A crise da dívida dos Estados Unidos e a perda da nota AAA

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O fim do século Americano?
José Eustáquio Diniz Alvesi
A primeira semana de agosto de 2011 foi marcada, além do aniversário de 50 anos de Barack Obama,
pela decisão do Congresso de elevar, depois de diversas chantagens, o teto da dívida pública nos
Estados Unidos (EUA), pela queda das bolsas de valores e pela perda da nota máxima de crédito "AAA"
concedida pela agência de classificação de risco Standard & Poor's. Pela primeira vez, desde 1917, os
títulos americanos não são considerados "risco zero", enquanto cresce a percepção de instabilidade,
volatilidade e a probabilidade de estagnação econômica no curto e médio prazo. Será o começo do fim?
A economia internacional passou por grandes mudanças nos últimos três séculos. O gráfico 1, mostra a
evolução da participação das sete maiores economias, em poder de paridade de compra (ppp) na
economia internacional. Em 1700, a Índia era a maior economia do mundo, seguida pela China. Estes
dois países representavam cerca de 50% da economia mundial entre o ano 1 e 1800, sengundo
Maddison. Ao longo do século XVIII a Índia foi declinando, a China passou a ser a maior economia do
mundo e a França a maior economia do Ocidente. Mas depois das guerras napoleônicas e o avanço da
primeira Revolução Industrial o Reino Unido (UK) passou a liderar a economia internacional, pois a
França reduziu o ritmo de crescimento e a China e a Índia tiveram um grande declínio histórico. O auge
do poder do Reino Unido aconteceu entre 1820 e 1913. Com o início da segunda Revolução Industrial
(aço, petróleo, automóvel, avião, telefone, etc.), no último quartel do século XIX, a Alemanha e o Japão
começaram a ameaçar o domínio do Reino Unido, enquanto os Estados Unidos corriam por fora.
Gráfico 1: Produto Doméstico Bruto, em poder de paridade de compra (ppp), das 7 maiores economia
do mundo: 1700-2011
35
30
25
20
15
10
5
França
Alemanha
UK
EUA
China
Índia
2025
2000
1975
1950
1925
1900
1875
1850
1825
1800
1775
1750
1725
1700
0
Japão
Fonte: Angus Maddison. Historical Statistics of the World Economy: 1-2008 AD. Nota: 2012 = projeção
Disponível em: www.ggdc.net/maddison/Historical_Statistics/horizontal-file_02-2010.xls
1
A disputa de hegemonia entre o Reino Unido e a Alemanha levou à deflagração da primeira grande
Guerra Mundial (1913-1918) e a disputa entre Reino Unido, Alemanha e Japão pela ampliação de
espaços econômicos levou à segunda grande Guerra Mundial (1939-1945). Mas quem saiu vitorioso de
todo este conflito foram os Estados Unidos que se tornaram a maior potência mundial durante todo o
século XX. Em 1900 os EUA chegaram a uma participação de 16% na economia mundial. Mas a
hegemonia americana foi construída principalmente depois dos acordos de Bretton Woods, de 1944,
sendo que a participação americana na economia mundial chegou a 27% em 1950 (em ppp).
Com o Plano Marshall a Europa e o Japão se reconstruíram depois da Segunda Guerra, enquanto a China
e a Índia continuaram a perder posição na economia mundial até a década de 1970. A Alemanha chegou
a se tornar a segunda maior economia do mundo na década de 1960, mas foi superada pelo Japão que
passou ao segundo lugar nas décadas de 1970 e 1980.
Mas a partir dos anos de 1980 a China começou uma recuperação histórica chegando ao segundo posto
na virada do milênio e provavelmente vai se consolidar como a primeira economia do mundo na década
de 2010-20. A Índia também vem seguindo de perto o ritmo chinês e já chega ao terceiro posto da
economia inteernacional, passando o Japão, também na década de 2010-20.
Enquanto China e Índia se recuperam, os EUA começaram a perder posição relativa especialmente
depois da década de 1970, quando ainda representava cerca de um quarto da economia mundial. O
aumento da circulação de dólares em geral e o aumento do mercado de Eurodólares nas duas décadas
posteriores aos acordos de Bretton Woods criaram um excedente de papel moeda incompatível com a
quantidade de ouro disponível no Fort Knox que deveria servir de lastro para o dólar. Diante do
inevitável, em agosto de 1971 (40 anos atrás), o governo Nixon aboliu o acordo de conversibilidade do
dólar em ouro.
