Professores analisam o novo Código Civil 21.10.02 - Carta Maior Ricardo Maffeis O juiz e professor de Direito Constitucional da PUC-RS e da Escola Superior da Magistratura daquele estado, Ingo Wolfgang Sarlet, foi o destaque do segundo dia do curso sobre o novo Código Civil, promovido em conjunto pela Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) e pela Escola Paulista da Magistratura. Posições como a restrição do direito de propriedade quando confrontado com a dignidade da pessoa humana e a relativização da impenhorabilidade do bem de família foram motivo de intensa discussão entre os presentes. No mesmo dia, João Baptista Villela, professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-professor de universidades na Alemanha e em Portugal, dissertou sobre o estatuto jurídico das pessoas no novo Código Civil, tecendo várias críticas ao mesmo. A relação entre Direito Constitucional e Privado Inglo Sarlet traçou algumas premissas gerais do que define como constitucionalização do Direito Privado. Para ele, há uma "relação dialética e dinâmica entre a Constituição Federal e o Direito Privado". Logo de início, pregou um abrandamento do liberalismo excessivo, com a mudança da ética individualista para a ética social. A seguir, teceu algumas críticas ao neoliberalismo, ao afirmar que "a globalização traz riscos graves à constitucionalização do Direito Privado, provocando um retrocesso, com o aumento da exclusão social e a concentração de renda". Na mesma linha, apontou as privatizações como responsáveis por um déficit da capacidade do Estado em assegurar os direitos das pessoas. O ponto de maior repercussão de sua palestra foi a questão dos direitos fundamentais da pessoa humana nas relações interpessoais. Os direitos dos particulares encontram-se numa relação horizontal, então, como pode um particular opor um direito fundamental dele ao direito fundamental de outro particular? E quais as conseqüências deste embate? Para o professor gaúcho, não se discute que os direitos fundamentais vinculam, o problema é saber como. A eficácia pode ser indireta, sendo primeiramente tarefa do legislador e, somente nos casos de lacuna na lei ou quando esta for inconstitucional, é que o juiz poderá fazer a valoração entre tais direitos. Sua posição, contudo, é pela eficácia direta, ou seja, possibilidade de aplicação imediata dos direitos fundamentais pelo Judiciário. Os problemas passam a surgir com a necessidade de se resolverem os casos concretos. Como as duas partes de uma relação jurídica privada podem ser titulares de direitos fundamentais, as colisões são inevitáveis. "Não há uma regra geral, a solução surge da análise de cada caso, onde sempre haverá uma hierarquização de valores e, quando houver um grande desequilíbrio entre as partes, precisam ser tomadas medidas para torná-las mais equilibradas", ressaltou o palestrante. Sarlet considera a dignidade da pessoa humana o princípio mais importante de todos, podendo até mesmo restringir o direito de propriedade de uma pessoa, por exemplo no caso de uma família que ocupa e passa a residir em uma área completamente abandonada pelos proprietários, que, muitas vezes, sequer conhecem pessoalmente o local. Outro exemplo defendido foi a necessidade de relativização da impenhorabilidade do imóvel familiar. O magistrado defendeu que uma pessoa muito rica poderia aproveitar-se desta garantia legal para cometer inúmeras fraudes, ficando devedor de várias pessoas que, não conseguindo localizar outros bens para executar, vêem-se impedidas de penhorar um imóvel luxuoso por ser a residência do devedor contumaz. Reconheceu ser uma exceção, mas salientou: "a vítima se reconhece no caso concreto, a lei vê apenas um lado, esquecendo-se do outro". Sarlet terminou sua palestra afirmando que, em certos casos, defende também a prisão do depositário infiel. Nos debates, questionado pelos presentes se seu posicionamento não geraria uma grande instabilidade jurídica, deixando nas mãos dos juízes um poder exagerado, respondeu negativamente, afirmando que, de qualquer forma, quando existente o processo, a decisão final acaba sendo sempre do Judiciário. Estatuto jurídico das pessoas O professor João Baptista Villela destacou algumas inovações mais relevantes do novo código. Não sem antes ressaltar que não considerava necessária a mudança no Código Civil de 1916, diploma que fez questão de elogiar. "Em alguns aspectos, houve recuos. O código francês é de 1804 e não passa pela cabeça de