O BRASIL FRENTE À “GUERRA CAMBIAL” NO MUNDO

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CARTA ECONÔMICA
Outubro de 2010
Por George Bezerra
O BRASIL FRENTE À “GUERRA CAMBIAL” NO MUNDO
Por que e de que forma estaria ocorrendo uma “guerra cambial” no mundo e qual a posição do Brasil frente a esta
situação? Quais serão as implicações sobre o desempenho da economia brasileira nos próximos anos?
As Origens e Explicações para a “Guerra Cambial”
Durante vários anos, até 2008, a economia americana sustentou taxas elevadas de crescimento baseadas no consumo
doméstico e em financiamentos obtidos do exterior. Naquela época a taxa de poupança doméstica nos EEUU situava-se
próximo de zero, enquanto os déficits no balanço de pagamentos em transações correntes eram muito elevados (forma
pela qual um país absorve poupanças do resto do mundo). Em contrapartida, várias economias do mundo emergente,
entre as quais China, Índia e Brasil, acumulavam superávits em transações correntes.
Veio então a crise de 2008 na economia americana exigindo um enorme acréscimo dos gastos públicos naquele
país para evitar uma crise bancária sistêmica. De início grande parte dos prejuízos dos bancos foi absorvida pelo setor
público e ainda houve a necessidade de um programa adicional de gastos no valor de quase 01 trilhão de dólares (para
tentar reduzir o impacto da retração do consumo privado sobre a recessão e o desemprego).
Diante da queda dos preços das ações e dos imóveis as famílias americanas sofreram uma brutal perda de riqueza.
E a taxa de desemprego dobrou. Numa economia como a americana, em que a rede de proteção social é relativamente
pequena, uma situação como esta impõe a necessidade de uma forte elevação da taxa de poupança das famílias. Isto criou,
temporariamente, uma barreira contra o crescimento do consumo privado doméstico, que representa aproximadamente
2/3 da demanda agregada nos EEUU.
A essa altura, portanto, de um lado existem fortes restrições de natureza econômica e política à continuidade da
expansão dos gastos públicos nos EEUU; e de outro, nem mesmo taxas de juros próximas de zero e o enorme aumento da
liquidez pelo banco central têm sido capazes de expandir o consumo privado. Nestas condições, resta aos responsáveis
pela política econômica uma única alternativa: tentar obter das exportações líquidas uma maior contribuição para a
retomada do crescimento do PIB. Ou seja, reduzir fortemente o déficit em transações correntes (que correspondia à
absorção de poupanças externas nos anos anteriores à crise).
Mas, para que uma economia do tamanho da americana possa reduzir o seu déficit em transações correntes é
necessário que outras economias importantes do mundo reduzam os seus superávits. E a redução dos superávits em
transações correntes exige que estas demais economias não somente cresçam, mas que o façam agora eminentemente
com base na expansão do consumo doméstico, e não das exportações líquidas. E como os países da Europa e a Inglaterra
também estão em crise, este ajuste tem que ser feito nas principais economias emergentes, que hoje se encontram
relativamente mais saudáveis (em parte por terem se beneficiado, durante anos, do crescimento da economia
americana). Isto inclui, destacadamente, a China, a Índia e o Brasil.
Finalmente, esta simultânea redução de déficit nos Estados Unidos e de aumentos dos déficits nos países emergentes
exige que o dólar norte americano de desvalorize frente às moedas dos países emergentes. Para viabilizar isso, além
da própria crise na economia americana, que já a torna menos atraente para os investidores do resto do mundo, o
banco central americano precisa reduzir a taxa de juros doméstica, tornando-a mais baixa que a praticada nos países
emergentes.
O desempenho recente do Brasil não poderia ser mais adequado como contribuição individual a este ajuste global tão
crucialmente necessário para superação da crise no mundo desenvolvido. Pois a nossa economia cresce a taxas muito
elevadas e o superávit anteriormente existente nas transações correntes já foi transformado em déficit (desde 2008),
que, por sua vez, já cresce também em ritmo muito forte.