Se esta medida deu fôlego para os EUA continuarem a financiar os seus déficits, possibilitou também
que estes déficits fossem crescendo de maneira descontrolada, acumulando uma dívida que só tem
paralelo com o que aconteceu na época da segunda Guerra Mundial.
O gráfico 2 mostra que o período de superávit da balança comercial dos Estados Unidos terminou em
1970, iniciando um período de déficits crescentes a partir de 1971. Até o ano de 1982 os déficits
comerciais dos EUA estavam na casa de 20 bilhões de dólares. Porém, as políticas econômicas do
governo Reagan fizeram o déficit pular para mais de 100 bilhões de dólares ao ano. A recessão
econômica de 1991 e 1992, no governo de George Bush (pai) fez o déficit se reduzir para a casa dos 30
bilhões de dólares.
Mas a recuperação econômica e a ampliação do processo de globalização no governo Bill Clinton fez os
déficits comerciais saltarem para a casa de 300 bilhões de dólares na virada do milênio. Porém, foi nos
oito anos do governo George Bush (filho) que houve uma explosão do déficit, passando de 362 bilhões
de dólares em 2001 para 753 bilhões de dólares em 2006 e algo em torno de 700 bilhões em 2007 e
2008. No governo Obama, o déficit caiu para a casa de 400 bilhões de dólares em 2009 (por conta da
recessão) e voltou a subir para 500 bilhões de dólares em 2010. Todos estes déficits foram cobertos por
endividamento crescente.
2
Gráfico 2: Saldo da balança comercial dos Estados Unidos: 1960-2010
100
0
Bilhões de dólares
-100
-200
-300
-400
-500
-600
-700
1960
1962
1964
1966
1968
1970
1972
1974
1976
1978
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
2010
-800
Fonte: U.S. Census Bureau, 2011
O gráfico 3 mostra que o PIB dos EUA era de 7,8 trilhões de dólares em 1996 e a dívida pública estava na
casa de 5,2 trilhões de dólares. No segundo governo Clinton (1997-2000) o PIB foi a 9,9 trilhões de
dólares e a dívida cresceu apenas para 5,6 trilhões de dólares, no ano 2000. Portanto, houve redução
relativa da dívida pública que passou de 66% do PIB em 1996, para 56% do PIB em 2000.
Gráfico 3: Produto Interno Bruto (PIB), Dívida Pública e Percentagem da dívida em relação ao PIB, EUA:
1996-2012
120
Bilhões de dólares
16.000
100
14.000
80
12.000
10.000
60
8.000
6.000
40
4.000
20
2.000
Dívida como % do PIB
PIB
2012
2011
2010
2009
2008
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
0
1996
0
Dívida pública como % do PIB
18.000
Dívida pública
Fonte: US Government Spending, 2011
http://www.usgovernmentspending.com/downchart_gs.php?year=&chart=H0-fed&units=b
3
Contudo, o governo George Bush (filho) fez uma política de corte de impostos para os ricos e de
aumento de gastos, especialmente na área militar, para financiar as guerras do Afeganistão e do Iraque.
O resultado foi que a dívida que estava em 5,6 trilhões de dólares em 2000 explodisse para10 trilhões de
dólares em 2008. Um aumento de 4,4 trilhões em oito anos.
O governo Barack Obama recebeu uma economia em recessão e, para evitar o pior, fez uma série de
pacotes de estímulo da economia, mesmo em uma situação em que a arrecadação de impostos estava
decaindo. Porém, os incentivos geraram pouco efeito e a economia não recuperou no ritmo esperado.
As taxas de desemprego estão acima de 9%. O resultado foi um pequeno crescimento econômico, mas
um grande crescimento da dívida pública que deve chegar a 15 trilhões até o final de 2011, passando,
em termos relativos, de 100% do PIB (a situação da dívida líquida é um pouco menos dramática). Ou
seja, em apenas 3 anos, durante o governo Obama, a dívida cresceu em 5 trilhões de dólares e não
possibilitou a decolagem da economia real.
