1 ABERTURA DA CONSTITUIÇÃO Wambert Gomes Di Lorenzo (Publicado na Revista Direito e Justiça, Porto Alegre, v. 1, p. 171-200, 2001.) INTRODUÇÃO Qualquer homem ou objeto tem sua própria constituição. Essa assertiva obvia, base ontológica do estudo proposto, constitui todavia, uma ontologia ampla que não define nada de específico. É preciso portanto, definir o que é constituição de um Estado, da unidade política da sociedade politicamente organizada ou, na definição de Carl Schmitt, daquele tipo de unidade política que resulta de um agrupamento de amigos. A Constituição é, sem dúvida, a situação total da unidade política. Expressa seu ser, sua forma e espécie. Compreende princípios de unidade e uma instância decisória para resolver conflitos de interesses ou poderes em escala extrema. Resta saber se ela é um sistema fechado de normas não total existente mas meramente pensado, uma forma absoluta de dever ser (como também pretendia Schmitt), ou fato, dinâmica sócio-política. Inicialmente, é necessário distinguir Constituição de leis constitucionais. Tais leis têm sua validade na Constituição e a Constituição na 2 decisão da unidade política, sendo a unidade política racionalizada pela sua própria existência e não na conveniência ou justiça das normas. O Estado é, portanto, anterior a Constituição. A Constituição não é substância da unidade mas sua fórmula, aquilo que regula o ato de ser do Estado. Para Schmitt ela é forma, definida a posteriori da própria unidade. Kelsen, em sua Teoria Pura, equipara Constituição a lei constitucional. Trata-se de uma teoria liberal pois considera como norma todos os atos do Estado, não havendo portanto atos de governo, tornando tudo passível de revisão judicial. Para ele, Estado e Constituição são simultâneos. Com o advento do Estado liberal – apesar do dogmatismo constitucional francês –,não há de se falar em constituição absolutamente fechada. Sendo o Estado anterior à Constituição, devemos reconhecer que os direitos fundamentais são anteriores ao próprio Estado e portanto estão acima da lei constitucional ou da própria constituição. Eles são metajurídicos e supraconstitucionais, que no Estado liberal têm a função de limitar o poder público, enquanto a Constituição objetiva preservar a ordem pública determinando a forma de Estado. Aqui, levanto um ponto de discordância de Schmitt já que, para ele, a Constituição é superior a tais direitos, que não estariam aptos a construir a unidade política do Estado pois, ao contrário, enfraquecem a unidade, contrapondo a ela o interesse da liberdade individual apolítica. Conclui Schmitt 3 que se uma constituição liberal entende tais direitos como essenciais, estes passam a integrar a própria substância. Ora, tal substancialidade é o cerne do Estado Democrático de Direito. O Estado não tem outro fim que não a dignidade da Pessoa Humana. Essa assertiva nos remete para o problema axiológico. Sendo o valor o fim do ser, ao mesmo tempo que é o dinamismo do ser na busca da conformação entre seu fim e sua existência, a constituição deverá estar perenemente aberta a sua conformação axiológica. O valor é portanto, a principal passagem onde a constituição, enquanto fórmula que dá a forma da unidade política, vai buscar os elementos essenciais de conformação do ser do Estado com sua finalidade. A abertura da constituição, em um prisma ontológico, é imprescindível para o ser busque seu fim, para que o Estado se realize na busca do bem comum. 4 1 A ABERTURA DOS SISTEMAS OBJETIVO E CIENTÍFICO Canaris define sistema como uma “ordem teleológica dos princípios gerais de Direito”1. Devemos transpor as categorias canarisianas para o Direito Constitucional tendo em vista que seu estudo se restringiu à proposição de um conceito de sistema exclusivamente no Direito privado que tem sua ordem teleológica própria e específica. Como todo ser apresenta uma causa final,2 resta-nos concluir que o fim determina a matéria, a forma e quem há de executar a coisa. Assim, o objeto do Direito Privado é a regulação das relações individuais ou, hodiernamente, no chamado Direito Civil Constitucional,3 limitar individualismo liberal pela sua vinculação à Constituição. 1 CANARIS, Claus-Wilhelm Canaris. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p. 103. 2 Buscando a felicidade da Pólis, Aristóteles coloca a metafísica como pressuposto da política e da ética a partir de sua chamada tetrarquia da causalidade. Segundo ele, o ser apresenta causa final (o fim para o qual a coisa existe), causa material (a utilidade da coisa), causa eficiente (quem executa a coisa) e causa formal (o fenômeno, a aparência do ser). 3 Cf. PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalità costituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiani, 1991. p.199. 5 Esse Direito Civil Constitucional não significa apenas uma adoção da constituição como παράδειγμα4 mas se dá pela chamada constitucionalização do direito privado que se efetua pela absorção de valores constitucionais e (mesmo que se constate a ausência de qualquer intermediação de normas fundamentais no ordenamento ordinário) da sobreposição destes valores constitucionais sobre os valores que fundamentam a legislação a ordinária.5 Perlingieri, ressalta ainda que, na relação entre a norma constitucional e a ordinária, a superação da atual distinção entre público e privado, com a conseqüente individualização de um direito civil aderente aos problemas e exigências da sociedade, se funda grande parte sobre a “releitura” do Código Civil e das leis especiais à luz da constituição.6 A constitucionalização do privado, representa não apenas uma engenharia de unidade do sistema e do respeito da hierarquia das suas fontes, como também a via praticável para evitar a degeneração do Estado de Direito formal. Trata-se de um complexo papel que a Constituição vai exercer na teoria das fontes do direito civil que, nessa relação entre as normas, exerce duas funções primordiais: a de limite e a de justificação da norma ordinária. 4 Paradigma: modelo. Cf. PERLINGIERI, Cit. p.199. 6 Cf. Id. Ibid. p. 189 5 6 Limitada pela Norma Fundamental7, a norma ordinária é válida apenas se não ofender um interesse constitucionalmente protegido. Tecnicamente, no confronto com o ordenamento civil, a Constituição pretende ser um sistema separado que servirá de referência axiológica. É na revisão das normas ordinárias a partir dos valores expressos na constituição, pelos princípios gerais de algum setor específico da ordem jurídica nela presentes, que se dá a unidade do sistema como um todo8. Assim, tem o legislador, a tarefa de estabelecer um limite máximo de restrições de um direito, como também as modalidades de cumprimento de uma obrigação patrimonial ou pessoal. Entretanto, a tarefa principal da norma não é impor limites, mas, segundo ainda Perlingieri, por definição, sua única função é a exclusão, o que, pela leitura separada dos códigos, leis especiais e constituição, conflui, incidentalmente ou excepcionalmente, na exclusiva hipótese de eliminação da norma ilegítima pelo incidente de inconstitucionalidade.9 A norma ordinária é justificada pela constitucional, que com ela deve se harmonizar, coerente e racionalmente, numa forma de expansão, com um 7 Como constituição e não no sentido kelseniano. Como exemplo, temos o princípio da ampla defesa e do contraditório presentes no inciso LV do art. 5 o da C.F. que prepondera sobre o direito processual, tanto civil como penal; o inciso X do mesmo artigo que fala da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem da pessoa que influencia diretamente o direito material, também tanto civil quanto penal; ou ainda, o regime da propriedade privada, regida pelas normas do título II do livro II do C.C.B. que, mesmo garantindo, por reenvio à Constituição, submetem a propriedade ao princípio da função social e devem ser interpretadas a partir dos incisos XXII, XXIII, XXIV, XXV XXVI e XXVII do mesmo artigo 5o e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. 