Angelica Lucia Carlini

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1
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
ANGÉLICA LUCIÁ CARLINI
JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL:
Causas e Possibilidades de Solução
SÃO PAULO
2011
2
C282j Carlini, Angelica Luciá
Judicialização da saúde no Brasil: causas e possibilidades de solução / Angelica Luciá
Carlini. São Paulo, 2012.
202 f. ; 30 cm
Referências: p. 188-195
Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico)- Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo, 2012.
1.Direito. 2. Saúde Pública. 3. Judicialização. 4. Neoconstitucionalismo. 5. Saúde.
6. Constituição Federal. I. Título.
CDD 341.256
3
ANGÉLICA LUCIÁ CARLINI
JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL:
Causas e Possibilidades de Solução
Tese
apresentada
Universidade
Mackenzie,
à
Presbiteriana
como requisito
parcial para a obtenção do
título de Doutora em Direito
Político e Econômico.
Orientador – Prof. Dr. José Francisco Siqueira Neto
SÃO PAULO
2011
4
ANGÉLICA LUCIÁ CARLINI
A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL:
Causas e Possibilidades de Solução
Tese apresentada ao Curso de PósGraduação em Direito da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção de título de
Doutora em Direito Político e Econômico.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. José Francisco de Siqueira Neto
Prof. Dr. José Renato Nalini
______________________________________________________
Prof. Dr. José Marcos Lunardelli
Prof. Dr. Gianpaolo Poggio Smanio
______________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Francisco
5
DEDICATÓRIA
Este trabalho é dedicado a todos aqueles que sonham com um Brasil
justo, que proteja de fato seus cidadãos em especial os mais carentes.
É dedicado muito especialmente à Paulinha, que partilha os sonhos e não
se cansa de incentivar para que eu os realize. Ao mesmo tempo não me
deixa parar de sonhar e isso faz a minha vida ter sentido. Obrigada
sempre!
Para a sábia Dona Laura, minha mãe, e para toda a coalisão Pioto-Carlini
que sempre torce por mim, em especial os sobrinhos lindos que meus
queridos irmãos me deram. E a Sandra, que faz toda a diferença!
Para os colegas de docência; para os amigos de Monte Verde; para o
pessoal da CQA da Unip (Roni, Chris, Betisa, Diana, muito obrigada);
para a Dra. Marília Ancona-Lopez (obrigada de coração); para os amigos
da Facamp; para o Wilson e a Jacque, que sabem o quanto é difícil e
apoiram muito; para os da Associação Internacional de Direito de Seguro;
para as Dras. Gloria Faria e Solange Beatriz, que partilharam as primeiras
ideias desta pesquisa; para o Luiz Celso que me incentiva tanto; para o
Mario Viola com quem estou dividindo um novo sonho; para o Otávio e a
Luciana Clark que me ensinaram o que é Medicina Baseada em
Evidências; para o Tonico Siqueira, a Valéria Pachá e o Henrique Saraiva,
da Mútua dos Magistrados do Rio de Janeiro, que tantas oportunidades
me deram para pensar sobre saúde e direito, enfim, para os amigos e
colegas que comigo partilham a vida. Muito obrigada por estarem ao meu
lado!
Para o meu pai que adorava medicamentos e médicos e que felizmente,
não viveu para ver como esse setor ficou complicado.
Para todos os colegas advogados da Carlini Sociedade de Advogados.
E para os amigos de toda uma vida! Verinha e Sandra, continuaremos
juntas por toda a eternidade!
6
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. José Francisco Siqueira Neto, pela orientação segura e
determinada que fez de um amontoado de ideias uma tese de doutorado.
Aos professores do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito
Político e Econômico, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pela
dedicação e entusiasmo com que conduziram seu trabalho.
Aos colegas da primeira turma de doutorandos em direito do Mackenzie,
Wilson, Ricardo, Renato e Ivo, foi um enorme prazer dividir as aulas com
vocês.
Aos coordenadores e professores dos cursos de Direito em que eu
trabalho, Universidade Paulista e Faculdade Campinas, em especial aos
meus alunos que me ensinam tanto.
Aos professores que aceitaram o convite para compor as bancas de
qualificação e de defesa, pela contribuição decisiva para a qualidade do
trabalho.
Ao Renato Santiago, da secretaria do Programa, um amigo querido, um
pai maravilhoso e uma fonte de serenidade em meio ao caos do final da
tese. Muito obrigada, meu amigo!
7
RESUMO
A pesquisa identifica elementos que dão origem ao surgimento da
judicialização da saúde pública no Brasil, tratado no trabalho como um
fenômeno social que merece investigação científica de suas causas e
consequências. O trabalho identifica na constitucionalização do direito o
ponto de partida da construção da judicialização da saúde pública, assim
como na construção histórica do conceito de saúde que se mostra
bastante dependente do olhar do médico que é quem determina, em
última análise, se um estado pode ser considerado de saúde ou de
doença em uma determinada pessoa. A pesquisa analisa julgados que
aplicam a Constituição Federal como elemento fundamental para a
concessão de acesso à saúde e estuda mecanismos não judiciais de
solução da judicialização.
PALAVRAS-CHAVE
–
Direito,
saúde
pública,
neoconstitucionalismo, saúde, Constituição Federal.
judicialização,
8
ABSTRACT
This search identifies elements thtat give rise to tlhe appearance of the
judicialization of public health in Brazil, treated at this work as a social
phenomenon that deserves scientific investigation of its causes and
consequences. The work focuses on the constitucionalization of the right
the starting point for the construction of the judicialization of public health,
as well as the historical construction of the concept of health which proves
to be quit dependent on the gaze of the physician who determines,
ultimately, if a state can be considered health of disease in a particular
person. The research analyzes applying the Constitucion as a
fundamental element for the ensure acces to health studies and nonjudicial mechanisms for resolution of the judicialization.
KEYWORDS – law, public health, judicialization, neoconstitucionalism,
health, the Federal Constitucion.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................09
CAPÍTULO I – CONCEITO E MARCOS REGULATÓRIOS DA SAÚDE PÚBLICA NO
BRASIL..............................................................................................................14
1. A construção política e jurídica do conceito médico de saúde.......................14
2. A saúde pública no Brasil........................................................... ..................42
2.1. A Constituição de 1988 – expectativas e propostas na área da saúde pública..42
2.2. O direito à saúde na Constituição Federal de 1988..............................................47
2.3. O direito à saúde como seguridade social............................................................51
2.4. A lei 8.080/90 e o Sistema Único de Saúde.........................................................55
CAPÍTULO II – A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA NO BRASIL E A
CONSTRUÇÃO DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.................................62
1. Apontamentos sobre direitos fundamentais.....................................................62
2. Dimensões da dignidade da pessoa humana..................................................65
3. Direito ao mínimo existencial e reserva do possível........................................78
CAPÍTULO III – ESTUDO DA FUNDAMENTAÇÃO DE DECISÕES JUDICIAIS NA ÁREA DE
SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL....................................................................................85
1. Análise por amostragem de argumentos que fundamentam algumas decisões
judiciais sobre saúde no Brasil........................................................................107
1.1. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais...................................................108
1.2. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.................................................111
1.3. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia...............................................................115
1.4. Tribunal de Justiça do Estado do Pernambuco....................................................119
1.5. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul...........................................123
1.6. Supremo Tribunal Federal ...................................................................................129
CAPÍTULO IV – SOLUÇÕES POSSÍVEIS PARA DIMINUIR A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
........................................................................................................................138
CONCLUSÃO....................................................................................................179
10
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................188
11
INTRODUÇÃO
A judicialização da saúde acontece no Brasil no âmbito da saúde pública e da
saúde privada, e se desenvolveu com especial vigor a partir da década de 90.
É um fenômeno social e jurídico no sentido de ser um fato de interesse
científico, que deve ser estudado de forma sistemática e rigorosa pelo Direito.
Consiste em buscar a efetividade do atendimento às necessidades de saúde
por meio de decisões judiciais que determinam que uma instituição pública ou
privada deve atender àquilo que o sujeito de direito, autor da ação, entende
como um direito subjetivo. Na quase totalidade dos casos pesquisados, lidos e
analisados para esta pesquisa, obtidos junto aos tribunais estaduais e
superiores brasileiros, o pedido apresentado pela parte está ancorado em
relatório médico que sustenta ser aquele o procedimento (tratamento,
medicamento,
órtese,
prótese,
transplante,
entre
outros
pesquisados)
recomendado para o caso concreto.
A judicialização da saúde ocorre nos vários Estados brasileiros tanto como
meio de acesso a tratamentos médico-hospitalares sofisticados como também
para tratamentos mais comuns não disponíveis em uma determinada unidade
de saúde pública.
É utilizada ainda para dispensação de medicamentos comuns e de alto custo,
medicamentos não consignados na lista da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária,
medicamentos
experimentais,
órteses,
próteses,
produtos
específicos para determinadas doenças (stents coronarianos, parafusos e
placas para tratamentos de ortopédicos, cânulas, tipos de linha ou de agulhas,
ou ainda ferramentas especiais solicitadas por médicos), tratamentos no
exterior, obtenção de vagas em unidades de terapias intensivas ou em leitos de
unidades específicas (cardiologia, pediatria,
queimados,
entre
outros),
fornecimento de alimentos especiais, de fraldas descartáveis para crianças e
idosos, para tratamento de emagrecimento inclusive cirurgias bariátricas
(redução de estômago ou colocação de mecanismos de indução à saciedade),
e até para pedido de fornecimento de cuidadores, ou seja, pessoas qualificadas
12
em saúde que possam ficar com os pacientes que estão em tratamento
prolongado mas já não podem mais ficar em hospitais.
Para alguns juristas a judicialização é positiva e tem o condão de garantir a
efetividade dos direitos sociais previstos na Constituição Federal. Para outra
parcela dos estudiosos isso causa preocupação e instiga reflexões sobre as
consequências que essa prática provoca, não apenas no universo do
Judiciário, mas também na sociedade civil brasileira.
Este trabalho pretende analisar a judicialização de forma crítica e, nessa
medida, propor alternativas que viabilizem a diminuição dessa prática por partir
do pressuposto de que a judicialização do acesso à saúde pública não garante
efetividade dos direitos sociais para todos. Ao contrário, garante o acesso
apenas àqueles que têm a compreensão de que é possível ir ao Judiciário para
requerer o direito e que concretizam os meios para fazê-lo.
Nenhuma alternativa apresentada por esta pesquisa poderá garantir a extinção
da judicialização da saúde pública, em especial porque as ciências médicas
vivem um momento de especial desenvolvimento decorrente do avanço
tecnológico que permite o aumento de pesquisas e de possibilidades de
criação de novos recursos terapêuticos. Mas é possível pesquisar e propor a
implantação de práticas não judiciais capazes de mitigar a judicialização da
saúde pública.
Este trabalho tem por hipótese que mitigar o número de ações judiciais que
pleiteiam acesso à saúde pública é importante para garantir que os recursos
públicos para a saúde sejam utilizados de forma planejada, desde a atenção
primária até a atenção aos casos mais sofisticados e específicos.
Aa utilização do Judiciário como instrumento de acesso à saúde pública
provoca a instabilidade do planejamento público, porque o planejamento
orçamentário é descumprido em razão da necessidade de atender de imediato
as ordens judiciais que determinam a utilização dos recursos para outras
necessidades que não aquelas previamente planejadas.
Embora a pesquisa não mensure o impacto das decisões judiciais sobre os
orçamentos públicos municipais, estaduais e federais para a área da saúde,
não é possível ignorar que sucessivas decisões judiciais determinando a
13
concessão de tratamentos ou medicamentos interferem no planejamento
econômico da área, inclusive para diminuir a efetividade de políticas públicas
planejadas. Esse risco é concreto e foi um motivador desta investigação.
O objeto trabalho é analisar o protagonismo do Poder Judiciário na efetividade
do direito social à saúde como caminho preferencial buscado pela sociedade
brasileira no atual momento histórico.
A efetividade dos direitos sociais é tarefa dos três poderes da República, mas
no Brasil contemporâneo tem sido realizada de forma destacada pelo Poder
Judiciário -- pelo menos no âmbito da saúde.
É preciso responder à indagação: afinal, a busca do Poder Judiciário é sinal de
fortalecimento das instituições democráticas ou, ao contrário, é sintoma de
imaturidade das instituições políticas, que deveriam promover o debate coletivo
da efetividade da saúde pública?
Nesta pesquisa a judicialização da saúde é analisada em múltiplos aspectos,
mas essencialmente o que se pretende responder é: ela pode ser considerada
um
elemento
para
a
despolitização
da
sociedade
civil
brasileira
contemporânea? Ou, em outras palavras: pode a judicialização da saúde
pública ser um instrumento de individualização de direitos em área social lócus
em que as soluções deveriam ser pensadas no âmbito coletivo?
O objeto de pesquisa foi aqui delimitado para atingir dois objetivos:
compreender o fenômeno da judicialização do acesso à saúde pública no
Brasil, e pesquisar formas de mitigar o protagonismo do Poder Judiciário na
garantia da efetividade do direito fundamental à saúde.
Para atingir esses objetivos o método utilizado foi o de análise qualitativa, a
qual tem sido utilizada com frequência nas pesquisas das áreas de Ciências
Humanas e Ciências Sociais Aplicadas, exatamente porque elas pretendem
compreender o comportamento do homem no contexto histórico, econômico,
social e cultural em que ele está inserido.
ANTONIO CHIZZOTI1 nos ensina sobre os pesquisadores que adotam uma
abordagem qualitativa:
1
CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. S.Paulo: Cortez, 5ª edição,
2001, p. 79.
14
Afirmam, em oposição aos experimentalistas, que as ciências humanas têm sua
especificidade – o estudo do comportamento humano e social – que faz delas
ciências específicas, com metodologia própria. Consideram, ainda, que a adoção
de modelos estritamente experimentais conduz a generalizações errôneas em
ciências humanas, baseiam-se em um simplismo conceitual que não apreende um
campo específico e dissimulam, sob pretexto de um modelo único, o controle
ideológico das pesquisas.
ORIDES MEZZAROBA e CLAUDIA MONTEIRO2, por sua vez, fazem lembrar:
A pesquisa qualitativa também pode possuir um conteúdo altamente descritivo e
pode até lançar mão de dados quantitativos incorporados em suas análises, mas o
que vai preponderar sempre é o exame rigoroso da natureza, do alcance e das
interpretações possíveis para o fenômeno estudado e (re)interpretado de acordo
com as hipóteses estrategicamente estabelecidas pelo pesquisador.
A partir da escolha por uma pesquisa qualitativa, o instrumental teórico
bibliográfico foi o utilizado preferencialmente, embora também tenhamos
lançado mão dos estudos julgados de tribunais brasileiros.
As hipóteses construídas são: a) a judicialização da saúde pública é
decorrência de uma sociedade prioritariamente urbana que se organiza em
torno da produção para o consumo e faz desse consumo o elemento essencial
de suas práticas econômicas e sociais, acrescentando a saúde como um
elemento de consumo; b) a judicialização da saúde é decorrente da falta de um
debate consistente da sociedade civil no equacionamento da utilização das
verbas públicas para essa área; e, c) a ausência de um debate coletivo
consistente que aponte soluções para a falta de qualidade da saúde pública no
Brasil é decorrente da despolitização da sociedade que, cada vez confia menos
nos Poderes Legislativo e Executivo e, em contrapartida, confia mais no Poder
Judiciário que, em que pese a ausência de celeridade, ainda é mais confiável
que os demais.
A pesquisa qualitativa teórica realizada nesta tese pretende contribuir para a
construção de meios que minimizem o acesso à Justiça como instrumento
prioritário da efetividade do direito fundamental à saúde pública no Brasil. Por
conseguinte, a pesquisa vai além da análise da judicialização da saúde para
MEZZAROBA, Orides. MONTEIRO, Cláudia Servilha. Manual de Metodologia da Pesquisa no
Direito. 2ª edição. S.Paulo: Saraiva, 2004, p.110.
2
15
discutir mecanismos que possam produzir efeitos concretos na diminuição do
fato. Nesse aspecto está o traço de originalidade que o trabalho pretende
apresentar.
A pesquisa foi organizada em quatro capítulos.
No primeiro, o conceito de saúde é apresentado como uma construção
histórica e não apenas como um dado jurídico. O objetivo é pesquisar suas
origens e a forma como ele foi corporativamente trabalhado. Para isso a
pesquisa estuda aspectos da história da Medicina e da profissão médica.
O Capítulo II expõe o fenômeno do neoconstitucionalismo e do neopositivismo
que ocorreram no País no final da década de 90 e no início do século XXI,
trazendo como consequência novas propostas para a hermenêutica e a
aplicação
do
Direito
constitucional.
Discute
a
definição
de
direitos
fundamentais, as dimensões do conceito de dignidade da pessoa humana
tratados na Constituição Federal de 1988 no Brasil e, a nova dimensão que
passou a ser dada às normas constitucionais programáticas e sua
aplicabilidade. Apresenta, ainda, os conceitos de mínimo existencial e reserva
do possível como contraponto ao ideário de ampla realização de todos os
direitos fundamentais. Os conceitos construídos historicamente para reserva do
possível e mínimo existencial, a aproximação do Direito e da Economia para
fundamentação desses conceitos e, principalmente, a aplicação da reserva do
possível como suposta motivação para a não efetividade dos direitos
constitucionais fundamentais são outras abordagens do capítulo.
O Capítulo III analisa algumas decisões do Supremo Tribunal Federal e de
Tribunais de Justiça estaduais sobre a efetividade do direito à saúde pública e
a argumentação utilizada. O objetivo é analisar os fundamentos das decisões e
como as dimensões do princípio da dignidade da pessoa humana são tratadas
em juízo.
O Capítulo IV estuda alternativas para minimizar a via do Judiciário como
caminho preponderante da efetividade do direito à saúde: a criação de câmaras
de saúde para auxiliar os magistrados de Primeiro e Segundo Grau nas
decisões (em especial nos casos em que o principal argumento é a urgência ou
a emergência; a consulta a auditores de saúde pública em processos judiciais e
16
a viabilidade de formação de instâncias para a tentativa de mediação entre as
partes antes da propositura da demanda judicial. O objetivo é ponderar sobre a
possibilidade de redução dos conflitos judiciais, subtraindo do Direito e,
consequentemente, do Poder Judiciário a exclusividade da responsabilidade
pela efetividade do direito social constitucional de acesso à saúde pública.
CAPÍTULO I
O CONCEITO E OS MARCOS REGULATÓRIOS DA SAÚDE NO BRASIL.
1. A construção política e jurídica do conceito médico de saúde
Saúde é um conceito histórico, político e social construído principalmente por
médicos. O aspecto jurídico desse conceito expresso especialmente na
Constituição Federal de 1988 é resultado dessa construção histórica, política e
social, bem como da trajetória da Medicina como profissão legalmente
instituída para definir o que é saúde, o que é doença e o que é tratamento
prescrito para uma doença.
No mundo contemporâneo os médicos quase sempre são os únicos
autorizados a fixar conceitos de saúde, de doença e, em decorrência disso, os
únicos autorizados a determinar o tratamento adequado para as pessoas.
Quem pretender realizar tratamento de saúde por outros meios que não pela
consulta a um médico estará sujeito, no Brasil, a ser fiscalizado pelo Estado,
que proíbe a prática de atos médicos por aqueles que não estejam legalmente
habilitados a exercê-los.
A prática médica é regulada e fiscalizada pelo Estado, e isso afasta, desde
logo, a possibilidade de outras práticas alternativas à Medicina.
Não há proibição para práticas religiosas de cura que, por sinal, em um país de
forte sincretismo religioso são até bastante comuns. Mas aquele que pretender
se estabelecer como curandeiro e prometer a cura de doenças por meio de
suas práticas estará sujeito à fiscalização do Estado e será coibido de
continuar a praticar seus atos de cura.
17
Fatores históricos, políticos e sociais justificam que a opinião médica seja tida
como a única abalizada para detectar se o indivíduo está ou não saudável e, se
não está que procedimentos deverão ser adotados.
Esse poder de dizer a saúde e a doença bem como de determinar o tratamento
a ser seguido foi obtido ao longo de muitos anos e com grande protagonismo
dos médicos para conseguir a exclusividade e, concomitantemente, afastar os
possíveis concorrentes na tarefa de estabelecer o que é doença e o que é cura.
JOFFRE M. DE REZENDE3 relata:
Somente no século V a.C, com o surgimento da medicina hipocrática na Grécia,
foi a mesma separada da religião, das crenças irracionais e do apelo ao
sobrenatural. Desde então, por caminhos tortuosos, com avanços e recuos,
chegou à Idade Média, quando tiveram início os cursos médicos oficiais. Até
então, o ensino da arte médica era informal e se fazia de mestre e aluno através
de gerações, como consta do juramento de Hipócrates.
Conforme ressaltou Bullough, em seu livro The Development of Medicine as a
Profession, a medicina só foi institucionalizada a partir da Idade Média, após a
fundação da escola de Salerno e das primeiras universidades europeias. Dentre
elas teve atuação destacada a de Pádua, onde se formaram e ensinaram grandes
personagens que revolucionaram a medicina, como Vesalius, Morgagni, Harvey e
outros.
No Brasil, entre 1808 e 1828, eram expedidas licenças e cartas para aqueles
que pretendessem exercer alguma atividade relacionada com a prática da cura.
A regulamentação era semelhante à praticada em Portugal e as atividades
eram fiscalizadas pela Fisicatura, órgão que existiu até 1828.
TANIA SALGADO PIMENTA4 afirma sobre a expedição de cartas e licenças para as
atividades de sangradores, parteiras, curandeiros, curadores de moléstias,
entre outros:
Não obstante a hierarquização, a oficialização das práticas de cura populares
significava o reconhecimento desse saber como legítimo, o que permitia a inclusão
dos terapeutas populares entre as pessoas autorizadas a exercer alguma
atividade de cura. Isso se dava no contexto de uma sociedade na qual as relações
3
REZENDE. Joffre M. “O Ato Médico através da História”. In: À Sombra do Plátano. S.Paulo:
UNIFESP, 2009. P. 01-06.
4
PIMENTA. Tania Salgado. “Terapeutas Populares e Instituições Médicas na Primeira Metade
do Século XIX”. CHAULHOB, S. et al. Artes e Ofícios de Curar no Brasil. Campinas: UNICAMP,
2003, p. 307-330.
18
eram traçadas por meio de redes de dependências pessoais que se construíam a
partir de favores, lealdades, obediências e proteção, materializadas muitas vezes
em nomeações para cargos públicos ou em privilégios em processos burocráticos.
As práticas de curas dos sangradores e curadores estavam relacionadas às visões
cosmológicas dessas pessoas – na maior parte africanos e descendentes de
africanos-, em que as doenças eram associadas a elementos espirituais. O vasto
conhecimento que tinham sobre plantas medicinais, reconhecido pelos médicos
acadêmicos, também estava relacionado às suas crenças religiosas. Ainda que os
curadores tivessem influências de outras tradições culturais, como as indígenas ou
as relativas a setores populares europeus, também nesses casos existia a crença
de que as doenças poderiam ser causadas por problemas espirituais.
Os médicos diplomados, por sua vez, estavam cada vez mais afastados dessas
concepções e mais envolvidos na luta pelo monopólio da Medicina. Essa distância
acentuada entre as concepções médicas populares e a acadêmica evidencia-se
com a grande popularidade, nas décadas de 1840 e 1850, da homeopatia, que,
como as primeiras, também se baseava numa visão espiritualizada da doença e
da saúde.
