trANstorNo De DéFICIt De AteNção/HIPerAtIVIDADe

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Transtorno de déficit
de atenção/hiperatividade:
breve história do conceito
Mario Rodrigues Louzã Neto
Introdução
Algumas descrições do TDAH antes do
século XX
O TDAH no século XX
O conceito de TDAH no sistema
americano de classificação diagnóstica
(DSM)
O TDAH na classificação internacional
de doenças e problemas
relacionados à saúde (CID) da
Organização Mundial da Saúde
O TDAH no adulto
Estudos neurobiológicos
Perspectivas futuras
Introdução
Em pleno século XXI, não é raro encontrar na mídia, na literatura leiga e na internet comentários e opiniões sobre a inexistência
do transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH). Muitas
vezes se diz que o TDAH é uma “invenção da indústria farmacêutica
para vender remédios” ou que o transtorno é uma forma de medicalização de comportamentos “culturalmente inaceitáveis”. Sem nenhuma evidência científica, tais afirmações são tomadas como verdades e
atingem não só o público leigo como também profissionais que direta
ou indiretamente lidam com possíveis pacientes. No Brasil, um levantamento recente mostrou que mais da metade de 2.117 pessoas
entrevistadas (entre público leigo, educadores, psicólogos e médicos)
tinham crenças sobre a doença sem qualquer respaldo científico (Gomes et al., 2007).
A visão sociológica e mesmo anticientífica do TDAH se contrapõe
à longa história do conceito. Mesmo sem denominar explicitamente
a doença, muitas referências a pessoas que hoje seriam consideradas
portadoras de TDAH podem ser encontradas em textos médicos e literários.
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Louzã e cols.
Algumas descrições do TDAH antes do século XX
Muito antes do trabalho de Still, publicado em 1902, que descrevia
crianças com o quadro hoje denominado TDAH, diversos autores fizeram
referência a pessoas com comportamento desatento ou agitado.
O dramaturgo Jean François Regnard (1655-1709), em sua
comédia O distraído (Le Distrait, 1697), caracterizou o personagem
Léandre como “Monsieur le distrait”, “homem sábio e distraído”, “es­te
sonhador, este homem tão distraído”, que frequentemente está “mer­
gulhado em seus devaneios”, sendo preciso chamar sua atenção durante as conversas. Ao longo da peça, é comum que outros personagens se refiram a ele como “o distraído” e ironizem essa característica.
Em certo momento, Léandre está com um relógio em uma das mãos
e um pouco de tabaco na outra e arremessa erroneamente o relógio,
reclamando da qualidade do tabaco. O interlocutor chama-lhe a atenção: “Que distração a sua, Senhor!”. Ele se explica: “Eu não pensei,
apenas arremessei um pelo outro” (3o ato, cena VIII).
O médico Alexander Crichton (1763-1856) descreve em seu livro An Inquiry Into the Nature and Origin of Mental Derangement (volume I, 1798) um estado mental de “incapacidade de prestar atenção
com o grau necessário de constância a qualquer objeto”. Tal quadro
começa cedo na infância e diminui com a idade. É acompanhado de
um “grau não natural de inquietação mental”. O autor chama a atenção para as dificuldades escolares dos portadores de tal condição e
para a necessidade de que os professores estejam preparados para
lidar com essas crianças (Palmer; Finger, 2001).
Fiodor Dostoiévski (1821-1881), em seu romance Niétotchka
Niezvânova, de 1849, assim descreve uma criança:
[...] mas a menina travessa mal vinha passar ali alguns instantes;
não conseguia parar quieta. Movimentar-se continuamente,
correr, pular, fazer barulho por toda a casa, era para ela uma
necessidade imperiosa. Por esse motivo, declarou-me, já no
primeiro dia, que se aborrecia horrivelmente de ficar sentada
comigo[...] (Dostoiévski, 2002, p. 100)
Mais adiante, ele retoma: “Não lhe ensinavam muita coisa, pois
mal conseguiam que ela acedesse a ficar sentada com um livro durante duas horas...” (Dostoiévski, 2002, p. 106).
O médico Heinrich Hoffmann (1809-1894) publicou em 1845 o
livro ilustrado para crianças Der Struwwelpeter, com pequenas histó-
TDAH ao longo da vida
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rias em versos. Dois personagens chamam a atenção: Zappel Philipp
(Felipe irrequieto), um menino que não consegue ficar parado à mesa
durante uma refeição e acaba derrubando tudo, e Hans Guck-in-dieLuft (João olha-para-o-ar), um menino que não presta atenção por
onde anda, pois está sempre olhando para as nuvens, tropeça e cai
frequentemente, chegando a cair dentro de um rio. Em que pese o
viés moralista do texto, os personagens são característicos portadores
de TDAH, respectivamente do tipo predominantemente hiperativoimpulsivo e do tipo predominantemente desatento.
