Na construção da modernidade política, uma das principais

Propaganda
Separação de poderes e sistema de governo
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)1
Na construção da modernidade política, uma das principais preocupações era com a
divisão ou separação dos poderes, uma vez que, após a necessária unificação do Poder Político
sob o Estado Moderno, passou a ser evidente o desafio em se assegurar que o soberano passasse,
gradativamente, a ser o povo e não mais o príncipe, especialmente os tiranos.
Uma forma eficaz de implementar o poder seria dividi-lo – como sabemos desde a
famosa tripartição dos poderes perpetrada por Montesquieu e adotada pela imensa maioria dos
Estados –, mas, outros recursos foram edificados para fortalecer o Parlamento, e assim originouse os sistemas de governo: Presidencialismo – Parlamentarismo. Se o objetivo era fortalecer o
Parlamento, retirando ou controlando o Poder Político, então, por óbvio, formou-se primeiro o
parlamentarismo como forma de governo.
I - SISTEMA DE GOVERNO (Parlamentarismo e Presidencialismo)
O Parlamentarismo, como medida em que se assegurava a retirada de poder do monarca,
teve um grande impulso com a mobilização de nobres e burgueses (iniciantes) na Inglaterra do
século XIII (1215) e que resultou na famosa Carta Magna2 (o Bill of Rights foi uma declaração
de direitos assinada pelo Rei João Sem Terra3). Em outra fase, nos séculos XVI-XVII, também
na Inglaterra de John Locke, foi assegurado o Habeas corpus (1679)4. Com o pensamento liberal
de Locke há um avanço inestimável na defesa de prerrogativas que asseguram a liberdade
negativa5; por outro lado, o direito resta obstruído pelo capital6, como se fora conquista única da
burguesia nascente:
1
Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.
“39 – Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou
exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão
mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país” (Miranda, 1990, p.15).
3
Considera-se como Liberdade Negativa porque se retira direitos do Estado (absoluto) e há repasse gradual de
margens de liberdade aos cidadãos. De certo modo, o Estado tem menos liberdade de ação que resulte em restrição
de liberdades dos cidadãos.
4
Ao que se seguiu A Declaração de Direitos de 1689, já com previsão expressa ao Parlamento: “8º Que as eleições
dos membros do Parlamento devem ser livres” (Miranda, 1990, p. 24). Depois, O Ato de Estabelecimento (1701)
fortaleceu a Câmara dos Comuns: “6º Que não poderá ser membro da Câmara dos Comuns qualquer pessoa que
tiver um cargo ou provento dependente do rei ou que receber qualquer pensão da Coroa” (Miranda, 1990, p. 27).
5
Locke designará papel estratégico ao Legislativo, como contenção ao Poder Político: “A lei civil, sendo o ato de
todo o corpo político, tem a primazia sobre cada parte do mesmo corpo” (Locke, 1994, p. 138).
6
Martinez, 2012.
2
Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas
mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em
que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso
acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade [...]
Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou,
através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum
dos outros homens [...] Sendo este trabalho uma propriedade
inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o
direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta
é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade (Locke, 1994, p.
98).
Portanto, temos aqui os fundamentos da propriedade como direito natural.
Estado de Direito Absenteísta
Chamaremos de Estado de Direito Absenteísta aquela fase em que o Estado Liberal agia
apenas em defesa das prerrogativas e garantias do direito de propriedade. Trata-se de uma forma
de Estado que se abstém quando lhe convém, ou seja, abstém-se quase sempre, agindo
prioritariamente quando se torna necessário defender a propriedade e os seus proprietários. E em
que contexto se colocou este Estado de Direito Absenteísta?