CARTA ECONÔMICA
Outubro de 2010
Mas a forma como o Brasil vem fazendo isso não é a mais adequada, pois tem se baseado em grande medida na
continuidade e fortalecimento da expansão dos gastos públicos. E como a taxa de poupança privada é muito baixa, isso
coloca uma enorme pressão sobre a taxa de juros doméstica. Dessa forma, a moeda brasileira tende a se valorizar frente
ao dólar norte-americano, não somente porque, no curto prazo, o Brasil tem condições de crescer muito mais que os
Estados Unidos, mas também porque praticamos a taxa real de juros mais alta do mundo. E é principalmente por isso que
surgem distorções e problemas que ameaçam a continuidade do bom desempenho da economia brasileira.
Mas, se estes movimentos das taxas de câmbio são ajustes normais numa economia globalizada, qual a justificativa
para o diagnóstico de que existiria uma “guerra cambial” deflagrada por outros países e que estaria causando danos ao
Brasil?
Nas atuais circunstâncias nos parece que a expressão “guerra cambial” ainda é algo exagerada. Mas existe uma clara
tendência para esta indesejável e perigosa situação contra a qual o FMI e outros organismos de cooperação multilateral
tentam trabalhar (este foi o tema que dominou a última Assembléia Anual do FMI, ocorrida há poucos dias). As posturas
que têm contribuído para este conflito resultam, destacadamente, da China e dos Estados Unidos. Vejamos com um
pouco mais de detalhe cada uma delas.
No que concerne aos EEUU, é perfeitamente natural que os responsáveis pela política econômica utilizem instrumentos
para reduzir os seus déficits, o que implica, como já dissemos, que os principais países emergentes reduzam os seus
superávits (ou mesmo expandam ainda mais os seus déficits, dentro de certos limites). Também não é razoável esperar
que os Estados Unidos obtenham parte da desvalorização real da sua taxa de câmbio por meio de deflação, já que isto
lhe imporia custos insuportáveis, que acabariam também por atingir ao resto do mundo. Portanto, o que justifica algum
questionamento é apenas a forma como a política econômica nos EEUU tem sido conduzida para esse fim. Ou seja, além
de reduzir a taxa básica de juros para níveis próximos de zero e indicar que ela permanecerá assim por muito tempo,
o banco central americano tem inundado o mercado com dólares (a chamada quantitative easing) e emitido sinais de
que continuará fazendo isto de forma ilimitada. E sendo o dólar a moeda de aceitação internacional, ela transborda para
o resto do mundo e reforça ainda mais a sua desvalorização frente às demais moedas dos outros países. Dessa forma,
tirando proveito do fato de ser o único emissor da moeda global, o banco central americano tenta transferir para o resto
do mundo uma parte do ônus do ajuste da sua economia que muitos consideram além do razoável e legítimo.
A outra distorção se origina na China e é bem mais clara e inquestionável. Há vários anos o governo chinês tem
mantido a sua moeda artificialmente sobre-desvalorizada e praticamente atrelada ao próprio dólar norte-americano.
Dessa forma, neutraliza e se torna imune ao movimento de desvalorização do dólar frente a outras moedas, tão
necessário para a economia mundial. Consegue isto por meio de uma forte centralização das operações de câmbio
(controles administrativos no banco central) além de compras maciças de dólar no mercado doméstico, que já elevaram
as suas reservas para quase três trilhões de dólares.
Recentemente, diante das enormes pressões dos Estados Unidos, Europa e organismos internacionais, a China
anunciou que passaria a permitir uma valorização mais rápida da sua moeda frente ao dólar. Mas a mudança efetiva
verificada até agora foi insignificante. Desde o início da crise, em 2008, a valorização da moeda chinesa frente ao dólar
foi insignificante, comparada às de todos os demais países emergentes. Dessa forma, embora seja a economia que mais
cresce e que mais acumula reservas em dólares no mundo, a China continua se recusando a participar dos ajustes de
balanços de pagamentos que se fazem necessários em escala global (o governo chinês argumenta que uma valorização
mais rápida da sua moeda provocaria uma grave crise em vários setores de exportação).
A China alega que deve ter o direito de conduzir a sua política cambial da forma que lhe aprouver, e o mesmo considera
o governo americano em relação à sua política monetária. E são posições intransigentes como essas que, de fato,
colocam um risco concreto de que as atuais dificuldades resvalem para uma “guerra cambial”.
