograma, eletrólitos, metabólitos e glicemia (30 - 40ml de sangue)
• gasometria arterial
Sexto passo: Trato urinário
• sodagem com catéter de Foley
• testes toxicológicos (50 ml de urina)
Sétimo passo: Infusão endovenosa de antídotos (quando há suspeita)
• naloxone [0,4 mg (adultos) e 0,01 mg/kg (crianças) infusão lenta]
Repetir uma ou duas vezes a cada 3 minutos se não houver resposta.
Melhora da freqüência respiratória = intoxicação opióide.
• flumazenil [0,3 mg em 15 segundos (adultos)]
Repetir 0,3 mg 1/1min. até a melhora do nível de consciência (dose máxima:
2mg). Melhora = intoxicação por benzodiazepínicos.
• fisostigmina [1-4mg (adultos) infusão lenta]
Caso haja suspeita de intoxicação por anticolinérgicos (taquicardia, pele/boca
secas, rash ...)
Oitavo passo: Exame de ponta de dedo
• hipoglicemia: Glicose 50% 50ml EV
Nono passo: Lavagem gástrica e carvão ativado
• intoxicações orais ocorridas há menos de 6 horas (ou até 12 horas no caso
da fenciclidina)
• reposição dos líquidos perdidos por via endovenosa
O exame de ponta-de-dedo informa prontamente a glicemia do usuário. Em
casos de reposição de glicose, deve receber 1 ampola de tiamina 100mg trinta
minutos antes, desde que os níveis glicêmicos não estejam críticos e ameaçadores à vida do doente. As células nervosas utilizam a tiamina na metabolização da
glicose. A ausência dessa pode desencadear a encefalopatia de Wernicke (vide
síndrome de Wernicke-Korsakoff)5,10,13. Indivíduos com história nutricional
adequada, tendo feito um uso abusivo e isolado, não necessitam de administração prévia de tiamina.
151
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Algumas substâncias como o naloxone, a zimelidina, o lítio foram testadas
com pouco sucesso na tentativa de antagonizar os efeitos físicos e cognitivos da
intoxicação pelo álcool. O flumazenil parece agir nos casos de comatose, além
de produzir melhora sensível na ataxia e na ansiedade10.
Transtornos amnésico-alcoólicos (blackouts)
Os blackouts10 são episódios transitórios e lacunares de amnésia retrógrada
para fatos e comportamentos ocorridos durante graus variados de intoxicação
alcoólica. Podem ocorrer em associação com o beber excessivo, em pessoas dependentes ou não, embora acredita-se que apareça nas fases tardias da dependência. Não há uma explicação causal de consenso. Teorias atuais acreditam
que haja uma relação entre a diminuição da serotonina e a desregulação dos
neurorreptores excitatórios na gênese dos blackouts.
Intoxicação alcoólica idiossincrática (intoxicação patológica)
A intoxicação patológica é caracterizada por um comportamento destrutivo,
impulsivo, desorganizado, sem um foco ou objeto específico, desencadeado
pelo uso de pequenas doses de álcool5,10. É normalmente seguida de exaustão
e amnésia lacunar para o episódio. Tal diagnóstico é raro e deve ser estabelecido
de forma criteriosa13. O álcool pode desencadear comportamentos agressivos,
mas na maioria dos casos há concordância com níveis sangüíneos elevados (intoxicação aguda). Pode haver dificuldade em diferencia-lo de outras patologias
como a epilepsia, o delirium tremens, o distúrbio do comportamento após traumatismo craniano e os quadros dissociativos10.
Quando o diagnóstico é provável deve-se investigar um foco epiléptico (especialmente a epilepsia de lobo temporal), síndromes mentais orgânicas, bem
como transtornos de personalidade anti-social e histriônica. A tomografia computadorizada (TC) de crânio e o eletroencefalograma (EEG) fazem parte da investigação5,10,13.