Nas condições em que se dava a primeira fase do liberalismo clássico, coincidente com as
revoluções industriais e com a base jurídica delimitada pelos direitos individuais, ao movimento
liberal não cabia outra solução, senão tentar controlar o poder estatal que sobreveio do Estado
Moderno: “Convinha rodear-lhe de freios constitucionais a ação invasora, duramente sentida
durante as épocas do absolutismo, mitigando-se-lhe assim a força coercitiva. Far-se-ia isso
mediante a clássica divisão de poderes [...] aproxima-se o Estado Jurídico7 de Kant do Estado
Constitucional de Montesquieu” (Bonavides, 2003 p. 87 – grifos nossos). Há um forte apelo
por um Estado Absenteísta, que procure distensão, distanciamento ou pouca atividade política:
De acordo com o sistema da liberdade natural, o poder do Estado fica
apenas com três funções para cumprir, aliás três obrigações, de maior
importância, mas simples e compreensíveis para o senso comum: em
primeiro lugar, a obrigação de proteger a nação contra atos de violência e
ataques de outras nações independentes; em segundo lugar, a obrigação
de salvaguardar, na medida do possível, todos os membros da própria
nação contra agressões ilegais dos seus concidadãos, ou seja, garantir
7
Em outro contexto, analisando a função essencial do Poder Judiciário como regulador dos mecanismos de justiça
formal e real, demos a esta fundamentação jurídica específica o codinome de Estado Jurídico. Bem diferente,
portanto, desse Estado-ideia, distante do mundo político, de que falava Kant.
uma jurisdição imparcial; e em terceiro lugar, a obrigação de criar e
manter determinadas instituições públicas... (Zippelius, 1997, pp. 377).
O poder forte do Estado Moderno seria substituído por um poder fraco ou moderado no
Estado Liberal – o Poder Político, na Inglaterra de John Locke, nasceu controlado pelo
Legislativo8. De forma resumida, podemos caracterizar o Estado liberal a partir de três elementos
básicos:
a) individualismo: não se diz que “o indivíduo vive em sociedade9”, diz-se simplesmente
da importância do indivíduo como “célula mater” da sociedade capitalista.
(Demonstração clara disso é que, até hoje, o sujeito de direitos é associado ao indivíduo,
ao cidadão, à pessoa física, e apenas progressivamente é que se alarga o seu alcance para
as associações, os sindicatos, as cooperativas, como sujeito coletivo de direitos)10.
b) propriedade: como direito natural a salvo da interferência e até mesmo da positivação
do Estado, o direito à propriedade é um direito fundamental, incondicionado, ilimitado e
irrestrito em seu gozo – “o direito à propriedade é sagrado, condiciona a própria vida e a
liberdade do indivíduo proprietário”. (Só no ambiente progressista e transformador do
Estado Social é que se formulou o princípio da sujeição da propriedade privada,
afirmando-se que estão condicionadas todas as propriedades (urbanas ou rurais) à
verificação da função social. A validação do direito está associada à legitimidade social).
c) liberdade: o ideal do libertas quae sera tamem (a liberdade mesmo que tardia, à custa de
muita luta social e derramamento de sangue: como liberdade propositiva) acaba
resumido, limitado à liberdade negativa: não fazer o que a lei proíbe. Também a
liberdade mercantil, a liberdade para comerciar, será destacada: a liberdade consagradora
dos privilégios jurídicos dos proprietários, pois quem pode comprar (a burguesia)
condiciona a liberdade de quem só é capaz de vender (os trabalhadores)11.
8
É importante frisar que não se trata, sob nenhum aspecto, de limitação da soberania, como vemos na Constituição
francesa de 1791: “Artigo 1º A soberania é uma, indivisível, inalienável e imprescritível. Ela pertence à Nação;
nenhuma secção do povo, nenhum indivíduo pode atribuir a si próprio o seu exercício” (Miranda, 1990, p. 62).
9
Quanto tempo até que em Constituição tivéssemos a garantia de aspirar, juridicamente, por uma sociedade livre,
justa e solidária? Veja-se o Preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
10
Veja-se o exemplo constitucional do mandado de segurança coletivo, em que se contemplam as coletividades, ter
sido implementado somente com a CF/88.
11
É óbvio que não pode haver igualdade entre quem compra e quem vende força de trabalho – esta é uma razão
lógica para que o Direito do Trabalho defenda, prioritariamente, o trabalhador, o hipossuficiente, diante do capital.
Desse modo, o que se espera do Estado é que aja pouco, especialmente quanto a regular o
direito de propriedade. Haverá apelo por um tipo de Estado Liberal, absenteísta, mais isento em
termos de intervenção/regulação12, acionado somente para defender os privilégios do uso e gozo
do direito de propriedade.