9 PERLINGIERI. Cit. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiani, 1991. p.189. 8 7 desenvolvimento quase dedutivo. Isto implica em uma operação consciente de todos os setores das disciplinas jurídicas.10 Definido o fim do Direito Privado, resta-nos admitir que sua causa material é causa composta, porquanto não tem como substância apenas o Direito Civil mas também o Direito Constitucional. Assim, também sua causa formal não se restringe à lei ordinária mas vai se expressar através também da norma constitucional (ou do Direito Civil Constitucional), o que vai determinar como causa eficiente não apenas o legislador ordinário mas também o constitucional. A tetrarquia da causalidade nos possibilita distinguir claramente o sistema público do privado. Sua causa eficiente (poder constituinte), causa formal (a Constituição) e sua causa material (normas constitucionais), são determinadas pelo fim último de construir a unidade sócio-política do Estado (causa final). Daí porque o conceito de sistema de Canaris deve ser utilizado tendo clara a distinção ontológica entre o sistema público (que é nosso objeto) e o privado, assim como, apenas parte dele nos será particularmente útil para a investigação da abertura da Constituição. A abertura, logicamente, cabe apenas às constituições dogmáticas, escritas, sistematizadas como uma codificação do político. Sendo indevida a mesma preocupação com as Constituições históricas ou consuetudinárias, já que estas representam um sistema aberto. 10 Cf. Id. Ibid. 8 Abertura significaria para o Direito romano-germânico a incompleitude, a capacidade do sistema em evoluir, sua possibilidade de modificação, de seguir o dinamismo da sociedade que, enquanto ser, obedece também à tetrarquia da causalidade. Canaris faz um distinção entre sistemas científico e objetivo, sendo o primeiro a doutrina e o segundo o próprio direito posto, afirmando todavia uma influência recíproca na flexibilização ou na abertura de ambos. A abertura do sistema científico se dá pela própria provisoriedade do conhecimento científico. O sistema científico seria um “projeto de sistema”,11 porquanto o jurista sempre deverá estar aberto ao dinamismo social que irá influenciar a técnica legislativa. Ora, a técnica jurídica é um processo de construção do dado normativo, seja na elaboração da norma (técnica legislativa), seja na sua aplicação (técnica judiciária), seja na sua exposição lógica (doutrina). A norma é o objeto do sistema científico que, enquanto dado construído pela técnica, irá influenciá-lo diretamente. Segundo François Gény a técnica tem por objeto o “construído” no direito, resultado da intervenção do homem, enquanto a ciência tem por objeto o “dado” no direito construído pela relação humana. Segundo ele estas relações humanas teriam uma juridicidade 11 Cf. Canaris. Cit. p. 106. 9 imanente, decorrente delas próprias e não de uma atribuição do homem 12. Assim, a ciência está voltada para o caráter específico da norma que irá tornar jurídico um fato social tornando-o um fenômeno sócio jurídico. Tanto o fenômeno quanto, obviamente, a norma que o jurisdiciza não são definitivos mas têm como cerne um ser no tempo e no espaço. Esta provisoriedade do fenômeno jurídico reflete diretamente na provisoriedade do sistema científico que deve estar necessariamente aberto a uma auto-consideração, flexível para se moldar à forma do fenômeno e móvel para acompanhar o próprio fenômeno normativo que segue o movimento qualitativo da sociedade. Abertura, flexibilidade e mobilidade formam a base tríplice do desenvolvimento do sistema científico. Como afirma Canaris: “[...] por isso e necessariamente, ele não é nem definitivo nem “fechado”, enquanto, no domínio em causa, uma reelaboração científica e um progresso forem possíveis. Em conseqüência, nunca podem ser tarefas do sistema o fixar a ciência ou, até, o desenvolvimento do Direito num determinado estado, mas antes, apenas, o exprimir o quadro geral de todos os reconhecimentos do tempo [...]”.13 Contra a idéia de que elementos metajurídicos possam ser fatores de reprodução do Direito, se insurge Gunther Teubner que afirma ser o Direito um sistema Autopoiético, ou seja, que se auto-reproduz: “O Direito constitui um sistema autopoiético de segundo grau, autonomizando12 Cf. MENDONÇA, Jacy de Souza. O Curso de Filosofia do Direito do Professor Armando Câmara. Porto Alegre: Sérgio Fábris, 1999. p. 27. 13 Op. Cit. p. 106. (Grifei). 10 se em face da sociedade, enquanto sistema autopoiético de primeiro grau, graças à constituição auto-referencial dos seus próprios componentes sistêmicos e à articulação destes num hiperciclo.”14 Essa autopoiesis se daria quando o sistema jurídico se tornasse autônomo, constituindo seus elementos (ações, normas, processos etc), em ciclos auto-referenciais, um hiperciclo de absoluta articulação auto-referencial.15 Stricto sensu, os sistemas jurídicos só se tornariam autônomos quando seus elementos se encontrassem de tal modo interligados e articulados que atos e normas jurídicas se produzem reciprocamente entre si. 16 Para isso, tanto o processo quanto a doutrina jurídica deveriam relacionar tais relações.17 O conceito de autonomia assim, eqüivale à capacidade de auto-regulação de um sistema.18 Teubner vai mais longe, ao exemplificar os sistemas sociais como sistemas autopoiéticos em sentido estrito, pois não seriam apenas autoorganizados, mas auto-produzidos, se reproduzindo a si próprios à partir da rede de seus próprios elementos, e não no sentido que produzem espontaneamente uma ordem.19 Teubner também tenta defender seu pensamento dos argumentos de Luhmann que considera a autopoiesis um conceito inflexível, afirmando que não 14 TEUBNER, Gunther. O Direito Como Sistema Autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p. 53. 15 Cf. Id. Ibid. p. 58. 16 Cf. Id. Ibid. p. 71. 17 Cf. Id. Ibid. 18 Cf. Id. Ibid. p. 71. 11 existiria uma autopoiesis parcial: ou o Direito se auto-reproduziria ou não.20 Segundo Teubner, para entender a autonomia própria do sistema jurídico, deverse-ia, se despojar desse conceito rígido. A autonomia do sistema seria uma realidade gradativa, ou seja, um aumento gradativo de relações circulares.21 Para Roth esse aumento gradativo se dá quando a rede dos seus componentes sofre as seguintes modificações: maior feedback entre os seus componentes; variabilidade da intensidade da articulação entre os componentes (plasticidade funcional) ou cristalização das articulações (plasticidade estrutural); constituição de novos componentes dentro da rede dos componentes (auto-diferenciação).”22 Vem todavia, das ciências biológicas à primeira crítica a autopoiesis no Direito que, enquanto sistema simbólico, ou ciência formal, não poderia autoreproduzir-se.23 A segunda, vem dos sociólogos do direito que tomam como base de sua crítica a “clausura circular”, já que o Direito simultaneamente molda e é moldado pelo meio social envolvente. 24 Inegavelmente, não pode haver autopoiese relativa. Não se pode admitir que um sistema seja mais ou menos autopoiético. Além do que, a autopoiese representa o fechamento total do sistema, sendo incompatível tal 19 Cf. Id. Ibid. p. 64 Cf. LUHMANN (1985a). Die Autopoiesis des Bewusteins. p. 402ss. Apud: TEUBNER. Op. Cit. p. 57. 21 Cf. TEUBNER. Op. Cit. p. 67. 22 Cf. ROTH. (1987). Die Entwicklung Kognitiver Selbstreferncialität im Gehirn. p. 400. Apud: TEUBNER. Op. Cit. p. 67. 23 Cf. ROTTLEUTHNER (1987). Biological Metaphors in Legal Thought. p. 122. Apud: TEUBNER. Op. Cit. p. 55. 24 Cf. FRIEDMANN (1975). The Legal System. A Social Science Perspective. Cap. I. Idem. Law as a System: Some Commnts. p. 313ss. Apud: TEUBNER. Op. Cit. p. 57. 