Reforçando essa constatação histórica, manifesta-se REGINA XAVIER5:
Os médicos, por sua vez, pareciam buscar causas materiais para as doenças,
temendo os miasmas, a insalubridade, a falta de higiene, percebendo-os como
possíveis causas dos males da população. Apesar de suas ações serem muitas
vezes ambíguas, em nenhum momento de suas declarações, pelo menos as que
encontramos, manifestam qualquer preocupação em reelaborar essa relação entre
o sobrenatural e os males do corpo. No intuito de se diferenciarem e de
construírem para si um lugar privilegiado de ação, faziam-no em nome de
conhecimentos científicos que tendiam a distanciá-los do resto da população,
muitas vezes mais crédula. Não podiam, portanto, concorrer com os curandeiros,
que tinham outras formas de entender as doenças, relacionando sua religiosidade
com seus tratamentos e garantindo, por conseguinte, a conquista de espaço social
e político.
Os estudos sobre a Medicina e seu papel político e social pertencem ao que
hoje chamamos de sociologia do conhecimento médico, que possui estudos
XAVIER, Regina. Dos Males e Suas Curas. In: CHALHOUB. S. et al. Artes e Ofícios de Curar.
Campinas: Unicamp. 2003, p. 146-147
5
19
que têm contribuído para a compreensão do papel do médico nas sociedades
contemporâneas, principalmente em relação ao poder que exercem para a
caracterização do que é doença e do que é saúde e, em consequência, para a
definição da aplicação dos recursos públicos e privados na prevenção e no
tratamento de moléstias, realização de exames, utilização de medicamentos e
outras terapias de cura.
Esses estudos são essenciais para a compreensão dos problemas objeto desta
pesquisa, porque a busca pela proteção jurisdicional para a obtenção de
acesso a tratamentos de saúde que tem ocorrido de forma sistemática na
sociedade brasileira contemporânea está sempre fundamentada no parecer do
médico que assiste o sujeito de direitos que vai ao Judiciário.
E contrariar o parecer técnico do médico é inviável para os magistrados, seja
pela complexidade do conhecimento, seja pela exclusividade que se atribui ao
médico para tratar dos assuntos referentes à saúde e sua manutenção. Não
raro a opinião de outro médico sobre o mesmo caso é questionada,
principalmente se ele não possuir os mesmos predicados daquele que
formalizou o diagnóstico e prescreveu o tratamento.
FREIDSON6 esclarece que:
A Medicina, entretanto, não é simplesmente a principal profissão de nosso tempo.
Entre as profissões estabelecidas nas universidades europeias da Idade Média, é
a única que tem desenvolvido uma conexão sistemática com a ciência e a
tecnologia. Diferindo do Direito e do Sacerdócio, que não estabeleceram nenhuma
importante conexão com a ciência moderna e a tecnologia, a Medicina se
desenvolveu no interior de uma complexa divisão de trabalho, organizando um
crescente número de prestadores de serviços e técnicos em torno da tarefa central
do diagnóstico e do tratamento de doenças da humanidade. Além disso,
ultrapassou outras profissões em preeminência. Isso aconteceu porque, nas
sociedades pós-industriais, a produção de bens e de outras formas reais de
propriedade passaram a ser um problema menor que o bem-estar dos cidadãos. O
bem-estar passou a ser definido em termos exclusivamente seculares e não mais
religiosos; e a noção de doença se expandiu, muito mais do que em anos
anteriores, incluindo muitas outras facetas do bem-estar humano; a Medicina tirou
o
6
Direito
e
o
Sacerdócio
de
suas
posições
de
dominância.
[...]
FREIDSON, Eliot. Profissão Médica – Um Estudo de Sociologia do Conhecimento Aplicado.
S.Paulo: Unesp. Porto Alegre: Editora do Sindicato dos Médicos. 2009, p. 16-17.
20
Como as profissões são empreendimentos humanos coletivos, além de
organizações com os próprios conhecimentos, crenças e habilidades especiais, a
Sociologia pode enfoca-las como organizações comuns de grupos, separados de
seus conceitos diferentes, provendo aqueles gerais pelos quais as profissões
poderiam ser individualmente comparáveis.
Destaca FREIDSON7:
Se considerarmos a profissão médica atualmente, fica claro que sua principal
característica é a preeminência. É preeminente não apenas no prestígio, mas
também na autoridade relativa à sua especialidade. Isto para dizer que o
conhecimento médico sobre doenças e seu tratamento é considerado autorizado e
definitivo. Apesar das exceções interessantes, como a quiroprática e homeopatia,
não existem representantes de ocupações em competição direta coma Medicina
que tenham conseguido posições semelhantes na formulação de políticas
relacionadas à saúde. A posição da Medicina hoje em dia está próxima das
antigas religiões de Estado – ela tem um monopólio aprovado oficialmente sobre o
direito de definir o que é saúde e doença e de trata-la. Além disso, ela é altamente
reconhecida pelo público, o que reflete o grande prestígio que possui.
Essa posição de grande importância e confiabilidade social dos médicos foi
construída ao longo de diferentes períodos históricos, em especial na Europa.
A prática médica se constrói fundamentada em alguns pressupostos que a
caracterizam até hoje: o atrelamento do saber médico ao saber científico; a luta
pelo reconhecimento legal e social da exclusividade do conhecimento científico
da saúde e, consequentemente, o combate aos curandeiros e curadores de
qualquer espécie que não os médicos; e a participação dos médicos na
organização social, inclusive na utilização de recursos públicos, na arquitetura
dos grandes centros urbanos, na definição das práticas recomendadas e das
vetadas aos trabalhadores e membros das comunidades sociais.
MICHEL FOUCAULT8 escreve:
A Medicina como técnica geral de saúde, mais do que como serviço das doenças
e arte das curas, assume um lugar cada vez mais importante nas estruturas
administrativas e nesta maquinaria de poder que, durante o século XVIII, não
cessa de se estender e de se afirmar. O médico penetra em diferentes instâncias
7
8
Obra citada, p. 25
FOUCAULT. Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 202-203.
21
de poder. A administração serve de ponto de apoio e, por vezes, de ponto de
partida aos grandes inquéritos médicos sobre a saúde das populações; por outro
lado, os médicos consagram uma parte cada vez maior de suas atividades a
tarefas tanto gerais quanto administrativas que lhe foram fixadas pelo poder.
Acerca da sociedade, de sua saúde e suas doenças, de sua condição de vida, de
sua habitação e de seus hábitos, começa a se formar um saber médicoadministrativo que serviu de núcleo originário à “economia social” e à sociologia do
século XIX. E constitui-se, igualmente, uma ascendência político-médica sobre
uma população que se enquadra com uma série de prescrições que dizem
respeito não só à doença mas às formas gerais da existência e do comportamento
(a alimentação e a bebida, a sexualidade e a fecundidade, a maneira de se vestir,
a disposição geral do habitat).
FOUCAULT analisa o ato médico da Idade Média, que foi basicamente calcado
no isolamento do doente para longe do convívio social, como forma de proteger
a sociedade do contágio, ou no caso da loucura dos atos praticados pelos
insanos e que poderiam ser prejudiciais.
A Medicina dita as regras para a arquitetura das cidades, as quais se
transformam a partir da Idade Média em grandes centros de comércio e
produção manufatureira. Assim, os grandes centros urbanos se higienizam, se
purificam e se transformam por meio de tais recomendações médicas, que
estabelecem o que é bom e o que não é para garantir a saúde, como devem
circular as pessoas, como devem morar, como devem circular as águas e o ar.
Além disso, o planejamento de acesso às fontes de água de beber e o da
distribuição das águas de esgoto, o alargamento de avenidas para a circulação
do ar, a retirada das casas que estavam construídas sobre pontes para que o
ar pudesse circular livremente, a construção de cemitérios com covas
individuais e afastados do centro das cidades - todos esses aspectos estão
presentes na história das cidades durante e após a Idade Média e são
decorrentes da influência dos conhecimentos médicos.
Mas o conhecimento médico determinou também a necessidade de exclusão
dos doentes para fora do convívio familiar e social, para confiná-los em
hospitais, hospícios e colônias de moradia de leprosos.
FOUCAULT9 afirma:
9
Obra citada, p. 88-89.
22
Medicalizar alguém era mandá-lo para fora e, por conseguinte, purificar os outros.
A medicina era uma medicina de exclusão. O próprio internamento dos loucos,
malfeitores, etc, em meados do século XVII, obedece ainda a esse esquema. [...]
O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos
outros, isolá-los, individualiza-los, vigiá-los uma a um, constatar o estado de saúde
de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço
esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e
controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os
fenômenos.
O apoio político do Estado era fundamental para que a Medicina fosse
reconhecida como um saber exclusivo na definição de saúde e de tratamento
de doenças. É preciso reconhecer que a prática médica sempre foi obrigada a
conviver com inúmeros saberes populares que, não raro, e até os dias de hoje,
recomendam práticas de cura completamente diferentes daquelas prescritas
pelos médicos, por vezes até em evidente agressão ao bom senso, como
acontece com alguns tratamentos fundados em crenças religiosas.
Por essa razão, os médicos tiveram que trabalhar de forma solidária,
organizados em associações ocupacionais para conquistar um espaço
exclusivo de atuação superior à influência das práticas populares e religiosas.
Contar com o apoio do papel político do Estado foi fundamental para a garantia
da exclusividade.
Outro importante aspecto para a consolidação da exclusividade da prática
médica foi sua fundamentação científica, conquistada a partir dos avanços das
pesquisas nas áreas da Física, da Química e da Biologia, principalmente.
Nenhuma outra profissão se beneficiou tanto dos avanços da pesquisa dessas
áreas como a Medicina, porque esses conhecimentos permitiram detectar as
doenças com maior facilidade e, promover tratamentos mais eficientes em
maior número de casos.
E. FREIDSON10 constata:
Com o desenvolvimento de uma fundamentação tecnológica ou científica
adequada do trabalho médico, desenvolveu-se uma fundamentação sociológica
para criar uma ocupação tão bem estabelecida na sociedade que se tornou uma
verdadeira profissão de consulta – comandando os critérios que qualificam os
10
Obra citada, p. 37.
23
homens ao trabalho de cura, com exclusiva competência para determinar o
conteúdo correto e o método efetivo de exercer sua atividade, sendo consultado
livremente pelos que necessitam de sua ajuda.
A racionalidade e objetividade do positivismo contribuiriam ao longo da História
para tornar a Medicina fundamentada no saber científico e comprovável, uma
área do conhecimento quase indiscutível, inquestionável, tornando os médicos
depositários do imaginário daquele que tudo sabe. Esse imaginário ainda hoje
é cultivado pela população em todos os extratos sociais, em muitos países
ocidentais.
No Brasil, o Congresso Nacional dos Práticos ocorrido em 1922 marca um
momento importante para a Medicina em seu caminho de construção da
exclusividade do saber sobre a saúde.
O País vivia naquele momento histórico mudanças importantes porque havia
não só superado a dependência colonial após a implantação da República
como também estabelecido novas formas de produção econômica a partir do
fim da escravidão, e estava implantando a produção industrial com a chegada
dos imigrantes europeus e de seu conhecimento tecnológico de produção.
As cidades daquela época se tornam centros maiores de produção, comércio,
circulação e moradia de pessoas, o que provoca, maior preocupação com a
saúde pública, sobretudo por parte do Estado, e em especial na adoção de
medidas de caráter preventivo.
O poder público se envolve em questões como hábitos de higiene da
população em relação ao seu próprio corpo e à sua moradia, mas também se
preocupa com a organização dos serviços de assistência médica estatal.
Enfim, a ideia que prepondera no início do século XX nas grandes cidades
brasileiras é a de que o desenvolvimento econômico também será decorrente
da preservação da saúde dos trabalhadores, razão pela qual se justifica a
presença do Estado para gerir os recursos que possam garantir prevenção e
tratamento.
No entanto, a disputa entre os médicos e os higienistas no debate sobre qual
conhecimento deveria prevalecer no tratamento das questões de saúde, não
24
tardou a aparecer. PEREIRA NETO11 descreve o embate que começava a se
delinear e que atinge ponto alto no Congresso dos Práticos, em 1922:
Aos poucos, o mercado de trabalho médico se tornava mais complexo e a relação
assalariada começava a ser introduzida. O médico que balizava sua relação com
seu paciente de forma individualizada e liberal via seu espaço de prestígio e
poder, no mercado de trabalho, ser ameaçado pelo médico funcionário público,
trabalhando em um hospital. Esta instituição foi deixando, aos poucos, de ser o
asilo dos pobres, imprestáveis e incuráveis, aguardando a morte, para tornar-se o
espaço da ciência, da racionalidade, da capitalização e da recuperação para vida.
A profissão médica integrou desta maneira, o processo de parcialização do
trabalho que se desenvolvia nas demais atividades produtivas. Começava a se
restringir o lugar do médico que vivia exclusivamente do exercício liberal de sua
atividade. [...]
O debate sobre a questão do mercado de trabalho estava organizado em torno de
sua restrição ou ampliação. Para alguns médicos, o assalariamento era visto como
uma ameaça à sobrevivência da profissão, pois comprometia a liberdade do
profissional em
estabelecer o valor da sua consulta. Além
disso, os
estabelecimentos públicos de assistência médica eram vistos como agentes
captadores de uma clientela que detinha poder aquisitivo suficiente para ser
atendida no consultório particular. O mercado de trabalho parecia se restringir.
Para outros, a entrada do Estado na organização de uma rede de assistência
médica promovia a ampliação do mercado de trabalho, já que oferecia seus
serviços a uma clientela não alcançada pelo sistema liberal. Além disso, esta
introdução representava uma renda fixa que o médico passaria a ter. O debate
estava claramente instaurado e o mercado de trabalho começava a se modificar,
no início deste século, de forma significativa.
O resgate histórico do trabalho de PEREIRA NETO permite afirmar que o debate
em torno da mercantilização da Medicina é muito anterior e remonta ao início
do século XX e não ao século XXI, quando essa polêmica é retomada pelos
estudiosos do fenômeno de judicialização da saúde pública e privada.
Tampouco a preocupação da classe médica com condições mais rentáveis
para o exercício de sua atividade profissional é contemporânea, embora tenha
se tornado mais visível na quadra histórica que vivemos.
11
PEREIRA NETO. André de F. A Profissão Médica em Questão (1922): Dimensão Histórica e
Sociológica. Cadernos de Saúde Pública v. 11, n. 4. Rio de Janeiro out/dez de 1995, p. 4.
25
No século XX os médicos se organizaram em associações e realizaram
congressos não apenas para debater a exclusividade da atividade de
caracterização da saúde e do tratamento para a doença, mas também para
discutir como seria seu posicionamento profissional num país que iniciava de
forma marcante a formação de um mercado para ser palco da produção, do
consumo e das relações de produção.
Esse momento marca o final (ou, pelo menos, o começo do fim) da relação
idealizada entre médico e paciente, individualizada e global, exercida de forma
direta e sem intermediários, na qual a habilidade, a paciência de ouvir o
paciente e suas estórias, e a autonomia para cobrar as consultas e recomendar
o tratamento eram as características essenciais.
O médico generalista, capaz de tratar qualquer tipo de doença, que atendia o
paciente em seu consultório com disponibilidade de tempo para ouvir todas as
peculiaridades de seus sintomas, que tratava o corpo do doente como um todo
indivisível, que associava prescrição médica à recomendação de boas
condutas morais, que era livre para receitar e acompanhar o cotidiano dos
pacientes, inclusive em encontros sociais e eventuais na vizinhança, começa a
deixar de ser o perfil majoritário.
Temas como mercado e a necessidade de aumento do conhecimento para
fazer frente às novas exigências da área médica passam a integrar o cotidiano
dos médicos e de suas preocupações profissionais.
Acreditar que as controvérsias e contradições que os médicos vivenciam no
século XXI são fruto do aumento do acesso à tecnologia e ao desenvolvimento
da farmacologia é ignorar que a classe médica enfrentava no Brasil, desde o
início do século XX, problemas na consolidação de seu espaço no mercado de
trabalho e que isso se avolumou ao longo de todo o século com o surgimento
de novas tecnologias, com a construção de novos saberes científicos e com a
criação de novas formas de exercício do trabalho, como a saúde suplementar e
o sistema de cooperativas médicas, entre outros.
Uma das primeiras reações organizadas pelos médicos para fazer frente às
mudanças que viviam foi cuidar do estabelecimento de uma hierarquização
entre as diversas áreas profissionais da saúde de modo a terem supremacia
26
sobre enfermeiras, parteiras e farmacêuticos. Todas foram consideradas áreas
subordinadas
aos
saberes
médicos,
supostamente mais
abrangentes,
científicos e competentes para determinar os estados mórbidos e seus
tratamentos.
Esse fenômeno não é apenas brasileiro; ao contrário, ocorreu em vários países
do mundo ocidental nos quais a Medicina se firmou como área profissional de
controle de outras, normalmente denominada de paramédica.
FREIDSON12 afirma que o pessoal não médico, da área de saúde, possui
capacitação técnica para realizar grande parte das atividades tradicionais de
cura realizadas pelos médicos. Os critérios técnicos não são, portanto, o
diferencial fundamental da do médico em relação aos paramédicos. O controle
exercido com exclusividade pelo médico é, ao contrário do conhecimento
técnico, o elemento fundamental para a diferenciação das duas categorias
profissionais.
Os paramédicos são, assim, parte integrante da equipe que se dedica ao
trabalho de diagnóstico de doenças e promoção de atos para recuperação da
saúde e de formas científicas de prevenção de males, mas integram uma
equipe de saúde na condição de dependentes da ordem do médico que chefia
essa equipe. Realizam suas atividades a partir do pedido e da supervisão do
profissional médico.
A supervisão e controle dos médicos em relação aos paramédicos não passa
despercebida para a sociedade, que atribui menor prestígio a eles que aos
profissionais de Medicina, na medida em que identifica neles a falta de
autonomia e o aspecto subalterno aos médicos. Desse modo, os médicos
reforçam a ideia de que possuem maior quantidade e qualidade de
conhecimento científico.
A hierarquia se estende aos próprios paramédicos e suas múltiplas divisões,
enfermeiras graduadas, auxiliares de enfermagem, técnicos em enfermagem,
entre outros, criando um rígido sistema que passa pelo grau de formação
educacional, mas que, mesmo em casos em que seja obrigatória a formação
12
Obra citada, p. 68.
27
universitária como Enfermagem e Fisioterapia, há subordinação ao médico,
que é o único autorizado a determinar o ato que será praticado no paciente.
Na busca da construção de identidade, autonomia e prevalência como prática
profissional, os médicos se adequaram perfeitamente ao sistema de produção
capitalista que marca de forma expressiva a produção econômica mundial a
partir da Segunda Guerra e, de forma hegemônica, a partir da década de 90
com o fim do socialismo nos países europeus.
WRIGHT, citado por MARCOS
DE
SOUZA QUEIROZ13, afirma que, estudando a
Medicina na Inglaterra no século XVII, é possível concluir que ela não se tornou
hegemônica pelo fato de seu conhecimento ser mais válido ou sua eficácia
terapêutica maior. Para W RIGHT, a única explicação para o sucesso histórico
dessa forma de Medicina se encontra na compatibilidade cultural com o novo
modo de produção capitalista.
Além disso, o poder de determinar, coordenar e fiscalizar as ações em prol da
detecção dos problemas de saúde e de sua cura avançou com o acesso a
novas tecnologias disponíveis no século XX e no século XXI, consolidando a
posição de que somente os médicos podem dizer o que é a doença, o que é
saúde e o que é necessário para curar – e ninguém mais. E, ainda, que esse
trabalho deverá ocorrer de forma sincronizada com o mercado que se
desenvolveu no âmbito da saúde e da Medicina.
O século XX e o século XXI estão marcados pelo avanço científico e
tecnológico e pela necessidade de enfrentamento das consequências desse
avanço.
Em um primeiro momento histórico (que, segundo ULRICH BECK14, seria até a
metade do século XX), a ciência foi considerada como verdade inabalável, área
de saber especializado em que somente podiam transitar aqueles que
detivessem conhecimento suficiente e comprovado para isso. Porém, a partir
da segunda metade do século XX a visibilidade da ciência se modifica. BECK
destaca que a ciência não é mais recebida unicamente como fonte de
WRIGHT, P.W.G. Study in the legitimation of knwoledge: the “sucess” of medicine and the
“failure” of astrology. Social. Rev. Monog. 27:85-99, 1979. In: QUEIROZ, Marcos de Souza.
“O Paradigma Mecanicista da Medicina Ocidental Moderna: uma Perspectiva Antropológica”.
Revista de Saúde Pública, v. 20, n. 4, São Paulo, agosto de 1986, p. 6.
14
BECK. Ulrich. Sociedade de Risco. S.Paulo: 34, 2010, p. 236.
13
28
soluções, mas também como fonte de problemas. Os cientistas foram
confrontados com seus êxitos e também com seus fracassos e os riscos deles
decorrentes.
A consequência dessa prática crítica de uma ciência que se autoquestiona é a
produção de mais ciência, compreendida agora como espaço que também é
capaz de produzir mitos e tabus que devem ser sistematicamente superados.
Em outras palavras, para vencer o tabu de inalterabilidade do conhecimento
científico é preciso questionar, checar e modificar o conhecimento de forma
ininterrupta. Explica BECK que prevalece a máxima de que o que por homem foi
feito pode também ser por homem alterado.15
Tal pressuposto provoca uma desmistificação da ciência e, ao mesmo tempo, a
busca incessante por novos estudos e comprovações que possam permitir que
o conhecimento se altere e avance sempre para permitir o afastamento da
descoberta que não se sustenta diante dos métodos científicos cada vez mais
rigorosos. O temor da ciência é produzir o inquestionável e vê-lo ser superado
por outra pesquisa.
Essa busca insistente por novos conhecimentos não ocorre, no entanto, em
condições de neutralidade ou sem pressões do poder econômico e social.
ANDRÉ MARTINS,16 em estudo sobre biopolítica, ressalta que a Medicina
contemporânea se orgulha de ser “científica”, mas é necessário debater e
estudar o sentido e a extensão da expressão científica. Segundo o autor, a
ciência pretende ser um conhecimento com capacidade de universalização e,
para isso, é necessário que o conhecimento produzido no estudo de um caso
possa ser extensível a vários outros. Nessa medida, a ciência reduz a
complexidade do objeto estudado e enseja a solução de outros casos análogos
àquele que foi estudado e que permitiu a construção do conhecimento
Mas, questiona o autor17:
[...] uma pesquisa feita com financiamento de indústrias sobre o que elas próprias
produzem, é isenta? Pesquisas sobre uma suposta não nocividade do asbesto
Obra citada, p. 238.
MARTINS, André. “Biopolítica: O poder médico e a autonomia do paciente em uma nova
concepção de saúde”. In: Interface – Comunicação, Saúde e Educação, v.8, n.14, p. 21-32,
setembro 2003- fevereiro 2004, p. 21-32.
17
Obra citada, p. 23.
15
16
29
para trabalhadores, financiada por uma indústria de amianto, serão científicas?
(Bittar, 2000) Uma indústria farmacológica que faz pesquisas que mostrem os
supostos benefícios de suas drogas sem contextualizar as demais questões
envolvidas em seu uso, estas serão científicas? O problema é que a resposta aqui
é: sim, pode ser científica.
Se os critérios utilizados pela pesquisa forem formais, reconhecidos como
técnicos pela comunidade científica, ou seja, se houver sido adotado o método
científico, a pesquisa será reconhecida como tal, embora nem sempre seus
resultados sejam verdadeiros. ANDRÉ MARTINS defende que a cientificidade não
é índice de veracidade.
