Revisão/Atualização em Diálise: Infecções relacionadas ao cateter

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J. Bras. Nefrol. 1997; 19(4): 442-446
Revisão/Atualização em Diálise: Infecções
relacionadas ao cateter
Francisco Ramos Alves
CDR-Clínica de Doenças Renais, Hospital dos Servidores do Estado, RJ
Endereço para correspondência: Francisco Ramos Alves
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CEP 22260-020 Rio de Janeiro, RJ
Tel. (021) 539-2240 Fax (021) 266-2958
E-mail: [email protected]
Introdução
A diálise peritoneal só se tornou viável como opção
terapêutica da insuficiência renal crônica terminal após a
utilização de cateteres de longa permanência. Complicações
decorrentes do uso deste acesso, como infecções relacionadas
ao cateter (IRCat), obstrução e extravasamento de líquido
de diálise são freqüentes e ainda permanecem desafiando
aqueles que trabalham com esta terapia, pois não tem sido
possível modificar significativamente este quadro, mesmo
com o uso de rotinas exaustivas de cuidados ou com o
emprego de novos tipos de cateter, razão do modelo de
Tenckhoff ser ainda o mais utilizado até hoje. 1,2,3
A IRCat é a maior causa de perda de cateter e peritonites.
Porém, só foi reconhecida como tal após a redução da alta
freqüência de peritonites de origem intraluminal obtida com
o o uso de sistemas em “Y” de CAPD. Apresenta-se sob
duas formas de curso e prognóstico distintos: 1) infecção no
local de saída do cateter (ILS), mais freqüente, que se
caracteriza pela eliminação de secreção purulenta, associada
ou não a outros sinais inflamatórios (dor, rubor, etc), e 2)
infecção no túnel (IT) formado pelos tecidos que envolvem
o cateter desde o tecido celular subcutâneo até o seu sítio de
penetração na cavidade peritoneal. É mais grave e evolui
com freqüência para peritonite. Normalmente eritema, dor
e aumento do volume da região do trajeto do cateter são as
suas características. A cultura bacteriológica positiva não é
fundamental para confirmar o diagnóstico em ambas as
apresentações. A alta morbidade destas infecções é
responsável pela perda de mais de 50% dos cateteres e são
causa de peritonites de difícil tratamento clínico.5
Provavelmente, por falta ainda de uniformidade nos
critérios de diagnóstico e de classificação desta complicação,
a literatura mostra resultados díspares quanto a sua
incidência. Há relatos de 0,27 episódios por paciente/ano4
ou tão elevados quanto mais que 1 episódio/ano. Hoje é
considerado razoável uma incidência de aproximadamente
1 infecção a cada 24 pacientes/mês. A nossa experiência em
episódios/paciente/mês (Epis/pac./mês), do programa da
Clínica de Doenças Renais, RJ, (Tabela 1) confirma a alta
incidência em nosso meio.
Tabela 1
Total de Pacientes IRCat
(pac/mês) n (freqüência)
Todos
5287
561 (1/9,4)
Adultos
4412
462 (1/9,5)
Crianças
875
99 (1/8,8)
ILS
n
515
422
93
IT
n
46
40
6
Estes resultados estão de acordo com outros relatos no
país aos quais atribuímos, em parte, a fatores climáticos 6
associados a problemas com técnica cirúrgica e dificuldades
de realizar “break in” adequado.
Fatores Predisponentes
À parte da condição individual do paciente (estado
nutricional e doenças associadas), os principais fatores que
predispõem ao desenvolvimento destas complicações são:
Técnica Cirúrgica e “Break in”. O cuidado durante o
procedimento cirúrgico e a obediência a detalhes técnicos
como hemostasia cuidadosa, confecção de túnel ajustado
ao diâmetro do cateter e distância entre o “cuff” externo e a
pele, possibilitam a base para um cateter com menor risco
de complicações. O uso precoce do cateter e situações que
provoquem aumento da pressão intra-abdominal (esforço
físico, grandes volumes de líquido peritoneal, etc.) devem
ser evitados como forma de prevenir a ocorrência de
extravasamento de líquido pelo túnel.