20 12 conceito com a idéia de abertura da constituição. Também Habermas rejeita este enfoque do direito como sistema autopoidético. O Direito é permeável aos influxos do mundo social do qual, segundo Habermas, ele é apenas produto.25 O Direito não é, portanto, um sistema autopoiético. Os modelos constitucionais abertos ou mesmo, os sistemas privados relativamente abertos, demonstram que o Direito se reproduz a partir do meio social que o gera e o envolve e o desenvolve. Não obstante uma análise superficial que, comparando o Direito continental com o Common Law, considera o nosso sistema codificado imóvel, rígido e inflexível, enquanto apresenta o sistema anglo-saxão como antítese, em certos aspectos, o Direito continental, balizado na idéia de Constituição escrita ou de direito codificado, pela sua susceptibilidade ao aperfeiçoamento, se apresenta mais pronto às mudanças necessárias a sua eficácia que o próprio direito jurisprudencial anglo-saxão. O legislador – especialmente o constitucional – é, via de regra, um representante da sociedade que, como artífice da sua organização política tem a missão de forjar a coerência do ordenamento conformando-o com o fim social. Fim social é o valor social, aquele elemento axiológico que deverá estar presente no fenômeno normativo. Mesmo uma constituição dogmática, escrita e rígida, trará 25 Cf. PINZANI, Alessandro. A teoria jurídica de Jürgen Habermans entre funcionalismo e normativismo. II Simpósio Internacional sobre a Justiça. No prelo. 13 em si elementos principiológicos, que pela sua vageza semântica, permitirão uma interpretação metajurídica da própria norma constitucional. Significa que o direito não se divorcia de sua historicidade, tampouco ignora o movimento qualitativo social que atualiza o fim social na medida em que os valores desta mesma sociedade tornam-se um sinal do próprio tempo. Hesse, no Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesreppublik Deutschland, afirma que as regulações da constituição não são nem completas nem perfeitas, tampouco a Constituição seria uma unidade sistemática já concluída (lógico axiomática ou hierárquica de valores). Entretanto, há uma interdependência e uma repercussão destes valores entre si. 26 A Constituição deve ficar imperfeita e incompleta em razão de sua historicidade da sua relação com as vicissitudes históricas da própria sociedade que ordena. Para Hesse essa mobilidade da Constituição pode ser a causa de sua incompleitude haja vista não haver uma regulação jurídico-constituicional. A Constituição apenas regula, ela não codifica, traz regas pontuais e fundamentais para regular matérias importantes e carentes de determinação.27 Há portanto, uma abertura natural, necessária e voluntária na Constituição alemã. Ela deixa questões conscientemente abertas à livre 26 Cf. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha (Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesreppublik Deutschland). Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Fabris, 1998. p.38. 27 Cf. Id. Ibid. p. 39. 14 discussão, configuração e decisão.28 Assim, a Constituição deixa espaço aberto para a atividade das forças políticas, ela cria regras para o procedimento de decisão mas não pretende fechar o espaço específico de atuação do político. Tal omissão não quer dizer uma renuncia à normalização mas uma garantia da livre discussão e decisão destas questões.29 Isso não significa que a Constituição não estaria em condições de dirigir a vida da coletividade por uma abertura de tal ordem que significasse a dissolução de sua própria dinâmica. Ela não se limita a abrir-se mas determina o que não deve ser aberto. Dentre estas bases protegidas da abertura está a ordem da própria coletividade. Estão portanto, fechados, os princípios diretivos de formação da unidade política e das tarefas estatais. Também estão fechados a “construção estatal e o procedimento no qual questões deixadas abertas pela Constituição devem ser decididas”30. Ou seja, a Constituição busca proteger com sua rigidez tudo aquilo que deve ser considerado como decidido e assim promover um efeito estabilizador e aliviante na sociedade.31 Tanto a abertura quanto o fechamento constitucional produz seus efeitos na vida social. Esse elemento axiológio é o fator primário de mobilidade ou flexibilização dos sistemas objetivo e científico. O objetivo muda “quando os valores fundamentais constitutivos do Direito vigente se alteram”32, enquanto o 28 Cf. Id. Ibid. Cf. Id. Ibid. p. 42 30 Id. Ibid. p. 41. 31 Cf. Id. Ibid. p. 40. 32 Canaris. Cit. p. 112. 29 15 científico abre-se à atualização conceitual do próprio Direito ou por pura e obrigatória correspondência à mudança do sistema objetivo. Para Canaris essa influência recíproca entre os dois sistemas diz respeito à questão geral das relações entro o Direito vigente (objetivo) e o seu conhecimento. Para Canotilho a noção de sistema aberto se traduz pela “disponibilidade e ‘capacidade de aprendizagem’ das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da ‘verdade’ e da ‘justiça”.33 A modificação do ordenamento constitucional cabe inicialmente ao poder constituinte originário ou reformador por meio de um procedimento legislativo-constituinte34. Todavia, a abertura efetuada pelos princípios constitucionais, leva à uma indisfarçável criação jurisprudencial do Direito já que, na interpretação dos princípios, o Tribunal Constitucional não apenas diz o Direito mas o cria ao preencher axiologicamente a sua vageza semântica. O ordenamento, ou sistema objetivo, é constituído de valores fundamentais do direito.35 Esses valores se expressam nos princípios que propositadamente não expressam seu próprio conteúdo mas apenas os indicam permitindo à jurisprudência, especificamente com relação a esta norma, fugir da 33 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1033. Expressão utilizado por Canotlilho. Cf. Cit. p. 60. 35 Cf. Canaris. Cit. p. 116. 34 16 casuística e da ratio legis para aproximar o ordenamento constitucional da sociedade que o idealizou. 2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO VETORES DE ABERTURA DA CONSTITUIÇÃO. Canaris entende que o conceito de princípio geral do direito é inteiramente relativo. Também afirma não ser evidente que um sistema deva ser composto por princípios, pois, como protagonistas da unidade, podem-se usar as Cláusulas Gerais, os conceitos indeterminados ou mesmo institutos e valores. 36 Para Karl Larenz princípios são “pensamentos diretores de uma regulação jurídica existente possível”.37 Em um plano geral, Edmir do Araújo Neto os classifica em onivalentes (universais), polivalentes (comuns à algumas ciências), monovalentes (referentes a uma única ciências) e setoriais (concernentes a um setor específico de determinada ciência),38 sendo os dois últimos conceitos aplicáveis ao direito, sobretudo no fluxo e refluxo entre normas civis e constitucionais, coincidindo o setorial com aquele que no pensamento de Canaris pode, eventualmente, ser irrelevante para o sistema como um todo. 36 Cf. Id. Ibid. p. 81. Derecho Justo - Fundamentos de ética jurídica. Madri: Civitas: 1985. p. 32. 38 ARAÚJO NETO, Edemir . Os princípios administrativos na Constituição de 1988. Revista da PGE. São Paulo, dez de 1990. p. 133. 