nenhum jurista modificá-lo", justificou, complementando: "as leis ganham em ser antigas, as novas não têm aceitação e interação com a sociedade". Quanto ao início da personalidade da pessoa física (ou natural), apontou que nas discussões do novo Código Civil foi reaberto o debate entre os concepcionalistas e os natalistas. O Código de 1916 adotou a teoria natalista, entendendo a personalidade se inicia com o nascimento com vida. "Alguns juristas querem mudar para a teoria concepcionalista, mas foi acertada a manutenção da outra corrente. O atributo de ser pessoa tem início com o nascimento, de modo que o legislador atual merece aplausos por ter mantido a orientação atual", ponderou. Ainda sobre o tema, afirmou ser a atividade cerebral a mais segura para saber o momento de início da vida. O Código prescreve "a partir do nascimento", mas quem deve definir quando este se dá é a ciência e não a lei. Quanto às pessoas jurídicas – que o palestrante prefere denominar pessoas coletivas –, ficou mantido o entendimento de que sua existência legal começa com a inscrição de seus atos constitutivos no respectivo registro (art. 45). Por outro lado, o novo código não resolveu a questão dos chamados entes atípicos (exemplos: condomínio edilício, massa falida e herança jacente). Há uma "discussão interminável" na doutrina e jurisprudência a respeito destes entes serem ou não pessoas jurídicas, mas o Código de 2002 não disciplinou a matéria. Para o professor mineiro, mesmo as sociedades de fato, cujos atos constitutivos não estão regularizados, possuem "uma parte de personalidade" atribuída pela lei. "A personalidade não é estática, mas sim elástica, de modo que a massa falida tem o necessário de personalidade que a lei decidiu que seria importante ter, como para ingressar em juízo, litigar etc. Para outras funções, a massa falida não precisa de personalidade", explicou. Demonstrando não ter realmente aprovado a nova lei civil, qualificou como não razoável o art. 40 do código, que assim dispõe: as pessoas jurídicas são de direito público, interno ou externo, e de direito privado. Nas suas palavras: "esta redação vai muito além do que deve dispor o Código Civil, traz uma herança imperialista do Código de Napoleão. Definir pessoa jurídica de direito público interno e externo é papel da Constituição Federal, o Código Civil não pode conferir personalidade à União e aos Estados federados, por exemplo. É uma demasia". Por identificar vários erros gramaticais no novo código, afirmou haver uma perda de qualidade na redação do mesmo, se comparada à redação da lei atual. Afirmou que o código confunde as palavras estatuto e estatutos, explicando que, enquanto a primeira significaria "o conjunto de regras de qualquer natureza que dispõe sobre determinada matéria", a palavra no plural corresponderia ao "corpo orgânico que rege uma sociedade coletiva". Contudo, tanto o Novo Dicionário Aurélio – Século XXI, Ed. Nova Fronteira, versão eletrônica, como o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, apresentam a palavra estatuto como válida para os dois significados, não registrando o verbete estatutos. Honra e despersonalização da pessoa jurídica Dispõe o art. 52 do novo código: aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade. Para João Baptista Villela, esta regra é polêmica. Existe entendimento de parte da doutrina e da jurisprudência de que é possível se ofender a honra de uma pessoa jurídica, gerando assim danos morais, mas o palestrante vê tal possibilidade com reservas: "as pessoas jurídicas podem ter nome, prestígio e respeito, mas não são dotadas de faculdades que as façam padecer de danos morais, já que elas não têm dor". Assim, com relação às pessoas jurídicas, só há que se falar em indenização se o dano repercutir em seu patrimônio. Por fim, teceu alguns comentários sobre a desconsideração da pessoa jurídica, instituto muito utilizado no Brasil, especialmente na Justiça do Trabalho, para a satisfação de créditos dos empregados. O professor criticou a amplitude do uso da desconsideração: "este instituto não é um expediente técnico de cobrança de dívida, só pode haver a desconsideração diante do abuso ou irregularidade no uso da personalidade jurídica. Uma vez aplicada, somente pode alcançar o patrimônio dos administradores ou sócios que cometerem tais irregularidades, os que não participam da administração da empresa não podem ter seus patrimônios atingidos por dívidas oriundas da má gestão do empreendimento".