Cicatrização. Vem sendo dada especial atenção,
ultimamente, 7 à velocidade de cicatrização do local de saída
do cateter no pós-operatório por apresentar relação direta
com a sobrevida do cateter. Pacientes 7 com cicatrização
rápida iniciaram a epitelização do óstio do cateter e
A publicação desta seção foi possível graças à colaboração da
Janssen Cilag.
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cessaram a drenagem de secreções decorrentes da cirurgia
na 3ª semana. Estes cateteres apresentaram menor
incidência de infecção. Naqueles com cicatrização mais
lenta, a epitelização só começou após três semanas e não
foi completada até a 5ª semana. O retardo da cicatrização
pode também ser causado por contaminação de ferida
operatória. Os cateteres que apresentaram contaminação
tardia desenvolveram menor número de IRCat, peritonite
e maior sobrevida.
A presença de Staphylococcus coagulase negativo esteve
associada ao desenvolvimento posterior de infecções por
outros patógenos e a presença de germes de maior virulência
(S. aureus, Pseudomonas) se acompanhou de infecção.
Uma evidência prática destes conceitos tem sido
demonstrada em estudos iniciais com o cateter de MoncriefPopovich, onde a baixa incidência de complicações
infecciosas é atribuída à técnica de implantação utilizada,
onde o cateter é mantido por inteiro no tecido subcutâneo e
só é exteriorizado após 3 a 8 semanas, no momento de iniciar
o tratamento. Este procedimento reduziria a chance de
contaminação do cateter durante a cicatrização. 7
Portadores nasais de Staphylococcus aureus. Esta
condição tem sido associada também ao desenvolvimento
de IRCat e peritonites. 4,8 O estudo multicêntrico europeu
“Mupirocin Study Group” 9 avaliou 134 portadores nasais
em uma população de 1144 pacientes em CAPD que usaram
mupirocin nasal intranasal e comparou com 133 pacientes
do grupo controle, que utilizaram placebo. Houve redução
significativa das IRCat por S. aureus durante o período de
observação de 18 meses, porém não foi observada diferença
na freqüência de IT e peritonites nestes grupos. Bernardini
10
mostrou que o uso de rifampcina em intervalos regulares
reduzia significativamente a freqüência de IRCat por S.
aureus. Alguns autores, no entanto, falharam em demonstrar
a coincidência entre as cepas nasais e as encontradas no local de saída. 7 De uma maneira geral, apesar de algumas
discordâncias, aceita-se a relação de causa e efeito do estado
de portador nasal e aumento da freqüência da IRCat por S.
aureus em diálise peritoneal.
Classificação das IRCat
A observação regular do óstio do cateter, através de lupa
com poder de aumento de 3 a 5 vezes, pode diagnosticar
infecções ainda em estágios precoces. A história clínica,
coleta de material para bacteriologia e comparação com os
registros de avaliações anteriores, confirmam o diagnóstico.
Os diversos sinais de infecção podem estar presentes em
várias combinações e estão meticulosamente descritos no
suplemento especial sobre IRCat publicado no “Peritoneal
Dialysis International” de junho/96, organizado pelo grupo
da Columbia University/Missouri. Para efeito prático, nós
utilizamos a seguinte classificação resumida que nos permite
diagnosticar e estabelecer a nossa estratégia de tratamento
com segurança:
Infecções agudas
• Evolução até 4 semanas
• Drenagem - purulenta ou sanguinolenta em torno do
cateter ou no curativo
• Presença de granuloma em desenvolvimento e crostas
• Epitélio ausente ou cobrindo parcialmente o local de
saída
• Eritema (diâmetro > 12 cm), edema e dor
• Início de extrusão do “cuff” externo
• História ou evidências de trauma
Infecções crônicas
•
•
•
•
Tempo de evolução maior que 4 semanas
Aparência semelhante às infecções agudas
Granuloma exuberante
Extrusão do “cuff” externo
Local de saída perfeito
•
•
•
•
Epitélio maduro cobrindo todo o óstio do cateter
Ausência de secreção
Ausência de granulomas
Paciente sem sintomas
Prevenção da IRCat
Os procedimentos abaixo relacionados devem ser
utilizados como profilaxia das infecções relacionadas ao
cateter.