O TDAH no século XX
O trabalho do pediatra George Frederick Still (1868-1941) sobre condições psíquicas anormais em crianças, publicado no Lancet
em 1902, é considerado a primeira descrição médica detalhada do
TDAH (Figura 1.1). São três conferências (cujos excertos podem ser
encontrados em Still, 2006) sobre suas observações de crianças que
Figura 1.1
Página inicial das conferências de George F. Still publicadas no Lancet em 1902.
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Louzã e cols.
apresentavam um “defeito permanente ou temporário do controle
moral”. Still postula a associação desse “defeito” a algum distúrbio cerebral. Parte dos pacientes descritos apresentava transtornos mentais
orgânicos, inclusive com deficiência mental; no entanto, alguns não
apresentavam prejuízo de inteligência. Outros autores dessa época
(p. ex., Alfred Tredgold, em 1908) seguem teoria semelhante (Rafalovich, 2001).
Durante a epidemia de influenza de 1918-1919, Constantin von
Economo (1876-1931) descreve a encefalite letárgica, cujas sequelas
em crianças levavam a um quadro de alterações cognitivas e comportamentais denominado “transtorno comportamental pós-encefalítico”,
semelhante ao TDAH (Barkley, 1998).
O fato de que muitas observações desse período foram feitas em
pacientes com lesões cerebrais associadas aos distúrbios comportamentais poderia ter levado à denominação “lesão cerebral mínima”
(minimal brain damage), introduzida na literatura nas décadas de
1930 e 1940. O termo “damage” foi após alguns anos substituído por
“dysfunction”, consagrando o termo “disfunção cerebral mínima” (minimal brain dysfunction), que passou a ser utilizado nas décadas de
1950 a 1970. Nessa época, também era utilizada a expressão “síndrome hipercinética” (Strother, 1973).
O tratamento do TDAH teve início no final da década de 1930,
quando Bradley, em 1937, descreveu o efeito terapêutico de anfetaminas no controle de distúrbios comportamentais em crianças.
Na década de 1950, surge o metilfenidato. Sintetizado por Leandro Panizzon em 1944, foi inicialmente indicado para o tratamento
de astenia e depressão. No fim da década de 1950, começou a ser
utilizado sistematicamente em crianças (Zimmerman; Burgemeister,
1958; Conners; Eisenberg, 1963) e, a partir da década de 1970, em
adultos com TDAH (Reimherr; Wood; Wender, 1980; Wender; Reimherr; Wood, 1981; Wood et al., 1976). Mesmo atualmente, o uso
de psicoestimulantes no TDAH, especialmente em crianças, é alvo de
controvérsia (Mayes; Rafalovich, 2007).
O conceito de TDAH no sistema americano de
classificação diagnóstica (DSM)
A primeira edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-I, de 1952) não faz menção específica ao TDAH.
TDAH ao longo da vida
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O DSM-II (1968) fala de “reação hipercinética da infância ou
adolescência”, caracterizando-a por hiperatividade, inquietação, distraibilidade e diminuição da capacidade de manter atenção. Explica
que o comportamento diminui na adolescência.
A partir do DSM-III (1980), o TDAH fica melhor caracterizado,
com critérios diagnósticos bem definidos e delimitados. A expressão
utilizada é “transtorno de déficit de atenção”, podendo ser dividida em dois subtipos: “com hiperatividade” e “sem hiperatividade”.
É estabelecida uma lista de sintomas que devem ser considerados
para o diagnóstico, bem como outros aspectos, como idade de início
antes dos 7 anos, duração de pelo menos 6 meses e diagnósticos de
exclusão.
No DSM-III-R (1987), o termo utilizado é “attention-deficit
hyperactivity disorder”, não havendo uma classificação de subtipos,
apenas do grau de gravidade da doença (leve, moderado e grave), de
acordo com o prejuízo causado ao paciente.
No DSM-IV (1994) e no DSM-IV-TR (2000), a expressão “transtorno de déficit de atenção/hiperatividade” é utilizada. O diagnóstico
é feito a partir de uma lista de 18 sintomas (9 de desatenção, 6 de
hiperatividade e 3 de impulsividade), sendo necessária a presença de
pelo menos 6 sintomas de desatenção ou 6 de hiperatividade/impulsividade para preenchimento dos critérios da doença, além dos demais
critérios diagnósticos (ver Capítulo 4.2). São considerados três tipos:
predominantemente desatento, predominantemente hiperativo-impulsivo e combinado.
O TDAH na Classificação internacional de
doenças e problemas relacionados à saúde (CID)
da Organização Mundial da Saúde
As primeiras tentativas de uma classificação internacional de
doenças e causas de morte datam do final do século XIX. A forma
atual da CID começa a se estruturar com a criação da Organização
Mundial da Saúde (WHO – World Health Organization), em 1948.