Evidentemente este crescimento enorme da dívida é uma “herança maldita” do governo anterior que
deixou uma economia em recessão e com uma carga tributária muito baixa. O gráfico 4 mostra que os
déficits nos 3 primeiros anos do governo Obama ficaram em torno de 1,5 trilhão de dólares, ou 10% do
PIB. O que são valores insustentáveis. As estimativas apontam para déficits na casa de 500 a 600 bilhões
de dólares até 2020, o que daria uma dívida acumulada de no mínimo 8 trilhões de dólares no restante
da década.
Gráfico 4: Déficits e superávits públicos, Estados Unidos da América: 1990-2011
500
Bilhões de dólares
0
-500
-1.000
-1.500
2011
2010
2009
2008
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1991
1990
-2.000
Fonte: Congressional Budget Office; Office of Management and Budget, 2011
http://www.cbo.gov/budget/budget.cfm
O gráfico 5 mostra a evolução dos gastos militares. Nota-se que os gastos com defesa cairam na época
do governo Clinton, passando de 302,6 bilhões de dólares (4,8% do PIB), em 1992 para 275,5 bilhões
(3% do PIB) em 1999. Isto ajudou a criar um superávit público naquela época. Contudo, no governo Bush
4
(filho) os gastos militares chegaram a 612 bilhões de dólares (4,3% do PIB) em 2008, o que ajudou a
elevar o déficit público. Ao contrário de Clinton, Obama não reduziu os gastos militares e a defesa
gastou 689 bilhões de dólares (4,7% do PIB) em 2010. Os gastos militares tem sido o equivalente à
metade do valor do déficit total estadunidense. Parece que o custo de matar Bin Laden ficou muito alto.
Gráfico 5: Gastos absolutos e relativos com defesa, EUA: 1990-2010
800
06
05
600
04
500
400
03
300
% do PIB
Em bilhões de dólares
700
02
200
01
100
00
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
0
Gastos absolutos com defesa
Gastos de defesa como % do PIB
Fonte: Congressional Budget Office; Office of Management and Budget, 2011
O gráfico 6 mostra os gastos com os principais programas de segurança social. No conjunto os
programas elevaram os gastos de 568 bilhões de dólares em 1990 para 1,909 trilhão de dólares em
2010. Em teremos de percentagem do PIB o aumento foi de 9,9% em 1990 para 13,2% do PIB em 2010.
Nota-se que o seguro desemprego cresceu muito na crise econômica de 2008-2010. Porém, estes gastos
sociais tendem a aumentar ainda mais com o envelhecimento populacional, especialmente quando a
geracão do baby-boom (1945-65) sair do mercado de trabalho e entrar na aposentadoria. Segundo a
Standart & Poor’s a dívida pública líquida dos EUA poderá chegar a 20 trilhões de dólares em 2020 e, no
cenário de envelhecimento populacional com a manutenção da política de baixos impostos e os atuais
benefícios sociais, a 600% do PIB, em 2050.
Diante deste quadro nada animador e enquanto o país vai ficando para trás em termos de infraestrutura, investimentos na educação básica, inovação, etc., os políticos americanos esquivam-se de
soluções e fazem acusações mútuas. Os democratas mostram que havia superávit público durante o
segundo mandato de Bill Clinton e colocam a culpa dos déficits crescentes (fiscal e comercial) no
governo George Bush (filho), que além de deixar déficits e dívidas deixou a economia em recessão para
o seu sucessor. Os democratas gostariam de aumentar os impostos, especialmente para os ricos e
manter os programas sociais, além de manter os estímulos ao crescimento econômico. Mas os
republicanos não aceitam aumentos de impostos e querem cortar gastos, especialmente dos programas
sociais e menos na área de defesa. Como os republicanos controlam a Câmara de Deputados, estão
impondo cortes nos orçamentos, o que pode jogar a economia em uma nova recessão (“duplo
5
mergulho”). Diversos analistas consideram que é altamente provável uma recessão a partir do segundo
semestre de 2011, sendo que desta vez o poder de atuação do Estado é bem menor do que em 2008, já
que os juros já estão muito baixos e o endividamento e os déficits muito altos.