Mas por adotar métodos rigorosos que podem ser reproduzidos a qualquer
tempo e em qualquer lugar, a ciência contemporânea adquire características
que o mencionado autor denomina de oráculo que revelaria a verdade do
objeto estudado.18
E afirma:
Quando a Medicina se arvora em se considerar ‘científica’, em primeiro lugar
incorre num erro: ela não é científica, mas sim utiliza a Ciência. Em segundo lugar,
em geral considera que está do lado da ‘verdade’, que é uma Medicina verdadeira,
que seus dados são verdadeiros ou dizem a verdade, que suas reduções são a
verdade (a essência verdadeira) do objeto em questão. Em terceiro lugar,
justamente por estes dois pontos anteriores, por julgar-se científica e entender que
é verdadeira por isso, em geral a Medicina tende a esquecer que seu ‘objeto’ é um
paciente real, concreto, que ultrapassa em complexidade os esquemas orgânicos,
fisiopatológicos, fisioquímicos, que sua ‘ciência’ pode abarcar. A Ciência pode ser
tida como ‘exata’, mas o ser humano não o é nem nunca o será.
E encerra sua reflexão afirmando que a Medicina tem também uma dimensão
terapêutica e que, ao pretender tratar o paciente apenas com o viés científico,
limita a compreensão do processo de saúde e doença. Além disso, ter
conhecimentos sobre a ciência e sua aplicação aos diferentes estados
mórbidos associa a figura do médico àquele que é o detentor da verdade, que
tem poder absoluto para dizer o que pode e o que não pode ser feito em um
determinado caso concreto, o dono do corpo e da mente do paciente que, pelo
18
Obra citada, p. 24
30
simples fato de estar doente, deve se submeter integralmente aos comandos
do médico por não ter condições de avaliar sua situação de forma científica e,
supostamente, verdadeira.
MARCOS DE SOUZA QUEIROZ19 afirma que a Medicina, ao enfatizar sua dimensão
terapêutica no processo fisiológico humano, passou a tratar as doenças por
meio de uma estrutura celular e não mais patológica, e transformou o paciente
em um objeto a ser manipulado, e não em um caso clínico a ser conhecido e
tratado.
Enquanto se degradam progressivamente as condições de qualidade de vida
nas grandes concentrações urbanas, com aumento do desgaste psicológico, da
poluição do ar, menor espaço físico para as moradias, redução substancial do
tempo e do significado do lazer, mudança profunda das estruturas familiares,
aumento dos problemas emocionais derivados da frustração, da ansiedade e
da perda de ideologias motivadoras, a Medicina contemporânea concentra sua
conduta terapêutica no resultado de exames e no estudo de casos
paradigmáticos, priorizando a análise do aspecto científico em detrimento de
qualquer outro.
QUEIROZ conclui:
A Medicina ocidental moderna desenvolveu-se mudando uma cosmologia voltada
para a pessoa humana para uma cosmologia voltada para o objeto. Tem havido
ganhos e perdas nesse processo. Por um lado, houve aperfeiçoamento de
técnicas terapêuticas e o desenvolvimento de um corpo consistente de
conhecimentos com a concomitante redução da controvérsia sobre a natureza da
doença e de seu tratamento; por outro lado, a medicina perdeu sua visão
unificadora do paciente em particular e da vida em geral como agentes que
resultam, na saúde e na doença, em fatores ambientais, sociais e econômicos,
além dos fatos biológicos. A Medicina ocidental moderna necessita recuperar, na
sua prática, essa dimensão, porque ela é teoricamente mais rica, equilibrada e
próxima das causas reais que envolvem a saúde e a doença em seres humanos.
Para isso ela necessita reordenar o enorme conjunto de conhecimentos e
tecnologias até hoje acumulados, como solução para a sua crise e em alternativa
ao seu paradigma mecanicista dominante.
QUEIROZ. Marcelo de Sousa. “O paradigma mecanicista da medicina ocidental moderna:
uma perspectiva antropológica”. Revista de Saúde Pública, v. 20, n. 04, São Paulo, agosto de
1986, p. 6.
19
31
Com o aumento dos processos tecnológicos aplicáveis à Medicina, em especial
na área de exames de imagem e com o avanço das pesquisas na área de
fármacos, a dimensão terapêutica desta ciência avança no sentido de priorizar
dados científicos que comprovem o estado de morbidez.
O doente contemporâneo é definido pelo resultado dos exames: as consultas
médicas são um ritual de pedidos de exames e análise de resultados sem
disponibilidade de tempo para o diálogo, seja no âmbito do serviço público ou
do serviço privado.
No âmbito público não há tempo para o diálogo porque o serviço não dispõe de
número suficiente de médicos para o atendimento, o que quase sempre
provoca a concentração de grande quantidade de pacientes para serem
atendidos por um único médico, que se vê obrigado a dedicar pouco tempo a
cada consulta para poder atender uma quantidade significativa de pacientes.
No setor privado as consultas são rápidas porque os valores pagos por
consulta quase sempre são inferiores àqueles considerados ideais pelos
médicos, sendo obrigados a atender um número grande de pacientes por dia
para poderem receber uma remuneração razoável para suas pretensões e
necessidades.
Em ambos os casos, a redução do tempo de diálogo da consulta parece ser
compensada pela aparente certeza proporcionada pelos resultados dos
exames, até porque independem do estado emocional do paciente, de sua
lucidez, da capacidade de descrição dos sintomas. Um exame, em tese, é
neutro, é científico e nessa medida, parece ser sempre verdadeiro. Por
conseguinte, o conceito contemporâneo de saúde é limitado (por grande parte
do corpo médico) aos resultados dos exames mais corriqueiramente
realizados, em especial os exames laboratoriais e de imagem.
O Projeto de Lei 7703, de 2006, aprovado na Câmara Federal e em tramitação
no Senado da República, pretende normatizar o exercício da profissão médica
da seguinte forma:
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º O exercício da medicina é regido pelas disposições desta Lei.
32
Art. 2º O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das
coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo,
com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer
natureza.
Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da
atenção à saúde para:
I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde;
II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças;
III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências.
Art. 3º O médico integrante da equipe de saúde que assiste o indivíduo ou a
coletividade atuará em mútua colaboração com os demais profissionais de saúde
que a compõem.
Art. 4º São atividades privativas do médico:
I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica; [...]
A exemplo do que já ocorre na atualidade, a legislação, quando aprovada,
determinará que somente o médico poderá estabelecer com certeza o que é
saúde e o que é doença, bem como qual o tratamento indicado. Essa
autonomia deverá ser exercida em mútua colaboração com os demais
membros da equipe de saúde que assiste o paciente, o que, na vida prática,
nem sempre ocorre de forma efetiva. A observação dos casos práticos no
cotidiano permite concluir que a opinião do médico assistente do paciente
sempre prevalece, por vezes até em relação à opinião contrária de outros
médicos ou de outros membros da equipe.
A decisão do médico é tratada como soberana e, não raro, se impõe até contra
os administradores de planos de saúde privada ou gestores do serviço público.
O imaginário social construído ao longo de muitos anos associa o médico com
o único profissional competente para dizer o que é certo e o que é errado em
saúde. Essa proeminência da opinião do médico assistente é reforçada no
Código de Ética Médica, Resolução 1931, de 2009, que no Capítulo I trata dos
Princípios Fundamentais e determina:
VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a
prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não
33
deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de
urgência ou emergência, quando sua recusa possa trazer danos à saúde do
paciente.
VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto,
renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou
imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. [...]
XVI – Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição,
pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente
reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da
execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.
XVII – As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se no
respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o
interesse e o bem-estar do paciente.
A autonomia como pressuposto essencial da prática da atividade médica é
importante para garantia do melhor tratamento para o paciente, porque permite
ao profissional enfrentar todo tipo de pressão, seja pela redução de custos no
tratamento, seja pela não realização do mesmo.
Mas essa é uma face do problema, a outra é que a autonomia pode ser
utilizada
para
impor
tratamentos
cujos
resultados
ainda
não
estão
satisfatoriamente comprovados, medicamentos de alto custo em lugar de
outros mais baratos, inserção de novas tecnologias sem a necessária avaliação
da relação custo-benefício, e, por vezes, a adoção de procedimentos provindos
de pressão da indústria de produção de aparelhos, próteses, órteses ou de
medicamentos.
NELSON TEICH 20 afirma
A percepção pela maioria das pessoas que o aumento dos cuidados em saúde
está diretamente e proporcionalmente relacionado com os ganhos em saúde, faz
com que exista uma enorme demanda por cuidados em saúde. Essa relação
infelizmente não é real, e existem inúmeros outros fatores que podem estar
relacionados com o nível de saúde de uma pessoa ou de uma população, como
TEICH, Nelson. “Economia da Saúde como Instrumento Decisório em Auditoria”. In:
GONÇALVES, Viviane Fialho. Fronteiras da Auditoria em Saúde – Volume I. S.Paulo: Farol do
Forte, 2009, p. 33-41.
20
34
educação, hábitos de vida, fatores genéticos, fatores ambientais, saneamento e
nível de remuneração. [...]
A estrutura da saúde, seja pública ou privada, é baseada em um modelo onde
aquele que paga pelos serviços não é aquele que recebe o benefício, e os que
decidem sobre o uso dos recursos em saúde, prestador e usuário, não sofrem
perdas financeiras com o uso indevido dos recursos.
O avanço do conhecimento científico permitiu o surgimento de aparelhos para
realização de exames de imagem que eram inimagináveis há pouco mais de
cinquenta anos atrás. Tomógrafos, ultrassons, aparelhos de ressonância
magnética e inúmeros outros abriram caminho para o surgimento de tecnologia
avançada na área de exames, contribuindo certamente para a precisão dos
diagnósticos e, ao mesmo tempo, aumentando os custos dos tratamentos de
saúde em todo o mundo.
A incorporação de novas tecnologias nessa área é peculiar porque ocorre de
forma cumulativa com tecnologias já consagradas pelo uso. Assim, uma lesão
em membro superior ou inferior poderá ser detectada com o uso da radiografia
já conhecida há muitos anos, mas cumulada com a realização de ressonância
magnética, que é uma tecnologia bem mais recente. O médico poderá exigir a
realização de ambos os exames para concluir seu diagnóstico e, em princípio,
não poderá ser questionado por isso, embora o custo seja maior.
Em uma sociedade como a contemporânea, que se caracteriza pelo elevado
apelo ao consumo e, consequentemente, pelo extremado gosto por novidades
tecnológicas, a área da saúde não escapou ao apelo comercial: consumir
novas tecnologias, tratamentos e medicamentos é também símbolo de
destaque social, porque essas novas propostas nem sempre são acessíveis a
todos os estratos sociais. Nem todos podem pagar por novidades tecnológicas
em qualquer área e, na saúde, isso não é diferente.
O apelo mercadológico permite que algumas tecnologias sejam divulgadas
para além do ambiente médico, dos congressos, consultórios e seminários
científicos. As novas tecnologias para exames e tratamentos são divulgadas na
mídia e anúncios publicitários em jornais e revistas de grande circulação,
exercendo um indiscutível fascínio sobre a parcela da população que pode ter
acesso a realização de novos exames ou ao uso de novos tratamentos. É o
35
que acontece, por exemplo, com o uso de ultrassonografia durante a gravidez.
As gestantes são incentivadas pela publicidade a realizar exames com imagens
em terceira ou quarta dimensão, cujas fotos são transferidas depois para os
aparelhos celulares dos pais, ou como descanso de tela de computadores.
Na atualidade existem estudos científicos que discutem a efetiva necessidade
de realização de vários exames de ultrassom ao longo do período de gestação.
Vejamos, por exemplo, o que diz a Organização Mundial da Saúde21:
A Organização Mundial da Saúde salienta que as tecnologias ligadas à saúde
deveriam ser avaliadas com profundidade antes de terem seu uso extensamente
difundido. O exame por ultrassom durante a gravidez tem atualmente seu uso
difundido sem avaliação suficiente. A pesquisa demonstrou sua eficácia para
determinadas complicações da gravidez, mas o material publicado não justifica o
uso rotineiro do ultrassom em mulheres grávidas. Há também informação
insuficiente no que diz respeito à segurança do uso do ultrassom durante a
gravidez. Ainda não há também qualquer avaliação detalhada, multidisciplinar do
uso do ultrassom durante a gravidez, incluindo: eficácia clínica, efeitos
psicológicos, considerações éticas, implicações legais, relação custo- benefício e
segurança.
A OMS endossa fortemente o princípio de escolha consciente no que diz respeito
ao uso da tecnologia. Os agentes de saúde têm a responsabilidade moral: de
informar inteiramente o público sobre o que é sabido e não sabido sobre os
exames de ultrassom durante a gravidez; e de informar inteiramente cada mulher
antes de um exame de ultrassom e na indicação clínica do ultrassom, sobre os
benefícios esperados, os riscos potenciais e as alternativas disponíveis, se
houver.
Apesar dessa recomendação, são conhecidos e divulgados na mídia casos de
celebridades que adquirem seus próprios aparelhos de ultrassonografia para
utilizar em casa durante a gestação, para poder acompanhar com frequência o
desenvolvimento do bebê.
Essa aproximação entre novas tecnologias na área da saúde e produtos e
serviços de consumo se estende a hospitais, medicamentos, órteses e
próteses, entre outros recursos de saúde. Alguns hospitais são referenciados
WAGNER. Marsden. Ultrassom: mais prejudicial que benéfico? Disponível
http://www.amigasdoparto.com.br/ac016.html. Acesso em 21 de agosto de 2011.
21
em:
36
como excelentes pela população em razão da hotelaria que fornecem, ou pelo
fato de serem utilizados por pessoas de renome, como artistas e políticos.
Os medicamentos são referenciados como “de última geração”, atraindo a
preferência porque teoricamente são o que existe de mais novo, mais moderno;
e, por estarem associados ao novo e ao moderno, constituem um referencial
importante numa sociedade como a nossa, que constrói sua identidade
também pelos hábitos de consumo que possui.
Assim, a incorporação de novas tecnologias na área da saúde não está
relacionada apenas com eficiência e melhores resultados para o paciente, mas
também com os apelos comerciais a que todos se encontram expostos e
sensíveis, tanto os médicos como os próprios pacientes e, muitas vezes, seus
familiares.
Nesse ambiente é que o Direito tem sido chamado a determinar quem pode e
quem não pode ter acesso a essas novas tecnologias, ao decidir pedidos de
tutela antecipada ou de liminares para que o paciente possa ser tratado com
uma tecnologia ou um medicamento ainda não disponível para todos, porém
recomendado pelo médico que o assiste e considerado imprescindível para o
êxito do tratamento.
CECÍLIA MARIA GUIMARÃES FIGUEIRA22 assinala
A incorporação de inovações tecnológicas na área de saúde é inevitável e
apresenta características importantes:
- é cumulativa – significa que a nova tecnologia se soma, e não substitui a já
existente.
- é assimilada com grande rapidez – decorrente dos intensos meios de divulgação
da indústria responsável pela mesma.
- é incorporada sem avaliação rigorosa – decorrente da pressão da indústria sobre
os organismos responsáveis pelos estudos de demanda, efeitos colaterais, custoefetividade, custo-benefício.
- a demanda é induzida pela oferta – é incorporada onde a nova tecnologia está
presente.
22
FIGUEIRA, Cecília Maria Guimarães. “Incorporação de Tecnologias em Saúde”. In:
GONÇALVES, Viviane Fialho. Fronteiras da Auditoria em Saúde – Volume I. S.Paulo: Farol do
Forte, 2009, p. 65-66.
37
- dificuldade de informação objetiva e estruturada sobre a mesma – a pressão
intensa pela liberação da inovação tecnológica impede a análise mais detalhada
da mesma.
Outra característica importante que pode ser acrescida a essas é o fato de que
as inovações tecnológicas quase sempre são de alto custo, o que impacta os
orçamentos da saúde pública e privada. É nessa medida que a opinião médica
adquire na atualidade outra dimensão quase desconhecida durante a trajetória
histórica da prática médica: são as decisões médicas que irão determinar os
custos dos tratamentos de saúde. É a indicação médica para o uso de um
determinado medicamento ou para a realização de um exame específico de
imagem que irá decretar a viabilidade econômica do serviço de saúde público
ou privado.
Quando o médico, apoiado em seu conhecimento, experiência clínica e
autoridade da qual a profissão é revestida socialmente, determina que somente
um determinado produto medicamentoso deva ser utilizado por um paciente ou
que somente a utilização de uma prótese específica poderá ser benéfica para
outro paciente, ou, ainda, que somente um determinado equipamento fabricado
por um produtor claramente identificado poderá ser utilizado no transplante do
paciente, ele transfere sua credibilidade historicamente construída para o
produto ou o equipamento indicado, o qual se torna, a partir de então, o único a
merecer confiança do paciente, de seus familiares e por extensão, da
sociedade.
As decisões médicas têm por objetivo garantir o melhor tratamento para a
saúde do paciente, mas na atualidade é inegável que há repercussão
econômica dessas decisões, e isso tem motivado a própria ciência médica a
expandir suas áreas de pesquisa e estudo, incorporando conhecimentos da
economia para garantia da viabilidade da saúde pública e privada.
O Ministério da Saúde dispõe de um Departamento de Economia e
Desenvolvimento (DESD) que tem como função uma área governamental
responsável por subsidiar o Ministério da Saúde no tocante a aspectos
econômicos dos programas e projetos formulados no seu âmbito de atribuição
e na formulação de políticas, diretrizes e metas para as áreas e temas
38
estratégicos. O DESD também tem como atribuições institucionalizar e
fortalecer a economia da saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS),
bem como acompanhar e consolidar os dados de gastos em ações e serviços
públicos em saúde, das três esferas de governo, monitorando o financiamento
do SUS, entre outras pertinências. 23
O Departamento de Economia da Saúde e Desenvolvimento conta com o
Núcleo Nacional de Economia da Saúde (NUNES)24, que tem como um de
seus objetivos realizar avaliações econômicas de tecnologias de saúde.
Disponível em:
http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/area.cfm?id_area=1001. Acesso em 21
de agosto de 2011.
Decreto nº 6.860 de 27 de maio de 2009, que aprovou a nova estrutura regimental do
Ministério da Saúde, reconstituiu a Economia da Saúde como Departamento de Economia da
Saúde e Desenvolvimento - DESD, vinculado à Secretaria Executiva.
São atribuições do DESD:
I - institucionalizar e fortalecer a economia da saúde no âmbito do SUS;
II - subsidiar o Ministério da Saúde na formulação de políticas, diretrizes e metas
para as áreas e temas estratégicos, necessários à implementação da Política Nacional
de Saúde, no âmbito de suas atribuições;
III - analisar a viabilidade de investimentos públicos no setor de saúde;
IV - subsidiar as decisões do Ministério da Saúde no tocante a aspectos econômicos
dos programas e projetos formulados no seu âmbito de atribuição;
V - analisar e propor políticas para redução de custos na área de saúde, bem como
para ampliar o acesso da população ao SUS;
VI - coordenar e realizar pesquisas sobre componentes econômicos do SUS;
VII - coordenar e consolidar o Banco de Preços em Saúde - BPS e da unidade
catalogadora do Catalogo de Materiais - CATMAT do Ministério da Saúde visando
subsidiar à aquisição de insumos estratégicos para a saúde;
VIII - coordenar a formulação do Plano de Investimentos em Saúde do Ministério da
Saúde e a avaliação dos resultados de suas ações;
IX - analisar e avaliar os gastos do Ministério da Saúde e propor ações de
otimização; e
X - acompanhar e consolidar os dados de gastos em ações e serviços públicos em
saúde, das três esferas de governo, e monitorar o financiamento do SUS.
23
24
Atividades do Núcleo Nacional de Economia da Saúde (NUNES)
1. Avaliação da estrutura de financiamento do SUS, com o propósito de encontrar
alternativas para superar os limites das finanças da União, estados, Distrito Federal e
municípios;
2. Avaliação da necessidade de financiamento para novos programas e projetos, a
fim de mensurar as necessidades de recurso para o alcance de resultados prédeterminados;
3. Análise da alocação de recursos no SUS frente ao modelo vigente de atenção à
saúde;
4. Realização de estudos e de propostas de critérios e instrumentos para orientar a
tomada de decisão e a alocação de recursos do SUS;
5. Avaliação das necessidades de investimento nas regionais de saúde (estabelecidas
nos Planos Diretores de Regionalização – PDR), a partir da análise da disponibilidade
de recursos para a oferta de ações e serviços de saúde;
39
Em 2008 o Ministério da Saúde publicou o fascículo Avaliação Econômica em
Saúde25, que introduziu uma reflexão a respeito da importância dos estudos de
6. Análise da composição dos gastos no SUS, tanto do ponto de vista orçamentário
quanto da estrutura de organização da atenção à saúde;
7. Análise das condições de oferta, acesso e qualidade dos serviços de saúde;
8. Análise do impacto de desonerações fiscais para o setor saúde;
9. Realização de estudos sobre a regulação econômica do setor saúde;
10. Capacitação de gestores e profissionais de saúde para o uso de ferramentas e
sistemas de gerenciamento de custos em instituições de saúde;
11. Proposição de ferramentas para a gestão de custos em instituições de saúde;
12. Mensuração da eficiência técnica de secretarias de saúde, instituições, programas
e projetos;
13. Mensuração e avaliação de custos de produção de medicamentos fitoterápicos;
14. Mensuração dos custos de doenças crônicas, especialmente as crônicas nãotransmissíveis;
15. Realização de avaliações econômicas de tecnologias em saúde;
16. Mensuração dos custos de procedimentos em saúde para subsidiar decisões
sobre reajustes das tabelas de procedimentos do SUS;
17. Avaliação do impacto orçamentário de reajustes das tabelas de procedimentos do
SUS;
18. Realização de estudos sobre as experiências de sistemas de saúde que se
assemelham ao SUS para orientar reestruturações administrativas, no sentido da
consolidação do atendimento universal e integral;
19. Mensuração do impacto das políticas de saneamento, educação, habitação,
segurança pública e do trânsito na saúde;
20. Avaliação do impacto econômico de políticas de prevenção versus tratamento e
recuperação da saúde, inclusive na perspectiva da melhora do ganho de bem estar
social;
21. Capacitação de gestores e profissionais da saúde para o uso de ferramentas da
economia de saúde na gestão do SUS;
22. Divulgação de estudos e o tema economia da saúde para subsidiar a tomada de
decisão na formulação e implementação das políticas de saúde;
23. Assessoria à direção do departamento nos temas relacionados à economia da
saúde.
http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/visualizar_texto.cfm?idtxt=2791
0 acesso em 21 de agosto de 2011.
Inserido neste cenário, o contexto sócio-sanitário brasileiro apresenta inúmeros desafios à
configuração de políticas e prestação de serviços de saúde pública. Esses envolvem a
necessidade de expansão da oferta e da cobertura de serviços, incorporação de novas
tecnologias e adoção de mecanismos de monitoramento e avaliação da qualidade da
assistência.
Em termos assistenciais, importantes avanços foram feitos nas últimas décadas na
prevenção, no diagnóstico, na avaliação e no manejo de diversas condições de saúde. O que
parecia impossível há alguns anos, atualmente é realidade científica, p. e., indivíduos com
aids em 1991 tinham uma expectativa média de cinco meses de vida, e em 2004 estes
valores chegam a 58 meses (GOTLIEB; CASTILHO; BUCHALLA, 2002). Felizmente, isto é
possível devido a uma combinação de fatores que incluem inúmeras descobertas nas áreas
de pesquisa básica, experimental, clínica e de saúde pública, culminando na detecção
precoce dos indivíduos doentes, desenvolvimento e uso de medicamentos que
comprovadamente retardam o avanço da doença e reduzem a carga de morbidade. Para esta
condição, atualmente são necessárias combinações de fármacos de uso regular, vários
25
40
economia para a saúde, sobretudo em razão da necessidade de otimização
dos recursos finitos e da racionalização da utilização para obtenção dos
melhores resultados para toda a população. Nesse estudo foram apresentadas
experiências de outros países do mundo que também adotaram estudos
econômicos prévios para determinar a inserção de um novo medicamento na
lista de produtos distribuídos gratuitamente à população. A Austrália foi um dos
países a implantar esse sistema e, embora muito criticado por atrasar a
implantação de novas possibilidades de tratamento medicamentoso, os
estudos demonstraram que, em longo prazo, o resultado foi positivo porque
houve decréscimo ou estabilização dos preços dos medicamentos adquiridos
pelo governo para serem distribuídos gratuitamente para a população.