37 17 Podemos portanto, concluir que princípio seja uma idéia fundamental que está no cerne de um sistema sendo instrumento de sua articulação interna. No campo especificamente jurídico, podemos dizer que ele está na base de um ordenamento dando a ele o seu fim. Ele é a causae o fim de um valor conferido a norma, mesmo que, originalmente não passando de um enunciado, seu conteúdo venha a ser dado pela jurisprudência. Todavia, eles não constituem regras por si mesmas aplicáveis, embora que, por via da interpretação se tornem empregáveis. Conclui-se portanto, preliminarmente, que os princípios, enquanto condutores dos valores constitucionais, são fatores de abertura da constituição. Canotilho, seguindo Dworkin e Esser, abandona a tradicional distinção entre normas e princípios e sugere a distinção entre regras e princípios sendo ambos espécies de normas, segundo a qual a distinção apresenta os seguintes critérios: grau de abstração; grau de determinabilidade; caráter de fundamentalidade (os princípios tem uma natureza fundamental levando em conta a natureza das fontes ou sua importância dentro do Estado de Direito); proximidade da idéia de direito (os princípios são standards juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na idéia de direito (Larenz); natureza normogenética (os princípios são fundamento de regras, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras).39 39 Cf. Op. Cit. p. 1034 18 Os princípios, enquanto técnica legislativa, nos permite fugir do legalismo de um sistema formado exclusivamente de regras e de uma limitada racionalidade prática40. Eles são “normas jurídicas impositivas de otimização”. Tal otimização se dá condicionamentos de acordo fáticos e com os jurídicos.41 graus de Todavia, concretização um sistema e os fundado exclusivamente em princípios só conduziria a um sistema falho de insegurança jurídica.42 Assim, acerta Canotilho em sua conclusão: “O direito constitucional é um sistema aberto de normas e princípios que, através de processos judiciais, procedimentos legislativos e administrativos, iniciativas dos cidadãos, passa de uma law in the books para uma law in action para uma living constitution.”43 Na sua tipologia de princípios, Canotilho classifica os princípios em: princípios jurídicos fundamentais (Rechtsgrundätze); princípios políticos constitucionalmente conformadores; princípios constitucionais impositivos e princípios-garantia. Princípios jurídicos fundamentais são aqueles que estão dispostos explícita ou implicitamente no texto constitucional e que são fruto de um processo histórico de recepção na consciência jurídica e de objetivação no próprio 40 Cf. CANOTILHO. Cit. p. 1036. Cf. Id. Ibid. 1035. 42 Cf. Id. Ibid. 1036. 41 19 ordenamento e que têm uma função negativa em relação à casos limites como Devido Processo Legal e um processo ilegal, ampla defesa e a restrita defesa, por exemplo.44 Os princípios políticos constitucionalmente conformadores explicitam os valores políticos fundamentais, condensam a ideologia norteadora da constituição e estão no cerne político da carta constitucional.45 Os Princípios constitucionais impositivos submetem todos os princípios que impõem aos órgãos do Estado a realização de fins e a execução de tarefas. (são normas programáticas).46 Como Princípios-garantia, Canotilho entende aqueles que visam diretamente as garantias do cidadão (devido processo legal, ampla defesa e contraditório etc.). Cezar constitucionais em Saldanha três de grupos: Souza Junior classifica os princípios axiológico-constitucionais, político- constituicionais e jurídico-constituicionais.47 Sendo que os dois primeiros seriam princípios constitucionais substantivos ou fundamentais (na expressão utilizada pela C.F. de 88). 43 Op. Cit. p. 1037. Cf. Op. Cit. 1038. 45 Cf. Id. Ibid. p. 40. 46 Cf. Id. Ibid. 47 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha (Informação Verbal). 44 20 Os princípios axiológico-constitucionais dizem respeito ao fundamento do Estado e sua finalidade última é a dignidade da Pessoa Humana. Inclui portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana (que na expressão de Cezar Saldanha é o princípio dos princípios) e seus subprincípios (ou princípios corolários) como o princípio dos direitos fundamentais. Também substantivos são os princípios político-constitucionais. Eles estão ligados às decisões políticas fundamentais tais como o princípio federativo, princípio republicano, da tripartição dos poderes (no regime presidencialista), o princípio democrático, princípios da ordem econômica, princípios da ordem social, princípios quanto à ordem internacional e princípios da nacionalidade. Princípios jurídico-constitucionais (ou técnico-constitucionais) são adjetivos ou instrumentais, de técnica jurídica, tais como os princípios do Estado de Direito, da igualdade, da prospectividade, da controlabilidade e da razoabilidade, princípios constitucionais civis e penais, princípios constitucionais tributários, princípios constitucionais penais, princípios constitucionais cíveis e princípios constitucionais administrativos.48 48 Classificação também de Cezar Saldanha de Souza Júnior (informação verbal). 21 3 A ABERTURA AXIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO Quanto à axiologia, segundo Cezar Saldanha, o constitucionalismo tem seis fases49. A primeira é a fase do constitucionalismo liberal clássico, onde a Constituição tinha por finalidade proteger e só manter a ordem econômica e social liberal, o que se chamará de constituição-proteção. A segunda, acompanha o liberalismo pluralista da segunda metade do séc. XIX e visa aperfeiçoar a ordem anterior cujo documento será chamado de Constituição-progresso. A terceira é o constitucionalismo socialista que terá dois tipos de cartas constitucionais: a Constituição-projeto-balanço dos soviéticos e a Constituição-projeto-direção defendida por Canotilho. A quarta fase é a do constitucionalismo social da primeira grande guerra mundial, onde a norma constitucional será classificada de Constituição axio-aspirada, que será desprovida de valores, será aceitável por todos e que não se defende de seus inimigos. O constitucionalismo social da segunda guerra mundial é a quinta fase e será caracterizado por uma Constituição aceitável por todos, constante de 22 valores mínimos e que se defende de regimes autoritários e totalitários, será chamada de Constituição de valores mínimos que será fruto de um processo axio-orientado. O constitucionalismo autoritário do entre-guerras será a última fase cuja norma constitucional será chamada de Constituição protelação. Concomitante ainda o magistério de Cezar Saldanha existem três categorias teleo-axiológicas no direito constitucional: os fins, os valores e os princípios. Os fins são os objetivos mais autênticos e possíveis que Estado pode buscar e que são estudados pela filosofia e a ciência política. Os valores são aqueles fins que a comunidade política decide realizar tendo como instrumento o Direito. Os princípios são as normas que diretamente juridicizam os valores. A Constituição é a equação que regula o actus essendi50 do Estado. É a fórmula de sua substância. Sob um prisma jurídico, ela é o conjunto de normas fundamentais que regulam os atos do Estado como também sua própria existência. Entretanto, analisá-la apenas no sentido estritamente jurídico é transformá-la um uma “letra fria”, desvinculada da realidade social e de eficácia comprometida por ignorar o aspecto teleológico do seu ser. A Constituição, ser jurídico que dá forma ao ente, é também, e primeiramente, ser político. Tal conceito contraria o positivismo Kelseniano que 49 Informação Verbal. 23 afirma que observar o Estado como uma organização política é vê-lo como mero elemento de coação, já que como organização política, o Estado é uma ordem jurídica, mas nem toda ordem jurídica é um Estado. Sendo, por conseguinte, a Constituição, Norma Pura, sem qualquer fundamentação política, sociológica ou filosófica.51 Mas, como afirma José Afonso da Silva, a Carta Constitucional não deve ser considerada no seu aspecto normativo: “como norma pura, mas como norma em sua conexão com a realidade social, que lhe dá o conteúdo fático e o sentido axiológico.”52 A Constituição dá a forma ao ser essencial do estado. Todo Estado, a partir do Estado burocrático, centralizado, nacional moderno,53 tem os mesmos elementos substanciais, mas é a formulação da composição destes elementos que dá sua forma. Podemos então afirmar que esse primeiro aspecto da abertura axiológica da Constituição significa, em sentido estrito, a sua abertura política. A sociedade, atenta a sua evolução e a mudança de seus valores, se serve da política enquanto técnica do poder para efetivar estes valores na ordem normativa. Evidentemente, a abertura só se dará em uma constituição vigente e eficaz. Portanto, a positivação dos valores só é possível por meio do poder 50 Ato de ser. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 3 ed. p.302. 52 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9.ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p.41. 53 Definição de Cezar Saldanha de Souza Junior (Informação verbal). 51 24 constituinte derivado ou da interpretação constitucional elaborada pelo tribunal constitucional, sendo esta uma das principais características da norma aberta: a susceptibilidade de uma constante reinterpretação de si mesma. Os elementos axiológicos assentados no consenso social vão se expressar em forma de valores constitucionais. Sabendo-se que o conflito é um fenômeno natural da sociedade, a necessidade de superação dos antagonismos é tão natural quanto o próprio conflito. Na esteira de Aristóteles, Cícero, Tomás de Aquino e Montesquieu, o desejo de paz é um impulso natural que constrange o homem a viver em sociedade. O consenso está portanto, na própria natureza, na essência do cidadão, que antes de ser cidadão é Pessoa Humana. O interesse pelo consenso e sua busca se expressa no primeiro artigo da Constituição Federal, ele está positivado em forma de princípio, trata-se do próprio Estado Democrático de Direito. 3.1 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. Segundo Verdú,54 a cláusula do Estado Democrático de Direito, se articula diretamente com a cláusula reformadora da sociedade que na constituição espanhola consta no art. 9.2: 54 Cf. VERDÚ, Pablo Lucas. Teoria General de Las Articulaciones Constitucionales. Madrid: Dykinson, 1998. p. 36. 25 “É função dos poderes públicos promover as condições para que a liberdade e a igualdade do indivíduo e dos grupos em que se entregam sejam reais e efetivas; remover os obstáculos que empeçam e dificultem sua plenitude e facilitar a participação de todos os cidadãos na vida política, econômica e social.”55 Tal cláusula se articularia também com o preâmbulo da mesma constituição que afirma como fim do Estado Espanhol garantir a convivência democrática, uma ordem social e econômica justa, Estado de Direito, império da lei, os direitos humanos, promover o progresso da cultura e da economia e estabelecer uma sociedade democrática.56 Trata-se portanto de uma articulação material vertical entre os preceitos que ocasionam uma articulação formal vertical. Ou seja, uma abertura axiológica ao valor Dignidade da Pessoa Humana, que Verdú irá chamar de articulação axiológica da Constituição.57 Segundo a interpretação de Canotillho, a expressão Estado Democrático de Direito visa a “realização da democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”58. Trata-se, também na opinião de José Afonso da Silva,59 uma interpretação socialista, mais precisamente de uma democracia socialista. Canotilho evoca o princípio da 55 ESTEBAN, Jorge de. Las Constitucines de España. Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000. Cf. também a tradução de Jorge Miranda in: Constituições de diversos países. Lisboa: Imprensa Nacional, 3ª ed. p.285. 56 Cf. MIRANDA, Jorge. Constituições de diversos países. Lisboa: Imprensa Nacional, 3ª ed. p.283. 57 Cf. Op. Cit. p. 34. 58 CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra Editora, 3. Ed. p. 65. Cf. também: Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1998. p. 278. 59 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 9. Ed. Nota 31, p. 102. 26 democracia participativa como princípio essencial do Estado de Direito Democrático e não apenas princípio-fim60. Canotilho afirma que o princípio democrático acolhe dois postulados: a teoria democrática representativa e a democracia participativa. Democracia participativa na sua definição é “a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efectivas possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer controlo crítico na divergência de opiniões, produzir imputs políticos democráticos”61. A democracia participativa é a idéia soviética de poder exercido pelos sovietes, como expressa o art. 2o da Constituição de 1977 da antiga URSS: “Todo poder na URSS pertence ao povo. O povo exerce o poder do Estado através dos Sovietes de Deputados do Povo, que constituem o fundamento político da URSS. Todos os demais órgãos estatais se encontram sob o controle dos sovietes de Deputados do Povo e devem prestarlhes contas”. A fracassada experiência soviética, supunha-se ser, juntamente com a Grécia e os atuais cantões suíços, uma experiência de democracia direta. Todavia, além dessa utopia sequer ter se tornado fato mesmo na Grécia ou Suíça, essa chamada democracia participativa é uma técnica de esvaziamento do sistema representativo, que as experiências históricas comprovaram, efetiva o 60 61 Cf. Constituição Portuguesa Antotada. Cit. p. 65. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1998. p. 278. 27 sistema totalitário assentado no partido único. Não se trata de efeito involuntário. A idéia é de superação da representação política formal por uma instituição que a assimila e a destrói. Especificamente, trata-se da superação do legítimo parlamento por conselhos controlados pela ideologia de um único partido que, gradativavemente, tende a tornar-se o partido único: “Ora, superar é a tradução do termo aufheben que, na linguagem da dialética hegiliano-marxista, significa, no caso, que um nova instituição assimila e incorpora os elementos positivos da instituição precedente ao mesmo tempo que a ultrapassa e suprime. A idéia de superação distingue a mudança revolucionária, na qual a nova instituição ao mesmo tempo assimila, destrói e substitui a precedente, da mudança constitucional, incremental e cumulativa, na qual a nova instituição integra-se com flexibilidade ao arcabouço institucional preexistente. (...) Entretanto, a representação política formal é um dos fundamentos insubstituíveis da democracia constitucional moderna e suprimir a primeira eqüivale substituir a segunda.”62 Claro está, portanto, que, na República Portuguesa, o telos da expressão Estado Democrático de Direito, é a efetivação de um Estado Socialista e é esse conteúdo ideológico que preenche a vageza semântica de tal princípio. Não obstante, na República Federativa do Brasil, Estado Democrático de Direito nada mais é que a expressão jurídica da Social- Democracia, também chamada de Socialismo Democrático ou Democracia 28 Liberal. Ela é uma síntese hegeliana do liberalismo com o socialismo, que se caracteriza por colocar-se como um meio termo entre as duas doutrinas que tratam prioritariamente do capital e do trabalho nas relações sociais. Na verdade, pretendeu superar o Liberalismo Clássico sem recorrer ao Socialismo Autocrático da Ditadura do Proletariado, atingindo assim a idéia sintética do Socialismo Democrático. Percebe-se claramente esse meio termo na norma positiva. O direito de propriedade é garantido por uma Cláusula de inamobilidade 63 (art. 5º, XXII) e, no inciso XXIII da nossa Constituição, em outra Cláusula imóvel, é submetido ao interesse social e coletivo. O direito de propriedade perde seu caráter absoluto por uma técnica de trancamento, onde dois princípios aparentemente se conflitam, causando uma limitação recíproca. Clara influência das forças populares e sinal dos conflitos sociais e antagonismos ideológios vividos no seio do Poder Constituinte Originário. Na verdade, o Poder Constituinte não teria outro caminho a trilhar, já que o Socialismo Democrático foi a única doutrina capaz de equacionar as forças heterogêneas que participaram da elaboração do texto constitucional. Estado Democrático de Direito é o aspecto jurídico de um ente político, que se encontra assim expresso nas Constituições de apenas três 62 TAVARES, José Giusti (org). Totalitarismo Tardio: o caso do PT. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2000. p. 139 – 140. 63 Expressão de Cezar Saldanha de Souza Junior. 