Neste sentido apontava também um tratado de Wilhelm von Humboldt de
1792, com o título sugestivo “Ideias relativas a uma tentativa de
determinar os limites da ação do Estado” [...] “O Estado deve abster-se”,
exigia ele, “de todo o cuidado pela prosperidade positiva dos cidadãos e
não deve dar mais passo algum além dos que forem necessários para os
proteger contra si próprios e contra inimigos externos; não deve restringir
a liberdade deles para outra finalidade qualquer” (Zippelius, 1997, pp.
378).
Portanto, no contexto do Estado Liberal, devemos entender em primeiro lugar que se trata
de uma liberdade que adveio das chamadas revoluções liberais ou burguesas, e que o autor de
referência, como vimos, é o inglês John Locke. Neste contexto se define a liberdade como: “...
gozar de uma esfera de ação, mais ou menos ampla, não controlada pelos órgãos do poder estatal
[...] De fato, denomina-se ‘liberal’ aquele que persegue o fim de ampliar cada vez mais a esfera
das ações não-impedidas [...]” (Bobbio, 2000, p. 101). Neste sentido, fica fácil perceber que ao
indivíduo cabia ampliar os limites impostos pela liberdade negativa, restritiva do Estado:
“Donde ‘Estado Liberal’ é aquele no qual a ingerência do poder público é o mais restrita
possível” (Bobbio, 2000, p. 101).
No Estado Liberal, a liberdade é condição da igualdade formal ou legal, já sabemos, mas
é preciso relembrar que ambas são componentes fundamentais e elementares da democracia.
Sem sujeito de direitos não há liberdade e sem liberdade não há participação – por sua vez, sem
envolvimento e participação (auxiliando na formulação e aceitando as próprias regras) não há
autorização, expressão tácita, consentimento e, por fim, legitimidade do poder e do comando.
Seguindo Miranda, sem esta liberdade inerente ao sujeito de direitos, no Estado de Direito, o
poder é abusivo, arbitrário, autoritário, autocrático, aristocrático13:
As correntes filosóficas do contratualismo, do individualismo e do
iluminismo – de que são expoentes doutrinais Locke (Segundo Tratado
12
O neoliberalismo a partir dos anos 1970 nos trouxe um tipo de Estado Mínimo, mas que resultou catastrófico.
Não há nenhuma possibilidade do direito (isonomia – princípio da igualdade) se ainda tratamos de senhores e
servos – daí que estes devem ser libertos e emancipados. Também é neste sentido que a liberdade precede e
condiciona a igualdade. Portanto, a democracia supõe autonomia e autarquia: envolvimento direto na formulação
das regras e do poder.
13
sobre o Governo), Monstesquieu (Espírito das Leis), Rousseau (Contrato
Social), Kant (além das obras filosóficas fundamentais, Paz Perpétua) – e
importantíssimos movimentos econômicos, sociais e políticos conduzem
ao Estado constitucional, representativo ou de Direito [...] O Estado
constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado liberal,
assente na ideia de liberdade e, em nome dela, empenhado em limitar o
poder político tanto internamente (pela sua divisão) como externamente
(pela redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade) (Miranda,
2002, pp. 45-47).
Ressalte-se ainda que, em virtude desse processo de maturação da ideia de liberdade
(agora em seu sentido propositivo, ampliado: minha liberdade vai até onde começa a sua), a
história do Estado Liberal deve ser vista como parte de um amplo e longo processo secular
transcorrido entre os séculos XVII e XIX, e que se processa só inicialmente com a Revolução
Inglesa (1689), Americana (1776) e Francesa (1789). No curso do próprio processo político,
digamos que vindo de Locke a Rousseau, é possível ver que o pensamento se encaminha da mera
liberdade de fazer e deixar passar (de comprar, possuir e vender como e quando se bem
entender) à liberdade de conotação especialmente política: a liberdade de associação política
para fazer política.
Tolerância ao capital e à liberdade religiosa
Esta articulação entre capital – como Poder Econômico hegemônico – e liberdade
religiosa (subtraindo-se, inicialmente, poder da Igreja Católica), por sua vez, pavimentou a
iniciativa política (seguida da segurança jurídica) necessária à sustentação do Estado Laico.
Acrescente-se também outra substancial diferença operada como conquista institucional:
a garantia constitucional de que a liberdade a partir de então seria assegurada pela Constituição.
