CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/SETEMBRO DE 2006 DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DA CIDADE M ODERNA Maria Alice Rezende de Carvalho1 Carlos Brandão, arquiteto e professor da UFMG, em interessante artigo sobre o vínculo moderno entre cidade e república, publicado na Revista da USP (São Paulo, 2003), valeu-se de uma fábula de Leon Battista Alberti, intelectual renascentista do século XV, para ilustrar seu argumento. Na fábula citada, Júpiter, desiludido com os homens, determinou que Momus, um deus irrequieto e barulhento, visitasse a Terra em busca de algum mérito humano, de algo que pudesse ser aproveitado na construção de um novo mundo. Na Terra, Momus comprovou o diagnóstico de Júpiter: os homens eram, de fato, maus, hipócritas, desrespeitosos para com os deuses e a natureza, tornando-se magistrados corruptos, políticos egoístas e filósofos auto-satisfeitos com a sua tolice. Contudo, de volta ao Olimpo, Momus dirige um último olhar para baixo, deparando-se com a deslumbrante arquitetura florentina. Conclui, então, que os homens eram verdadeiramente emprestáveis, mas sua arte poderia ser útil à nova criação pretendida por Júpiter (idem, p.12-13). Na economia expositiva do autor, a fábula serve ao propósito de apresentar a cidade renascentista como uma pedagogia para a vida pública, modelando o novo homem político do Quattrocento. A partir daí, o texto desdobra-se sobre o argumento da “cidade como projeto”, que, das repúblicas renascentistas aos nossos dias, representaria a luta do intelecto humano (p. 16) contra as forças desagregadoras que atuam no mundo social. Do que se conclui que é o permanente empenho na reconstituição da polis, “mesmo que sob novas formas” (idem, p. 18), o que orienta a perspectiva moderna de um continuum passado-futuro, tensionado pelo embate entre a desagregação como destino heterônomo e a totalidade como afirmação da autonomia dos homens. O artigo de Brandão suscita um importante debate sobre a sociedade urbana contemporânea. Pois nele está contida uma defesa explícita dos pressupostos cognitivos e normativos que modelaram a cidade moderna, em um contexto em que cada vez mais se observam incongruências entre tais pressupostos e as largas 1 Professora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), e coordenadora do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES). 1 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/SETEMBRO DE 2006 transformações, de natureza material e simbólica, vividas sob as democracias igualitárias ou de massa. Não se trata de recusar a priori a dimensão normativa inscrita no conceito de “cidade como projeto”, mas, sim, de avaliar se os pressupostos da modernidade e a sua normatividade implícita têm sido capazes de renovar, no presente, o horizonte de expectativas quanto à “vida boa”. Suspeito que não. Penso mesmo que uma das dimensões da chamada “crise urbana” contemporânea é de natureza epistemológica e está associada ao fato de que, ao manter a perspectiva renascentista do “olho alado” de Momus, isto é, a perspectiva de um sujeito cognoscitivo situado além e acima dos atores, o pensamento sobre a cidade não tem sido capaz de lidar com os “saberes” que organizam a experiência do indivíduo ordinário e conformam seu universo de sentido, valores e práticas. Em outras palavras, o modo predominante de representação da cidade, aqui metaforizado no vôo de Momus, é o que informa, a partir de uma brutal racionalização do comportamento humano, a associação entre cidade e república, prolongada pelo iluminismo. Afinal, não é difícil reconhecer na vontade geral rousseauneana a crença na resolução racional do conflito, mediante a construção de uma identidade unificada – o cidadão -, que se ancora na idéia de virtude e de um espaço comum compartilhado. Nessa chave, ainda o Welfare State terá sido a última grande manifestação do recurso à razão política para conter a desagregação social, atualizando, já no segundo pósguerra, a figuração de uma cidade intelectualmente concebida e normativamente unitária. Contudo, desde meados do século XIX, agências