Gisele Cittadino Falar de nossa identidade significa falar de quem

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CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/ABRIL DE 2007
IGUALDADE E “INVISIBILIDADE” 1
Gisele Cittadino2
Falar de nossa identidade significa falar de quem somos, de quais são os nossos
desejos, aspirações e opiniões. A nossa identidade se constitui através da
internalização e da adoção de papéis e regras sociais que são transmitidas pela via de
costumes, valores e tradições concretas. É através da linguagem, portanto, que cada
um de nós se constitui como sujeito. Daí podermos afirmar que a principal
característica das relações humanas é o diálogo.
A construção da nossa identidade pressupõe esse diálogo, aberto ou interno,
amoroso ou conflitivo, com aqueles que nos cercam. Quando expressamos
sentimentos e ações o fazemos por meio de práticas lingüísticas apreendidas com os
demais. Adquirimos a linguagem por intermédio de nossa relação com os outros,
especialmente com aqueles que são importantes para nós. Sentimentos e ações não
são, dessa forma, estabelecidos internamente, de uma maneira autônoma, nem podem
ser solitariamente interpretados. O psiquismo não é algo, portanto, construído por
vontade e determinação próprias. Assim, nos identificamos como membros de um
grupo quando somos capazes de ver nossos próprios sentimentos e ações com o
mesmo olhar com que os demais também veriam. Assumir o olhar do outro, no entanto,
também pressupõe um ideal de reciprocidade, pois, do contrário, esse olhar passaria a
representar violência e invasão. Só podemos falar de uma identidade autônoma diante
de uma consciência capaz de julgar a validade das normas e instituições criadas pela
sociedade. Mas isso só é possível se formos capazes de associar identidade e
reconhecimento. Afinal, como supor o exercício crítico de uma consciência que, em sua
relação com os outros, não tem sua identidade reconhecida? Mais ainda, o que dizer
da recusa sistemática de reconhecimento de certas identidades sociais, associando-as
a signos de inferioridade?
Com efeito, se partirmos do pressuposto de que o reconhecimento configura as
identidades e que, em sua ausência, indivíduos ou grupos podem ser levados a
estabelecer representações aviltantes de si próprios, nada nos impede de pensar o
tema da “invisibilidade”, ou seja, uma forma de ser invisível, que não envolve
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Publicado originalmente em Ciência Hoje, Rio de Janeiro, v. 37, p. 28-33, 2005.
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evidentemente uma ausência em sentido físico, mas uma não-existência no sentido
social. Falamos, portanto, de “invisibilidade” naquelas situações em que os que
dominam expressam sua superioridade social através da não-percepção dos que são
dominados. Quando indivíduos negros, por exemplo, internalizam signos de
inferioridade porque, durante gerações, a sociedade branca lhes transmitiu imagens
deprimentes de si mesmos, essa autodepreciação torna-se um dos meios mais
eficazes de sua própria opressão.
Quais seriam, portanto, as estratégias válidas para liberar certos indivíduos ou
grupos dos signos de inferioridade a partir dos quais a sociedade pretendeu conformar
suas identidades, aprisionando-os em um mundo marcado pela subalternidade e pela
humilhação?
Parece não restar dúvidas de que no âmbito das sociedades contemporâneas, o
exercício democrático pressupõe tratar a todos como iguais independentemente das
múltiplas identidades sexuais, raciais, étnicas ou religiosas. Na verdade, deliberação
pública e reconhecimento igualitário são temas inseparáveis. É neste sentido que o
compromisso com o princípio da cidadania igualitária envolve a atribuição de iguais
direitos a todos e só admite a alteração desse esquema se a distribuição desigual de
direitos vier a beneficiar os mais desfavorecidos. Os direitos civis e políticos são,
portanto, a todos destinados, enquanto os direitos sócio-econômicos estão associados
ao processo de inclusão social daqueles que, na ausência de tais direitos, encontrariam
grande dificuldade não apenas de conduzir com dignidade suas vidas, como também
em atuar no cenário público.