Gráfico 6: Gastos com programas sociais, EUA: 1990-2010
800
Bilhões de dólares
700
600
500
400
300
200
100
Seguro social
Medicare
Seguro desemprego
Outros programas
2010
2009
2008
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1991
1990
0
Medicaid
Fonte: Congressional Budget Office; Office of Management and Budget, 2011
O fato é que a economia americana possui déficits fiscais e comerciais enormes e uma dívida que já é
maior do que o tamanho do PIB. Esta situação tende a se agravar com o baixo crescimento econômico.
Assim, os EUA estão entrando em um circulo vicioso, pois se estimulam a economia os déficits e dívidas
crescem, mas se cortam os déficits a economia cai em recessão, agravando a situação da dívida e do
desemprego.
Por não acreditar na capacidade de acordo entre as forças políticas americanas, a agência Standard &
Poor's disse que pode abaixar ainda mais a nota do crédito americano se a situação do déficit não
melhorar nos próximos dois anosii. A crise da dívida pode ser também a crise do dólar, como moeda
dominante no cenário internacional. O Brasil está preocupado com as suas reservas investidas nos
títulos americanos. Já a China que possui 3 trilhões de dólares em reservas e 1,2 trilhão aplicados em
títulos americanos, afirmou que os EUA são “viciados em dívida” e que "tem todo o direito de exigir que
os Estados Unidos lidem com o seu problema estrutural de dívida e garantam a segurança dos ativos da
China".
Desta forma, enquanto a economia americana tende a ficar menos estável, com mais riscos e estagnada,
o resto do mundo (e principalmente a China e a Índia) tem apresentado taxas de crescimento bem
maiores. O resultado é o declínio relativo da economia estadunidense que deve ficar com uma
participação no PIB mundial abaixo de 16% nos próximos anos. Isto é, a economia americana vai voltar
aos patamares relativos àquele do final do século XIX.
6
Por tudo isto, será que a ocidentalização da economia mundial pode ser pensada como um fenômeno
restrito aos séculos XIX e XX? A China e a Índia vão voltar a ser as duas grandes economias da
comunidade internacional? O mundo está em um processo de desocidentalização? O Oriente do Norte
vai ser a nova base de uma Orientalização do globo? O Consenso de Beijing vai vencer o Consenso de
Washington?
Será que a chamada excepcionalidade americana é um fenômeno que vai ficar restrito ao século XX?
i
Professor titular da Escola Nacional de Ciências Estatísticas - ENCE/IBGE. Apresenta seus pontos de vista em
caráter pessoal. Tel: (21) 2142 4689. E-mail: [email protected] Publicado em APARTE
(http://www.ie.ufrj.br/aparte/) – 10/08/2011).
ii
“The political brinksmanship of recent months highlights what we see as America's governance and policymaking
becoming less stable, less effective, and less predictable than what we previously believed. The statutory debt
ceiling and the threat of default have become political bargaining chips in the debate over fiscal policy. Despite this
year's wide-ranging debate, in our view, the differences between political parties have proven to be extraordinarily
difficult to bridge, and, as we see it, the resulting agreement fell well short of the comprehensive fiscal
consolidation program that some proponents had envisaged until quite recently. Republicans and Democrats have
only been able to agree to relatively modest savings on discretionary spending while delegating to the Select
Committee decisions on more comprehensive measures. It appears that for now, new revenues have dropped
down on the menu of policy options. In addition, the plan envisions only minor policy changes on Medicare and
little change in other entitlements,the containment of which we and most other independent observers regard as
key to long-term fiscal sustainability.
Our opinion is that elected officials remain wary of tackling the structural issues required to effectively address the
rising U.S. public debt burden in a manner consistent with a 'AAA' rating and with 'AAA' rated sovereign peers (see
Sovereign Government Rating Methodology and Assumptions," June 30, 2011, especially Paragraphs 36-41). In our
view, the difficulty in framing a consensus on fiscal policy weakens the government's ability to manage public
finances and diverts attention from the debate over how to achieve more balanced and dynamic economic growth
in an era of fiscal stringency and private-sector deleveraging (ibid). A new political consensus might (or might not)
emerge after the 2012 elections, but we believe that by then, the government debt burden will likely be higher,
the needed medium-term fiscal adjustment potentially greater, and the inflection point on the U.S. population's
demographics and other age-related spending drivers closer at hand (see "Global Aging 2011: In The U.S., Going
Gray Will Likely Cost Even More Green, Now," June 21, 2011)” (Standard & Poor’s, August 5, 2011, p. 3/4).
7
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