Com força de lei, com possibilidade de opor-se sanção e coerção a fim de se ter seu cumprimento
integral, o direito à liberdade viria protegido pela garantia do Habeas corpus14. Mas, além da
liberdade, também a política seria alvo de regulamentação e, por isso, fala-se de Estado de
Direito Liberal:
O Estado abstração, o Estado isento de contingências históricas, na
sua conceituação pura e absoluta, o Estado processo especulativo e
dado apriorístico, exclusivamente racional, “fora de quaisquer
14
Lembremo-nos de que a Declaração traz direitos e a Constituição os consubstancia, por intermédio (da segurança)
das garantias (constitucionais e institucionais), da definição das liberdades (liberdade negativa), do cumprimento dos
deveres ou obrigações (individuais, como o voto, ou coletivas, como a preservação do patrimônio público). A
Constituição iria implementar as prescrições das Declarações de Direitos, prestadas anteriormente.
representações finalísticas de caráter empírico, e independente do
arbítrio humano [...] era apenas a expressão vitoriosa do
individualismo de seu tempo, influindo na mente do filósofo e
pedindo-lhe a justificação teórica, por meios racionais, do Estado
liberal nascido da Revolução Francesa (Bonavides, 2003 p. 85 – grifos
nossos).
Carta Sobre a Tolerância é o nome de um livro de John Locke (1987): considerado o
principal pensador do liberalismo e do “individualismo possessivo”. É creditado a ele, por
exemplo, o desenvolvimento teórico que sustenta ainda hoje as garantias e os direitos
individuais, como visto no Habeas corpus (“tenhas o corpo livre”).
Nessa carta sobre a tolerância, Locke expõe e argumenta de maneira lógica a necessidade
da separação entre Igreja e Estado. E, uma vez exposta a argumentação que garante a separação
entre a “razão” que envolve as agências políticas e os “sentimentos” de foro íntimo que
alimentam a crença na transcendência, Locke define-se pela tolerância à diversidade de culto e
de práticas (“Não se deve proibir em religião o que é permitido na lei civil15”).
O que também acarretaria alguns princípios básicos da tolerância religiosa: solidariedade
e generosidade. Pois, se “a fé age pelo amor e não pela força, deve-se esperar que haja respeito
para que se seja respeitado. Ao que ainda se soma a caridade, mansidão e benevolência”. A
apatia, o desinteresse, como fomento do próprio fundamentalismo não combinam com Locke e
com os princípios do liberalismo, uma vez que a tolerância estará presente tanto na religião
quanto na educação:
[quem] se arroga o ofício de ensinar é obrigado a recordar os seus
dois deveres de paz e benevolência para com todos os homens; a
todos, quer estejam no erro ou na ortodoxia, sejam da sua opinião ou
deles se diferenciem pela política e pelos ritos, sejam particulares ou
governantes, se é que alguns deles se encontram na sua escola, a todos
deve exortar à caridade, à mansidão e à tolerância; devem apaziguar
e abrandar o seu ódio e o ardor da sua animosidade contra os
heterodoxos... (Locke, 1987, p. 100 – grifos nossos).
É claro que também poderão dizer que a prática da política difere da tolerância política e
religiosa. Na verdade, estão quase certos, porque encontra-se uma “tolerância geral das ações”.
Tudo foi feito de boa fé, afinal, generosidade e tolerância (com o erro, inclusive) são resultados
esperados da ação humana. Portanto, nessas bases da ordem jurídica e no espírito do homem
15
Um sentido emprestado ao Princípio da Legalidade.
comum (cultura política) – além de meios de regulação do Poder Político –, encontra-se a
possibilidade fática de surgimento do Parlamentarismo, como fortalecimento do Poder
Legislativo.
1) Parlamentarismo
No parlamentarismo, como está posto na nomenclatura, o Poder Legislativo é mais
fortalecido, uma vez que o Chefe de Governo (como representante do Poder Executivo) é
escolhido entre o Poder Legislativo. Histórica e conceitualmente, o Parlamentarismo é uma
forma superior de organização da soberania popular, por derivar a atividade de governo
diretamente na vontade popular. Como vemos no pensamento liberal de origem, trata-se de
estabelecer o alcance e os limites do Poder Legislativo:
Primeiro: ele não é exercido e é impossível que seja exercido de maneira
absolutamente arbitrária sobre as vidas e sobre as fortunas das pessoas
[...] Segundo: O Legislativo, ou autoridade suprema, não pode arrogar
para si um poder de governar por decretos arbitrários improvisados, mas
se limitar a dispensar a justiça e decidir os direitos do súdito através de
leis permanentes já promulgadas e juízes autorizados e conhecidos [...]