29 Estados: do Brasil (art.1º)64, de Portugal (art.2º)65 e da Espanha, como “Estado Social e Democrático de Direito” (art.1º, 1)66. A rigor, no aspecto jurídico, todo Estado é de Direito. É a teoria da bilateralidade ou auto-vinculação, na qual o Estado cria um direito para depois submeter-se a ele, como afirma Kelsen: “O Estado deve ser apresentado como pessoa diferente do direito para que o direito possa justificar o Estado.” 67 Entretanto, é oportuno ressaltar que nem todo Estado de Direito é democrático. Elencam-se aqui, algumas características da Social-Democracia, para ulterior identificação no direito positivo: “garantia e expansão dos direitos e liberdades de todos os homens e em qualquer grupo social: oposição a todos privilégios sociais e posições ilegítimas de poder; defesa da igualdade em todos os setores; oposição às restrições impostas pelo liberalismo clássico; combate ao individualismo socialmente irresponsável; propriedade privada limitada à sua função social; fundamentação nos valores básicos da liberdade, igualdade e solidariedade; concepção da democracia como regra geral de vida; organização democrática do estado; controle democrático do poder econômico; busca de uma ordem jurídica internacional; ajuda solidária para países em desenvolvimento; democratização de todos os setores da vida social e 64 “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se Estado Democrático de Direito e tem como objetivo: (...) (grifei)” 65 “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas e no respeito e na garantia de e efetivação dos direito liberdades fundamentais, que tem por objetivo a realização da democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa” (grifei). 66 “A Espanha constitui-se em Estado social e democrático de direito, que afirma como valores superiores do seu ordenamento jurídico a liberdade, a justiça, a igualdade e pluralismo político.” (grifei). 67 KELSEN, Hans Op. Cit., p.301. 30 fomento da cultura autodeterminação.” 68 Podemos, então, identificar na como Norma pressuposto de Constitucional as características acima69. A princípio, a rigidez constitucional é pressuposto do Estado Democrático de Direito que vincula todos os poderes e os atos que ele pode gerar a uma norma suprema e legitimamente emanada da vontade popular. A legitimidade é exigência da eficácia constitucional, é componente do poder, “possui suas raízes e se efetiva na vontade dos indivíduos” e é a “ legalidade acrescida de valoração”70. A Constituição da República Federativa é Social- Democrata não somente no preâmbulo ou no seu Título I, mas em toda sua estrutura, princípios e objetivos. Encontramos portanto, o princípio da segurança jurídica no inciso XXXVI, do art.5º: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, no inciso citado LXXIII do mesmo artigo a norma trata de estabelecer como princípio do Estado a segurança jurídica. O caput e o inciso I do art.5º, salientam o princípio da igualdade e liberdade de todos os homens, a oposição aos privilégios sociais. O art.4º coloca como princípio da República 68 DI LORENZO, Wambert Gomes. Hegel e a Social-Democracia. O Estado do Maranhão, São Luís, 17 dez. 1997. Caderno 1, p. 4. 69 O preâmbulo da Constituição Espanhola de 29 de dezembro de 1978 afirma: “A nação espanhola, desejando estabelecer a justiça a liberdade e a segurança e promover o bem de todos quantos a integram, proclama, no uso da sua soberania, a vontade de: Garantir a convivência democrática no âmbito da Constituição e das leis e em conformidade com uma ordem econômica e social justa; Consolidar um Estado de Direito que assegure o império da lei como expressão da vontade popular; Proteger todos os espanhóis e todos os povos de Espanha no exercício dos seus direitos humanos, das suas culturas e tradições, línguas e instituições; promover o progresso da cultura e da economia para assegurar a todos uma qualidade de vida digna; estabelecer uma sociedade democrática avançada e colaborar no fortalecimento de relações pacíficas e de eficaz cooperação entre todos os povos da Terra.” (grifei). 31 Federativa do Brasil a busca de uma ordem jurídica internacional. Os Títulos II, VII e VIII, que tratam respectivamente dos Direitos e Garantias Fundamentais, da Ordem Econômica e Financeira e da Ordem Social, incluem os elementos já acima descritos, na sua totalidade. Também a divisão dos poderes presente no art. 2º e independência do juiz no art.93, contêm em si a organização democrática do Estado. O individualismo submete-se ao interesse social e coletivo, como vemos no Título V, que prevê para a defesa do Estado e das instituições democráticas a restrição ou mesmo suspensão de vários direitos conferidos pela própria Constituição, sobretudo no art.5º, incisos IV, XI e XII. Retomando o prisma ontológico, a Democracia Liberal é o Ser acidental do Estado Brasileiro. O acidente é o ser de um “ser”. Sua existência pressupõe um sujeito constituído, ao qual ele se liga e determina, é aquele que existe em um outro.71 A Social-Democracia é ser derivado do Estado. Não vive sem a prévia existência do Estado, mas dele depende para realizar seu actus assendi.72 Existe por acidente, não é essência mas da essência e da forma deriva, podendo inclusive deixar de existir, se assim entender o consenso expresso em 70 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 6. ed.Rio de Janeiro: Forense, 1986.p.114. Cf. Di LORENZO, Wambert Gomes: “O Ser do Estado e o poder reformador”, 51 a Reunião Anual da SBPC, PUCRS, Porto Alegre/ RS, 11 a 16 de Julho, 1999. 72 Ato de existir. 71 32 um novo poder constituinte seja poder constituinte originário revolucionário, poder constituinte originário evolutivo73, ou mesmo no poder constituinte derivado.74 3.2 O VALOR MATRIZ: A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Todo ser tem um fim. Segundo Aristóteles, o fim do ser é seu bem. A existência se justifica pela sua busca constante pois o ser existe para o bem. sendo o fim da coisa o seu próprio bem, podemos dizer que o bem da coisa é o seu valor75. Assim, nenhum ato de ser ou de existir é vão. Também a sociedade, enquanto ser, tem um fim, uma causa final, razão de sua própria existência. O fim social é o valor absoluto da sociedade, seu elemento axiológico essencial sem o qual o Estado perde sua própria razão de existir. 73 Classificação de Cezar Saldanha de Souza Junior, segundo a qual o Poder Constituinte Originário pode ser classificado em revolucionário e evolutivo. O primeiro é ilimitado, incondicionado e soberano. O evolutivo é relativamente incondicionado, ilimitado e .subordinado..., porquanto ocorre nas transições políticas e institucionais dos Estados contemporâneos que não recorrem, para tanto, a uma revolução ou guerra civil. (informação verbal). 74 Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho a Constituição de 1988 foi elaborada por um poder constituinte derivado, porquanto foi formalmente convocado por uma emenda constitucional. Cf. O Poder Constituinte. São Paulo: Saraiva, 3 ed., 1999. p. 37. 75 No conceito de Armando Câmara, valor é o dinamismo do ser, sua passagem de potência para ato, como também a conformidade da coisa com sua finalidade. Cf. Armando Câmara: obras e ebscolhidas (org. Luis Alberto De Boni). Porto Alegre: Edipuc, 1999. pp. 52 – 61. 33 Para João Camillo de Oliveira Torres, o valor é a própria causa final da história, é aquele motivo que leva a ação humana a tomar determinada direção. É a causa última na execução e a primeira na intenção.76 Como lembra Amaral Fontoura77, o homem não é apenas instintivamente mas também é racionalmente social. Significa que ele por ser – como afirma Santo Tomás – um animal social, busca esse bem por próprio instinto78. Mas, também o homem racionalmente constrói caminhos, cria instrumentos e processos para que esse bem ser realize no ser. O bem comum é o bem social, o valor essencial ou o elemento axiológio absoluto, a causa final da sociedade. O Estado não tem outra razão de ser se não a busca desse valor. Todavia, ele não pode ser encontrado senão a partir da aceitação de um valor racional universal, conclusão de premissas rigorosamente lógicas e universalmente verdadeiras. Trata-se de um princípio que não pode ser objeto de escolha, porquanto por si mesmo é evidente pois decorre das coisas postas, da natureza, do mundo real e concreto. A busca desse valor, fim ou o bem social é a busca de um elemento que, decorrente do Direito Natural, se assenta em premissas universalmente 76 Cf. TORRES. João Camillo de Oliveira. Teori Geral da História. Petrópolis: Vozes, 1963. p. 263 ss. Cf. FONTOURA, Amaral. Introdução à Sociologia. Porto Alegre: Globo, 1955. p. 36. 