Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 268 Maria Carolina Gonçalves Luiz1 para os Adolescentes Laís de Oliveira Souza1 Maria Gorett Freire Vitiello1 Loren Pelik Kempe Anhucci1 Vera Lucia Tieko Suguihiro1 Mari Nilza Ferrari de Barros1 Resumo Na atualidade, os atos infracionais praticados por adolescentes vêm ganhando grande visibilidade na mídia, principalmente quando considerados graves. No entanto, pouco se tem discutido sobre o perfil dos adolescentes em conflito com a lei, bem como sobre as políticas públicas voltadas para este segmento. Assim, o Projeto de Pesquisa Desenho Urbano e Violência Praticada Contra Crianças e Adolescentes, executado pelo Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina, realizou uma pesquisa qualiquantitativa, por meio do levantamento dos dados registrados nos Boletins de Ocorrência Circunstanciado, na Delegacia Especializada do Adolescente, do município de Londrina-PR, no período de 2008 a 2010. Ao sistematizar os dados sobre os atos infracionais praticados por adolescentes, identificou-se que o ato infracional mais praticado foi o tráfico de drogas, com número significativo de atos infracionais de posse de 1Universidade Estadual de Londrina. Departamento de Serviço Social. drogas e associação ao tráfico de drogas, geralmente praticado com a co-autoria de outro adolescente. A partir E-mail: [email protected] da análise dos dados, a maioria dos atos infracionais é praticado para o consumo de substâncias psicoativas ou para realizar o desejo de consumo. Torna-se importante discutir a representação da prática do tráfico de drogas e Luiz et al. A Representação da Prática do Tráfico de Drogas Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 269 os fatores que vem determinando o envolvimento de adolescente na prática de ato infracional. Palavras-chave: Adolescente. Violência. Tráfico de Drogas. The Representation of the Drugs Trafficking Practice for Teens Abstract In actuality, the offenses committed by adolescents are gaining high visibility in the media, especially when considered serious. However, little has been discussed about the profile of adolescents in conflict with the law, as well as the public policies for this segment. Thus, the Draft Urban Design Research and practiced Violence Against Children, run by the Department of Social Services, State University of Londrina, conducted a qualitative and quantitative research, through the collection of data recorded in the official reports detailed in the Specialized delegation of teenager, the city of Londrina, in the period 2008 to 2010. by systematizing data on offenses committed by adolescents, it was found that the most practiced infraction act was trafficking in drugs, a significant number of infractions of possession of drugs and association with drug trafficking, usually practiced with a coauthor of another teenager. From the data analysis, the majority of offenses are committed for substance use or conduct consumer desire. Becomes important to discuss the representation of the practice of drug trafficking and the Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 270 factors that has determined the involvement of adolescent in the practice of misdemeanors. Keywords: Teenager. Violence. Drug traffic. 1 Introdução Quando se trata do tema - adolescente infrator - ainda é comum associar a meninos e meninas de rua, “fora da lei”, "delinquente", e que precisam de medidas punitivas para sua "ressocialização". Não se vincula estes adolescentes à condição de vulnerabilidade social e pessoal, desprovidos de necessidades básicas e desamparados pelo Sistema de Garantia de Direitos - Proteção Absoluta - preconizados no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL, 1990). A vida destes adolescentes vem marcada pela ausência de políticas públicas de caráter preventivo, prevalecendo as práticas pontuais e assistenciais, cujos atendimentos são realizados por instituições destinadas a assistir os adolescentes quando os seus direitos já foram violados. Faz-se urgente romper com a ideia prevalente no imaginário da sociedade em associar de forma linear a pobreza com a criminalidade. Tem-se a compreensão que a pobreza é o que leva o adolescente