Canadá e Estados Unidos também tem experiências em economia da saúde
que são relatados nesse estudo do Ministério da Saúde do Brasil.
O IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas também realiza
estudos na área de economia da saúde.
No âmbito privado existem instituições internacionais dedicadas a estudos
sobre
economia
da
saúde
como
a
Sociedade
Internacional
de
medicamentos preventivos, além do acompanhamento médico e de equipes
multidisciplinares. Apesar da cura não ter sido alcançada, novas terapias têm sido
constantemente testadas neste cenário. Para profissionais de saúde surge a questão
rotineira: o novo medicamento deve ou não ser disponibilizado? Qual o benefício real, quanto
custa, há recursos para sua implementação, existem alternativas e como se comparam? As
respostas a estas questões têm sido foco de programas mundiais envolvendo a prestação de
serviço em saúde ao redor do mundo. O novo paradigma da prática sanitária cada vez mais
preconiza a adoção de conceitos de Medicina Baseada em Evidência para a tomada de
decisão. Embora o processo decisório seja complexo e inúmeros fatores técnicos, políticos,
sociais, culturais e éticos estejam envolvidos, é unânime e crescente o emprego de
evidências clínicoepidemiológicas para auxiliar no processo de decisão. Estabelecer se uma
nova terapia é eficaz e efetiva depende da existência de comprovação adequada conduzida
sob determinados padrões metodológicos. Entretanto, estabelecer a efetividade é apenas um
dos componentes do processo decisório sobre ações no sistema de atenção à saúde. É de
conhecimento que os recursos financeiros no setor são findáveis; a alocação de verbas no
setor Saúde em termos relativos não teve incrementos significativos nos últimos anos,
embora as necessidades e demandas cresçam exponencialmente. Deste modo, na maioria
das vezes, o emprego de recursos em uma nova tecnologia significa restrição de recursos de
outra área. À medida que a responsabilidade e demanda pelo sistema de saúde público têm
aumentado e os recursos se tornado cada vez mais escassos, o sistema de saúde, assim
como a prática da Medicina, têm sido forçados a reexaminar os benefícios e custos de suas
ações para assegurar que haja uma implementação efetiva das intervenções e alocação
eficiente de recursos. As análises econômicas são ferramentas básicas para atender a esse
objetivo. Esse fascículo parte de uma série editada pelo Ministério da Saúde, é dedicado a
este aspecto do processo de decisão.
41
Farmacoeconomia e Pesquisa de Desfechos (ISPOR), que tem uma unidade
no Brasil.
Também existe a Associação Brasileira de Economia da Saúde, fundada em
1989, com o objetivo de congregar técnicos, docentes e outros profissionais
com interesse na área da economia da saúde e, nesse campo, contribuir para o
desenvolvimento,
conhecimentos.
a
difusão
Promove
e
a
encontros
aplicação
de
técnicas,
métodos
e
científicos, financia programas de
capacitação e projetos de pesquisa e de cooperação com instituições
internacionais que se dedicam aos mesmos objetivos.
Cursos de pós-graduação, especialização e publicações específicas sobre o
assunto, jornais e livros principalmente, surgiram em grande número nos
últimos anos, evidenciando que o tema ganha destaque na área dos estudos e
pesquisas de saúde.
NELSON TEICH26 esclarece:
[...] economia é uma ciência que estuda as escolhas sobre alocação de recursos
escassos. Ela pode nos ajudar a entender como e porque os recursos são
alocados nas diferentes atividades, quais os racionais que levaram a tais
alocações e como elas deveriam ter sido feitas de forma a maximizar os
benefícios para as pessoas e para a sociedade com os recursos disponíveis.[...]
Talvez a maior contribuição da economia da saúde para os sistemas de saúde e
principalmente para as pessoas, seja trazer a discussão dos cuidados em saúde
para uma esfera mais técnica. Não se trata de tentar dar valor à vida, mas sim de
entender através de números e métricas o real benefício para as pessoas do que
é oferecido a elas pelo sistema de saúde.
Entender a importância da educação, dos níveis de remuneração, dos fatores
ambientais e genéticos no nível da saúde das pessoas e da sociedade é
fundamental. Com esse tipo de informação vamos poder definir onde e como
alocar recursos, que sempre serão escassos quando comparados aos que
gostaríamos de ter para investir simultaneamente em diferentes áreas da
sociedade.
O assunto é polêmico e provoca incontáveis reações entre os envolvidos:
médicos, gestores públicos e privados, pacientes, indústria de fármacos e de
26
Obra citada, p. 35-57
42
produtos de saúde, operadoras de saúde suplementar, políticos que se
dedicam ao tema da saúde, Judiciário, advogados, entre tantos outros.
Para alguns, saúde e economia são áreas do conhecimento que não podem
caminhar juntas porque não se restringem esforços para salvar uma vida. Para
outros, saúde e economia já caminham juntas porque os médicos e gestores
estão sensíveis aos avanços tecnológicos e aos apelos incessantes do
mercado de produtos farmacêuticos e de produtos para a área médica. Para
muitos, por fim, é urgente repensar os conceitos que nos trouxeram até esta
fase da história da humanidade, e introduzir novas perspectivas de reflexão
sobre alocação de recursos na saúde.
O que se pode constatar é que o conceito de saúde na atualidade não é
construído pelos médicos apenas a partir de dados clínicos e resultantes do
estudo e da experiência do médico: há uma pressão externa de mercado
presente de forma permanente, tanto na saúde pública como na saúde privada,
e que, por vezes, remete o paciente para o Judiciário, amparado em uma
prescrição de tratamento prescrita por seu médico, para tentar obter por
sentença ou por decisão liminar os meios necessários e não providos nos
âmbitos público ou privado.
Por vezes os recursos buscados no Judiciário são para tratamentos ainda em
fase experimental ou para medicamentos ainda não autorizados pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Outras vezes são para obtenção de
recursos para tratamentos no exterior, ou continuidade de tratamento
quimioterápico para pacientes em estágio avançado da doença e para os quais
não há perspectiva de cura. Existem ainda os pedidos para obtenção de
próteses ou órteses de determinado fabricante estrangeiro, supostamente mais
eficientes do que as de fabricação nacional.
Esses casos em que é possível uma discussão sobre a pertinência do pedido
ocorrem concomitantemente a outros em que a solicitação é flagrantemente
justa, como acontece nos pedidos de fornecimento de medicamentos de uso
continuado para pacientes crônicos de hipertensão arterial ou diabetes, por
exemplo.
43
Todos esses casos colocados perante o Poder Judiciário atestam de forma
clara que o debate sobre saúde adquiriu novos participantes, não se
restringindo mais apenas aos médicos. O ponto central é propiciar ao Judiciário
que participe desse debate em igualdade de condições ou, pelo menos, em
condições de melhor compreensão do conceito de saúde, do ato médico, das
prescrições e tratamentos e da incorporação de novas tecnologias e
medicamentos.
O Conselho Nacional de Justiça ingressou no debate a partir da Resolução n.
10727, que instituiu o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento das
demandas de assistência à saúde.
27
Resolução nº 107, de 06 de abril de 2010.
Institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de
assistência à saúde. (Publicada no DJ-e nº 61/2010, em 07/04/2010, p. 6-9).
RESOLUÇÃO Nº 107, DE 6 ABRIL DE 2010
Institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de
assistência à saúde
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições
constitucionais e regimentais, e,
CONSIDERANDO o elevado número e a ampla diversidade dos litígios referentes ao direito à
saúde, bem como o forte impacto dos dispêndios decorrentes sobre os orçamentos públicos;
CONSIDERANDO os resultados coletados na audiência pública nº 04, realizada pelo Supremo
Tribunal Federal para debater as questões relativas às demandas judiciais que objetivam
prestações de saúde;
CONSIDERANDO o que dispõe a Recomendação nº 31 do Conselho Nacional de Justiça, de 30
de março de 2010;
CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça na 102ª Sessão
Ordinária, realizada em 6 de abril de 2010, nos autos do ATO 0002243-92.2010.2.00.0000;
RESOLVE:
Art. 1º Fica instituído, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o Fórum Nacional para o
monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde, com a atribuição de
elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas para o aperfeiçoamento de
procedimentos, o reforço à efetividade dos processos judiciais e à prevenção de novos
conflitos.
Art. 2º Caberá ao Fórum Nacional:
I - o monitoramento das ações judiciais que envolvam prestações de assistência à saúde,
como o fornecimento de medicamentos, produtos ou insumos em geral, tratamentos e
disponibilização
de
leitos
hospitalares;
II - o monitoramento das ações judiciais relativas ao Sistema Único de Saúde;
III - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à otimização de rotinas
processuais, à organização e estruturação de unidades judiciárias especializadas;
IV - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à prevenção de conflitos
judiciais
e
à
definição
de
estratégias
nas
questões
de
direito
sanitário;
V - o estudo e a proposição de outras medidas consideradas pertinentes ao cumprimento do
objetivo do Fórum Nacional.
Art. 3º No âmbito do Fórum Nacional serão instituídos comitês executivos, sob a
coordenação de magistrados indicados pela Presidência e/ou pela Corregedoria Nacional de
Justiça, para coordenar e executar as ações de natureza específica, que forem consideradas
relevantes, a partir dos objetivos do artigo anterior.
Parágrafo único. Os relatórios de atividades do Fórum deverão ser apresentados ao Plenário
do CNJ semestralmente.
44
Em 30 de março de 2010 a Resolução 3128 recomendou aos Tribunais a
adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais
Art. 4º O Fórum Nacional será integrado por magistrados atuantes em unidades
jurisdicionais, especializadas ou não, que tratem de temas relacionados ao objeto de sua
atuação, podendo contar com o auxílio de autoridades e especialistas com atuação nas áreas
correlatas, especialmente do Conselho Nacional do Ministério Público, do Ministério Público
Federal, dos Estados e do Distrito Federal, das Defensorias Públicas, da Ordem dos
Advogados do Brasil, de universidades e outras instituições de pesquisa.
Art. 5º Para dotar o Fórum Nacional dos meios necessários ao fiel desempenho de suas
atribuições, o Conselho Nacional de Justiça poderá firmar termos de acordo de cooperação
técnica ou convênios com órgãos e entidades públicas e privadas, cuja atuação institucional
esteja voltada à busca de solução dos conflitos já mencionados precedentemente.
Art. 6º O Fórum Nacional será coordenado pelos Conselheiros integrantes da Comissão de
Relacionamento Institucional e Comunicação.
Art. 7º Caberá ao Fórum Nacional, em sua primeira reunião, a elaboração de seu programa
de trabalho e cronograma de atividades.
Art. 8º As reuniões periódicas dos integrantes do Fórum Nacional poderão adotar o sistema
de videoconferência, prioritariamente.
Art. 9º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Ministro GILMAR MENDES
28
Recomendação nº 31, de 30 de março de 2010
Recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e
demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas
judiciais envolvendo a assistência à saúde. (Publicado no DJ-e nº 61/2010, em 07/04/2010,
p. 4-6)
RECOMENDAÇÃO Nº 31, DE 30 DE MARÇO DE 2010
Recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e
demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas
judiciais envolvendo a assistência à saúde.
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ, no uso de suas atribuições, e
CONSIDERANDO o grande número de demandas envolvendo a assistência à saúde em
tramitação no Poder Judiciário brasileiro e o representativo dispêndio de recursos públicos
decorrente desses processos judiciais;
CONSIDERANDO a relevância dessa matéria para a garantia de uma vida digna à população
brasileira;
CONSIDERANDO que ficou constatada na Audiência Pública nº 4, realizada pelo Supremo
Tribunal Federal para discutir as questões relativas às demandas judiciais que objetivam o
fornecimento de prestações de saúde, a carência de informações clínicas prestadas aos
magistrados a respeito dos problemas de saúde enfrentados pelos autores dessas demandas;
CONSIDERANDO que os medicamentos e tratamentos utilizados no Brasil dependem de
prévia aprovação pela ANVISA, na forma do art. 12 da Lei 6.360/76 c/c a Lei 9.782/99, as
quais objetivam garantir a saúde dos usuários contra práticas com resultados ainda não
comprovados ou mesmo contra aquelas que possam ser prejudiciais aos pacientes;
CONSIDERANDO as reiteradas reivindicações dos gestores para que sejam ouvidos antes da
concessão de provimentos judiciais de urgência e a necessidade de prestigiar sua capacidade
gerencial, as políticas públicas existentes e a organização do sistema público de saúde;
CONSIDERANDO a menção, realizada na audiência pública nº 04, à prática de alguns
laboratórios no sentido de não assistir os pacientes envolvidos em pesquisas experimentais,
depois de finalizada a experiência, bem como a vedação do item III.3, "p", da Resolução
196/96 do Conselho Nacional de Saúde;
CONSIDERANDO que, na mesma audiência, diversas autoridades e especialistas, tanto da
área médica quanto da jurídica, manifestaram-se acerca de decisões judiciais que versam
sobre políticas públicas existentes, assim como a necessidade de assegurar a
sustentabilidade e gerenciamento do SUS;
CONSIDERANDO, finalmente, indicação formulada pelo grupo de trabalho designado, através
da Portaria nº 650, de 20 de novembro de 2009, do Ministro Presidente do Conselho
45
operadores do Direito, para assegurar maior eficiência na solução das
demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde.
Foi recomendada a realização de seminários para estudo e
mobilização na área da saúde com a presença de magistrados, membros do
Ministério Público e gestores, para propiciar melhor entrosamento sobre a
matéria.
Também recomenda o Conselho Nacional de Justiça que o Direito sanitário
seja incorporado como disciplina nos cursos de formação, vitaliciamento e
aperfeiçoamento de magistrados.
Nacional de Justiça, para proceder a estudos e propor medidas que visem a aperfeiçoar a
prestação jurisdicional em matéria de assistência à saúde;
CONSIDERANDO a decisão plenária da 101ª Sessão Ordinária do dia 23 de março de 2010
deste E. Conselho Nacional de Justiça, exarada nos autos do Ato nº 000195462.2010.2.00.0000;
RESOLVE:
I. Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais que:
a) até dezembro de 2010 celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico
composto por médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo
de valor quanto à apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes das ações
relativas à saúde, observadas as peculiaridades regionais;
b) orientem, através das suas corregedorias, aos magistrados vinculados, que:
b.1) procurem instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com
descrição da doença, inclusive CID, contendo prescrição de medicamentos, com
denominação genérica ou princípio ativo, produtos, órteses, próteses e insumos em geral,
com posologia exata;
b.2) evitem autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela ANVISA,
ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei;
b.3) ouçam, quando possível, preferencialmente por meio eletrônico, os gestores, antes da
apreciação de medidas de urgência;
b.4) verifiquem, junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (CONEP), se os
requerentes fazem parte de programas de pesquisa experimental dos laboratórios, caso em
que estes devem assumir a continuidade do tratamento;
b.5) determinem, no momento da concessão de medida abrangida por política pública
existente, a inscrição do beneficiário nos respectivos programas;
c) incluam a legislação relativa ao direito sanitário como matéria individualizada no programa
de direito administrativo dos respectivos concursos para ingresso na carreira da
magistratura, de acordo com a relação mínima de disciplinas estabelecida pela Resolução
75/2009 do Conselho Nacional de Justiça;
d) promovam, para fins de conhecimento prático de funcionamento, visitas dos magistrados
aos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde, bem como às unidades de saúde pública ou
conveniadas ao SUS, dispensários de medicamentos e a hospitais habilitados em Oncologia
como Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia - UNACON ou Centro de
Assistência de Alta Complexidade em Oncologia - CACON;
II. Recomendar à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM,
à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho - ENAMAT e
às Escolas de Magistratura Federais e Estaduais que:
a) incorporem o direito sanitário nos programas dos cursos de formação, vitaliciamento e
aperfeiçoamento de magistrados;
b) promovam a realização de seminários para estudo e mobilização na área da saúde,
congregando magistrados, membros do ministério público e gestores, no sentido de propiciar
maior entrosamento sobre a matéria;
Publique-se e encaminhe-se cópia desta Recomendação a todos os Tribunais.
Ministro GILMAR MENDES
46
Além desses esforços, o Conselho Nacional de Justiça realizou encontros
nacionais sobre o tema e publicou uma obra com a participação de todos os
palestrantes convidados para o primeiro encontro nacional.
O debate sobre a saúde e o acesso aos meios de prevenção e tratamento se
alargou muito na última década no Brasil, incorporou novos participantes e
colocou o médico, os gestores e todos os envolvidos no processo em um
cenário em que saúde, Direito e economia transitam em conjunto.
2. A saúde pública no Brasil
2.1. A Constituição de 1988 – expectativas e propostas na área da saúde pública.
No imaginário de grande parte da população brasileira a Constituição Federal
de 1988 teria o condão de, por si só, determinar os caminhos necessários para
a efetividade do Estado Democrático de Direito, garantindo a todos a garantia
dos direitos individuais e sociais necessários para o bem-estar de toda a
nação.
Mas desde o início dos trabalhos da Subcomissão de Saúde, Segurança e
Meio Ambiente ficou claro que o tema da saúde, assim como nenhum outro
direito social, seria tratado sem conflitos no âmbito da Assembleia Nacional
Constituinte, que congregava forças sociais com múltiplas ideologias e
interesses políticos diversificados.
A 8° Conferência Nacional de Saúde, realizada no pe ríodo de 17 a 21 de março
de 1986, em Brasília, cumpriu o papel de iniciar um amplo debate sobre a
saúde pública, resgatando, conforme consta de seus anais, o papel doutrinário
que antes fora realizado na 3ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em
1963. Era o resgate do debate democrático em torno da questão da saúde,
impossível de ser praticado no período de 63 a 86 em razão da ditadura militar
instalada no País em 01 de abril de 1964.
47
A Dra. CARMEN BARROSO29, atuando como debatedora na 8ª Conferência
Nacional de Saúde, afirmou:
O direito à saúde implica no direito a participar ativamente da formulação
de políticas de saúde. E se vamos ultrapassar o nível da retórica vazia,
que repete inúmeras boas intenções sem jamais concretizá-las, ou seja, se
há realmente a vontade política de democratizar a saúde, esta
Confer6encia não pode terminar sem medidas concretas e imediatas para
combater a quase total ausência de mulheres na definição de políticas de
saúde.
SERGIO AROUCA30, que proferiu palestra na 8ª Conferência Nacional de Saúde,
realizada de 17 a 21 de março de 1986, propunha o debate com a comunidade
como forma eficaz de encontrar mecanismos de mudança para a saúde pública
no Brasil.
Para que não houvesse nenhuma mudança durante o ano de 1985 – e essa idéia
foi muito importante –, surgiu uma crítica bastante séria de que o conjunto das
propostas em que estava baseada a reformulação do sistema de saúde ainda não
havia sido debatido o suficiente com a sociedade brasileira e que qualquer
mudança no sistema de saúde não podia ser feita simplesmente por uma lei.
Tinha que haver uma mudança a partir do instante que existisse uma consciência
nacional tão profunda, tão séria, que se transformasse em desejo político, num
desejo político irreversível, eu diria quase que suprapartidário, que levasse à
noção de que o sistema de saúde brasileiro tem que ser mudado.
JAIRNILSON SILVA PAIM31, em palestra proferida na 8ª Conferência Nacional de
Saúde, colocou em pauta o debate sobre a saúde como um conceito social,
quando afirmou
[...] é possível resgatar a ideia do direito à saúde como noção básica para a
formulação de políticas. Esta se justifica à medida em que não se confunda o
BARROSO, Carmen. Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde, p. 166.
http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1124.
Acesso
em
20/07/2010.
30
AROUCA, Sérgio. Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde, p. 38-39. Disponível em
http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1124, acessado em 20
de julho de 2010.
29
PAIM, Jairnilson Silva. Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde, p.46-47, Disponível em
http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1124, acessado em 20
de julho de 2010.
31
48
direito à saúde com o direito aos serviços de saúde ou mesmo com o direito à
assistência médica.
Esta ambiguidade também se faz presente na expressão “necessidade de saúde”,
quando se procede um deslocamento da questão da dimensão do estado de
saúde para a questão dos serviços. Tem o sentido de ocultar as condições
necessárias para a obtenção da saúde, permitindo “considerar-se a assistência
médica como o principal fator determinante do nível de saúde.”
A saúde, independentemente de qualquer definição idealista que lhe possa ser
atribuída, é produto de condições objetivas de existência. Resulta das condições
de vida – biológica, social e cultural – e, particularmente, das relações que os
homens estabelecem entre si e com a natureza, através do trabalho. Portanto, é
através das relações sociais de produção que se erguem as formas concretas de
vida social. E o estado de saúde corresponde a uma das revelações dessas
formas de vida, isto é, “um modo de andar a vida”.
Nesse contexto, promover saúde implica em conhecer como se apresentam as
condições de vida e de trabalho na sociedade, para que seja possível intervir
socialmente na sua modificação, enquanto que respeitar o direito à saúde significa
mudanças na organização econômica determinante das condições de vida e
trabalho insalubres e na estrutura jurídico-política perpetuadora de desigualdades
de distribuição de bens e serviços.
O professor JAIRNILSON PAIM, da Universidade Federal da Bahia,
coloca em sua palestra uma importante dimensão da reflexão sobre saúde,
deslocando o foco do acesso a serviços de saúde para a ação mais incisiva na
prevenção, compreendida esta não apenas em relação ao corpo de cada
indivíduo, mas principalmente em relação às suas condições de vida, materiais
e sociais. Esse enfoque proposto pelo mencionado professor é fundamental no
debate contemporâneo de acesso à saúde, que trata muito mais do acesso a
hospitais, tratamentos e medicamentos do que das
condições de vida da
população que depende exclusivamente da estrutura da saúde pública no
Brasil.
E nessa medida, defende Jairnilson Paim32 que
[...] as políticas sociais de uma república que se quer verdadeiramente nova
deverá ampliar os canais para a democratização da saúde, de modo que os
32
Texto citado, p. 54.
49
indigentes de ontem e os consumidores de hoje possam amanhã, enquanto
cidadãos, lutar pelos seus direitos e organizar-se politicamente para conquistá-los.
A 8ª Conferência Nacional de Saúde apresentou contradições que igualmente
se encontram presentes no debate contemporâneo sobre a saúde pública no
Brasil. De um lado, o professor JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR, às fls. 67 dos
Anais, afirmava que era imprescindível à garantia da saúde da população a
definição de instrumentos de participação das organizações populares na
fixação de diretrizes de planificação, assim como a participação popular na
administração da Justiça, com tribunais populares e assessoria técnica para
julgamento de questões determinadas, como moradia, meio ambiente e
consumo, entre outras.
De outro lado e na mesma Conferência, às fls. 73 dos Anais, HÉLIO PEREIRA
DIAS, então assistente jurídico do Ministério da Saúde, já defendia que “(...) a
saúde dos habitantes deveria constituir, também, matéria de tutela estatal
como direito subjetivo daqueles que seriam seus legítimos titulares”.
A tensão entre a efetividade do direito à saúde (como direito subjetivo a ser
obtido também por uma sentença judicial) e a efetividade por meio de amplo
debate com a sociedade organizada (a quem incumbe decidir as prioridades na
área da saúde pública) é ainda presente no cenário jurídico-político
contemporâneo, e objeto de reflexão desta pesquisa.