78 Cícero afirma que há um instinto de sociabilidade no homem. 77 34 válidas e aceitas. O bem comum é, na definição de Cezar Saldanha de Souza Junior, “o bem de todos naquilo que todos temos em comum”.79 A assertiva acima remete a outro problema: o que todos temos em comum? Como encontrar essa substância básica? Qual seria esse elemento comum a todo indivíduo? A resposta está na humanidade singular de cada pessoa. Cada Pessoa Humana tem uma dignidade própria, peculiar, seja no campo político, jurídico, econômico, moral ou religioso. A Dignidade da Pessoa Humana é o próprio fim do Estado que, na República Federativa do Brasil, se encontra positivado em forma de princípio constituicional: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III – A Dignidade da Pessoa Humana”. (Art. 1o da Constituição Federal) A crítica comum à expressão consagrada pelo texto constitucional é que ela seria redundante, pleonástica ou tautológica. Mas ela significa a singularidade do ser humano que é, ao mesmo tempo, individual e social. Cada indivíduo traz em sua essência a substância da humanidade. Cada pessoa si per si representa todo o gênero humano. 79 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha (informação verbal). 35 A Pessoa Humana tem elementos essenciais próprios: substancialidade, individualidade e racionalidade. Como afirma Boécio: “Persona est rationalis natura individua substantia”.80 Estes elementos estão na raiz de toda ratio do valor dignidade da pessoa humana. Não obstante a dignidade da pessoa ter que ser afirmada e fundada nos campos jurídico, político, moral e religioso. A sua substancialidade si per si é fundamento suficiente para a afirmação dessa dignidade singular. A pessoa é digna não porque o direito positivo assim o diz, não porque há um consenso social em torno de um valor. Não se trata de um axioma intermitente que, à barlavento das mudanças sociais, ocupa seu lugar no tempo e no espaço ou dele se ausenta, consoante o consentimento de cada sociedade em cada momento histórico em particular. Que motivo lógico há, que força a respeitar a dignidade do facínora, do teratoma social, daquele que socialmente jamais assumiu forma humana, que por sua conduta delinqüente conspurca a dignidade não apenas de outrem mas a sua própria? Que razão há para que a sociedade trate como humano aquele que renunciou a sua própria forma humana? Que constrange o Estado à não se tornar mero agente de vingança reduzindo a justiça à mera reciprocidade como queriam os pitagóricos?81 80 81 De duabus nat., II, 4. Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco, livro V, 5.25. 36 A resposta está na substância do indivíduo, que mesmo na forma desumana, lobrosiana, teratogênica, esconde uma essência que contem a substância comum de todo o gênero humano. Essa abordagem ontológica remete imediatamente para o aspecto jurídico da dignidade da pessoa: ubi societas, ibi jus; ibi jus, ibi homo. O homem é ao mesmo tempo causa eficiente e causa final do Direito, sujeito e fim do ordenamento. Há uma suprema dignidade da Pessoa Humana no mundo jurídico, pois não há nenhum objeto do Direito que não seja atribuído ao homem. Ainda neste aspecto ontológico, a sociabilidade de cada indivíduo determina a dignidade social do homem como causa eficiente do Direito. A vida individual e social da pessoa são aspectos da mesma vida, pois não há valor social que não seja antes um valor pessoal, a humanidade é portanto o lugar comum de consolidação de tais valores.82 A relação jurídica dos indivíduos é uma relação de reciprocidade em que há a contraposição de um sujeito sobre o outro na qual se concretiza uma superioridade. Mas, tal relação implica também no primado do sujeito sobre o objeto. Ou seja, a dignidade da Pessoa Humana é superior aos seus próprios direitos. Criticando von Jhjering, Guido Gonella diz que a afirmação do direito da pessoa 82 Cf. GONELLA, Guido. Bases de uma nova ordem social: Anotações às mensagens de Pio XII. Petrópolis: Vozes, 1947. p. 31. 37 “não representa sempre o seu máximo bem: e aí estão para prová-lo renuncias e submissões voluntárias em nome do dever, que vêm antepostas à conservação (como por exemplo o soldado que renuncia o seu direito à vida, para cumprir o dever de defender sua pátria).”83 Nessa relação entre a pessoa e o Direito, Gonella identifica a possibilidade tanto de um ciclo vicioso quanto de um ciclo virtuoso: o empobrecimento da dignidade da pessoa degrada a ordem jurídica e uma ordem jurídica degradada atenta logicamente contra a dignidade da pessoa. Também, ao contrário, o respeito da dignidade da pessoa implica na dignidade da ordem jurídica e a uma ordem jurídica digna enriquece a dignidade da Pessoa Humana.84 O termo Pessoa Humana também denota simultaneamente que cada homem traz em si uma individualidade e sociabilidade concordantes. Ou seja, a pessoa não tem sua razão de ser no Estado, como pretendem os totalitarismos, porquanto deve ter sua individualidade respeitada pela ordem jurídica e a política. Também não deve existir como adversa ao Estado, pretendendo contra ele, ser sujeito de todos os direitos, em um individualismo egoísta como pretendeu o liberalismo clássico. O Estado existe totalmente para a pessoa, mas esta também existe, em parte, para o Estado. Ela é sujeito de deveres (civismo) e de direitos (cidadania). Além de todos os aspectos ontológicos já sinteticamente propostos a 83 84 Id. Ibid. p. 33. Cf. Op. Cit. 35. 38 individualidade e sociabilidade da Pessoa Humana se assenta também em uma realidade prática: ela é sujeita de direitos e deveres. Sendo indissociável portanto, o indivíduo da sociedade em que vive. Já a racionalidade é que permite que a pessoa seja definida como tal, como assevera Santo Tomás: “id quod est perfectissimum in tota natura, scilicet subsistens in rationali natura”.85 Ela é consciente e livre e sua liberdade de corpo e de consciência é algo inerente à sua dignidade. A racionalidade da pessoa implica também em sua dignidade moral. Ela é o sujeito da moral. Nela encontramos uma unidade entre uma moral individual e uma moral social que assume na pessoa um caráter não apenas unitário mas totalitário em uma situação pessoal de tudo ou nada. Ou se permanece na esfera da moral ou se fica fora dela86. Na vida social (como sugere Aristóteles) se admite uma busca gradual do bem, mas jamais uma opção do indivíduo pelo mal, pois bem e mal são dois caminhos excludentes. Tal consideração adquire relevo se observado que a vida pública é regulada por diversas normas da vida privada. Isso evidencia que há uma primazia da moral pessoal sobre a moral social. Esse fato se constata no mundo do Direito, não apenas na geração Direito como também na sua aplicação, já que a eficácia passa pela aceitação ou repulsa íntima da lei externa. 85 86 Summa Theol., I, q. 29, a. 3. Cf. Gonella. Op. Cit. p. 23. 