centrífugas arranham a olímpica hegemonia dessa representação. Karl Polany, por exemplo, em A Grande Transformação, chamou a atenção para a emergência do associativismo no interior das formações sociais modernas – fenômeno cuja lógica eminentemente solidária desmarca a polaridade que o iluminismo atualizou entre virtude e interesse, ou Estado e mercado, e introduz um outro operador normativo da convivência humana. Quando referido à cidade, ademais, o associativismo tende a se expressar espacialmente, constituindo redes territorializadas de apoio social e mútua proteção, bem como “públicos” diversos e auto-orientados, que contradizem, na prática, o critério republicano de um espaço público unitário. As cidades de Chicago e São Paulo, que no começo do século XX se caracterizaram pelo acolhimento de levas significativas de imigrantes, conheceram uma segmentação étnico-espacial que ilustra o argumento, da mesma forma que, hoje, Paris – cidade paradigmática da tradição republicana – talvez 2 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/SETEMBRO DE 2006 seja o lugar de maior experimentação da fixação de fronteiras e de “áreas de transição” no interior de seu perímetro urbano. Essa infiltração “comunitária” no contexto da modernidade e mais o desmonte das políticas welfareanas que conferiam verossimilhança à idéia de “cidade como projeto” evidenciam uma crescente atonia entre a cidade tal como a representamos e a experiência dos citadinos contemporâneos. Assim, na impossibilidade de traduzirem reflexivamente sua “experiência”, por força de pressupostos cognitivos e normativos que a tornam “impensável”, os citadinos dificilmente percebem a cidade como construção coletiva, tomando-a como um continente impermeável à sua intervenção. Como se vê, afirmar a dimensão epistemológica da crise urbana contemporânea não é um problema de teóricos, somente. Implica a consideração dos limites do conhecimento vis-à-vis o “mundo da vida”, isto é, um contexto de sociabilidade e energias sociais intensas, que se materializa principalmente aonde a cidade é menos traduzível pelos instrumentos de racionalização moderna. O resultado dessa crise não é previsível, mas sua permanência tem produzido questões que tendem a se expressar sob a forma de dilemas, já que diante delas não é possível avançar uma resposta consensual. Tome-se, por exemplo, a questão da disputa territorial nas grandes metrópoles. Sob o pressuposto moderno da cidade como totalidade, facilmente deslegitima-se o conflito que tenha por objetivo o controle de parcelas do território. Entretanto, é possível perceber situações em que os lugares se tornam palco de iniciativas solidárias, espaço de cooperação política e produtiva das classes populares, sem o que, suas chances de reconhecimento e integração a dinâmicas mais amplas se tornam escassas ou mesmo inexistentes. Nesses casos, como lidar com tais formas de luta territorializada pelo acesso à cidade? Mais ainda: e quando as iniciativas populares, para consolidarem seu domínio territorial, concebem movimentos mais amplos de articulação social e organização política, constituindo “aliados” em outros segmentos da população, esferas de formação de opinião autônoma e uma vida progressivamente mais livre em relação aos mecanismos de subalternização a que o mundo popular está exposto? Como se sabe, a afirmação territorializada do mundo popular, com toda a carga de conflito que isso supõe, tem sido a tônica das periferias das grandes cidades brasileiras, mas não apenas destas, diante da qual é recorrente o diagnóstico quanto à sua resistência à integração à ordem republicana. Assim, em face desse fenômeno 3 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/SETEMBRO DE 2006 protagonizado pelos moradores das periferias, a questão que a cidade moderna se faz é “por que não se integram?”, quando a relativização da perspectiva verticalizada de Momus permitiria indagar “a que ordem estão integrados?” e “como se integram?”