Em sua participação na 8ª Conferência Nacional de Saúde Pública, a
professora
SONIA MARIA FLEURY TEIXEIRA33,
da
Escola
Brasileira
de
Administração Pública Getúlio Vargas e da Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Oswaldo Cruz, p. 91 dos Anais, destaca que o regime autoritário
iniciado em 1964 rompeu com o populismo “(...) no qual as demandas sociais
emergentes face ao processo de industrialização e urbanização foram
canalizadas através de instrumentos corporativos de cooptação das massas
populares, colocadas na condição de suporte legitimador de um Estado
TEIXEIRA, Sonia Maria Fleury. Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde, p.91,
http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1124. Consultado em 20
de julho de 2010.
33
50
autoritário, representante dos interesses de um amplo compromisso entre as
diferentes frações da elite dominante.”
E continua a professora FLEURY TEIXEIRA34:
Embora esta trajetória histórica dirija-se para – nos limites do processo de
acumulação e da luta de classes – absorver as demandas sociais, consolidandose em ganhos substantivos em termos de justiça social, não deu origem ao
desenvolvimento da cidadania enquanto mediação precípua entre o Estado
democrático e o conjunto de indivíduos pertencentes à nação.
A inserção das classes populares urbanas no populismo se deu sempre de forma
corporativa, fragmentada em função do poder de barganha de cada categoria
funcional, inconsciente sobre a ausência política imposta aos camponeses, de tal
forma que as conquistas sociais alcançadas conformaram-se melhor como
privilégios setoriais do que como direitos universais dos cidadãos.
O debate em torno da participação popular ou do exercício da cidadania –
compreendida como direito de participar de todas as decisões políticas e de
orientar a atividade estatal em benefício do interesse público – foi o centro das
preocupações e propostas da 8º Conferência Nacional de Saúde, realizada
pouco antes da instalação da Assembleia Nacional Constituinte.
Quase todas as palestras e painéis enfatizaram, em alguma medida, a
importância da participação popular na escolha das políticas sociais de saúde e
na fiscalização da aplicação e dos resultados dessas políticas. A ideia de
“construir juntos” (Estado e cidadãos) uma saúde pública de melhor qualidade
para a população brasileira norteou os debates da 8ª Conferência e migrou
para o interior da Subcomissão de Saúde, Segurança e Meio Ambiente da
Assembleia Nacional Constituinte.
Estava criado o ambiente político e jurídico para a inserção da saúde na
Constituição Federal de 1988 da forma como efetivamente ocorreu.
2.2. O direito à saúde na Constituição Federal de 1988
34
Obra citada, p. 91.
51
Nesses vinte e três anos de história da Constituição Federal e de seu
expressivo número de Emendas Constitucionais, a população brasileira tem se
dado conta de que os projetos políticos e sociais abrigados pela Carta
Constitucional não foram suficientes para fazer o País atingir a igualdade de
tratamento para todos os cidadãos, a diminuição das desigualdades sociais e,
consequentemente, o acesso aos direitos individuais e sociais.
A falta de políticas mais claras de distribuição de renda, de acesso à educação
e saúde públicas de boa qualidade, de pleno emprego, de financiamentos que
permitam a aquisição de moradia, além das dificuldades econômicas com a
inflação e o desemprego enfrentados em boa parte dos anos de vigência da
Constituição Federal, criaram na população brasileira certa descrença quanto
aos seus direitos sociais, embora seus direitos políticos estejam plenamente
materializados com sucessivas eleições ocorrendo, de forma sistemática e
ininterrupta a cada dois anos, para todos os postos legislativos e executivos.
Mas a Constituição Federal de 1988, no âmbito do elenco de direitos e
garantias individuais e coletivos e de direitos sociais, cumpriu integralmente
seu papel, consignando no texto todos os direitos fundamentais para a garantia
da dignidade da pessoa humana nas múltiplas variáveis que essa garantia
pode assumir em nossos dias.
Assim, no Título II da Constituição Federal estão os Direitos e Garantias
Fundamentais divididos em cinco capítulos: Direitos e Deveres Individuais e
Coletivos; Direitos Sociais; Nacionalidade; Direitos Políticos e Partidos
Políticos.
Direitos e deveres individuais e coletivos (capítulo I) e Direitos Sociais (capítulo
II) são, portanto, parte dos direitos e garantias fundamentais da Constituição
Federal.
O artigo 5° estabelece a igualdade entre todos os b rasileiros e estrangeiros
residentes no País e a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos que são definidos em seus setenta e
oito incisos.
O parágrafo primeiro do artigo 5° determina que as normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Não há indicativo de
52
que sejam de aplicação imediata apenas os direitos e deveres individuais e
coletivos previstos no caput do artigo, mas sim os direitos e garantias
fundamentais. Disso decorre, na atualidade, o argumento de que o direito à
saúde é de aplicação imediata porque contemplado no Título II (Direitos e
Garantias Fundamentais). Essa reflexão será enfrentada no capítulo III deste
trabalho.
O parágrafo segundo do artigo 5º determina: “Os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios
por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa seja parte.”
E o parágrafo 3º do mesmo artigo, com redação dada pela Emenda
Constitucional nº 45, de 2004, que o inseriu na Constituição Federal, completa
a previsão, determinando que os tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.
Os três parágrafos estão no artigo 5°, mas não nece ssariamente se referem
apenas aos direitos previstos naquele artigo, estando sinalizado, pela própria
redação, que seus efeitos se irradiam para todo o ordenamento constitucional,
abrangendo outros direitos fundamentais ali expressamente não contemplados,
como, por exemplo, o direito à saúde.
O artigo 6°, com redação determinada pela Emenda Co nstitucional 26, de
2000, determina:
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Na redação original o artigo 6° determinava
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.
53
O direito à moradia foi constitucionalizado em 14 de fevereiro de 2000, quando
a Emenda Constitucional nº 26 foi aprovada.
Comentando o arranjo constitucional dos artigos 5º e 6º da Constituição
Federal, VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR35 afirma:
[...] A Constituição Federal trouxe um conjunto de direitos denominados
fundamentais, de cuja análise deve o intérprete extrair o seu conteúdo essencial,
para, desta forma, entender quais outros direitos que, compartilhando da mesma
natureza, devem ficar abrigados sob a mesma rubrica semântica.
Nesse sentido, a Constituição Federal, ao indicar, em seu art. 1°, inc. III, o
princípio da dignidade humana como fundamento do Estado brasileiro, buscou,
dentre outras coisas, atribuir uma unidade valorativa ao sistema de direitos
fundamentais.
Note-se que a noção de dignidade, a nosso ver, deve ter como parâmetro não só
o indivíduo enquanto tal, mas também enquanto parte da sociedade em que se
integra. [...]
[...] os direitos fundamentais, de um lado, prendem-se ao objetivo de preservação
da liberdade do indivíduo e, de outro, ao objetivo de inseri-lo no contexto social,
quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista econômico, o que rende
ensejo à afirmação de que, como membros da sociedade, o indivíduo tem o direito
de partilhar de suas decisões e participar dos resultados dos esforços comuns. [...]
Destarte, quer nos parecer que, analisando o conteúdo dos direitos fundamentais
incorporados ao nosso texto constitucional, podemos delimitar que o critério
material que deles deflui está consubstanciado em três valores caudatários da
dignidade humana: a liberdade, a democracia política e a democracia econômica e
social.
Essa afirmação de VIDAL SERRANO vem ao encontro da reflexão de
BOBBIO36:
[...] o debate atual cada vez mais difuso sobre os direitos do homem – a ponto de
ser colocado na ordem do dia das mais respeitadas assembleias internacionais –
podia ser interpretado como um “sinal premonitório”, talvez o único, de uma
tendência da humanidade, para retomar a expressão kantiana “para melhor”. [...]
NUNES JR. Vidal. A Cidadania Social na Constituição de 1988. S.Paulo: Verbatim, 2009, p.
33-34.
36
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2ª Tiragem. S.Paulo: Elsevier, 2004, p. 221-223.
35
54
[...] a enorme importância do tema dos direitos do homem depende do fato de ele
estar extremamente ligado aos dois problemas fundamentais do nosso tempo, a
democracia e a paz. O reconhecimento e a proteção dos direitos do home são a
base das constituições democráticas e, ao mesmo tempo, a paz é o pressuposto
necessário para a proteção efetiva dos direitos do homem em cada Estado e no
sistema internacional.
Sem discordar, mas apresentando outro viés possível para a reflexão,
BERCOVICI37 afirma sobre a Constituição brasileira de 88:
O sentido de Constituição dirigente no Brasil está vinculado, na minha visão, à
concepção da Constituição como um projeto de construção nacional. A
constituição tem vários significados e funções, como bem demonstrou a exposição
célebre de Hans Peter Scheneider. Dentre estas, no entanto, merece destaque a
visão, fundada em Rudolf Smend, da constituição como um símbolo da unidade
nacional. Herbert Krüger vai além, e entende a constituição como um projeto de
integração nacional, o que, no nosso caso, seria interessante para compreender a
ideia de constituição como um projeto nacional de desenvolvimento. Uma hipótese
de trabalho seria a de tentar entender se os Estados que buscam terminar a sua
construção nacional, como o Brasil, acabam adotando a ideia de constituição
como um plano de transformações sociais e do Estado, fundada na visão de um
projeto nacional de desenvolvimento. Esta hipótese poderia explicar a concepção
de constituição adotada dirigente adotada pela Assembleia Nacional Constituinte
de 1987-1988. E o corolário disto seria a visão de que a crise constituinte
brasileira seria superada com o cumprimento do projeto constitucional de 1988,
que concluiria a construção da nação.
[...] enquanto pretensão de constitucionalizar tudo, portanto, constitucionalizando,
na prática, o nada, a constituição dirigente não faz sentido. Acaba se tornando
uma teoria constitucional esvaziada da política e do Estado, portanto, estéril. No
entanto, ela faz sentido enquanto projeto emancipatório, que inclui expressamente
no texto constitucional as tarefas que o povo brasileiro entende como
absolutamente necessárias para a superação do subdesenvolvimento e conclusão
da construção da Nação, e que não foram concluídas. Enquanto projeto nacional e
como denúncia desta não realização dos anseios da soberania popular no Brasil,
ainda faz sentido falar em constituição dirigente.
BERCOVICI, Gilberto. “Ainda Faz Sentido a Constituição Dirigente?” In: 20 Anos de
Constitucionalismo Democrático – E Agora? Porto Alegre-Belo Horizonte: Instituto de
Hermenêutica Jurídica, 2008, p.158-159.
37
55
É na perspectiva de BERCOVICI que este trabalho reflete sobre a forma como a
saúde foi tratada na Constituição Federal de 88, no Brasil, na perspectiva da
promessa ainda não cumprida da soberania popular que esteve presente no
debate que antecedeu a formação da Assembleia Nacional Constituinte e
também na própria Constituinte, conforme tratado no capítulo anterior.
Essa ausência de soberania popular ou de participação popular mais efetiva e
aguda na deliberação dos destinos da saúde afasta a dimensão política do
Direito e atribui a este a missão de solucionar os problemas de carência e de
injusta distribuição de acesso a direitos sociais, papel que o Direito não pode
exercer sozinho numa República e que sequer se pode atribuir a ele como
destino histórico.
A “Era dos Direitos”38 como se referiu BOBBIO, ou a importância dos valores
caudatários da dignidade humana, como afirmou VIDAL SERRANO NUNES, não
pode afastar a realidade preconizada por BERCOVICI: a Constituição dirigente
não pode tudo.
É nessa perspectiva crítica que esta pesquisa analisa a organização que a
Constituição Federal deu ao tema da saúde, e os mecanismos criados para
sustentar esse projeto de saúde para todos.
2.3. O direito à saúde como seguridade social
No Título VIII, a Constituição Federal de 88 vai tratar da Ordem Social; e o
Capítulo I, com apenas um artigo, o 193, determina: “A ordem social tem como
base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.”
No Capítulo II, da Seguridade Social, Seção I, o legislador constituinte tratou da
definição e do custeio da seguridade social, definindo desde logo a origem dos
recursos destinados a esse objetivo.
A definição de seguridade social adotada pela Constituição Federal de 1988 é
“(...) o conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da
38
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. R.de Janeiro:Elsevier, 2004.
56
sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência
e à assistência social.”
E o parágrafo único fixa os objetivos.39
Em seguida, a Constituição Federal de 88 determina que a seguridade social
seja financiada por toda a sociedade, de forma direta ou indireta. E no
parágrafo 2° do artigo 195 prevê que o orçamento da seguridade social será
elaborado de forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde,
previdência social e assistência social, tendo em vista as metas e prioridades
estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias, assegurada a cada área a
gestão de seus recursos.
O parágrafo 5° do artigo 195 explicita que nenhum b enefício ou serviço da
seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a
correspondente fonte de custeio total.
No artigo 196, a Constituição Federal de 1988 define a saúde como um direito
de todos e um dever do Estado, que deverá ser garantido por meio de políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação.
O artigo 198, por sua vez, traça as linhas mestras do Sistema Único de Saúde
(SUS), quando determina:
As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as
seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais;
I – universalidade da cobertura e do atendimento;
II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;
III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
IV – irredutibilidade do valor dos benefícios;
V – equidade na forma de participação do custeio;
VI – diversidade da base de financiamento;
VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão
quadripartite, com participação dos trabalhadores, os empregadores, dos aposentados e
do Governo nos órgãos colegiados.
39
57
III - participação da comunidade.
Os três primeiros parágrafos do artigo 198 são dedicados a explicitar de que
forma será feito o custeio do sistema único, detalhando quais os impostos
serão destinados à saúde e os percentuais. Todos os três parágrafos foram
alterados do original pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000.
O artigo 200, por fim, estabelece as atribuições do sistema único de saúde, e a
análise dos VIII incisos do artigo permite compreender que, em boa parte, o
Brasil não adotou as linhas mestras da Organização Mundial de Saúde para
conceituar saúde.
Ao fixar as atribuições do Sistema Único de Saúde, a Constituição Federal se
concentra em aspectos diretamente relacionados com a saúde corporal sem
abordar, de forma mais sistemática, a proteção social e psíquica que, como
vimos, são aspectos fundamentais na definição de saúde da OMS e no debate
travado por especialistas e pelos movimentos sociais antes da Constituinte.
O inciso I determina a atribuição de controle e fiscalização de procedimentos,
produtos e substâncias de interesses para a saúde e a participação na
produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e
outros insumos.
O inciso II trata da execução das ações de vigilância sanitária e epidemiológica,
bem como as de saúde do trabalhador.
O inciso III prevê a necessidade de formação de recursos humanos para a área
da saúde; e o IV, a participação na formulação da política e da execução das
ações de saneamento básico.
No inciso V há previsão para o incremento do desenvolvimento científico e
tecnológico; e no VI, para fiscalização e inspeção de alimentos, inclusive no
tocante a controle do teor nutricional, bem como de bebidas e de água para
consumo humano.
Os incisos VII e VIII tratam, respectivamente, da participação no controle e
fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e
58
produtos psicoativos, tóxicos e radioativos e da colaboração na proteção ao
meio ambiente.
É possível constatar que os oito incisos são direcionados quase que
exclusivamente para aspectos voltados para a saúde física, exceção feita à
preocupação com a colaboração na proteção ao meio ambiente.
Criticada por ser uma Constituição muito detalhista que, para muitos
estudiosos, teria tratado de temas que não eram de sua competência
legislativa, a Constituição Federal de 1988, nesse aspecto, poderia ter traçado
com maior vigor as linhas mestras da proteção à saúde, ou seja, de forma mais
ampla, contemplando também os aspectos essenciais discutidos no capítulo
anterior, em especial no que tange ao meio social em que o indivíduo está
inserido e sua relação com a família, o trabalho, o lazer, entre outros.
JOANA DE SOUZA MACHADO40 afirma:
A Constituição brasileira de 1988 é comumente tomada como exemplo de pauta
constitucional alargada, por ter tratado de modo minucioso de assuntos antes
regulados apenas pela legislação infraconstitucional. Trata-se de uma tendência
entre as Constituições mais recentes, promulgadas, sobretudo, nos últimos vinte
anos.
No âmbito da definição de um ideário de saúde a ser construído pelo Estado
com participação de todos os agentes políticos e da sociedade, o texto
constitucional não ampliou os objetivos para a efetividade da qualidade de vida
dos brasileiros, atendo-se, de forma até tímida, a aspectos físicos que
compõem os cuidados com a saúde, mas que a eles não se limitam.
ANDRÉ FEIJÓ BARROSO41 assim leciona a respeito do assunto:
Compreender a saúde de uma forma ampla permite-nos entendê-la como um
processo sistêmico, interdependente de diversos outros fatores e direitos que
constituem “os direitos afins ao direito à saúde”, direitos esses que, no dizer de
MACHADO, Joana de Souza. “Protagonismo Judicial no Trato dos Direitos Fundamentais:
Reflexões sobre o Des(Arranjo) Brasileiro”. In: Anais do XVIII Congresso Nacional do
Conselho Nacional de Pesquisa em Direito – CONPEDI, Fortaleza, junho de 2010, p.02.
41
BARROSO, André Feijó. Aspectos Relacionados à Efetivação do Direito à Saúde no Brasil
através do Poder Judiciário. Disponível em www.leps/ufrj/dowload/andre. Acesso em 28 de
agosto de 2010. P. 06
40
59
GERMANO SCHWARTZ (2001), são direitos afins à qualidade de vida, direitos que
influirão no conceito de saúde.
Deixa a saúde de ser um conceito apenas somático e/ou psíquico, e transforma-se
em um processo que tem um objetivo a ser alcançado, que depende de condições
a serem preservadas, tanto sob a ótica do indivíduo, como sob a ótica do
ambiente em que as pessoas estão.
Esse debate é fundamental, porque, na medida em que a saúde a ser
protegida é a saúde física, apartada de todos os outros aspectos sociais
indispensáveis à sua garantia, fica mais fácil exigi-la por meio do custeio
imediato de tratamentos ou medicamentos sem que seja necessário discutir
outros aspectos, como programas de moradia, acesso à educação pública de
qualidade, ações afirmativas que acelerem o processo de inclusão social dos
setores historicamente excluídos da sociedade brasileira, entre outros aspectos
políticos e sociais.
Considerar que a garantia da saúde possa ser efetivada a partir das atribuições
constitucionais do Sistema Único de Saúde é afastar do debate aspectos mais
abrangentes que, se tivessem sido inseridos, poderiam facilitar a compreensão
do papel dos diversos agentes políticos e atores sociais na construção da
saúde pública no Brasil.
A leitura dos artigos 196 a 200 da Constituição Federal não concretiza o
conceito de saúde nem os objetivos mais amplos pretendidos tanto pelos
movimentos sociais como pelos especialistas nos debates anteriores à
Constituinte. Ao contrário, o conceito de saúde e de efetividade de sua
proteção no texto constitucional de 1988 tem menor amplitude, e está focado
nos aspectos eminentemente pragmáticos de garantia de mecanismos de
saúde física.
2.4. A Lei 8.080/90 e o Sistema Único De Saúde
Em 19 de setembro de 1990 entrou em vigor a Lei 8.080, que dispõe sobre as
condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização
e o funcionamento dos serviços correspondentes.
60
No artigo 3° está consignado:
Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a
alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a
renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços
essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e
econômica do País.
Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do
disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade
condições de bem-estar físico, mental e social.
O conceito de saúde adotado pela Lei 8.080, de 1990, é mais abrangente que o
da Constituição Federal e se aproxima do sentido proposto pela Organização
Mundial de Saúde que, de certo modo, também é aquele defendido nos
debates que antecederam à Constituinte.
O conceito da Lei 8.080 aponta para a integralidade dos esforços federativos,
tanto no âmbito político como no contexto técnico, mobilizando a sociedade e o
Estado para que busquem a construção de várias políticas sociais interligadas
e interdependentes, no sentido de alcançar qualidade não apenas em saúde,
mas também em moradia, pleno emprego, lazer, educação de qualidade,
transporte coletivo adequado, ou, em uma única expressão, organização social
e econômica eficiente, e com objetivos bem definidos.
Esse programa – de ação conjunta e processual – proposto pela Lei 8.080/90,
é o que melhor se adequava às necessidades que o País tinha naquele
momento histórico e, em grande medida, que continua tendo até hoje.
Ao definir que a saúde é parte de um contexto em que estão incluídos outros
aspectos e em caráter complementar, a lei federal autoriza e incentiva todos os
agentes políticos e sociais a fiscalizarem a implementação de políticas públicas
para garantir que elas atendam a premissa de integração e complementaridade
propostas pelo caput do artigo.
O artigo 196 da Constituição Federal poderia ter recebido essa redação e, com
isso, sinalizado de forma definitiva que no Brasil o acesso a equipamentos de
saúde física, a medicamentos e a tratamentos especializados é apenas parte
da efetividade do direito fundamental à saúde. Outros elementos também
61
precisam ser efetivados para que se possa garantir saúde, como moradia,
educação, lazer, e todos os demais citados no artigo 3º da Lei 8.080, de 1990.
O artigo 7º42 da Lei 8080, de 1990, traça os princípios e diretrizes do Sistema
Único de Saúde.
A Lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990, regulou a participação da
comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde43.
42
Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou
conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo
com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos
seguintes princípios:
I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das
ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em
todos os níveis de complexidade do sistema;
III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e
moral;
IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer
espécie;
V - direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;
VI - divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua
utilização pelo usuário;
VII - utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de
recursos e a orientação programática;
VIII - participação da comunidade;
IX - descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de
governo:
a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;
b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;
X - integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento
básico;
XI - conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à
saúde da população;
XII - capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e
XIII - organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para
fins idênticos.
Art. 1° O Sistema Único de Saúde (SUS), de que trata a Lei n° 8.080, de 19 de
setembro de 1990, contará, em cada esfera de governo, sem prejuízo das funções
do Poder Legislativo, com as seguintes instâncias colegiadas:
I - a Conferência de Saúde; e
II - o Conselho de Saúde.
§ 1° A Conferência de Saúde reunir-se-á a cada quatro anos com a representação
dos vários segmentos sociais, para avaliar a situação de saúde e propor as
diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes,
convocada pelo Poder Executivo ou, extraordinariamente, por esta ou pelo Conselho
de Saúde.
§ 2° O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado
composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de
saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da
política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e
financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente
constituído em cada esfera do governo.
43
62
Em 1993 foram criadas as Comissões Intergestores por meio de portarias do
Ministério da Saúde, divididas em Comissão Intergestores Tripartite (CIT),
composta paritariamente por representantes do Ministério da Saúde, da
entidade de representação do conjunto dos secretários estaduais de saúde do
País e da entidade de representação do conjunto dos secretários municipais de
saúde; e a Comissão Intergestores Bipartite, composta paritariamente por
representantes da Secretaria Estadual de Saúde e da entidade de
representação do conjunto dos secretários municipais de saúde do estado.
É importante observar que a participação dos Conselhos Municipais de Saúde
não fica adstrita ao debate teórico em torno de ações e programas de saúde,
mas contempla igualmente a formulação de estratégias e o controle da
execução da política de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e
financeiros. É evidente que a homologação das decisões deverá ser feita pelo
chefe do governo municipal, mas os conselhos podem, por força de lei, debater
o uso dos recursos econômicos e financeiros nas políticas públicas de saúde.
O contrário disso seria um Conselho de Saúde alijado do poder de decisão,
restrito a aspectos programáticos, porém sem condições legais de definir
prioridades e estratégias de atuação porque sem acesso a dados referentes
aos recursos econômicos e financeiros destinados à saúde.
Apesar do poder legalmente constituído, a experiência dos Conselhos
Municipais de Saúde no Brasil ainda não se consolidou integralmente no
âmbito de uma participação ativa, independente e, principalmente, com caráter
de fiscalização sistemática das práticas do Poder Executivo municipal na
efetividade dos serviços de saúde para a população.
ANDRÉA VALENTE HEIDRICH44 destaca:
§ 3° O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional
de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) terão representação no Conselho
Nacional de Saúde.