152
Ambulatório
Tratamento
Não há tratamento específico para a intoxicação patológica13. Na fase aguda
é necessário abordar o comportamento agressivo do paciente, através de métodos sedativos e de contenção mecânica. O haloperidol 5mg IM é utilizado para
sedação , podendo repeti-lo em 1 hora se necessário. Todo o paciente deve ser
orientado a evitar o uso de álcool ou pelo menos evita-lo quando está cansado,
com fome ou sob estresse. Tratamentos específicos devem ser instituídos na
vigência de um foco epiléptico ou síndrome mental orgânica.
Síndrome de abstinência do álcool
A síndrome de abstinência do álcool inicia-se num intervalo de horas após a
diminuição ou parada do consumo de álcool, secundária à queda de seus níveis
plasmáticos5,10,13. O tempo e a intensidade do uso são diretamente proporcionais à gravidade do quadro. Tem curso flutuante e autolimitado. A síndrome de
abstinência do álcool evolui de maneira ordenada, progressiva e aparente5,10,13:
o estágio inicial não-complicado, marcadamente autonômico e disfórico, pode
associar-se a episódios convulsivos tônico-clônicos generalizados, evoluir para
um quadro confusional (delirium tremens), ou ambos. Sinais e sintomas de abstinência podem ser mascarados pelo uso concomitante de medicamentos (p.e.
b- bloqueadores). Patologias de base (p.e. HAS) ou complicações concomitantes
(p.e. hipoglicemia) são capazes de exacerbar ou provocar quadros confusionais
semelhantes13.
Convulsões relacionadas à abstinência alcóolica
Cerca de 10 a 15% de usuários de álcool apresentam crises convulsivas, tipo
grande mal durante seus períodos de abstinência10,13. O consumo do álcool
diminui o limiar convulsivo, mas deve ser utilizado por longos períodos para
desencadea-las (sugere-se pelo menos 5 anos de uso contínuo). Em mais de
90% dos casos, ocorrem entre 7 e 38 horas após a última dose, com pico após 24
153
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
horas. Metade das tomografias de crânio de pacientes acometidos apresentam
algum tipo de lesão estrutural e um terço desses pacientes apresentam sinais
neurológicos focais ao exame físico. Um terço desses pacientes evoluem para
um quadro de delirium tremens. Outras causas de convulsão, tais como hipomagnesemia, hipoglicemia, alcalose respiratória e aumento do sódio intracelular, traumatismo com hemorragia intracraniana e história prévia de epilepsia ou
lesão do SNC estão associadas ao desencadeamento de convulsões alcóolicas e
devem ser investigadas.
Tratamento
Seu aparecimento indica que os sintomas de abstinência poderão ser graves10,13. O paciente deve ser internado e o tratamento farmacológico com BZD,
instituído. Os BDZ aumentam o limiar convulsivo e protegem o paciente de recorrências. Prescreve-se também sulfato de magnésio 1g intramuscular a cada 6
horas por 2 dias. Convulsões múltiplas podem ser tratadas com fenitoína 100mg,
3 vezes ao dia. A convulsão no ato do atendimento pode ser interrompida com
a administração endovenosa de uma ampola de diazepam 10mg.
Delirium tremens
O delirium tremens caracteriza-se por um quadro confusional agudo, flutuante
e autolimitado. Inicia-se cerca de 72 horas após a última dose e dura cerca de 2
a 6 dias5,10,13. Apenas uma pequena parte dos abstinentes evoluem para este
estágio. É uma condição de urgência médica, associada a riscos significativos de
morbidade e mortalidade, porém, com opções rápidas e eficazes de tratamento.
A sintomatologia habitual, em graus variados de intensidade, caracteriza-se
por estado confusional flutuante, com estreitamento do campo vivencial e marcado por desorientação temporal e espacial, prejuízo da memória de fixação
(fatos recentes), desagregação do pensamento, alucinações e delírios, que se somam aos sinais e sintomas de abstinência iniciais (tremor, inquietação/agitação
psicomotora, insônia, sudorese, febre leve, taquicardia, excitação autonômica
pronunciada,...). O afeto é lábil, marcado por estados ansiedade e temor, podendo haver depressão, raiva, euforia ou apatia.