Para muitos, no entanto, a política do igual respeito é ineficaz no sentido de
assegurar as pretensões de reconhecimento público reivindicadas por grupos culturais
cuja identidade foi historicamente vinculada às imagens depreciativas e signos de
inferioridade. O oferecimento de um mesmo conjunto de direitos e liberdades não seria
suficiente para permitir o acesso dessas minorias ao cenário político. Uma política de
reconhecimento igualitário demandaria, além dos direitos a todos assegurados, o
reconhecimento de necessidades particulares de indivíduos ou grupos enquanto
membros de culturas subjugadas. Em outras palavras, a garantia de coexistência
igualitária entre grupos culturais diversos, em alguns casos, só poderia ser assegurada
por direitos coletivos que ultrapassassem os limites dos direitos fundamentais – sejam
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Professora do Departamento de Direito, Decana do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio e membro
do Conselho Consultivo do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES).
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civis, políticos ou sociais – cuja referência são os cidadãos individuais. É por isso que,
para muitos, as diversas formas de “ação afirmativa”, demandadas e introduzidas sob o
signo de uma “política de reconhecimento”, visam assegurar direitos culturais
entendidos como direitos coletivos. Resta-nos, neste momento, nos perguntar se há
efetivamente uma incompatibilidade entre a afirmação de certas identidades coletivas –
através de políticas de “ação afirmativa” – e a idéia de cidadania igualitária, fundamento
do Estado de Direito.
Da idéia de que os cidadãos se associam por sua própria vontade para formar
uma comunidade de sujeitos de direito livres e iguais resulta uma concepção de Estado
de Direito que é inseparável do conceito de indivíduo como sujeito portador de direitos.
Há, portanto, na origem das Constituições modernas, uma teoria do direito formulada
em termos individualistas. De outra parte, a história da universalização dos direitos – a
luta por uma cidadania igualitária – foi escrita, como sabemos, no interior dos próprios
procedimentos do Estado de Direito. Nem mesmo os direitos sociais – cuja função é
compensar condições sociais desiguais – são incompatíveis com essa teoria dos
direitos formulada em termos individualistas, pois os bens sociais podem ser ou
individualmente distribuídos ou individualmente desfrutados.
Nesta perspectiva, portanto, já podemos perceber que o apelo a direitos
coletivos que venham a exceder os limites de uma teoria dos direitos concebida em
termos individualistas significa romper com a nossa tradicional compreensão do que
seja Estado de Direito, que é liberal, pois está construída com base nos direitos
individuais. De outra parte, além de ignorar as concepções sobre as quais se assenta o
constitucionalismo moderno, aqueles que pretendem introduzir direitos coletivos alheios
a
esse
sistema
interpretam
equivocadamente
o
universalismo
dos
direitos
fundamentais como abstração das diferenças. Senão vejamos.
A ordem jurídica das sociedades contemporâneas assegura iguais direitos para
todos os cidadãos e o faz através de um procedimento legislativo democrático do qual
todos devem participar. Assim, tais direitos estão intimamente conectados com a plena
autonomia política dos indivíduos. Se partirmos, portanto, desse enlace interno entre
autonomia privada e autonomia pública, percebemos que os cidadãos não podem nem
mesmo chegar a gozar de certos direitos se eles mesmos, no exercício da soberania
popular, não definem quais as normas e interesses que devem ser reconhecidos. O
resultado disso é que, em sociedades plurais, serão estabelecidas normas que irão
assegurar igual tratamento para grupos homogêneos, tanto quanto um tratamento
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diferenciado
para
grupos
diversos.
Ou
seja,
nas
sociedades
democráticas
contemporâneas, é da conexão interna entre autonomia privada e autonomia pública
que decorre as normas que levam em conta tanto a desigualdade das condições
sociais de vida, quanto as diferenças culturais. Neste sentido, se uma sociedade
democrática é uma comunidade de cidadãos livres e iguais, o ordenamento jurídico não
pode ser um mero distribuidor de liberdades de ação de tipo privado. A distribuição dos
direitos só pode ser igualitária se os cidadãos – enquanto legisladores – estabelecem
um consenso acerca dos critérios através dos quais o igual vai receber um tratamento
igual, enquanto que o desigual um tratamento desigual.