§ 4° A representação dos usuários nos Conselhos de Saúde e Conferências será
paritária em relação ao conjunto dos demais segmentos.
§ 5° As Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde terão sua organização e
normas de funcionamento definidas em regimento próprio, aprovadas pelo
respectivo conselho.
HEIDRICH, Andréa Valente. O Conselho Municipal de Saúde e o Processo de Decisão sobre
a Política de Saúde Municipal. Dissertação de Mestrado em Sociologia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2002, p. 59.
44
63
A última conferência nacional de saúde foi realizada em 2001 com o tema
“Aprofundando o Controle Social” e também apontou uma série de entraves em
seu Relatório Final sobre a efetivação dos Conselhos como mecanismos de
participação na gestão do SUS. [...]
O Relatório aponta uma série de dificuldades na prática dos conselhos de saúde,
como carência de estrutura, capacitação e assessoria para assumir tarefas
decorrentes de uma postura mais ativa; carência de autonomia frente ao Executivo
e a falta de compromisso político de alguns gestores. Diante destas questões,
percebe-se que os conselhos de saúde, muitas vezes, ainda carecem de
legitimidade perante o poder executivo municipal e à sociedade.
Mesmo assim, em meados de 2000, 97,04% dos municípios do país haviam
municipalizado seus serviços de saúde (Cortez, 2001:04). Portanto, pressupõe-se
que em todos eles havia o conselho, o fundo e a conferência municipal de saúde.
O fato de a criação dos conselhos ser critério sine qua non para recebimento de
recursos tem
gerado desconfiança com
relação à possibilidade destes
mecanismos estarem, de fato, se constituindo em canais de participação da
população na definição da política de saúde.
Outros
estudos
apontam
fragilidades
no
funcionamento
dos
Conselhos Municipais de Saúde em todo o País, em especial no que diz
respeito à carência de formação dos participantes para a atuação na esfera
pública, mas também em relação à tensão existente em face das diferentes
necessidades de cada setor representado. Também apontam para a cooptação
dos participantes em relação aos poderes políticos instituídos, considerando-a
um fator que fragiliza a dinâmica de funcionamento dos Conselhos.
Ocorre que a tradição do Estado brasileiro não é a de participação social
significativa, sobretudo em aspectos referentes ao uso do dinheiro público: ao
contrário, a tradição brasileira é de Estado centralizador e autoritário.
O longo período da história brasileira em que a sociedade civil foi ora cooptada
por mecanismos populistas, ora simplesmente afastada da cena política pela
ditadura militar, repercute até hoje e ainda repercutirá por muito tempo no
âmbito da mobilização social para o exercício efetivo dos direitos do cidadão,
inclusive e principalmente, o direito de participar da cena política institucional.
64
ROGÉRIO GESTA LEAL45 afirma:
Em verdade, ao longo do período de toda a República Velha, a Administração
Pública brasileira padeceu de frágil estruturação institucional, e isto porque os
chefes do Poder Executivo, dos três níveis federativos, em regra, eram eleitos de
maneira pouco séria, decorrência dos vínculos mantidos com as oligarquias locais,
vinculadas, por sua vez, à Presidência da República, formando uma rede política
de interesses que se alojava e refletia na atuação administrativa.
Aqui, sequer se cogitava da participação social ou representativa da comunidade,
eis que tal tarefa estava restrita aos cânones e mecanismos institucionais da
política estatal.
Assim, desenvolveu-se a Administração Pública, praticamente, até a década de
80, com avanços e recuos institucionais, maiores em determinados momentos
(como na era Vargas), ou menores (como ao longo do regime militar). [...]
[...] na maior parte do seu território, o Estado brasileiro (aqui entendido na sua
perspectiva institucional) e seu sistema legal, não conseguem assegurar a
vigência de uma ordem e pacificação social, ainda que fundada em relações
assimétricas, garantidoras de expectativas estáveis e uma mínima previsibilidade
de comportamentos consistentes com a lei.
Na mesma direção, temos Guillermo O’Donnell, sustentando que o modelo de
democracia em países com as relações de força como as do Brasil, pode ser
considerado como delegativo, eis que ele supõe um precário funcionamento das
instituições políticas, o que faz com que a figura do chefe do Executivo, presidente
eleito ou chefe do movimento, assuma um caráter ainda mais central no processo
político, pois recebe ou avoca delegação para governar acima dos partidos e
demais instituições democráticas. Decorrência lógica e material disto é a falta de
garantia de igualdade perante a lei e de acesso à justiça, bem como outras formas
de prestações públicas, seja porque os indivíduos, escaldados, renunciam à sua
mediação, preferindo agir por conta própria, seja porque o Estado é incapaz de
assegurar uma ordem igualitária ao tecido social.
Assim, embora se possa saudar a criação dos Conselhos Municipais
de Saúde como um caminho efetivo para a democracia participativa e,
consequentemente, para a efetividade do direito à saúde, é necessário
compreender que há um processo histórico a ser construído e isso demanda
tempo e insistência.
LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006, p. 87-88.
45
65
Ante a falta de capital cultural de participação social no Brasil, aliada à tradição
histórica da saúde como assistência e não como direito, e à influência de uma
sociedade que se torna cada vez mais egoísta e consumista, os Conselhos
Municipais de Saúde terão ainda dificuldades concretas a superar em sua
trajetória. No entanto, felizmente, existem condições para que essa superação
ocorra.
A consolidação do processo democrático brasileiro e as dificuldades de acesso
a serviços de saúde são fatos da realidade que poderão incentivar maior
atividade dos referidos Conselhos. Lentamente o cidadão brasileiro se dá conta
de que a eleição não concretiza necessidades sociais e que há grande
distanciamento entre o político eleito e o ator social que o elegeu. Diminuir esse
distanciamento e aproximar o cidadão das instâncias de decisão têm sido
objeto de debate na sociedade brasileira contemporânea, e os Conselhos
Municipais, em especial os de saúde e educação, poderão cumprir importante
papel no amadurecimento da democracia participativa no País.
Vinte e três anos de experiência constitucional ainda não foram suficientes para
efetivar todos os direitos sociais, mas contribuíram de maneira decisiva para
permitir duas conclusões: a de que a positivação dos direitos é um passo
fundamental, mas não é suficiente por si só; e a de que participação social é
um caminho ainda não construído plenamente na democracia brasileira,
necessitando de mecanismos de incentivo que ainda não se encontram
plenamente implementados.
A atividade efetiva dos Conselhos Municipais de Saúde poderá se constituir em
importante elemento de planejamento da destinação dos recursos do sistema
de saúde brasileiro e, nessa medida, contribuir para restringir o acesso à
Justiça como mecanismo de obtenção de medicamentos e tratamentos
individualizados. Inserir os Conselhos no debate sobre a judicialização da
saúde é politizar essa questão e demonstrar que o Direito não é o único
caminho de arranjo e equilíbrio da ordem social.
66
CAPÍTULO II
A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O fim da ditadura militar em 1985 trouxe o País de volta para o debate em torno
de direitos. Esse questionamento, que havia começado em meados da década
de 70 com os movimentos sociais urbanos, ganhou força com a reconstrução
67
do movimento sindical no ABC e com a Campanha Diretas Já, que se expandiu
por toda a nação em 83-84.
Após a eleição indireta de TANCREDO NEVES e JOSÉ SARNEY, o cenário político
foi ocupado pela exigência da eleição de uma Assembleia Nacional
Constituinte que elaborasse o documento de retorno do País ao Estado
Democrático de Direito.
Outorgada em 05 de outubro de 1988, a Constituição Federal se tornou
símbolo do projeto de uma nova sociedade brasileira, livre, justa e solidária,
alicerçada no princípio da dignidade de pessoa humana.
Alguns juristas afirmam que a Constituição Federal é excessivamente
detalhista ao cuidar de aspectos que poderiam ter sido delegados para a
legislação ordinária. Em linhas gerais também criticam o modelo de Estado
Social adotado no âmbito dos Direitos Sociais e o caráter neoliberal da Ordem
Econômica, destacando que esse conflito compromete a efetividade da
Constituição brasileira.
O presente capítulo pretende discutir a hermenêutica constitucional adotada no
Brasil por parte dos juristas que, sob a inspiração do Direito constitucional
alemão, pretenderam a máxima efetividade dos direitos sociais. Tal proposta
hermenêutica é aqui analisada tendo como pano de fundo a efetividade da
saúde pública para todos, ou seja, o acesso irrestrito e imediato que se torna
um dos fundamentos do fenômeno da judicialização da saúde.
Para isso será abordado o conceito de direitos fundamentais e de normas
programáticas, além das novas propostas hermenêuticas utilizadas no Brasil
contemporâneo e calcadas na força e na efetividade dos princípios.
1. Apontamentos sobre direitos fundamentais
Definir direitos fundamentais na perspectiva da garantia de sua efetividade é
tarefa complexa que, na atualidade, é enfrentada por muitos estudiosos, tanto
de direitos humanos como de direitos e princípios constitucionais.
68
JOSÉ AFONSO DA SILVA46 afirma:
No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações
jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive, e às vezes,
nem sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual,
devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente
efetivados.
Por sua vez, JANE REIS GONÇALVES PEREIRA47 esclarece:
Quando se fala em direito fundamental, aborda-se uma categoria jurídica
complexa, que pode ser analisada a partir de múltiplos enfoques. Isso ocorre
porque o significado que os direitos fundamentais assumem no constitucionalismo
contemporâneo é resultado de um longo processo histórico em que foram sendo
ampliados, de forma progressiva, seu alcance e força vinculante no ordenamento.
Do ponto de vista terminológico, o vocábulo direito fundamental expressa uma
noção própria da teoria constitucional recente. A despeito de diversos desacordos
terminológicos que envolvem a linguagem dos direitos, há certa tendência em
utilizar a referida expressão para designar os direitos humanos reconhecidos e
positivados em determinada ordem constitucional. O termo direitos humanos tem
um alcance mais amplo, sendo empregado, de modo geral, para fazer referência
aos direitos do homem reconhecidos na esfera internacional, sendo também
entendidos como exigências éticas que demandam positivação, ou seja, como “um
conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico,
concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade, as quais
devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível
nacional e internacional.” (PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos,
Estado de Derecho y Constitución. Madrid: Tecnos, 1999, p. 30.)
JEAN CARLOS DIAS48 constrói uma reflexão importante para a compreensão dos
direitos fundamentais quando destaca:
Um dos referenciais que se pode desde logo adotar é que o exame dos direitos
fundamentais não pode ser tomado contemporaneamente sem a previa
investigação genética das concepções teóricas que cada vertente dogmática
46
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21ª edição, S.Paulo:
Malheiros, 2002, p. 178.
47
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. R.
de Janeiro: Renovar, 2006, p. 75.
48
DIAS, Jean Carlos. “Problemas Contemporâneos de Teoria dos Direitos Fundamentais:
Esboço para uma Investigação Abrangente”. In: KLAUTAU FILHO, Paulo. DIAS, Jean Carlos.
Direitos Fundamentais, Teoria do Direito e Sustentabilidade. R. de Janeiro: Forense. S.Paulo:
Método, 2009, p. 21-22.
69
sustenta. Desse modo, é inequívoco que, nos nossos dias, não se pode falar em
uma teoria, mas sim, em teorias (no plural) dos direitos fundamentais.
Ao lado desse primeiro referencial, deve se acrescer um outro: que a base ética
dos direitos fundamentais também necessita de aprofundamento. A derivação do
primado da dignidade humana, a estratégia dominante em nossos estudos,
apresenta algumas inconsistências em relação à possibilidade de concretização.
Como o conceito geralmente tem sido concebido como uma escala móvel de certo
modo estruturada em função da teoria da argumentação é pouco convincente que
sociedades que não adotem uma concepção compartilhada de dignidade e que
possuam meios institucionais de debate público sejam capazes de eleger os
direitos fundamentais sob esse modelo.
A ideia de dignidade da pessoa humana como fonte de direitos fundamentais está,
aparentemente, presa a uma tautologia: para adotá-la é necessário que uma
sociedade compartilhe uma visão de vida digna e que possua meios institucionais
de exteriorização da razão pública.
Sem que esses dois dados estejam presentes, a estratégia teórica é insustentável.
Vale lembrar que uma parte significativa da recusa ao caráter universal dos
direitos fundamentais deriva, exatamente, da recusa por certas sociedades que
não assume esses dois marcos institucionais. [...]
A dogmática dos direitos fundamentais, se é que podemos afirmar que ela exista,
precisa manter-se aberta a esse conjunto de considerações que a impedem de
assumir a feição de um conhecimento definitivamente consolidado.
Nas definições dos estudiosos é possível perceber a complexidade do
conceito, a dificuldade de delimitá-lo e de traçá-lo com precisão, o que permite
antever os problemas quando se trata de efetivar direitos fundamentais.
É evidente que os aspectos essenciais da dignidade da pessoa humana são
sobejamente conhecidos nas sociedades ocidentais contemporâneas: são os
direitos à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, à assistência social para
os vulneráveis. Mas a medida exata de aplicação desses direitos em cada caso
concreto, e a solução do caso concreto quando os direitos fundamentais de um
indivíduo se chocam com os de outro ou de outros indivíduos (todos portadores
dos mesmos direitos em uma dada sociedade) torna a tarefa de efetivar os
direitos fundamentais ainda mais complexa.
70
O artigo 6° da Constituição Federal, com redação da da pela Emenda
Constitucional n. 06, de 2000, contemplou várias modalidades de garantia da
dignidade da pessoa humana ou de situações jurídicas sem as quais a
sobrevivência, como afirma JOSÉ AFONSO
DA
SILVA, não é possível. Lá se
encontram expressamente consignados a educação, a saúde, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e
à infância, a assistência aos desamparados.
Como efetivar esses direitos para todos sem privilégios?
2. Dimensões da dignidade da pessoa humana
Tudo o que envolve o ser humano e suas manifestações é complexo, histórico,
cultural e sensível. Milênios de trajetória histórica do ser humano na Terra nos
permitiram compreender que a pessoa humana está permanentemente envolta
em aspectos objetivos e subjetivos que se entrelaçam, se complementam e se
negam sucessivamente.
É por isso que a caminhada e a perspectiva de futuro dos homens não podem
ser compreendidas por apenas uma área do conhecimento; ao contrário,
impõem a todos os variados ramos do conhecimento que sobre elas se
debrucem apresentar suas contribuições. Muitas vezes, ainda, o conhecimento
científico será ineficaz para permitir a compreensão dos inúmeros aspectos que
envolvem o ser humano, ocasião em que avulta a busca pela compreensão
metafísica, hoje personificada nos cultos religiosos, na Medicina alternativa,
nas práticas hindus e na chamada literatura de autoajuda.
Esse é o retrato da busca da proteção da dignidade humana em um mundo
complexo, de incertezas, de inesgotável progresso tecnológico, sociedade de
risco e consumista, multi e intercultural, na qual trafegamos quase sempre
entre crises e conflitos.
INGO W OLFGANG SARLET 49 afirma:
SARLET, Ingo Wolfgang. “As Dimensões da Dignidade da Pessoa Humana: Construindo
uma Compreensão Jurídico-Constitucional Necessária e Possível”. In SARLET, Ingo Wolfgang
49
71
[...] não há como negar – a despeito da evolução ocorrida especialmente no
âmbito da Filosofia – que uma conceituação clara do que efetivamente é a
dignidade da pessoa humana, inclusive para efeitos da definição do seu âmbito de
proteção como norma jurídica fundamental, se revela no mínimo difícil de ser
obtida. Tal dificuldade, consoante exaustiva e corretamente destacado na
doutrina, decorre certamente (ao menos também) da circunstância de que se
cuida de um conceito de contornos vagos e imprecisos caracterizados por sua
“ambiguidade e porosidade” assim como por sua natureza necessariamente
polissêmica, muito embora tais atributos não possam ser exclusivamente
atribuídos à noção de dignidade humana.
Uma das principais dificuldades, todavia – e aqui recolhemos a lição de Michel
Sachs – reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa humana,
diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se
cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade
física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas, sim, de uma qualidade tida para
muitos – possivelmente a esmagadora maioria – como inerente a todo e qualquer
ser humano, de tal sorte que a dignidade - como já restou evidenciado – passou a
ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser
humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por contribuir muito para uma
compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da
dignidade, pelo menos na sua condição jurídico-normativa.
SARLET aponta com precisão a dificuldade que advém da polissemia da
expressão que, a rigor, comporta a proteção de todos os direitos da pessoa dos
mais
elementares
aos
mais
complexos,
muito
dos
quais
sequer
satisfatoriamente definidos, como acontece no âmbito da bioética ou da
privacidade no meio eletrônico (rede mundial de computadores), por exemplo.
Essa proteção à dignidade da pessoa humana deve ocorrer até mesmo quando
ela não se encontra de posse de toda sua autodeterminação, como nos casos
de coma profundo ou de perda total ou parcial de raciocínio.
A sociedade brasileira pós-88 também foi chamada a participar do debate
sobre a concretização ou efetividade do princípio da dignidade da pessoa
humana, seja em casos mais simples como o acesso à saúde e à educação
(organizador) Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito
Constitucional. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 18.
e
Direito
72
públicas, seja em casos mais tecnologicamente sofisticados, como o uso de
células-tronco embrionárias para pesquisa, julgado pelo Supremo Tribunal
Federal após audiência pública com cientistas e pesquisadores, e com o
trabalho dos “amigos da corte”, que participaram com suas reflexões e
argumentos.
Em todas as dimensões, no entanto, os casos concretos apresentam
peculiaridades que podem dificultar a aplicação do fundamento constitucional.
Nessa medida, o atributo da dignidade da pessoa humana se afasta muito de
seu limiar histórico pós-Segunda Guerra Mundial, quando os horrores
perpetrados por todos os contendores em Auschwitz, Dachau, Dresden,
Hirochima e Nagasaki, sinalizavam que a dignidade se concretizava no respeito
à continuidade da vida, ao fim de todo e qualquer tratamento violento ou que
impedisse acesso às condições mínimas de sobrevivência como comida, água,
abrigo e tratamento de saúde.
A dignidade da pessoa humana como reação a situações-limite (como aquelas
historicamente vivenciadas na Segunda Grande Guerra Mundial) era mais fácil
de ser compreendida e concretizada do que na atualidade, quando a sociedade
complexa, plural, tecnológica e consumista em que vivemos nos propõe, a
cada momento, novas possibilidades de agressão ou de desrespeito ao ser
humano.
É preciso enfrentar a dificuldade de aplicar o princípio da dignidade da pessoa
humana para situações em que efetivamente estejam em risco aspectos
essenciais para o respeito a uma dada pessoa em uma determinada situação
histórica e social.
MARCELO NOVELINO50 afirma:
A dignidade em si não é um direito, mas um atributo inerente a todo ser humano,
independentemente de sua origem, sexo, idade, condição social ou qualquer outro
requisito. O ordenamento jurídico não confere dignidade a ninguém, mas tem a
função de proteger e promover esse valor. O reconhecimento da dignidade como
fundamento impõe aos poderes públicos o dever de respeito, proteção e
promoção dos meios necessários para uma vida digna.
50
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. S.Paulo: Método, 2009, p. 348.
73
O dever de respeito impede a realização de atividades prejudiciais à dignidade
(“obrigação de abstenção”). O dever de proteção exige uma ação positiva dos
poderes públicos na defesa da dignidade contra qualquer espécie de violação,
inclusive por parte de terceiros. O dever de promoção impõe ao Estado uma
atuação no sentido de proporcionar os meios indispensáveis a uma vida digna.
É no mesmo sentido a reflexão de VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR51:
[...] podemos conceituar dignidade humana como o postulado ético que,
incorporado ao ordenamento jurídico, consubstancia o princípio segundo o qual o
ser humano, quer nas suas relações com seus semelhantes quer nas suas
relações com o Estado, deve ser tomado como um fim em si mesmo, e não como
um meio, o que o faz dignitário de um valor absoluto, donde exsurge um regime
jurídico que apresenta uma feição negativa e uma positiva. A primeira impõe aos
demais e ao Estado o dever de respeito à sua incolumidade física, psíquica e
social (entendida aqui como a liberdade para se autodeterminar e para, com os
demais, participar da autodeterminação da comunidade na qual se integra). A
segunda consubstancia a exigência de prestações do Estado que se afiancem os
pressupostos materiais mínimos para a preservação da vida e a inclusão na
sociedade, bem como a proteção em relações privadas, em que se saliente sua
situação de vulnerabilidade ( por ex. relações de trabalho, consumo, etc.).
O conceito de dignidade humana contempla, portanto, uma dimensão de não
fazer por parte do Estado e de outros cidadãos, e uma dimensão de
proporcionar, de fazer, para que a pessoa tenha acesso aos meios necessários
para uma vida digna.
O não fazer ou a abstenção por parte do Estado está próxima dos chamados
direitos humanos de primeira dimensão, que são os direitos civis e políticos,
supostamente sem custo para o Estado.
Hoje se sabe que não existem direitos sem custo. Os direitos civis e políticos,
para serem plenamente exercidos, comportam custos e gastos estatais, em
especial em um país com a dimensão geográfica brasileira em que uma eleição
para presidente obriga a colocação de urnas eletrônicas em locais de difícil
acesso, como aqueles em que reside a população ribeirinha da Amazônia. É
necessária tecnologia de alto custo para que todos os brasileiros possam votar
51
Obra citada, p. 114.
74
com segurança e para que os resultados sejam conhecidos em pouco tempo,
como acontece no Brasil já há alguns anos.
Os direitos de promoção do Estado são os chamados direitos humanos de
segunda geração, ou seja, os direitos sociais, econômicos e culturais para os
quais o Estado deve alocar recursos financeiros de modo a propiciar o acesso
de todos os cidadãos, de forma contínua e na quantidade necessária para que
o respeito à vida digna se concretize.
A dificuldade em aplicar o dever de promoção à vida digna em cada caso
concreto, com suas especificidades e características próprias, contribuiu para a
formação
de
uma
nova
corrente
de
pensamento
na
hermenêutica
constitucional, que se iniciou pela crítica às normas programáticas, trabalhou
no sentido da efetividade dos direitos fundamentais e, como consequência, a
efetividade da promoção aos meios indispensáveis a uma vida digna.
JOSÉ AFONSO DA SILVA52 ensina:
[...]
podemos
conceber
como
normas
programáticas
aquelas
normas
constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e
imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios
para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e
administrativos), como programa das respectivas atividades, visando à realização
dos fins sociais do Estado. [...]
Elas se localizam como vimos, entre as de eficácia limitada. [...]
Essa doutrina, que aqui reafirmamos, foi certamente um passo avançado na
compreensão das disposições constitucionais programáticas. Contudo, talvez ela
ainda se ressentisse de certa dubiedade no que tange à aplicabilidade dessas
disposições. Pois a afirmação, mesmo peremptória, do caráter jurídico e positivo
dessas normas não basta para que surtam os efeitos que seu conteúdo
geralmente requer. Restou, na nossa afirmativa de sua eficácia limitada e de sua
aplicabilidade dependente de emissão de uma normatividade futura, a ideia de
que não sejam autêntico direito atual, de imediata aplicabilidade, concepção que
se entende, na justa observação de Canotilho, “como linhas programáticas
dirigidas ao legislador, e não como autênticas normas jurídicas imediatamente
preceptivas e diretamente aplicáveis pelos tribunais ou quaisquer outra
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7ª, S.Paulo: Malheiros,
2009, p. 138-140.
52
75
autoridades. Essa é a linha que as constituições e doutrina (alemã, especialmente,
com reflexo em Portugal) vêm tentando superar. [...]
O problema que se coloca agudamente na doutrina recente consiste em buscar
mecanismos constitucionais e fundamentos teóricos para superar o caráter
abstrato e incompleto das normas definidoras de direitos sociais, ainda concebidas
como normas programáticas, a fim de possibilitar sua concretização prática.