39 A racionalidade da pessoa implica também na sua dignidade religiosa que não deixa de estar ainda vinculada à dignidade moral. Ora, a idéia de consciência moral que surge na patrística viria a ser a primeira ameaça ao absolutismo greco-romano. Por meio dela se recebe o direito natural que, processado racionalmente, não apenas legitima, mas também vem limitar o poder do rei medieval, trazendo já para o Estado87 medievo uma verdadeira e inquestionável supremacia do Direito. Assim, a dignidade religiosa da pessoa também se manifesta em dois aspectos: o individual e o social. O primeiro, já observado, diz respeito às convicções; o segundo, à liberdade de prática e vivência da fé. Essa liberdade de religiosa está garantida desde que o indivíduo, ela evocando, não conspurque a dignidade de outrem. Nesta prestação negativa do Estado observa-se um direito-liberdade que vai conferir à lei um papel de garantia da liberdade de todos limitando a liberdade de indivíduos ou grupos. À propósito, as constituições modernas consagraram como direito fundamental a liberdade de crer e viver a própria crença. Se constata essa unidade entre consciência e vida e liberdade de crença, profissão ou culto religioso, de tal maneira, que na Constituição da República Federal da Alemanha 87 No sentido de sociedade politicamente organizada. 40 encontra-se no mesmo escopo do art. 4o a objeção de consciência e a liberdade religiosa (implicando na liberdade de culto). 88 A dignidade econômica da pessoa se reflete na dignidade do trabalho humano que não é apenas meio de sobrevivência mas de satisfação de suas obrigações morais. Ele é mais que um meio de sustento, é um instrumento de afirmação da personalidade e da liberdade. A dignidade econômica afirma a propriedade privada como direito natural,89 ao mesmo tempo que a limita.90 Significa na ordem econômica a justa relação entre a produção e a distribuição das riquezas. Onde não haja uma superposição valorativa do capital sobre o trabalho, mas uma concordante conexão entre os dois, onde o trabalho humano assume o papel central na relação entre os fatores de produção. O capital deve estar à serviço da Dignidade da Pessoa Humana e o trabalho é um meio privilegiado de realizar tal dignidade. 88 A objeção de consciência também está consagrada no artigo 143, § 1o da Constituição Federal como (imperativo de consciência), no artigo 41o, 6 e 276o ,4 da Constituição da República Portuguesa e 30.2 da Constituição de Espanha. Já a liberdade religiosa se afirma no art. 8 o e 19o da Constituição da República Italiana, 16 da Constituição Espanhola. Na França a liberdade de consciência e liberdade religiosa se encontra nos artigos 4o e 11o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789, em vigor por força do preâmbulo da Constituição de 1958, que, in verbis, determina: “O povo francês proclama solenemente o seu apego aos Direito do Homem e aos princípios da sobrania nacional tal como foram definidas pela Declaração de 1789, confirmada e completada pelo preâmbulo da Constituição de 1946 (...)” 89 O art. 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já afirmava que a propriedade “é um direito sagrado e inviolável” 90 Cf. o art. 5o, XXII e XXIII da C.F. Também o mesmo art. 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirma que esse direito de propriedade não é absoluto. 41 Afirmar a dignidade política da pessoa é afirmar a antítese do individualismo e do totalitarismo,91 dois extremos que afirmam ou a política em função do indivíduo e o indivíduo em função da política. A garantia da dignidade da pessoa requer necessariamente a superação da dicotomia entre Estado e sociedade ou Estado e indivíduo. Não se trata de mera supressão da oposição entre indivíduo e Estado, mas da identificação do Estado como a própria sociedade. A comunidade política nada mais é que um conjunto de indivíduos e grupos, politicamente organizado, que busca um fim comum. A cidadania surge da atribuição de direitos políticos à Pessoa Humana. Ela é ser acidental, que realiza sua existência aderindo à Pessoa Humana. A cidadania deve servir à humanidade e não a segunda à primeira. A pessoa, e não o cidadão, é o sujeito e o fim da política. Ontologicamente há uma distinção e uma hierarquia entre pessoa e cidadão. O primeiro é anterior ao segundo, existe plenamente sem o segundo, enquanto o cidadão tem como essência a Pessoa Humana e, consequentemente, a mesma substancialidade desta. Mesmo aquele que não goza de direitos políticos, pode ter sua dignidade respeitada, pois ele antes de ser cidadão é pessoa, ou melhor uma Pessoa Humana que, além de gozar dos direitos liberdade (art. 5o da C.F.) e dos direitos sociais (arts. 6o a 11o da C.F.) – inerentes a sua 91 Cf. GONELLA. Cit. p. 36. 42 dignidade –, goza também de direitos políticos (arts. 12 a17 da C.F.). O inverso não é verdadeiro, ninguém goza verdadeiramente dos seus direitos políticos fundamentais sem terem respeitados os seus direitos liberdade e sociais, ou seja, daqueles que garantem a sua dignidade enquanto pessoa. Os direitos da pessoa anteriores ao direito do Estado, ou seja, surgem como limites do arbítrio do Estado. A pessoa é portanto, elemento essencial do ser político. Ela é condição de existência da comunidade política, pois a mesma comunidade política tem sua existência condicionada ao reconhecimento da existência da pessoa. CONCLUSÃO Direito é ser. Enquanto quod est tem sua própria substacialidade: fato, valor e norma. Essa chamada teoria trimensional, também é uma teoria ontológica do Direito, pois afirma sobre essa substancialidade uma essencialidade peculiar. Se enquanto substância ele apresenta três elementos indivisíveis, a essência confere ao Direito uma característica incomum: enquanto fim, Direito é um dever ser. Parece imprópria a afirmação de que Direito não é ser mas mero dever ser. É o mesmo que afirmar que o direito não existe, que é mera impossibilidade ou meta irrealizável. A norma jurídica não é dever ser, ela existe, mas aponta para algo que deve existir. O dever ser do direito, conforme Armando 43 Câmara, tem na sua base um poder ser mas, ambos, tanto poder ser quanto dever ser, dizem respeito a outro ser ao qual o Direito adere. Na constatação acima temos uma, não menos peculiar, relação de finalidade. O Direito tem como fim, a realização do fim de outrem. Seu telos é trazer o possível para o real na sociedade. Direito assim se apresenta com fator de dinâmica de outro ser. Pois ele é instrumento de busca de conformidade entre a sociedade (enquanto potência) e o seu fim (sociedade enquanto ato). Temos nessa relação de finalidade a revelação de outro elemento substancial do Direito: o Direito é valor. Pois, já definido, valor é tanto a dinâmica quanto a conformação do ser com sua finalidade. Armando Câmara afirma que é o valor que explica o fato e justifica a norma. A norma visa um poder ser. Não é mera abstração apriorística mas busca a realização do possível no comportamento humano. É nessa tarefa de conformar a conduta humana com a finalidade social que o Direito realiza outro valor: a justiça. Assim, o Direito constitucional é puro valor. Valor que explica o fato político e justifica a norma organizadora da sociedade política. Essa assertiva nos induz a indagar se o Direito, em uma perspectiva ontológica, pode ser considerado sistema. Direito é puro sistema ou um ser com estrutura substancial, essencial, formal e acidental própria? A provisória conclusão que o Direito é um ser, e enquanto ser tem sua dinâmica própria, nos revela que abertura da constituição (enquanto sistema), nada mais é que o dinamismo do Direito Constitucional. 44 A abertura da constituição é o movimento do Direito Constitucional na busca do seu fim. Não é mera recepção de elementos metajurídicos ou supraconstitucionais, mas busca do próprio ser na realização do seu valor absoluto: o bem comum assentado na dignidade da Pessoa Humana. 4 BIBLIOGRAFIA 1. AQUINO, Santo Tomás. Summa Theol., I, q. 29, a. 3. 2. ARAÚJO NETO, Edemir . Os princípios administrativos na Constituição de 1988. Revista da PGE. São Paulo, dez de 1990. 3. ARISTÓTELS. Ética a Nicômaco, livro V, 5.25. 4. BOÉCIO. De duabus nat., II, 4. 5. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 6. ed.Rio de Janeiro: Forense, 1986. 6. CÂMARA, Armando. Obras e escolhidas (org. Luis Alberto De Boni). 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