Terceiro: O poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer
parte de sua propriedade sem seu próprio consentimento [...] Quarto: O
poder legislativo não pode transferir para quaisquer outras mãos o poder
de legislar; ele detém apenas um poder que o povo lhe delegou e não
pode transmiti-lo para outros (Locke, 1994, pp. 163-164-166-168).
No sentido mais amplo de autocontrole do Poder Político, se o Legislativo é erigido a fim
de se controlar a “capacidade de execução da política” (do monarca no passado, do Presidente,
no presidencialismo), então, é evidente que seriam estabelecidas obrigações do Poder legislativo:
Primeiro: Ele deve governar por meio de leis estabelecidas e
promulgadas, e se abster de modificá-las em casos particulares, a fim de
que haja uma única regra para ricos e pobres, para o favorito da corte e o
camponês que conduz o arado. Segundo: Estas leis só devem ter uma
finalidade: o bem do povo. Terceiro: O poder legislativo não deve impor
impostos sobre a propriedade do povo sem que este expresse seu
consentimento, individualmente ou através de seus representantes [...]
Quarto: O legislativo não deve nem pode transferir para outros o poder de
legislar, e nem também deve depositá-lo em outras mãos que não aquelas
a que o povo o confiou (Locke, 1994, p. 169).
Não adianta trocar um poder opressivo por outro, daí a necessidade de se
regulamentar/regular toda forma de poder. No entanto, para Locke, o Legislativo é um poder
superior porque deriva diretamente da soberania popular. O que revela uma hierarquia entre os
poderes:
Em uma sociedade política organizada, que se apresenta como um
conjunto independente e que age segundo sua própria natureza, ou seja,
que age para a preservação da comunidade, só pode existir um poder
supremo, que é o Legislativo, ao qual todos os outros estão e devem estar
subordinados; não obstante, como o legislativo é apenas um poder
fiduciário e se limita a certos fins determinados, permanece ainda no
povo um poder supremo para destituir ou alterar o Legislativo quando
considerar o ato legislativo contrário à confiança que nele depositou [...]
Deste modo, a comunidade permanece perpetuamente investida do poder
supremo de se salvaguardar contra as tentativas e as intenções de quem
quer que seja, mesmo aquelas de seus próprios legisladores, sempre que
eles forem tão tolos ou tão perversos para preparar e desenvolver projetos
contra as liberdades e as propriedades dos súditos (Locke, 1994, p. 173).
No parlamentarismo, a função executiva se fraciona em três órgãos distintos e
complementares: Chefe do Estado, Chefe do Governo e Gabinete. Durante as eleições, para obter
maioria e com isso reunir melhores condições de indicar o Chefe de Governo, os partidos
políticos já identificam e indicam ao eleitorado seu futuro primeiro-ministro (o líder e o
candidato, teoricamente, mais votado no partido). Os eleitores sabem que ao votar em um partido
estarão votando em seu primeiro-ministro, afinal, encerrado o período eleitoral, o Chefe de
Estado se vê obrigado a nomear o primeiro-ministro. Isso faz do parlamento a peça central do
governo, pois acaba dirigindo a política interna do país. O eleitor, portanto, sabe perfeitamente
que ao votar terá dupla responsabilidade, porque vota a fim de compor a atividade legislativa e
potencialmente no candidato que será indicado ao cargo mais importante de todo o Poder
Executivo.
Trata-se de um regime de governo muito mais prático do que teórico e muito mais
histórico (constructo, protótipo) do que um modelo (suposto, projetado). A representação
política, por ser ainda mais incisiva e presente, é menos virtual (potencial, hipotética) do que no
regime presidencial. O arete ou virtus é de cunho popular, pois – historicamente – o
legislativo conclama à participação. De modo sistemático, são algumas de suas características:
a) Distinção entre Chefe de Estado e Chefe de Governo
A Chefia de Estado normalmente é reservada a atividades diplomáticas, de representação
do Estado junto a outros Estados soberanos. Em regimes mistos será exercido pelo Presidente
eleito. Já o Poder Político, como capacidade administrativa do Estado, será representado pelo
Chefe de Governo e obedece a uma tripartição: Poder Executivo (1º Ministro auxiliado pelo
gabinete); Poder Legislativo (exercido pela Câmara dos Comuns e Câmara dos Lordes); o Poder
Judiciário (sendo que para Locke o Judiciário é uma extensão do Legislativo).