Nessa época, surge a Classificação internacional de doenças e problemas relacionados à saúde (CID) da Organização Mundial da Saúde em
sua 6a edição. A 7a (1955) e a 8a edição (1965) não fazem referência
específica ao TDAH, referindo-se vagamente a distúrbios comportamentais na infância.
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Louzã e cols.
A partir da 9a edição (1975), a CID passa a caracterizar melhor
os transtornos mentais. Nela, a síndrome hipercinética da infância
é caracterizada por “pouca concentração e distraibilidade; na infância chama a atenção a hiperatividade, mal organizada e regulada. Na
adolescência, esta pode ser substituída por hipoatividade. Impulsividade, flutuações do humor e agressividade são comuns”.
Na CID-10, em vigor desde 1992, os transtornos hipercinéticos,
no âmbito dos “transtornos comportamentais e emocionais com início
na infância e adolescência”, são considerados um “grupo de transtornos” de início precoce, caracterizados por “falta de persistência nas
atividades que requerem envolvimento cognitivo, tendência para passar de uma atividade à outra sem completar a primeira, associada à
atividade excessiva, desorganizada e desregulada”.
O TDAH no adulto
Durante a primeira metade do século XX, o TDAH foi conceituado como uma doença da infância que regredia na adolescência
e desaparecia na idade adulta. No entanto, a partir das décadas de
1940 e 1950, surgem na literatura relatos de casos de adultos com
alterações comportamentais similares às do TDAH, tratados com anfetaminas e, posteriormente, com metilfenidato. Desse modo, antes
mesmo do conceito de persistência do TDAH no adulto, já se observa
o tratamento de pacientes com os psicoestimulantes disponíveis (Hill,
1947; Zimmerman; Burgemeister, 1958; Arnold; Strobl; Weisenberg,
1972).
A partir da década de 1970, começa a se firmar na literatura
o conceito de que o TDAH poderia persistir até a idade adulta. Surgem descrições e estudos de TDAH em adultos, sendo ainda utilizado
o termo disfunção cerebral mínima ou disfunção cerebral do adulto
(Hartocollis, 1968; Mann; Greenspan, 1976; Wood et al., 1976). Nessa época, vários estudos de seguimento de crianças até a idade adulta demonstram que o TDAH persiste em um significativo número de
casos (Menkes; Rowe; Menkes, 1967; Mendelson; Johnson; Stewart,
1971; Weiss et al., 1979).
Em 1980, o DSM-III estabelece de modo detalhado os critérios
diagnósticos do TDAH e considera a possibilidade de sua “persistência
na idade adulta”. Desde então, as classificações do DSM incluem a
TDAH ao longo da vida
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possibilidade de TDAH residual no adulto, o que também ocorre na
CID-10.
Estudos neurobiológicos
O avanço da neurociência nas ultimas décadas permitiu que o
TDAH, especialmente na infância, fosse estudado de forma detalhada em seus diversos aspectos neurobiológicos. Estudos genéticos, de
neuroimagem funcional e estrutural e de neuropsicologia confirmam
tratar-se de uma doença cerebral, com manifestações cognitivas e
comportamentais que se modificam com a idade (ver Caps. 3.1, 3.2 e
3.3). A influência de fatores ambientais também tem sido reforçada
na literatura recente (Barkley, 1998; Banerjee; ­Middleton; Faraone,
2007).
Perspectivas futuras
O conceito atual de TDAH na infância é ainda alvo de controvérsia. Os critérios diagnósticos foram desenhados levando-se em conta
o quadro mais “grave” da doença. Há críticas quanto ao critério de
idade de início da doença e ao sistema “categorial” que exige um número mínimo de sintomas para o diagnóstico. No mesmo sentido, não
são consideradas diferenças entre os gêneros e os diferentes prejuízos
funcionais. Além disso, não há uma adaptação dos critérios para as
diversas etapas do desenvolvimento infantil (Rohde, 2008).
Em relação ao TDAH adulto, não há sequer critérios diagnósticos
específicos para sua classificação. Utiliza-se apenas uma adaptação dos
mesmos critérios utilizados na infância para o contexto da vida adulta, sem que haja uma validação destes. É sabido que muitos adultos,
mesmo com sintomas mais brandos, apresentam prejuízos funcionais
significativos, uma vez que estão submetidos a ambientes mais complexos e mais exigentes do que aqueles a que estão expostas as crianças. Assim, haveria a necessidade de criar critérios específicos para a
idade adulta que levassem mais em conta os prejuízos decorrentes das
disfunções executivas presentes no TDAH (McGough; Barkley, 2004).
As revisões em curso para o DSM-V e para a CID-11, bem como
as avaliações de campo, devem trazer, nos próximos anos, novos crité-
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Louzã e cols.
rios diagnósticos para o TDAH tanto na infância e adolescência quanto na idade adulta.
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