CARTA ECONÔMICA
Outubro de 2010
Os Riscos para o Brasil
O Brasil tem uma taxa de poupança doméstica que é menos da metade da que se verifica na China. Portanto,
necessita de poupança externa (déficit em transações correntes) para crescer e, consequentemente, também não pode
abrir mão de uma entrada forte de capitais externos (a China necessita de capitais externos muito mais para viabilizar
a transferência de tecnologia que para complementar a sua poupança doméstica). Portanto, a dependência da China
de capitais estrangeiros é e continuará sendo, nos próximos anos, bem menor que a do Brasil. É fundamentalmente
por isso que a China tem mais facilidade de controlar a entrada de capitais e a taxa de câmbio. As diferenças entre as
economias e os regimes políticos desses dois países são muito grandes, e precisam ser levadas em conta quando se
fazem comparações entre as posturas adotadas por eles diante do setor externo.
A globalização tem suas vantagens, mas elas não resultam, na prática, de valores humanos tão elevados como a
solidariedade e o altruísmo entre os países. O Brasil precisa tomar medidas visando reduzir o impacto dessa crise global
sobre a sua economia no médio e longo prazo. É preciso estar atento para o fato de que a enorme entrada de recursos
externos que está jogando para cima o valor do real frente ao dólar tem caráter enganoso, uma vez que é temporário.
Tão logo a economia americana supere a sua fase mais difícil e a taxa de juros naquele país retorne a níveis próximos do
equilíbrio de longo prazo, a realidade se mostrará completamente diferente. E aqueles países emergentes que tenham
lidado com esta fase extraordinária – na qual são convidados e estimulados a crescer mais - de maneira irresponsável,
irão pagar um alto preço. Quando isso ocorrer o déficit em transações correntes no Brasil estará muito acima do atual.
Se as condições fiscais não estiverem em ótima forma enfrentaremos grandes dificuldades.
A economia mundial atravessa uma fase extraordinariamente complicada, na qual os países desenvolvidos têm
adotado medidas pouco ortodoxas. Os preços dos ativos de risco e das commodities e o fluxo de capitais de curto
prazo para os países emergentes estão sendo elevados de maneira artificial pela enxurrada de dólares. Numa situação
como esta é perfeitamente razoável que o Brasil também adote medidas extraordinárias, como controles de capitais de
natureza temporária e cuidadosamente avaliados. Mas é necessário, antes de tudo, preservar os fundamentos de médio
e longo prazo, para que o crescimento esteja assentado em bases sólidas quando esta fase de transição for superada.
Vários bons economistas têm sugerido que a melhor maneira de o Brasil lidar com esta crise é cortando os gastos
públicos correntes para preservar os investimentos e viabilizar a queda da taxa de juros. Achamos que a recomendação
é obviamente correta, embora, com relação à taxa de câmbio, os resultados pudessem vir a ser um pouco diferentes do
que usualmente se espera.
Nas atuais circunstâncias, o simples anúncio crível de contenção dos gastos públicos correntes permitiria a queda
da taxa de juros. Mas isto não necessariamente contribuiria para reduzir a pressão sobre a taxa de câmbio. Pois o
efeito da queda do diferencial de taxa de juros sobre a entrada de recursos externos poderia ser neutralizado, total,
ou parcialmente, pela melhoria dos fundamentos que resultaria desta medida. O que melhoraria, sem dúvida, seria a
composição da entrada de capitais, reduzindo o componente que é atraído pelo diferencial de taxa de juros e elevando a
participação dos investimentos diretos de médio e longo prazo.
Mas a reversão da tendência de descontrole de gastos públicos que se agravou nos últimos anos é uma necessidade
imperiosa, independentemente das condições verificadas na economia mundial. Desde 2003 o Brasil tem se beneficiado
de condições externas muito favoráveis, tendo enfrentado uma única crise, no final de 2008 e primeiro semestre de
2009. Doravante, na melhor das hipóteses, passaremos a depender muito mais da qualidade da política econômica
doméstica. O que exige, fundamentalmente, o controle dos gastos públicos e a retomada das reformas estruturais, tema
este quase completamente ausente do debate eleitoral.
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