154
Ambulatório
O quadro alucinatório clássico é visual10: insetos e pequenos animais, mas
pode haver também formas táteis, com sensação de insetos e animais caminhando pelo corpo do paciente e formas auditivas, que vão de ruídos e sons
primários a vozes de natureza persecutória. Os pacientes com quadros ilusionais
tomam objetos por animais (p.e. o equipo do soro é uma serpente) e identificam
pessoas erradamente (falsos reconhecimentos). A reação afetiva à experiência
alucinatória é congruente e geralmente marcada por ansiedade intensa (terror) e
agitação. Os delírios podem ser sistematizados ou não.
Tratamento
A internação é sempre indicada5,10,13. Os pacientes devem passar pela mesma avaliação diagnóstica e receber o mesmo tratamento suportivo descrito para
os casos não-complicados. Devem permanecer em um ambiente desprovido de
estímulos e iluminado: o quadro piora com freqüência ao entardecer ou em ambientes pouco iluminados, fenômeno conhecido por sundowning. Em casos de
agitação e confusão extremas faz necessária a contenção mecânica, visando a
protegê-lo de auto-agressões.
O tratamento medicamentoso segue o mesmo esquema, porém, quando houver predomínio de sintomas alucinatórios, pode-se administrar haloperidol 5mg
por via intramuscular. O haloperidol diminui o limiar convulsivo e por isso deve
ser utilizado após pelo menos 20mg de diazepam terem sido administradas.
Sedativos com ação anticolinérgica (p.e. prometazina) podem desencadear ou
piorar os quadros de delirium.
Cocaína
A cocaína é um alcalóide natural, extraído da planta Erythroxylon coca, estimulante do SNC e anestésico local. Foi isolada na virada desse século e largamente
utilizada pela medicina até o início dos anos 20, quando foi proibida em vários
países da Europa e nos Estados Unidos devido à dependência e aos comportamentos de abuso que causava. Ressurgiu nos anos 80 e é hoje a droga ilícita mais
comumente mencionada nas admissões em prontos socorros.
155
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Boa parte dos indivíduos faz uso de cocaína associado a depressores do SNC
(álcool, benzodiazepínicos, maconha [no contexto brasileiro] e opiáceos)13,, visando a contrabalançar os efeitos simpatomiméticos da droga. Pode haver dependência de álcool associada, que produz sinais e sintomas de abstinência e/
ou delirium, nos dias que seguem à admissão. A cocaína e o crack, vendidos nas
ruas, por sua condição ilícita, não têm controle de qualidade, possuem toda a
sorte de adulterantes (tabela 5) e métodos de refino e alcalinização duvidosos,
aumentando ainda mais a vulnerabilidade dos usuários.
Pode provocar sinais e sintomas físicos e psíquicos agudos importantes, tanto
em usuários crônicos, eventuais ou iniciantes, instabilizar problemas clínicos de
base ou ainda gerar complicações clínicas pelo uso prolongado. A intoxicação
pela cocaína, devido à alta taxa de prevalência e sua capacidade geradora ou
desencadeadora de complicações focais e sistêmicas, deve constar no rol dos
diagnósticos diferenciais nas salas de emergência e requer avaliação psiquiátrica
e clínica.
Administração e biodisponibilidade
A cocaína pode ser utilizada por qualquer via de administração: oral, intranasal, injetável ou pulmonar3,10. A via escolhida interfere na quantidade e na
qualidade dos efeitos provocados pela substância. Quando maior e mais rápido
o início e a duração dos efeitos, maior a probalidade de dependência e abuso.
As particularidades de cada via expõem os usuários a determinados riscos, tais
como contaminações pelo compartilhamento de seringas, exacerbação de quadros asmáticos, rinites persistentes, dentre outros.