b) Chefia de Governo com responsabilidade política
O Sistema Parlamentarista apresenta dois chefes: um chefe de Estado (representado pelo
Monarca – ou Presidente eleito, em sistemas mistos – e tem função de presidir a nação) e um
Chefe de Governo (1º Ministro no exercício do Poder Executivo com o gabinete). Portanto, a
responsabilidade política é compartilhada.
c) Possibilidade de dissolução do Parlamento.
Ao contrário do presidente da República, que se vê no centro da crise política, sendo
incapaz de resolver o problema sem que se misture o cargo à pessoa, o 1º Ministro presta contas
de suas ações diretamente ao Parlamento, podendo perder o cargo, pois se a crise for mais grave
será julgado em processo de impeachment. Mas, com sua queda se desfaz rapidamente a crise
política e outro parlamentar será alçado à condição de Chefe de Governo.
d) O Poder Legislativo e o Executivo são interdependentes, o que torna menos evidente a
tripartição dos Poderes.
Uma vez que o Chefe de Estado (Primeiro-Ministro) é eleito entre os membros do
Parlamento, subentende-se que o Poder Executivo está submerso ao Legislativo, como se o real
poder fosse o Legislativo, reservando-se ao Executivo apenas funções administrativas ou
diplomáticas (representativas da Razão de Estado).
Base Histórica de fomento do Poder Legislativo
Séculos XIII – XIV - Assembleias políticas na Inglaterra.
 Fixação da Câmara dos Comuns
 manutenção (limitação) da Câmara dos Lordes
Século XVII
– Conselho de Gabinete
- conselheiro privado
- relações interiores
- deficiência da política do rei
Século XVIII
– destaque ministerial
- instituições do Primeiro Ministro
- fortalecimento da Câmara dos comuns (participação nas escolhas)
- Parlamento x ministros
- impeachment – instituto legal: penalização e destituição do poder16
- surgimento da responsabilidade política
- voto de desconfiança: deposição ministerial
- não há divisão clássica dos poderes
Funcionamento
- escolha do primeiro-ministro pelo partido que tenha maioria congressual
- pluripartidarismo dificulta essa definição
Chefe de Estado
- mera representação; posição secundária
- em crise, indica o primeiro-ministro
Chefe de Governo
- figura política central
- deriva do Legislativo, mas exerce o poder executivo
Dissolução do Parlamento
- maioria congressual pequena
- por solicitação do Chefe de Governo
 novas eleições
 risco para o primeiro-ministro que pode perder, completamente, o apoio da maioria no
Legislativo
2) Presidencialismo
O presidencialismo é uma das formas tradicionais da divisão de poderes que se obtêm
com o sistema de governo. Montesquieu refere-se, mais explicitamente, ao presidencialismo, ao
propor a tripartição dos poderes, uma vez que no Legislativo, o Poder Executivo é exercido pelo
Chefe de Governo indicado pelo Parlamento. Assim, inicialmente, inclusive para se fixar melhor
a repartição dos poderes, no presidencialismo, há um maior fortalecimento do Poder Executivo.
Por sua vez, tem algumas características que devem ser anunciadas:
a) O Presidente da República é Chefe de Estado e Chefe de Governo.
Este fato pode e normalmente acaba por gerar uma concentração de poder muito maior do
que o previsto e do que se poderia esperar em virtude da adoção da divisão dos poderes17.
16
Originalmente, o impeachment era um procedimento criminal e só no decorrer da história é que transformou em
processo político-administrativo.
17
Por isso, no nascimento do governo presidencialista, na França do pós-1789, o legislador já previu uma série de
restrições ao Poder Político exercido pelo Presidente da República: “Não mais haverá venalidade ou hereditariedade
de qualquer ofício público”. A mesma Constituição Francesa de 1791 ainda vedaria a edição de medidas provisórias:
“O Poder Executivo não pode fazer nenhuma lei, mesmo provisória, mas somente proclamações conforme às leis
para ordenar ou lembrar a sua execução” (Miranda, 1990, p. 71).
b) A chefia do Executivo é unipessoal.