. Na simulação, há pouco mencionada, em que a organização popular extrapola a periferia, alcança aliados em toda a cidade e promove uma oxigenação do debate público sobre os territórios invisíveis da pobreza, não estaríamos diante de um caso típico em que a transgressão do princípio constitutivo da experiência cidadã – a cidade comum – resulta, paradoxalmente, em incremento da cidadania? Outros exemplos poderiam ser acionados para apontar os dilemas contemporâneos que a representação moderna de cidade nos impõe. Tratarei de mais um, apenas, referido à morfologia da cidade ocidental. Não são poucos os autores que têm apontado o processo de favelização do mundo como o grande desafio a ser enfrentado nesse recém iniciado século XXI. A perspectiva é quase sempre a de recomposição da forma-cidade, compreendendo-se por isso uma certa ordem espacial, associada, evidentemente, à provisão de bens de cidadania – habitação digna, saneamento, água encanada, segurança etc – aos que não dispõem deles. A extensão de tais bens e serviços é parte da plataforma de lutas históricas que os movimentos sociais urbanos impuseram ao Estado democrático de direito ao longo de muitas décadas, e que vem sendo atendida na medida da força dos demandantes para concretizá-la. Quanto a isso, há poucas vozes discordantes. O problema, contudo, consiste na associação entre políticas sociais e políticas urbanísticas, em que o último termo implica lidar com dilemas como respeitar ou não o lugar de fixação das grandes massas pobres e os padrões construtivos que lograram desenvolver em sua marcha de apropriação do solo urbano – ruelas, becos, entradas comuns para unidades habitacionais distintas, janelas vedadas por construções vizinhas, pátios internos de uso plurifamiliar, escadas, rampas, trilhas sem saída, as funções da cidade moderna (trabalho e habitação) confundidas em um espaço multiuso, de exposição e fricção interpessoal. Por isso o debate sobre a eliminação ou a remoção de favelas volta e meia polariza a opinião da cidade. O dilema, nesse caso, é particularmente insolúvel, na medida em que envolve argumentos estéticos, sanitários e morais que raramente se traduzem em um debate político. Charles Deleuze, em seu Mil Platôs, é dos poucos autores a politizar a crise epistemológica do Ocidente moderno, assumindo o paradigma das cidades orientais como alternativa para as formas populares de uso do espaço urbano no mundo 4 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/SETEMBRO DE 2006 contemporâneo. Sua intenção é claramente a de celebrar, sob o elogio da improvisação urbanística, a preservação da idéia de contingente, de mutabilidade, que a naturalização da racionalidade moderna eliminou. Em outras palavras, contra o “olho alado” de Momus, que se encanta com a volumetria ideal de Florença, avistada de cima para baixo, tratar-se-ia de valorizar os labirintos urbanos, somente capturáveis por uma visão horizontalizada, metáfora de um projeto de cidade construída por todos e em permanente movimento. Em suma, caminhamos em meio a dilemas que, por ora, não são passíveis de resolução, derivados, como procurei demonstrar, da resistência do paradigma moderno em cidades democratizadas, que se renovam no plano da sociabilidade, sem conhecerem um pensamento que as traduza adequadamente e requalifique nosso sistema de orientação. Descentralização, luta por reconhecimento, difusão de esferas de opinião, micro-poderes – são muitas as formas que nomeiam as mudanças em curso, mas que têm logrado, tão somente, definir um lugar de onde é possível exercer a crítica. Mudanças paradigmáticas podem ser demoradas e politicamente dramáticas. Tonnies, que tratou de uma delas, afirmou que, na modernidade, as linguagens que funcionalmente reeditariam o comunitarismo nas grandes cidades seriam a ciência e o direito, no sentido de que somente elas fariam sentido para todos. Hoje, quando o projeto moderno parece conhecer seu limite, soa como profecia realizada o encontro da cidade com o pragmatismo de operadores sociais e do direito, cujas práticas põem em movimento as inovações testadas pelos citadinos contemporâneos. Poderá ser uma longa viagem, mas o que se avistará, dessa vez, serão os passos dados pelos homens comuns. 5