156
Ambulatório
A administração oral3,18, o hábito de mascar ou tomar chás de folha de coca,
é secular e cultural nos países andinos, por suas características reativantes e anorexígenas. As folhas têm baixa concentração de cocaína (menos de 2%), com
chances remotas de intoxicação. Apenas 20-30% da cocaína ingerida é absorvida
pelo organismo, os efeitos iniciam-se cerca de 30 minutos depois e duram cerca
de 90 minutos. Pessoas que ingerem a cocaína e/ou crack frente a flagrantes policiais ou no caso dos bodypackers, narcotraficantes que ingerem invólucros de
cocaína a fim de transporta-la para outras regiões do país ou do globo, devem
receber atenção clínica especial visando a prevenir/tratar uma possível overdose.
A via intranasal3,18 ou aspirada tem biodisponibilidade de 30%. Boa parte pó
refinado prende-se a mucosa nasal, onde é absorvido pela circulação local. O
efeito da cocaína pode ser sentido minutos após a primeira administração, com
duração de 30 a 45 minutos.
A cocaína fumada3 era pouco utilizada até o aparecimento do crack (quadro
3). A pasta da cocaína, produto intermediário do refino, é obtida após a masseração e tratamento das folhas de coca com ácido sulfúrico, alcali e querosene. É
fumada nas regiões produtoras, mas pouco popular em outros países. O refino
e obtenção do cloridrato de cocaína se dá a partir da acidificação da pasta, com
ácido clorídrico. A cocaína refinada é ácida e por isso pouco volátil e sujeita à degradação em altas temperaturas. A pasta e o crack, de natureza básica, têm pontos de ebulição mais baixos e podem ser fumados. A fumaça inalada é composta
por vapores de cocaína (6,5%) e suas minúsculas partículas (93,5%). Ambos podem ter de 20 a 85% de substância ativa, seus efeitos são sentidos em menos de
10 segundos e duram de 5 a 10 minutos. O índice de absorção é variável: 6-32%.
quadro 3: O crack3,18
O crack é obtido a partir da uma mistura de cloridrato de cocaína (pó refinado)
com um componente básico (bicarbonato de sódio, amônia,...) e um solvente
(éter, acetona,...), em seguida evaporado, restando apenas os cristais. O crack é
incolor, inodoro, cristalino e estala quando aquecido (cracking), particularidade
que lhe deu o nome. Pode ser fumado em cachimbos improvisados ou misturado ao tabaco ou à maconha (freebase).
157
Io Curso para Formação de Agentes Multiplicadores
Seus efeitos euforizantes rápidos, intensos e de curta duração induzem à dependência ou a comportamentos de uso continuado com mais facilidade.
A cocaína injetável3 começa a agir no SNC 30 a 45 segundos após a aplicação.
A via elimina a etapa de absorção e o efeito de primeira passagem hepática.
Desse modo, o aproveitamento da cocaína é de 100%, sendo necessária uma
dose 20% menor da ingerida ou aspirada. O efeito euforizante dura cerca de 20
minutos. A tabela 6 sintetiza o exposto nessa seção.
A ativação dos receptores mu e delta produz sedação e um estado de euforia e bem-estar, responsáveis pelo comportamento de busca continuada da
substância (reforço). Os receptores capa são capazes de produzir sedação, mas
também um quadro disfórico, inibindo a auto-administração quando estimulado isoladamente. Os receptores mu suprimem a tose, inibem a peristalse e a
diarréia, diminuem o esvaziamento urinário, a freqüência respiratória e cardíaca,
são hipotensores, ansiolíticos e indutores de um estado de indiferença física e
psíquica à dor.
Os receptores opiáceos possuem antagonistas específicos, naltrexone e naloxone, capazes de reverter a analgesia e a sedação produzidas pela substância,
bem como desencadear quadros de abstinência em usuários crônicos10.
Os opiáceos são também classificados de acordo com sua afinidade e atividade por um ou mais receptores e pela intensidade e duração de sua ação analgésica3. Alguns dos mais utilizados estão relacionados na tabela 9. Os agonistas
mu, analgésicos fortes e de ação longa são os mais relacionados com o uso
abusivo e à dependência.
158
Download