Cogita-se de responder à seguinte questão, posta por Canotilho: “Em que medida
pode uma lei fundamental transformar-se em programa normativo do Estado e da
sociedade? Mais concretamente: Como pode (se é que pode) uma Constituição
servir de fundamento normativo para o alargamento das tarefas estaduais e para a
incorporação de fins econômico-sociais, positivamente vinculantes das instâncias
de regulação jurídica?”
E PAULO BONAVIDES53, ainda a respeito das normas programáticas, afirma:
O Estado de direito do constitucionalismo precisa absorver a programaticidade das
normas constitucionais.
Atribuindo-se eficácia vinculante à norma programática, pouco importa que a
Constituição esteja ou não repleta de proposições desse teor, ou seja, de regras
relativas a futuros comportamentos estatais. O cumprimento dos cânones
constitucionais pela ordem jurídica terá dado um passo à frente. Já não será fácil
com respeito à Constituição tergiversar-lhe a aplicabilidade e eficácia das normas
como os
juristas
abraçados
à tese antinormativa, os
programaticidade de conteúdo, costumam
quais, alegando
evadir-se ao cumprimento ou
observância de regras e princípios constitucionais.
É óbvio que o problema de limitar poderes e competências a um instrumento
constitucional não se resolve declarando apenas a juridicidade de seu conteúdo.
Haverá sempre uma instância invisível, um poder latente ao lado da Constituição
formal, decidindo, modificando, renovando comportamentos. Essa instância é
política. A programaticidade traz a sua presença tanto quanto possível para dentro
da Constituição, em ordem a apagar o funesto dualismo que gravita ao redor da
suposta incompatibilidade dos fundamentos políticos com os fundamentos
jurídicos da Constituição.
Afigura-se- nos que a compreensão correta das normas programáticas como
normas jurídicas contribui consideravelmente para reconciliar os dois conceitos da
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25ª edição. S.Paulo: Malheiros, 2010,
p. 237.
53
76
histórica crise constitucional de dois séculos: o conceito jurídico e o conceito
político da Constituição.
PAULO BONAVIDES resgata o debate a respeito da aplicabilidade imediata das
normas constitucionais ou de seu caráter meramente programático a esperar
por complementar para regulamentar o comando, ou ainda a iniciativa estatal
para definir projeto e custeio para realização do comando da norma.
Esse debate alcança especial importância com a Constituição de 1988, a qual,
mais do que um projeto político para o Brasil que retornava ao Estado de
Direito, era fruto da construção histórica de forças sociais que se organizaram
para isso, como os movimentos sociais e o novo sindicalismo. A expectativa
popular era que essa Constituição cumprisse o papel de colocar em prática de
forma imediata e plena os direitos sociais nela contemplados.
A discussão em torno da programaticidade das normas que deveriam esperar o
melhor momento para a aplicação porque não eram de aplicação imediata (em
contraposição àqueles que entendiam pela força normativa constitucional e,
portanto, a possibilidade de aplicação imediata ao caso concreto), adquire
maior vigor com os estudos sobre o neoconstitucionalismo e a nova
hermenêutica constitucional, que ganham força nos anos 90 no Brasil.
Parte dos juristas brasileiros adotou a ideia central de LASSALLE que LUIS
ROBERTO BARROSO54 resgatou:
[...] a Constituição de um país é, em essência, a soma dos fatores reais do poder
que regem a sociedade. Em outras palavras, o conjunto de forças políticas,
econômicas e sociais, atuando dialeticamente, estabelecem uma realidade, um
sistema de poder: esta é a Constituição real, efetiva do Estado. A Constituição
jurídica, mera “folha de papel”, limita-se a, em um documento escrito, converter
esses fatores reais do poder em instituições jurídicas, em Direito.
As forças políticas e econômicas em tensão após a entrada em vigor da
Constituição Federal de 1988 acenderam o debate em torno da efetividade das
normas constitucionais, e trouxeram para o centro do interesse dos juristas
BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 8ª
edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 65.
54
77
questões como o neoconstitucionalismo, a força dos princípios, o sopesamento
de princípios, o conceito de reserva do possível, de mínimo ético exigível e o
direito ao mínimo existencial, entre outros temas que ainda frequentam o
debate e a pesquisa acadêmica e que, no início do novo século, igualmente se
tornaram presentes na fundamentação das decisões judiciais.
A ideia recorrente de parte dos juristas e magistrados é que a Constituição
Federal deva ser integralmente aplicada no âmbito dos direitos fundamentais,
ainda que pela via judicial. Há uma sensação de que a esfera do político havia
se esgotado ou se mostrado incapaz de efetivar os direitos previstos no texto
constitucional.
Essa ambiência histórica e social se mostra permeável à ideia do chamado
neoconstitucionalismo, ou seja, o fenômeno da superação da validade
meramente formal do Direito que avança para compreender o âmbito da
efetividade tendo a dignidade da pessoa humana como núcleo essencial a ser
buscado.
O fenômeno já havia ocorrido na Europa após a Segunda Guerra Mundial, em
especial na Constituição alemã do pós-guerra.
Conforme explica RICARDO CAIADO AMARAL55:
A Lei Fundamental da Alemanha nasceu quatro anos após a Segunda Guerra
Mundial como lei constitucional provisória da parte da Alemanha então ocupada
pelos aliados ocidentais. Tornou-se definitiva como a Constituição Federal da
Alemanha, por efeito da criação dos dois Estados alemães, uma parte ocidental e
outro na parte oriental. Com a derrubada do Muro de Berlim, em 1989-90, e a
consequente unificação alemã, a Lei Fundamental de Bonn de 1949, voltou a ser a
Lei Maior de toda a Alemanha. [...]
Dessa forma, a Grundgesetz, simboliza um verdadeiro pacto social. A fonte dos
desejos, anseios e esperanças da nação alemã. Seria, a partir dela, então, que o
povo alemão se embasaria para construir o seu Estado e a sua sociedade. Um
Estado que teria como tarefa principal a realização e a preservação dos direitos
AMARAL, Roberto. “A Democracia Representativa está Morta; Viva a Democracia
participativa!” In GRAU, Eros Roberto. GUERRA Filho. Willis Santiago (organizadores) Direito
Constitucional – Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides. S.Paulo: Malheiros, 2004, p.
152-154.
55
78
fundamentais consagrados na Lei Fundamental, o que não ocorria no regime
nazista. Elegendo, para tanto, como fundamento principal o respeito à dignidade
da pessoa humana, definida por Häberle como premissa antropológico-cultural do
Estado Constitucional.
No Brasil a reconstrução democrática tem contornos dramáticos com a morte
do presidente eleito pelo colégio eleitoral, de forma indireta, porém caudatário
das melhores esperanças de construção da democracia. O vice-presidente que
assume é fortemente ligado às forças políticas e militares que lideraram o País
durante o regime militar e, não apenas por isso, mas também por isso, visto
com enorme desconfiança pela vanguarda do pensamento político e pelos
atores sociais organizados. A primeira eleição direta coloca no poder um
representante da oligarquia canavieira de um dos estados mais pobres da
federação
e,
na
sequência,
denúncias
de
corrupção
provocam
seu
impeachment colocando em teste a frágil democracia até então construída.
Esses percalços políticos se desenrolam em meio a fortes crises econômicas,
com índices inflacionários inimagináveis para os padrões contemporâneos,
com várias tentativas e erros de planos econômicos que quase sempre
causaram mais prejuízo do que encontraram soluções eficientes, diminuindo o
acesso ao emprego, o poder de compra da população de baixa renda, e
tornando os problemas sociais urbanos e rurais de grande magnitude.
Tal cenário de injustiça social em um país cuja Constituição Federal é
primorosa em prever direitos contribuiu para que o neopositivismo começasse
a ser pesquisado e praticado no âmbito jurídico brasileiro.
EDUARDO CAMBI 56 descreve:
O neopositivismo como consequência filosófica do neoconstitucionalismo,
apresenta-se como uma nova forma de interpretação e de aplicação do direito.
Parte das bases do positivismo jurídico, procurando mostrar uma outra forma de
compreensão do fenômeno jurídico. [...]
A norma não se confunde com o texto. Interpretar é determinar o significado
objetivo de um texto: antes da interpretação, não há norma, apenas um texto. Não
há um significado interno ou intrínseco ao texto, que prescinda da interpretação;
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos Fundamentais,
Políticas Públicas e Protagonismo Judicial. S.Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 83-85.
56
79
por isto, interpretar não é declarar algo já existente (latente e pronto a ser
descoberto) no texto, mas resultante da decisão do intérprete que, com o uso da
linguagem, constrói versões de significado. [...]
O texto, ainda que constitucional, é apenas o ponto de partida do processo de
interpretação-concretização normativa. Isto significa que o texto ou a letra da
Constituição ou da lei não contém, antecipada e automaticamente, a decisão do
problema a ser resolvido concretamente. [...]
A interpretação jurídica, pois, possui um caráter bipolar, posto que a construção da
norma adequada depende tanto da análise do ordenamento jurídico quanto do
exame das circunstâncias do caso concreto. Por isto, a palavra “interpretação” é
precedida pela preposição inter, que significa atividade intermediadora ou
mediadora entre o caso real e a regra ou o princípio que devem regulá-lo,
vinculando a realidade ao direito. O direito, antes de ser uma regra ou instituição,
é uma obra hermenêutica, um discurso, que se articula entre a regra e o fato, a
letra e o espírito, a ordem e a desordem, a força e a justiça.
O positivismo, até então muito forte no pensamento jurídico brasileiro, marcado
pela perfeita identificação do Direito com a lei, pela objetividade e pela
completude do Direito, que raramente admitia antinomias ou lacunas (pelo não
reconhecimento
de
normatividade
aos
princípios
que
eram
apenas
sinalizadores e não para serem aplicados ao caso concreto, pela legitimidade
da norma a partir de sua legalidade e, principalmente, pelo formalismo jurídico
como pressuposto da segurança jurídica), começou a ser questionado pela
construção teórica e pela aplicabilidade dos pressupostos neopositivistas e
neoconstitucionais.
Uma nova forma de interpretar começa a ser estudada e aplicada, afastando a
subsunção automática do centro do debate e incluindo aspectos até então
relegados a plano secundário, como a importância da linguagem para o Direito.
BARROSO57 afirma:
A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo
abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca
do direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação
provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das
relações entre os valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova
BARROSO, Luis Roberto. BARCELLOS, Ana Paula. “O Começo da História: A Nova
Interpretação Constitucional”. In: SILVA, Virgílio Afonso da (organizador). Interpretação
Constitucional. S.Paulo: Malheiros, 2007, p.276-278.
57
80
hermenêutica constitucional e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o
fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação
explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem
jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre
direito e ética.
Gradativamente, diversas formulações antes dispersas ganham unidade e
consistência, ao mesmo tempo em que se desenvolve o esforço teórico que
procura transformar o avanço filosófico em instrumental técnico-jurídico aplicável
aos problemas concretos. O discurso acerca dos princípios, da supremacia dos
direitos fundamentais e do reencontro com a ética – ao qual, no Brasil, se deve
agregar o da transformação social e o da emancipação – deve ter repercussão
sobre o ofício dos juízes, advogados e promotores, sobre a atuação do poder
público em geral e sobre a vida das pessoas. Trata-se de transpor a fronteira da
reflexão filosófica, ingressar na dogmática jurídica e na prática jurisprudencial e,
indo mais além, produzir efeitos positivos sobre a realidade.
Em
relação
aos
direitos
fundamentais,
a
nova
hermenêutica
ou
a
constitucionalização (ou, ainda, o neopositivismo) começaram a ser aplicados
na busca da máxima efetividade dessa categoria de direitos, alicerçados pelo
ideário de amplificar a Constituição Federal de 88 como um projeto que
finalmente fosse aplicado em sua totalidade e não apenas no âmbito dos
direitos políticos.
O fenômeno da “constitucionalização do Direito” adquiriu contornos de
movimento que rompeu a histórica separação público-privado, e, alcançou
variadas dimensões da vida nacional.
O neoconstitucionalismo foi aplicado na discussão em torno do papel e dos
limites da administração pública, no debate sobre aplicação da legislação
tributária, locus onde tradicionalmente sempre foi de fundamental importância;
mas, também foi aplicado no âmbito das relações privadas, na interpretação
dos contratos, no alargamento da responsabilidade civil, sempre na busca da
concretização máxima da dignidade da pessoa humana.
Foi o momento da revisão da teoria contratual que apontava o princípio do
pacta sunt servanda como diretriz máxima das relações contratuais. Começou
a ser construída uma nova teoria dos contratos, que apontou o equilíbrio como
o principal aspecto a ser priorizado; e, nos contratos de adesão já amplamente
utilizados no Brasil do início do século XXI, a necessidade de uma
81
interpretação sempre mais benéfica ao aderente, conforme consignado
expressamente no Código de Defesa do Consumidor e, a partir de 2003, no
Código Civil brasileiro.
Surgiram os estudos de Direito civil constitucional apontando para a
necessidade de discutir as relações privadas tendo como pano de fundo os
princípios constitucionais, entre eles (e principalmente) o respeito à dignidade
da pessoa humana e a função social da propriedade e dos contratos.
O estudo dos princípios e de sua força normativa foi impulsionado nos
programas de pós-graduação em Direito no início do século XXI, dando ensejo
à grande quantidade de trabalhos de pesquisa nessa área do conhecimento.
O final dos anos 90 e o início do século XXI, impulsionados por momentos
marcantes da história social, econômica e política, nacional e internacional,
colocaram no centro do debate jurídico brasileiro a relativização da autonomia
da vontade das partes como elemento fundamental para os contratos; a
relativização da coisa julgada como novo modo de construir justiça; a
perspectiva do Judiciário com menor característica de “boca da lei” e mais
preocupado com o conhecimento das peculiaridades do caso concreto; a
função social como novo paradigma das relações de propriedade.
A segurança jurídica que fora construída sobre o pilar de decisões iguais para
casos concretos que se subsumiam à vontade da lei, aplicada esta por um juiz
racional, imparcial, propositadamente distante e colocado em posição
fisicamente superior na sala de audiências, começou a sentir o abalo de
decisões proferidas por juízes que relativizaram o formalismo e a tradição em
que o Direito sempre se apoiou em nome de uma ideia resumida como
constitucionalização do Direito.
Toda essa movimentação não se construiu sem críticas e sem resistência. Em
grande parte dos cursos de Direito em todo o País o que ainda se estuda são
os ícones tradicionais que sempre alimentaram a reflexão em torno dessa
disciplina, ou seja, o texto da lei e sua aplicação em casos exemplares, embora
nem sempre compatíveis com a realidade.
Mas a nova interpretação constitucional defendida por muitos juristas foi no
sentido de que a Constituição Federal deveria estar presente em todos os
82
conflitos, provocando um primado constitucional até então sem precedentes na
história jurídica nacional.
LUIS ROBERTO BARROSO58 afirma:
A nova Constituição passa a ser, assim, não apenas um sistema em si – com sua
ordem, unidade e harmonia – mas também um modelo de olhar e interpretar todos
os demais ramos do direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como
filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e
apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela
consagrados. A constitucionalização do direito infraconstitucional não identifica
apenas a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas,
sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.
A
ascensão
científica
e
política
do
direito
constitucional
brasileiro
é
contemporânea da reconstitucionalização do país com a Carta de 1988, em uma
pretensão relação de causa e efeito. A Assembleia Constituinte foi cenário de
ampla participação da sociedade, que permanecera alijada do processo político
por mais de duas décadas. O produto final de seu trabalho foi heterogêneo. De um
lado, avanços como a inclusão de uma generosa carta de direitos, a recuperação
das prerrogativas dos Poderes Legislativo e Judiciário, a redefinição da
Federação. De outro, no entanto, o texto casuístico, prolixo, corporativo, incapaz
de superar a perene superposição entre o espaço público e o espaço privado no
país. A Constituição de 1988 não é a Carta da nossa maturidade institucional, mas
das nossas circunstâncias.
Nesse contexto, a Constituição Federal e seus princípios passaram a ser
utilizados na solução de inúmeros conflitos que, anteriormente, não
comportavam princípios constitucionais como argumento. Foi o que ocorreu,
por exemplo, na interpretação de contratos privados de adesão, como os de
operadoras de saúde, por exemplo. Muitas restrições contratuais eram
alargadas em juízo com o argumento de que ofendiam a dignidade da pessoa
humana e, nessa medida, não poderiam vigorar entre as partes.
BARROSO, Luis Roberto. “Fundamentos Teóricos e Filosóficos do novo Direito
constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo)”. In BARROSO,
Luis Roberto (organizador). A Nova Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 44.
58
83
Se no âmbito do Direito privado a aplicação da constitucionalização teve
adeptos e defensores, na esfera pública isso ocorreu com muito mais
facilidade.
O universo jurídico brasileiro passou de normas programáticas (que nunca se
materializavam porque apenas sinalizavam programas a serem cumpridos
quando e se possível, dependendo integralmente da vontade política do
governante) para a aplicação imediata da Constituição Federal, por sentença
judicial e que contribuísse para efetivar a dignidade da pessoa humana em
suas mais variadas dimensões. Em suma, um salto significativo, porém nem
sempre possível de ser concretizado.
RICARDO LOBO TORRES59 sistematiza essas ideias:
No plano da doutrina passou a prevalecer a ideia de que os direitos sociais eram
direitos a prestações originárias, por influência do constitucionalismo alemão de
corte social-democrata das décadas de 50 a 70 e da obra do jurista português J.J.
Gomes Canotilho.
Com efeito, a corrente da social-democracia, principalmente na Alemanha,
radicalizara o seu discurso, para defender o primado dos direitos sociais. O
notável grupo de constitucionalistas germânicos que pontificou nas “décadas de
ouro” do século XX (1950 a 1970), quando o Ocidente assistiu ao extraordinário
incremento da riqueza das nações, defendia a prevalência dos direitos sociais
mediante algumas teses básicas:
a)
Todos os direitos sociais são direitos fundamentais sociais;
b)
Os
direitos
fundamentais
sociais
são
plenamente
justiciáveis,
independentemente da intermediação do legislador;
c)
Os direitos fundamentais sociais são interpretados de acordo com princípios
de interpretação constitucional, tais como os da máxima efetividade,
concordância prática e unidade da ordem jurídica. [...]
No Brasil a influência do pensamento germânico se fez sentir sobretudo através
das traduções e referências feitas por Canotilho. A doutrina brasileira dos anos 80
passou a defender o primado dos direitos sociais e a sua plena efetividade.
TORRES, Ricardo Lobo. “O Mínimo Existencial, os Direitos Sociais e Os Desafios de
Natureza Orçamentária”. In: SARLET. Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti
(organizadores). Direitos Fundamentais – Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 70-71.
59
84
Paulatinamente, outros estudos começaram a surgir como contribuição ao
pensamento jurídico em torno da efetividade dos direitos sociais. Uma das
vertentes estudadas é a do mínimo existencial, debatida entre outros por
RICARDO LOBO TORRES, GUSTAVO AMARAL e ANA PAULA
DE
BARCELLOS, entre
outros.
Esses estudos abriram espaço para que as discussões em torno da reserva do
possível e da reserva orçamentária não só ganhassem espaço mas também se
constituíssem num importante contraponto àquele momento inicial em que
parecia possível realizar todos os direitos fundamentais sociais pela via da
determinação judicial.
3. Direito ao mínimo existencial e reserva do possível
O conceito de reserva do possível e de direito ao mínimo existencial sofreram,
de início, certo repúdio dos juristas brasileiros preocupados em construir
estudos sobre a efetividade dos direitos fundamentais. Esses conceitos
pareciam resgatar a ideia de normas programáticas como aquelas que apenas
sinalizam condutas a serem adotadas quando e se o executivo desejar, ou
seja, dependentes de uma vontade política nem sempre possível de se
concretizar.
O conceito de reserva do possível, em especial, parecia se contrapor ao
avanço que havia sido conquistado pelos neoconstitucionalistas quando
colocaram no centro do debate jurídico a efetividade da Constituição Federal
como norma de pronta aplicação, independente de qualquer outra vontade que
não a do Judiciário.
Termo importado do Direito germânico do pós-guerra, a expressão de fato
sugere que a efetividade dos direitos fundamentais estará condicionada à
existência de reservas obtidas a partir da arrecadação de tributos, atribuindo ao
Poder Executivo e ao Poder Legislativo a supremacia pela decisão de onde
investir o dinheiro público, sabido que no sistema brasileiro, o orçamento é
construído pelo Executivo e pelo Legislativo que o aprova em forma final.
85
Além disso, a reserva do possível promovia uma aproximação do Direito com a
Economia, áreas do conhecimento que, quando se aproximam, são vistas com
preocupação por alguns juristas, em especial aqueles que temem a supremacia
da Escola de Chicago no pensamento econômico. Os pressupostos do livre
mercado, da livre formação de preços, da defesa da propriedade privada, da
baixa carga tributária, do governo mínimo, do liberalismo econômico e do fim
da social democracia estão presentes no pensamento de vários estudiosos que
se inspiraram na chamada Escola de Chicago e, nessa medida, merecem a
repulsa dos juristas favoráveis à efetividade dos direitos fundamentais.
Essa aversão à aproximação entre Direito e Economia não é pacífica entre os
juristas. LUCIANO BENETTI TIMM60 afirma
Por que o Direito deveria dialogar e se aproximar da Economia? Brevemente, em
primeiro lugar, porque a Economia é a ciência que descreve de maneira
suficientemente adequada o comportamento dos seres humanos em interação no
mercado, que é tão importante para a vida real em sociedade. Em segundo lugar,
porque a Economia é uma ciência comportamental que atingiu respeitável e
considerável padrão científico, sendo hoje uma das estrelas dentre as ciências
sociais aplicadas pelo grau de comprovação matemático e econométrico dos seus
modelos. Em terceiro lugar, a Ciência Econômica preocupa-se com a eficiência do
manejo dos recursos sociais escassos para atender ilimitadas necessidades
humanas – que é um problema-chave quando se falam de direitos sociais ou mais
genericamente fundamentais.”
Os estudos de análise econômica de Direito podem ter também esse viés
apontado pelo professor TIMM, ou seja, de um diálogo de ciências, podendo
contribuir, uma para com a outra, visando ao aprofundamento de pesquisas e
reflexões, e à descoberta de soluções sociais eficazes. A economia comporta
as dimensões da justiça e da ética tanto quanto o próprio Direito, embora
existam práticas econômicas de mercado que neguem por completo essas
dimensões.
TIMM, Luciana Benetti. “Qual a Maneira Mais Eficiente de Prover Direitos Fundamentais:
Uma Perspectiva de Direito e Economia”. In SARLET. Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti
(organizadores). Direitos Fundamentais – Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 57.
60
86
A compreensão da reserva do possível vai depender, em alguma medida, da
aproximação com a Economia, principalmente dos estudos de gastos públicos,
de composição de orçamentos e de impacto das decisões judiciais em toda a
cadeia de distribuição de rendas. Nesse sentido, ao inserir os conceitos de
reserva do possível e de mínimo ético irredutível no âmbito do Direito, em
especial no debate sobre a efetividade dos direitos fundamentais, deixar de
fora a contribuição da Economia é compreender o problema de forma restrita e,
como tal, incompleta.