a praticar o ato infracional, sem considerar outros fatores existentes no contexto social, tais como: a exclusão social, o preconceito e, principalmente, a falta de acesso às políticas públicas. Considerar a pobreza como o único fator para o ingresso de adolescentes no mundo do crime é um equívoco. Além de reforçar a exclusão, também Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 271 condena o adolescente pobre a ser o único responsável pela sua condição, criminalizando a pobreza. Assim, os atos infracionais devem ser compreendidos como apontamentos de demandas que exigem uma intervenção, superando a prática de caráter punitiva, com investimento em políticas sociais voltadas à prevenção. 2 Desenvolvimento 2.1 A Emergência do Estado Penal em Detrimento do Estado Social A década de 1980 foi marcada por lutas contra o Estado autoritário e, segundo Telles (1994), este período foi permeado por um processo de mobilização da sociedade civil, em busca de uma sociedade mais justa e igualitária, mediada pela luta por Direitos. Os movimentos sociais obtiveram conquistas importantes com a promulgação da Constituição Federal de 1988, sobretudo em relação à proteção social, bem como a implementação do ECA, em 1990. No entanto, conforme Boschetti (apud BRISOLA, 2012, p.135), ao mesmo tempo em que os direitos foram assegurados constitucionalmente, avança no país o neoliberalismo com sua receita desregulamentadora de direitos, e com o Estado tornando-se mínimo para as políticas sociais. Para Castro citado por Brisola (2012, p.135), por meio desta lógica o que predomina é o mérito individual, em detrimento da universalidade dos direitos, tendo como característica a Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 focalização, a seletividade e as 272 condicionalidades implementadas pelo Sistema Único da Assistência Social. De acordo com a autora, o pobre é “induzido a frequentar cursos nos quais aprendem a pescar - e a usar o microcrédito para comprar o anzol-, ganham autoestima; requisitados a participar (de conselhos e atividades comunitárias), auferem os dividendos do capital” (VIANNA, 2008, p.136). Há uma inversão no significado de inclusão, pois, a população deixa de ser o cidadão que possui direitos civis, políticos e sociais, e passa a ser considerado incluído na medida em que é considerado um produtor/consumidor de mercadorias, ainda que circule somente na informalidade. As ações voltadas à sociedade civil são emergenciais, por meio de políticas sociais fragmentadas, focalizadas e minimalistas, com características assistencialistas. A estas ações são acrescidas a repressão policial, ou seja, o Estado utiliza a força e coerção para manter a ordem burguesa que, segundo Netto (2007, p.160), tais ações não evitam: a redução da pobreza, com o crescimento “cada vez maior de pobres que ameaçam a boa ordem e deslizam além das instituições, então o recurso ao endurecimento legal parece inevitável: o assistencialismo conjuga-se e completa-se com a repressão policial”. Para Bourdieu citado por Wacquant (2007, p.32), a regulação das classes populares é determinada, por um lado, pela “mão esquerda” do Estado, que tem como objetivo proteger e melhorar as oportunidades de vida, por meio dos direitos ao trabalho, à educação, à saúde, à assistência social e a moradia Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 273 pública. Por outro lado, é regulada pela “mão direita” do Estado, a qual administra a polícia, a justiça e a prisão, sobretudo nas áreas subalternas do espaço social e urbano. Via de regra, são destinados ínfimos recursos orçamentários para as políticas públicas, com a função apenas de garantir a sobrevivência da classe trabalhadora em níveis aceitáveis. Neste cenário, prevalece o Estado penal, em que as ações do Estado passam a ter um cunho punitivo e coercitivo, ampliando a criminalização da pobreza. Para Wacquant (2002 apud NETTO 2010, p.2) a partir da substituição do Estado de Bem-Estar Social pelo Estado penal, as suas ações são repressivas e se generalizam sobre as “classes perigosas”, ao mesmo tempo em que aumenta o número de empresas de segurança, de vigilância privada, bem como a privatização dos estabelecimentos penais. Segundo Castro (2010 apud BRISOLA, 2012, p.136) há duas evidências do Estado penal: o estigma e a criminalização. Goffman citado por Brisola (2012, p.136), entende que o estigma significa algo de mal, que deve ser evitado, ou seja, uma ameaça para a sociedade, enquanto que a criminalização para Ferreira (1995 apud BRISOLA, 2012, p.136) é o “ato de imputar crime ou ato de tomar como crime.” Na realidade brasileira o estigma é que “negros e pobres sempre aparecem na mídia como autores de atos criminosos que, apanhados de maneira imediatista e preconceituosa, são associados, em seu conjunto, às práticas de crimes” (Brisola, 2012, p.137). Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 274 Assim, os atos infracionais praticados por adolescentes têm ganhado grande visibilidade na mídia, no entanto, paradoxalmente, eles são considerados “invisíveis” para as políticas sociais. A trajetória de vida destes adolescentes é carregada de violação de direitos. O que há é uma ampla divulgação dos atos infracionais praticados por adolescentes, sem aprofundar uma discussão sobre os fatores que impulsionam os jovens a praticarem os atos infracionais. Não se coloca em questão a ineficiência das políticas públicas, tampouco sobre a qualidade dos programas e projetos voltados às políticas de proteção e prevenção, principalmente para os adolescentes em conflito com a lei. 2.2 A Prática De Atos Infracionais pelos Adolescentes no Município de Londrina-Pr A partir do Projeto de Pesquisa Desenho Urbano e Violência Praticada Contra Crianças e Adolescentes, executado pelo Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina, foi realizada uma pesquisa por meio do levantamento dos dados registrados nos Boletins de Ocorrência Circunstanciado (BOC’s), na Delegacia Especializada do Adolescente, do município de Londrina-PR, durante os anos de 2008 a 2010. O levantamento dos dados teve por base os BOC’s, referentes aos registros dos anos de 2008, 2009 e 2010 (Quadro 1), apresentando 774, 1.064 e 1.066 processos, respectivamente. A partir da somatória dos BOC’s registrados, num total de Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 275 2.904, os dados revelam um aumento expressivo de envolvimento de jovens na prática da violência. Quadro 1: Número de Boletins de Ocorrência e adolescentes registrados que passaram pela Delegacia do Adolescente no período de 2009/2010 – Londrina/PR Descrição 2008 2009 2010 Registros de BOC’s 774 1064 1066 Nº de Adolescentes * 1361 1151 Fonte: Dados sistematizados pelo Projeto de Pesquisa “Desenho Urbano e Violência Praticada Contra Crianças e Adolescentes”. O que se pode identificar é que nos anos de 2009 (1.361) e 2010 (1.151), 2.512 adolescentes se envolveram em atos infracionais. Conforme a pesquisa realizada no município de LondrinaPR, no período de 2008 a 2010, o ato infracional mais praticado por adolescentes foi o tráfico de drogas, apresentando nos anos de 2008, 2009 e 2010, o número de 173, 213 e 246 atos, respectivamente. Ainda se pode observar um aumento expressivo, dos atos infracionais relacionados à associação para o tráfico de drogas, representados por 12, 26 e 38 atos nos anos de 2008, 2009 e 2010, respectivamente. Como podemos ver no Quadro 2. Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 276 Quadro 2: Atos Infracionais praticado por adolescentes no município de Londrina-PR Ato infracional 2008 2009 2010 Tráfico de drogas 173 213 246 Associação para o tráfico de drogas 12 26 38 Posse irregular de drogas 132 125 90 Fonte: Dados sistematizados pelo Projeto de Pesquisa “Desenho Urbano e Violência Praticada Contra Crianças e Adolescentes”. A associação para o tráfico de drogas é entendida como o ato em que “associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes, previstos nos art. 33, caput e §1º, e no art. 34 desta Lei”. A partir da análise da descrição do fato presente nos BOC’s, entende-se que o ato infracional de tráfico de drogas, na maioria das vezes é praticado para viabilizar o consumo de drogas ou de bens. Já com relação ao ato infracional por posse irregular de drogas, entende-se que houve uma diminuição expressiva, tendo 132, 125 e 90 práticas nos anos de 2008, 2009 e 2010, respectivamente, revelando que os