Significa que o Presidente da República tem a incumbência de ditar as diretrizes e fixar
as metas da administração pública. Neste caso, a tripartição dos Poderes é visível internamente,
uma vez que a concentração do poder na Presidência da República é evidente, sendo considerado
como o responsável pelo desenvolvimento do Estado e da sociedade civil.
c) O Presidente da República é escolhido pelo povo.
Ainda que no Brasil haja o instituto da reeleição, como expressão da democracia
representativa, o povo elege diretamente o cargo mais elevado do poder central junto ao Poder
Executivo.
d) O Presidente da República é escolhido por um prazo determinado.
Uma das regras da democracia (como normatização do poder) é a imposição da
rotatividade do poder e a fixação de um prazo delimitado, razoável, não-extenso demais, em que
vige a determinação do cargo de Presidente da República (bem como dos demais cargos do
Executivo e do Legislativo).
e) O Presidente da República tem poder de veto.
Significa que, a fim de se garantir o sistema de “freios e contrapesos”, o chefe do
Executivo usa do veto, no todo ou em parte, dos projetos de lei aprovados pelo Legislativo.
Funciona como mecanismo de mediação, equilíbrio entre o Legislativo e o Executivo.
f) o maior problema – como ocorre no Brasil – é a ocorrência de um superpresidencialismo, em
que o Executivo se arvora sobre o Judiciário e o Legislativo.
II - REGIME DE GOVERNO (Democracia ou Ditadura)
Tome-se por ditadura toda forma de negação da soberania popular, incluindo-se a
decretação do Estado de Sítio – sob suposta condição de legalidade –, ou nos casos em que
apenas converte-se o Golpe de Estado em capa de legalidade.
DEMOCRACIA
Evolução da Democracia
1. No sentido histórico, cronológico
2. Configura-se como progresso
A) Artefato: instrumento e ideia em processo de desenvolvimento
Conceituação inicial
Democracia
3. Regime político fundado na soberania popular e no respeito
integral aos direitos humanos (lei, imperativo, da maioria,
somada aos direitos das minorias).
4. Democracia política (liberal).
5. Democracia social – direito social (intervenção do Estado do
Bem-Estar social).
Valores fundamentais
6. Liberdade
7. Igualdade
8. Fraternidade
De forma geral, concorrentes do liberalismo desconfiam da soberania popular,
identificada com a democracia popular soviética, ou com certa utopia rousseaniana. Contudo,
na democracia não há poder, nem direito ilimitado. A soberania popular é regrada, baseada
em leis e melhorias das “relações e representações sociais”. A soberania popular:





Refere-se ao exercício máximo do poder, como soberania política.
Agrega-se aos direitos sociais de todos os tipos (os que já existem e os que poderão vir a
ser criados).
Acrescente-se a liberdade negativa (mais próxima do liberalismo clássico).
Entenda-se como garantia contra o abuso do Estado ou do poder de outros.
Liberdade positiva é ver-se livre para fazer algo. É a liberdade positiva que se associa à
ideia de direito que deve ser formalmente estabelecido. Precisa ser garantida
concretamente para o exercício ou fruição desse direito. (Na Franca, por exemplo, a greve
é uma liberdade: não está nos códigos. Mas, paga-se pelos abusos como cidadão).
No Princípio Democrático (Canotilho, s/d) só existe um direito se houver a garantia de
que ele possa ser usufruído.
III - FORMA DE GOVERNO (República ou Monarquia)
Com o que vimos já podemos depreender que, o que denominamos de Estado de Direito
Republicano corresponde a um tipo de Estado, isto é, tratamos enquanto tipologia de Estado e
não apenas como forma de governo. José Afonso da Silva define o modelo como “formas
institucionais do Estado” (2003, p. 102), colocando-se além da simples forma de governo, no
sentido de que se pode mais facilmente modificar o governo do que o Estado.
Por outro lado, Bobbio trata o tema de forma depreciativa, como mera forma de governo:
“Na minha formação de estudioso de política nunca me detive sobre o republicanismo ou a
república [...] ‘república’ é o nome da forma de governo oposta à ‘monarquia’ ou ao
‘principado’, a começar pelo nosso Maquiavel” (2002, p. 10-11). De certo modo, é como se
estivesse em jogo só a questão da representação – aqui se trata da representação formal
parlamentar.