Cuidados com o Cateter
Pré e pós-operatório
A freqüência elevada de IRCat e a diversidade de
propostas de procedimentos denunciam que ainda estamos
distantes da rotina ideal. Dados recentes sobre a necessidade
de preservar o processo de cicatrização levaram Prowant e
Twardowski 7 a propor os seguintes cuidados para prevenir
a colonização bacteriana no pós-operatório e minimizar a
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proliferação de germes durante a cicatrização.
• manuseio dos cateteres deverá ser realizado com
técnica asséptica pela equipe da diálise peritoneal ou
por pacientes bem treinados;
• Monitorização da cicatrização até a 6ª semana, quando
deverá ser completada;
• Realizar investigação bacteriológica em caso de
retardo da cicatrização;
• Tratamento de condições mórbidas associadas
(portadores nasais);
• Uso de antibiótico profilático no pré-operatório.
Twardowski sugere manter por 2 semanas após o
implante. 7
Manutenção
Não existem grandes discordâncias quanto aos princípios
que devem orientar estes procedimentos;
• Local de saída deve ser limpo diariamente e mantido
seco;
• Lavar as mãos antes de realizar os cuidados e inspeção
diária;
• Evitar agentes irritantes no óstio do cateter;
• Evitar trauma (roupas, remoção de crostas) e
imobilizar o cateter.
Tipos de Cateter
O cateter de Tenckhoff tem a vantagem da simplicidade
da técnica de implantação e ser bastante difundido o seu uso
em relação aos outros tipos de cateter. Como aspecto negativo
em sua concepção tem sido referido o local de saída
direcionado para cima (dificultaria drenagem de secreções)
11
e a tendência à extrusão do “cuff” externo. A tabela 2
mostra os modelos existentes e as principais modificações
introduzidas em relação ao cateter de Tenckhoff para
prevenção de IRCat.
Analisamos dados retrospectivos de nosso programa12
de CAPD referentes a 49 cateteres swan neck abdominal
(Missouri 2) que foram comparados aos de 82 Tenckhoff
com duplo “cuff”. Não houve diferença significativa na
incidência (epis./pac./mês) de ILS (1/11) e IT (1/199 vs. 1/
Tipos
Swan neck abdominal
Swan neck torácico
Moncrief-Popovich
Cateter impregnado com prata
Cateter Gore-tex
109) respectivamente. A sobrevida actuarial também foi
semelhante no período de observação de 4 anos. A
superioridade do cateter swan neck em relação a IRCat
também não foi confirmada em outras publicações. 13,14,15
Twardowski publicou sua experiência de 4 anos 16 com
o cateter swan neck torácico, onde descreve não ter
encontrado diferença estaticamente demonstrável entre a
freqüência de IRCat entre este modelo e o cateter swan neck
abdominal. Ambos apresentaram sobrevida actuarial de 88%
em dois anos.
Gray 17 reviu dados de 105 cateteres de MoncriefPoppovich e mostrou que 85% dos cateteres não
apresentaram IRCat no 1º ano de observação e no 2º ano
81%. Neste estudo o tempo de implante subcutâneo total
foi de 6 semanas. Esta técnica de implante, usando-se, porém,
o cateter de Tenckhoff 19 com tempo de sepultamento no
subcutâneo por 4 semanas, mostrou uma incidência de IRCat
de 1 epis/14,9 pac./mês, mas registrou uma alta taxa de
complicações pós-operatórias, como hematomas
subcutâneos (n=12) em 26 cateteres implantados. Ramos19
também registrou índices de complicações pós-operatórias
elevadas utilizando o cateter de Tenckhoff implantado com
a técnica de sepultamento.