adolescentes estão praticando o comércio de drogas de forma mais recorrente. Para Costa (2005, p.44) o comércio de drogas é a oferta do mundo do tráfico como fonte de renda imediata, levando-se em consideração as modificações no mundo do trabalho, os altos índices de desemprego, a baixa escolaridade, as alternativas de sobrevivência dos jovens de classes populares, muitas vezes, passam pela adesão ao mundo do tráfico. Isto significa que a grande oferta de trabalho no mundo do tráfico pode ser um dos fatores preponderantes para o Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 277 envolvimento precoce de jovens ao tráfico de drogas. Segundo Costa (2005, p.44), o tráfico não fica restrito apenas ao transporte e venda de drogas, pois, primeiramente, o mundo das drogas relaciona o consumo com a atividade econômica do tráfico, fazendo com que os jovens envolvamse com outras atividades ilícitas, aumentando gradativamente a sua participação no mundo do crime, seja como trabalhador ou para atender a necessidade de consumir a droga. 3 Conclusão Os BOC’s na Delegacia Especializada do Adolescente no município de Londrina-PR, demonstraram que o ato infracional de tráfico de drogas sofreu um aumento expressivo no período de 2008, 2009 e 2010, com a inserção de adolescentes de modo cada vez mais precoce e recorrente na prática do tráfico de drogas. A prevalência do Estado penal em detrimento de um Estado social, regulada pelo ideal neoliberal, cria políticas públicas constituídas na perspectiva da seletividade em contraposição ao caráter universal dos direitos assegurados constitucionalmente à população juvenil, dispondo de uma prática punitiva como estratégia para o enfrentamento ao combate à prática da violência. O envolvimento dos adolescentes na prática de atos infracionais, principalmente com o tráfico de drogas, é um fenômeno decorrente da atual estrutura social, política e econômica do Estado liberal, sendo este constituído pela lógica propagada pelo modo de produção vigente, o qual Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 278 incentiva o consumo desenfreado da mercadoria, sem garantir as mesmas condições de acesso a todos, considerando o Estado de Direito brasileiro. Portanto, é de extrema importância romper com a ideologia da criminalização da pobreza, associada aos adolescentes em conflito com a lei. É preciso investimento em ações de defesa dos direitos assegurados a este segmento, por meio da formulação de políticas públicas de caráter preventivo, como forma de enfrentamento da exclusão social dos adolescentes que se encontram em situação de vulnerabilidade social, no sentido de fortalecê-los para não servirem de alvos fáceis para o mundo da criminalidade. Faz-se urgente a compreensão da realidade social, econômica e política capaz de traduzir em ações concretas para a mudança da condição de vida de adolescentes em conflito com a lei, tanto por parte do Estado como da sociedade, em um contexto cujo tema ganha contorno complexo e conflituoso. O desafio está em transformar as atitudes de indiferença e violação de direitos em ações protetivas de caráter universal. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. BRASIL. Lei n.8.069, de 13 de julho de 1990: Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 27 out. 2014. Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(12):268-279 279 BRISOLA, E. Estado penal, criminalização da pobreza e Serviço Social. Ser Social, v.14, n.30, p.127-154, jan./jun. 2012. COSTA, A.P.M. As garantias processuais e o direito penal juvenil: como aplicação da medida socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2005. NETTO, J.P. Desigualdade, pobreza e serviço social. Revista em Pauta, n.19, p.134-170, 2007. NETTO, J.P. Uma face contemporânea da barbárie. In: III ENCONTRO INTERNACIONAL CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE, 3., 2010, Serpa. Anais... Serpa, 2010. TELLES, V. Sociedade civil e os caminhos (incertos) da cidadania. São Paulo em perspectiva, v.8, n.2, p.8-14, 1994. VIANNA, M.L.T.W. A nova política social no Brasil: uma prática acima de qualquer suspeita teórica? Revista Praia Vermelha, n.18, 2008. WACQUANT, L. 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