Isto é, como forma de governo, a República estaria assistida somente com o exercício da
representação, porque garantiria a governabilidade necessária. Esse tipo de análise da
governabilidade também, não raramente, a confunde com o bom funcionamento do governo e
este, por sua vez, é limitado à separação dos poderes. Como sabemos, o objetivo era fortalecer e
resguardar a democracia. Neste contexto, ainda podemos destacar a fundamentação jurídica
essencial da própria democracia.
Resumo
O sistema de governo presidencialista é baseado na separação de poderes, mas com
forte concentração de comando (governo) no Poder Executivo. Tem, como características
gerais: a) independência dos poderes; b) eletividade para organização do Legislativo e do
Executivo; c) curta duração dos mandatos (média de 4 ou 5 anos: Iraque = 7 anos); d)
supremacia da lei constitucional (ver garantias institucionais); e) ministérios são auxiliares do
Executivo. A tendência à concentração de poderes, desde a origem, levou os EUA a adotarem o
sistema de freios e contrapesos, como garantia da interdependência (a indicação, com peso de
nomeação, dos Ministros do STF pelo chefe do Executivo – e sua sabatina pelo Senado -,
seguiria o mesmo princípio).
Por sua vez, o parlamentarismo constitui outra manifestação ou criação do pensamento
liberal, outro instituto político do Estado Liberal. Mantendo-se certa consonância com o
pensamento de Locke, podemos dizer que o poder Executivo é subordinado ao Legislativo,
pois o poder de legislar sobre o Estado é superior e anterior ao próprio momento de execução das
ações desse Estado. Além de que o Legislativo (poder fiduciário) deriva diretamente da vontade
popular: o verdadeiro poder originário. Assim, é também a base em que se assenta toda a
responsabilidade sujeita à vida social, uma vez que o poder civil é instituído pelo povo – autor e
sujeito da história que pode, inclusive, destituir o próprio Poder Legislativo. Portanto, nessa
matriz conceitual do Parlamentarismo, temos uma ligação muito mais íntima entre poder,
competência e capacidade legislativa e soberania popular.
Bibliografia
ARON, Raymond. Da condição histórica do sociólogo. Brasília : Editora Universidade de Brasília,
1981.
____ Estudos políticos. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1985.
BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 4ª Ed. Rio de Janeiro : Ediouro, 2000.
Diálogo sobre a república: os grandes temas da política e da cidadania. Rio de Janeiro : Campus,
2002.
_____ Qual socialismo? São Paulo : Paz e Terra, 2002b.
BOBBIO, Norberto (et. al). Dicionário de política. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1993.
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 4ª ed. São Paulo : Malheiros Editores Ltda, 2003.
_____ Do Estado Liberal ao Estado Social. 7ª ed. São Paulo : Malheiros, 2004.
CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão? Campinas, São Paulo : Papirus, 1991.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª Edição.
Lisboa-Portugal : Almedina, s/d.
CERRONI, Umberto. Política: método, teorías, procesos, sujetos, instituciones y categorias. México,
D.F. : Siglo Veintiuno Editores, 1992.
DAHRENDORF, Ralf. A nova liberdade. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1979.
HOBSBAWM, Eric J. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de Janeiro :
Paz e Terra, 1987.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos. Petrópolis-RJ : Vozes, 1994.
_____Carta Sobre a Tolerância. Lisboa: Edições 70, 1987.
MARTINEZ, Vinício C. Teorias do Estado: instituições e dilemas do Estado de Direito Capitalista.
São Paulo : Scortecci, 2012.
_____ Teorias do Estado: metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.
MARX, Karl. Crítica del programa de Gotha. Moscú : Editorial Progreso, 1979.
MIRANDA, Jorge. Textos Históricos do Direito Constitucional. Lisboa : Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1990.
_____ Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro : Forense, 2002.
ROSENFIELD, Denis. A ética na política: venturas e desventuras brasileiras. São Paulo : Brasiliense,
1992.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2003.
VIEIRA, (Pe.) Antonio. Sermão do bom ladrão. São Paulo : Princípio, 1993.
WEFFORT, Francisco Corrêa. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1980.
WEIL, Simone. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de janeiro : Paz e Terra,
1979.
Download