O princípio da igualdade de respeito – fundamento do sistema de direitos do
constitucionalismo democrático – não pode, nessa perspectiva, ser visto como uma
“imposição igualitária” incompatível com a necessidade de proteção diferenciada de
certas identidades coletivas. Da exigência de garantir a inclusão de todos,
independentemente de quão marginalizados eles tenham sido – e sabemos que a
ausência de reconhecimento de identidades coletivas (ou seu falso reconhecimento)
quase sempre vem acompanhada de uma situação social de desvantagem – resulta a
necessidade de assegurar a integridade de cada um nos contextos sociais e culturais
nos quais a sua identidade se constitui. É isso que nos obriga a optar por uma
ampliação do conceito abstrato de “sujeito de direito”. Apenas uma interpretação
equivocada do princípio do igual respeito pode imaginá-lo cego e ineficaz em face da
discriminação e das desigualdades sociais e culturais. O compromisso com o ideal de
uma cidadania igualitária não é incompatível com a garantia de direitos culturais
demandados e introduzidos sob o signo das “políticas de reconhecimento”. Nesta
perspectiva, as políticas afirmativas utilizadas para garantir a diversidade étnica e
social nos mais variados setores não são contrárias ao sistema de direitos sobre o qual
se baseia o constitucionalismo democrático, desde que desvinculadas de qualquer
idéia de direito coletivo que represente opressão de liberdades individuais.
Com efeito, se as políticas afirmativas podem ser vistas como mecanismos
capazes de colaborar com a integração de grupos subprivilegiados no cenário do
debate político, isso não pode significar nenhum compromisso com uma visão de
sociedade permanentemente dividida em grupos raciais, o que transformaria a raça – e
não a identidade política – em fundamento da cidadania. Ao mesmo tempo, é com base
nesse argumento que não podemos tomar as ações afirmativas como políticas
compensatórias que, no presente, teriam a função de reparar ou compensar injustiças
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que, no passado, recaíram sobre os antepassados dos seus atuais beneficiários. Em
primeiro lugar, não há como, do ponto de vista estritamente jurídico, invocar o
argumento compensatório sem fazer referência à existência de um dano específico e
mensurável. De outra parte, a legitimidade para reivindicar a reparação é
exclusivamente daquele que sofre o dano, da mesma forma que a compensação só
pode ser reivindicada daquele que efetivamente pode ser responsabilizado pelo
prejuízo causado. O ato discriminatório do membro de um grupo não pode transformar
automaticamente todo o grupo em devedor, da mesma maneira que a injúria sofrida por
um indivíduo não pode ser compensada por uma preferência, benefício ou direito
exercido por um outro.
É evidente que isso não significa supor que a discriminação é um evento
discreto que atinge apenas vítimas individuais. Ao contrário, quando as vítimas da
discriminação pertencem a uma comunidade segregada os seus efeitos atingem todos
os seus membros. Não podemos, no entanto, transformar as políticas afirmativas em
uma espécie de modelo de justiça grupal. O que se está afirmando é que a segregação
não pode ser vista como um efeito de um passado de discriminação, mas, ao contrário,
como causa de uma injusta desigualdade racial.
As ações afirmativas, introduzidas com base na necessidade de implementação
de políticas de reconhecimento, devem, portanto, ser vistas não como mecanismos de
compensação, mas como medidas de integração, cuja função primordial é dissolver os
obstáculos que, vinculados a uma discriminação atual, impedem a efetiva e igual
participação de amplos setores da sociedade nos processos de deliberação política. A
verdade é que não se viola o princípio da igual proteção simplesmente porque um
grupo social, no âmbito de uma discussão pública, deixou de ser beneficiado por uma
decisão política. No entanto, quando essa perda é resultado direto de uma
vulnerabilidade que decorre do preconceito, da hostilidade e da segregação não há
como se falar em igualdade de respeito e consideração. Nesta perspectiva, tomar as
políticas afirmativas como medidas integrativas nos permite compatibilizá-las com o
sistema de direitos sobre o qual se assenta o constitucionalismo moderno.
Se estamos de acordo que nas democracias contemporâneas a cidadania – e
não a raça – deve ser a base da identidade política e se também concordamos que o
Estado de Direito deve ser o ponto de referência inabalável para qualquer interpretação
crítica, as políticas afirmativas, como medidas de integração e inclusão de grupos
marginalizados no espaço público, não podem representar qualquer compromisso com
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a implantação de uma “política da diferença” que venha a violar o princípio do igual
respeito. O compromisso com a cidadania igualitária assegura a integridade do
indivíduo nos contextos sociais e culturais nos quais a sua identidade se constitui. As
políticas afirmativas, nessa perspectiva, não são intervenções administrativas
normalizadoras que favorecem um grupo em detrimento de outros. São apenas uma
das formas de concretizar os direitos que decorrem do princípio da igualdade de
respeito.
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