A prata é conhecida por ter atividade antimicrobiana
contra diversos microrganismos. De modo experimental,
cateteres impregnados com sais de prata vêm sendo
utilizados em animais. 20,21 Dasgupta 22 demonstrou que estes
cateteres promovem melhor fibrose pericateter, mas chamou
a atenção que, com o tempo, a prata é absorvida pelos
macrófagos, o que traz preocupação quanto à possível
toxicidade sistêmica. A utilização por Pommer23 de um anel
de prata em volta do cateter sobre o local de saída não
resultou em efeito benéfico na prevenção de IRCat.
O cateter Gore-tex foi concebido para evitar a penetração
de germes pelo local de saída do cateter através de
interposição de um disco de PTFE sob a pele. Também não
apresentou diferença entre os índices de infecção quando
foi comparado ao cateter de Tenckhoff. 24 Este cateter caiu
em desuso devido a grande fibrose que provoca, dificultando
a sua remoção.
Tabela 2
Principais Características
Segmento entre os “cuffs” curvo, local de saída direcionado para baixo (drenagem de secreções)
Parede torácica mais estável que abdominal
Implante total do cateter no subcutâneo e cicatrização com menor risco de contaminação
Inibição de proliferação bacteriana com sais de prata
Disco de PTFE abaixo da pele + “cuff” longo de PTFE ao longo do túnel
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Tratamento
A Sociedade Internacional de Diálise Peritoneal
recomenda, em seu protocolo de 1996, o início de
antibioticoterapia a partir do momento em que fique
configurado o quadro de IRCat, após a coleta de material
para cultura. Cefalosporinas e quinolonas podem ser usadas
nesta fase. A vancomicina vinha sendo recomendada por
sua praticidade em pacientes com insuficiência renal e por
sua eficácia contra S. aureus, mas devido ao surgimento de
cepas de Enterococcus resistentes à vancomicina (VRE) e
aos recentes achados de S. aureus com reduzida sensibilidade
a este antibiótico, 25,26,27 deve ser evitada nestas complicações,
e em outras situações de uso empírico de antibióticos, pela
possibilidade de desenvolvimento de Methicillin-resistant
S. aureus (MRSA) com resistência associada à vancomicina.
Esta nova situação reduz as chances de tratamento destas
complicações, que já apresentam índices insatisfatórios,
conforme a avaliação de 519 episódios IRCat agudos de
nosso programa, onde apenas 63% evoluíram para cura
(n=329). Os demais 30% tornaram-se crônicos (n=155) e
7% (n=35) evoluíram para a retirada dos cateteres. O
percentual de cura das infecções crônicas foi 57% (n=88).
Houve perda do cateter em 28% (n=44) e 15% (n=23)
permaneceram com infecção crônica. O Staphylococcus
aureus foi isolado em 56% das culturas das IRCat agudas e
em 79% das crônicas. Pseudomonas (21%) cresceu no
restante das infecções crônicas.
A elevada morbidade das IRCat, causada em parte pela
prevalência de bactérias como o S. aureus (agora com
restrição ao uso da vancomicina) e Pseudomonas, no nosso
entender, deve ter uma abordagem mais agressiva através
de: 1) Intervenção cirúrgica precoce, realizando
debridamento das infecções crônicas (retirando granulomas
e/ou “cuff” subcutâneo) ou procedendo a troca do cateter 2)
Métodos de diagnóstico mais sensíveis como
ultrassonografia28 e estudo com radioisótopos29 da região
do cateter para identificar sítios de infecção não perceptíveis
ao exame clínico e 3) Conscientização e treinamento de
pacientes e equipe de diálise peritoneal em relação ao
tratamento preventivo aqui descrito previamente.
Em conclusão, as IRCat provavelmente continuarão
como importante fator de morbidade em diálise peritoneal
porque, apesar das inúmeras tentativas, as características
básicas do cateter permanecem inalteradas. Acreditamos que
somente uma revolução tecnológica tal e qual aconteceu com
os sistemas em “Y” de CAPD, que reduziram
expressivamente a incidência de peritonites, possibilitaria o
controle desta complicação.
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