SARLET e FIGUEIREDO61 historicizam a construção do conceito de mínimo
existencial :
Na doutrina do Pós-Guerra, o primeiro jurista de renome a sustentar a
possibilidade do reconhecimento de um direito subjetivo à garantia positiva dos
recursos mínimos para uma existência digna foi o publicista Otto Bachof, que, já
no início da década de 1950, considerou que o princípio da dignidade da pessoa
humana (art. 1°, da Lei Fundamental da Alemanha, na sequência referida como
LF) não reclama apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de
segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a
própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada. Por esta razão, o direito à
vida e integridade corporal (art. 2°, inci. II, da LF) não pode ser concebido
meramente como proibição de destruição da existência, isto é, como direito de
defesa, impondo, ao revés, também uma postura ativa no sentido de garantir a
vida. Cerca de um ano depois da paradigmática formulação de Bachof, o Tribunal
Federal Administrativo da Alemanha (Bundesverwaltungsgericht) já no primeiro
ano de sua existência, reconheceu um direito subjetivo do indivíduo carente a
auxílio material por parte do Estado, argumentando, igualmente com base no
postulado da dignidade da pessoa humana, no direito geral de liberdade e no
direito à vida, que o indivíduo, na qualidade de pessoa autônoma e responsável,
deve ser reconhecido como titular de direitos e obrigações, o que implica
principalmente a manutenção de suas condições de existência.
De fato, a vida de uma pessoa não se resume à mera existência. Ao contrário,
existem condições mínimas sem as quais é até difícil separar o homem do
animal. Essas condições, evidentemente, se referem à alimentação adequada,
61
SARLET, Ingo Wolfgang. FIGUEIREDO, Mariana Filchtine. “Reserva do Possível, Mínimo
Existencial e Direito à Saúde: Algumas Aproximações”. In: SARLET. Ingo Wolfgang. TIMM,
Luciano Benetti (organizadores). Direitos Fundamentais – Orçamento e Reserva do Possível.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 19.
87
lugar minimamente confortável para morar e, principalmente, condições de
exercer opções que permitam, a partir do seu trabalho e da sua iniciativa,
modificar as condições de vida para melhor.
Essas opções devem ser fornecidas pelo Estado a partir do uso racional e
correto dos recursos públicos, competindo-lhe fornecer saúde, educação,
acesso a crédito para aquisição de moradia, formação profissional que permita
a inserção no mundo do trabalho e, nas situações limite em que o indivíduo se
encontra, fornecer a alimentação necessária para que ele não sucumba.
Leciona RICARDO LOBO TORRES62:
Só os direitos da pessoa humana, referidos a sua existência em condições dignas,
compõem o mínimo existencial. Assim, ficam fora do âmbito do mínimo existencial
os direitos das empresas ou das pessoas jurídicas, ao contrário do que acontece
com os direitos fundamentais em geral.
O direito a existência deve ser entendido no sentido que lhe dá a filosofia, ou seja,
como direito ancorado no ser-aí (Da-sein) ou no ser-no-mundo (in-der-Welt-sein).
Integra a ‘estrutura de correspondências de pessoas ou coisas’, em que afinal
consiste o ordenamento jurídico. Não se confunde com o direito à vida, que tem
duração continuada entre o nascimento e a morte e extensão maior que o de
existência, que é situacional e não raro transitória. A Corte Constitucional da
Alemanha define o mínimo existencial como o que é ‘necessário à existência
digna’ (ein menschenwurdiges Dasein notwendig sei).
As definições são carregadas de intersubjetividade como é próprio a tudo o que
diz respeito à dignidade da pessoa humana. Assim, definir o mínimo existencial
e as pessoas a quem esse mínimo deva ser garantido são os problemas
concretos que a efetividade dos direitos fundamentais propõe para os
estudiosos de Direito.
FERNANDO FACURY SCAF63 afirma:
Os economistas possuem uma expressão bastante interessante, denominada
‘Limite do Orçamento’, que depois foi trasladada para o Direito, a partir de uma
TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009,
36-37.
63
SCAF, Fernando Facury. “Sentenças Aditivas, Direitos Sociais e Reserva do Possível”. In:
SARLET. Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti (organizadores). Direitos Fundamentais –
Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 169.
62
88
decisão do Tribunal Constitucional Alemão, com o nome de ‘Reserva do Possível’.
O significado é o mesmo: todo orçamento possui um limite que deve ser utilizado
de acordo com as exigências de harmonização da econômica geral.
A reserva do possível como construção teórica também tem origem na
Alemanha do pós-guerra, e propõe que a prestação por parte do Estado dos
elementos
essenciais
para
a
garantia
do
mínimo
existencial
esteja
condicionada aos recursos arrecadados e disponibilizados pelo Estado em
consonância com o orçamento público. Em outras palavras, sendo o Estado o
agente arrecadador e organizador do orçamento, cabe a ele, pela via do
Executivo e do Legislativo, construir o orçamento a partir de escolhas que
estariam inseridas no âmbito da discricionariedade do Estado.
ANA PAULA DE BARCELLOS64 expõe sua opinião a respeito do assunto:
De forma geral, a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno
econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase
sempre infinitas a serem por eles supridas. (...) a reserva do possível significa que,
para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do
Estado – e em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta -, é
importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses
direitos. Novamente: pouco adiantará, do ponto de vista prático, a previsão
normativa ou a refinada técnica hermenêutica se absolutamente não houver
dinheiro para custear a despesa gerada por determinado direito subjetivo.
A rigor, sob o título da reserva do possível convivem ao menos duas espécies de
fenômenos. O primeiro deles lida com a inexistência fática de recursos, algo
próximo da exaustão orçamentária, e pode ser identificado como reserva do
possível fática. (...) O segundo fenômeno identifica uma reserva do possível
jurídica já que não descreve propriamente um estado de exaustão de recursos, e
sim a ausência de autorização orçamentária para determinado gasto em particular.
Após afirmar que a reserva do possível não mereceu estudos mais
sistematizados no Brasil até a década de 90, a referida autora ressalta:
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. 2ª edição. R.
de Janeiro: Renovar, 2008, p. 261.
64
89
Na ausência de um estudo mais aprofundado, a reserva do possível funcionou
muitas vezes como o moto mágico, porque assustador e desconhecido, que
impedia qualquer avanço na sindicabilidade dos direitos sociais. A iminência do
terror econômico, anunciada tantas vezes pelo Executivo, cuidava de reservar ao
Judiciário o papel de vilão nacional, caso determinadas decisões fossem tomadas.
De fato, esse é o grande risco que aparece como resultado da falta de estudos
mais sistematizados sobre o tema da reserva do possível. Trata-se de um
conceito que não pode ser demonizado como sinônimo de falta de decisão dos
poderes republicanos em efetivar os direitos fundamentais; e que, por outro
lado, não pode ser negado porque, realmente, representa um sentido de justiça
na aplicação dos recursos que são públicos e, portanto, de todos os atores
sociais.
Nos países latino-americanos cuja marca central da administração pública tem
sido a má gestão dos recursos (em especial como decorrência da corrupção), a
utilização da reserva do possível como argumento para sustentar a negativa de
acesso a direitos fundamentais suscita controvérsias.
Há um temor generalizado entre a população e os juristas no sentido de que a
alegação do Estado sobre reserva do possível seja, na verdade, apenas fruto
da
má
administração
dos
recursos,
muitos
deles
utilizados
forma
absolutamente indevida e ilegal, para favorecer interesses de administradores
públicos e seus aliados políticos.
CARLOS ANTONIO LEITE BRANDÃO65 nos ensina:
[...] Do ponto de vista da polis, dá a corrupção quando dilui-se o “muro” entre a
esfera pública e o interesse privado, facultando a este roubar – privare – aqueles
bens e serviços comuns. Corrompe-se, assim, não apenas o patrimônio público,
mas, antes, o próprio corpo político que o constituiu e as leis que o mantinham.
Não se trata de pensar a corrupção apenas como degeneração moral do
governante ou do agente público, mas, principalmente, como deterioração da polis
e das idéias de cidade e de bem público no interior de toda a comunidade política;
não apenas de condenar o legislador ou funcionário público corrupto, mas também
o próprio corruptor anônimo que se fortalece num universo em que o bem comum,
a polis, e sua lei encontram-se fragilizados.
BRANDÃO, Carlos Antonio Leite. “Corrupção e Cidade”. In: AVRITZER, Leonardo (et all.)
Corrupção: Ensaios e Críticas. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 194.
65
90
No Brasil, o acúmulo de denúncias de corrupção, de malversação do dinheiro
público e também de mero desperdício e falta de planejamento na gestão do
interesse social, constrói o senso comum de que existem recursos para todas
as necessidades sociais; e, se eles não aparecem para supri-las, é porque
foram roubados ou desviados. A mídia contribui em boa parte para corroborar
esse ideário ingênuo de que existem recursos públicos infinitos e que os gastos
são sempre realizados de forma propositadamente errada, ou que os recursos
são desviados antes mesmo de sua utilização.
Na verdade tudo isso ocorre: corrupção, má utilização dos recursos, perdas
consideráveis
por
total
falta
de
planejamento.
Mas,
para
algumas
necessidades, os recursos jamais serão integralmente suficientes, como
acontece no caso da saúde pública. São tantas e tão diversificadas as
hipóteses, as variáveis, as necessidades e os que precisam de acesso a ela,
que a conta muito dificilmente fechará. Em se tratando de saúde pública é
possível afirmar que os recursos jamais serão suficientes para suprir todas as
necessidades dos cidadãos brasileiros. É preciso, portanto, administrar os
recursos com planejamento técnico e estratégico, de modo a atender a maior
quantidade possível de necessidades.
Portanto, o conceito de reserva do possível pode ser aplicado à saúde pública
no Brasil contemporâneo. Não é apenas uma construção teórica para ser
utilizada para afastar a responsabilidade do Estado em relação à efetividade
dos direitos fundamentais, em especial os direitos sociais; ao contrário, esse
conceito se inclui no âmbito maior da ideia de planejamento das atividades
públicas para que elas possam suprir a maior quantidade de necessidades,
com eficiência e democracia.
91
CAPÍTULO III
ESTUDO DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DE JULGADOS SOBRE SAÚDE PÚBLICA.
Neste capítulo serão analisados alguns julgados de Tribunais de Justiça
Estaduais, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal,
todos decidindo pedidos individuais de concessão de medicamentos,
tratamentos médicos ou fornecimento de órteses e próteses no âmbito da
saúde pública.
O objetivo é estudar os argumentos utilizados pelos desembargadores e
ministros na concessão ou negativa dos pedidos individuais levados ao Poder
Judiciário, e a forma como o debate em torno da questão do direito à saúde
versus utilização dos recursos públicos se coloca no âmbito das decisões
judiciais.
A reflexão sobre a competência das diversas esferas de poder (federal,
estadual e municipal) para oferecimento de serviços de saúde não é objeto
deste Capítulo, assim como não será analisado o argumento da ingerência do
Judiciário sobre o Executivo e do suposto desequilíbrio da harmonia e
independência dos poderes. Tais temas, embora relevantes, não são objeto do
presente estudo, que pretende analisar os argumentos utilizados pelo Judiciário
na aplicação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e
do direito à saúde.
A análise dos argumentos tem por objetivo estudar em que medida as
categorias ativismo judicial ou protagonismo judicial são adequadas para
explicar o que ocorre no âmbito das decisões individualizadas dos processos
judiciais sobre saúde pública. Também adquire especial relevância
a
92
discussão em torno dos elementos fundamentais que compõem os argumentos
decisórios no sentido de detectar se eles limitam a interpretação do texto
constitucional ou migram para o debate político em torno do direito à saúde.
A questão ativismo ou protagonismo judicial se avoluma na esteira da
participação crescente do Poder Judiciário na solução de uma enorme gama de
assuntos no cotidiano da sociedade brasileira. É tema de estudos no âmbito do
Direito, mas também da Ciência Política.
A sociedade brasileira pós-Constituição Federal de 1988 passou a acreditar no
Poder Judiciário como instância em que os problemas são resolvidos, embora
o decurso de tempo para obter a decisão seja sempre muito longo e
incompatível com as necessidades mais urgentes. No entanto, para as
situações que demandam urgência existe a possibilidade de utilização de
institutos processuais como as tutelas antecipadas e a obtenção de medidas
liminares.
Essa credibilidade do Poder Judiciário é compatível com uma sociedade em
que os cidadãos começam a se perceber como sujeitos de direito e não apenas
como sujeitos de deveres. O período da ditadura militar foi bastante marcado
por um sentimento de nacionalismo como dever, expresso em mensagens
publicitárias que lembravam ao brasileiro suas obrigações para com a pátria.
Os direitos eram garantidos pelo poder militar e pouco comentados.
Os movimentos sociais que ocorreram ao final da década de 70 e durante
quase toda a década de 80, em especial nos grandes centros urbanos, deram
início à construção de uma identidade cidadã que teria seu apogeu na
promulgação da Constituição Federal, quando então o próprio Deputado
ULYSSES GUIMARÃES, presidente dos trabalhos da Assembleia Nacional
Constituinte, se incumbiu de forjar a expressão até hoje consagrada –
Constituição cidadã. Uma Constituição cidadã para uma sociedade que
resgatava a liberdade democrática e que, fundamentalmente, retomava a
possibilidade de ter e exercer direitos.
E quem consagra o direito? Quem diz o direito? Quem determina quem tem e
quem não tem direito? O Poder Judiciário!
93
Também contribuiu para o protagonismo do Poder Judiciário após a
promulgação da Constituição Federal de 1988 os sucessivos problemas
vivenciados pelo Executivo e pelo Legislativo, com parte de seus membros
envolvidos em graves suspeitas de prática de corrupção, improbidade e quebra
de decoro, o que gerou inúmeras Comissões Parlamentares de Inquérito
transmitidas ao vivo pelas redes televisivas
e pelas rádios, noticiadas à
exaustão nos jornais e revistas semanais e satirizadas em programas de humor
de grande audiência, fazendo com que a credibilidade desses poderes
descesse a índices muito baixos.
A introdução da TV Justiça com transmissão de sessões do Supremo Tribunal
Federal familiarizou a sociedade brasileira com essa instância decisória. Temas
de forte apelo emocional que foram decididos pelo STF nos últimos anos (uso
de células-tronco embrionárias para pesquisas e casamento entre pessoas do
mesmo sexo, entre outros), fizeram com que a mídia passasse a divulgar
sistematicamente as atividades do órgão julgador tornando-o mais presente no
cotidiano nacional.
Outro fator que contribuiu para que o Poder Judiciário se tornasse o locus
prioritariamente procurado por parte da população para solução de seus
problemas cotidianos foi a formação dos profissionais de Direito brasileiros,
marcadamente processualista, e que se gradua acreditando na demanda
judicial como solução de todos os problemas. A análise dos currículos dos
cursos de Direito em todo o País permite verificar a quantidade de períodos em
que se estuda Direito processual em contraposição ao pouco tempo dedicado à
capacitação do aluno para a solução de conflitos por outros meios.
Não temos no Brasil a tradição da solução de conflitos por mediação ou
arbitragem. Embora sejam institutos regulados por lei, são praticamente
inutilizados para os conflitos cotidianos. Na atualidade, as controvérsias
empresariais contratuais de maior porte já começam a ser solucionadas
prioritariamente por arbitragem em razão da celeridade que essa solução
propicia. Mas a mediação ainda não alcança a efetividade desejada para
desafogar o Poder Judiciário e solucionar com rapidez as questões mais
corriqueiras que envolvem a população.
94
Dois aspectos, portanto, são identificados neste trabalho como fundamentais
para explicar o fenômeno da judicialização que tem ocorrido no Brasil nos
últimos anos: a credibilidade do Poder Judiciário frente aos demais poderes
republicanos, e a formação jurídica brasileira, que aponta o litígio processual
como principal fonte de solução de controvérsias de qualquer natureza. A
formação jurídica tampouco será objeto de análise nesta pesquisa, até porque
foi tratada em tese de doutorado da pesquisadora na área de Educação66. O
objetivo é compreender quais argumentos têm sido utilizados pelos
magistrados de Segunda Instância nas decisões proferidas em favor de
requerentes que pretendem acesso à saúde pública, e se esses argumentos
caracterizam os fenômenos do ativismo ou do protagonismo judicial.
Os termos ativismo e protagonismo judicial têm sido utilizados com maior
frequência nos estudos jurídicos, assim como judicialização da política, objeto
de vários estudos na área de Ciências Políticas.
Utilizando como base de reflexão crítica o trabalho de TORNBJORN VALLINDER
(When Courts Go Marching In), KOERNER, INATOMI E BARRATO67 relatam:
Num primeiro sentido, este conceito é sinônimo da “expansão global do Poder
Judiciário”, que se refere à infusão de processos decisórios judiciais ou análogos a
eles em arenas políticas nas quais eles não ocorriam previamente. [...]
Ele diferencia as características das cortes e das legislaturas em função dos
seguintes critérios: atores, métodos de trabalho, regras básicas de decisão, a
resposta e as implicações das decisões. As cortes têm como atores as duas
partes do litígio e um terceiro, que atuam num processo de produção de
evidências e argumentação em audiências públicas; a decisão é tomada por um
juiz imparcial e se fixa em casos individuais, cujos fatos ela determina e
estabelece a regra relevante. A decisão adquire o estatuto de “a única solução
correta”. Na legislatura há múltiplos atores, que estabelecem relações de
barganha, compromissos e alianças ocasionais; a decisão é tomada pelo princípio
66
CARLINI. Angélica L. Aprendizagem Baseada em Problemas Aplicada ao Ensino de Direito:
Projeto Exploratório na Área de Relações de Consumo. São Paulo: PUC, 2006, Tese,
Programa
de
Pós-Graduação
em
Educação:
Currículo.
Disponível
em
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaPeriodicoForm.do. Acesso em 12 de
outubro de 2011.
67
KOERNER, Andrei. INATOMI, Celli Cook. BARATTO, Márcia. “Sobre o Judiciário e a
Judicialização”. In MOTA, Maurício. MOTTA, Luiz Eduardo. O Estado Democrático de Direito
Em Questão. S.Paulo: Elsevier, 2011, p. 149-179.
95
majoritário e tem o caráter de fixar regras gerais sobre políticas, implicando a
alocação de valores na comunidade política. A decisão tem o caráter de “a
solução politicamente possível”. [...]
As democracias contemporâneas estariam passando por um processo de
expansão do Poder Judiciário, que levaria ao domínio dos juízes sobre as
decisões políticas em detrimento dos representantes eleitos, presentes nas
instituições majoritárias.
VALLINDER, KORNER, INATOMI e BARATTO ainda destacam que a matriz do
fenômeno social da judicialização da política é a reorganização das
democracias europeias após a Segunda Guerra Mundial, uma forma de
prevenir os acontecimentos que permitiram a ascensão do nazismo e do
fascismo ao poder. Também as reações ao planejamento estatal da economia
e a restauração das teorias políticas deontológicas e/ou de direito natural em
resposta ao utilitarismo que havia predominado na primeira metade do século
XX são apontadas como fatores determinantes para o surgimento do fenômeno
da judicialização da política.
Parece claro que o fenômeno implica o fortalecimento do papel do Judiciário e
o consequente enfraquecimento dos poderes Executivo e Legislativo, que
acontece em democracias em processo de reorganização após momentos
históricos de desrespeito ao Estado Democrático de Direito.
No Brasil o fenômeno da judicialização da política é contemporâneo ao início
da vigência da Constituição Federal de 1988, e se acentua a partir da década
de 90 quando, envolvidos em outros problemas, os poderes Executivo e
Legislativo não conseguem dar as respostas de efetividade de direitos
fundamentais sociais para todos os cidadãos, criando um clima de marcada
frustração com a democracia.
Essa efetividade dos direitos sociais começa a ser garantida pelo Poder
Judiciário, e ocupa um espaço cada vez maior no século XXI, quando estudos
sobre o tema começam a ser produzidos em boa escala.
96
No entanto, para KOERNER68 o fenômeno da judicialização da política pode nem
existir e ser, na verdade, outra forma de fazer política nesta quadra histórica.
Para ele o Poder Judiciário integra o sistema político assim como o Legislativo
e o Executivo, e, portanto, a judicialização da política neste momento histórico
seria apenas uma nova forma de os cidadãos participarem do jogo
democrático, sem que isso possa levar à conclusão de que existe, de fato, uma
preponderância do Poder Judiciário sobre os demais.
No âmbito da saúde pública, essa ponderação de KOERNER é importante
porque o tema é tão fundamental para a vida social que não deixa de ser
tratado em nenhuma das esferas de poder. De forma continuada existem
participações do Legislativo, do Executivo e do Judiciário no debate sobre a
efetividade da saúde pública.
Projetos de lei são debatidos, medidas administrativas implementadas e parte
da população participando dos Conselhos Municipais de Saúde. Há, portanto,
participação conjunta do Legislativo e do Executivo no debate da saúde
pública, ao mesmo tempo em que são adotadas decisões judiciais sobre o
mesmo tema.
O que essa pesquisa pretende saber é se os resultados obtidos por meio de
decisões judiciais na saúde pública poderiam ser obtidos fora desse espaço
com ganho social efetivo, porque desafogariam o Poder Judiciário, tornariam
mais céleres as decisões que efetivamente só ele pode fornecer e se
ampliariam o campo de efetividade dos direitos fundamentais. Em outras
palavras, não se trata de debater se o Poder Judiciário pode ou não decidir
acesso à saúde pública, mas refletir sobre que demandas têm sido levadas a
esse poder republicano, e, se necessariamente elas deveriam ser alvo de
decisão judicial, ou se poderiam ser solucionadas em outras esferas da vida
política.
ALEXANDRE VERONESE69 critica a posição de KOERNER quando afirma:
KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira. S.Paulo:
Hucitec, 1998, p. 127.
69
VERONESE, Alexandre. “A Judicialização da Política na América Latina: Panorama do
Debate Teórico Contemporâneo”. In: COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. FRAGALE
FILHO, Roberto. LOBÃO, Ronaldo (organizadores) Constituição & Ativismo Judicial. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.
68
97
Uma crítica à perspectiva de Koerner pode ser feita a partir da indicação de que ele
reduziu conceitualmente as decisões judiciárias ao mesmo patamar das decisões
políticas. [...]
Ao contrário, se a pista de Koerner for seguida e o sistema judiciário for entendido
como parte do sistema político, sem especificidade, terá o desaparecimento desta
tarefa do judiciário: a busca de um quadro que sirva de referência para ações
sociais, separada funcionalmente da via política. Portanto, ter-se-á liquidado –
previamente, do ponto de vista analítico – a compreensão de que os atores sociais
entendem as decisões políticas como baseadas em uma fonte de autoridade e
legitimidade diversa das decisões judiciárias. Será que esta pressuposição
analítica é razoável para fundar uma base teórica?
De fato, há certo reducionismo em pensar a atuação do Judiciário como uma
nova dimensão da esfera do político, sobretudo porque, no âmbito da saúde, as
decisões continuam sendo individuais, sem a necessária repercussão na
melhoria do sistema coletivo, que deve ser a prioridade quando se trata de
direitos sociais.
Mas, por outro lado, a posição de VERONESE também pode merecer crítica, na
perspectiva de que o imaginário social distingue claramente as decisões
políticas das decisões jurídicas a partir do caráter de decidibilidade que é
inerente às jurídicas e não tão aparente quando se trata das políticas.
As decisões políticas têm por característica fundamental o sopesamento de
interesses dos diversos grupos organizados em partidos ou em outras formas,
como organizações, associações e sindicatos, por exemplo. Essas decisões
atendem a interesses que se sobrepõem a outros não necessariamente com
clareza de intenções, mas quase sempre por acordo dos atores sociais
envolvidos.
As decisões judiciais atendem à lógica da aplicação do Direito ao caso
concreto e, por isso, supostamente são justas ou injustas, mas não possuem
dimensão de articulação de interesses ou de arranjo político.
BARROSO70 distingue judicialização e ativismo, embora reconheça nos dois
conceitos traços de certa similitude. Para ele a judicialização no Brasil decorre
BARROSO. Luis Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. In:
COUTINHO, FRAGALE FILHO e LOBÃO, obra citada, p. 279.
70
98
do modelo constitucional, enquanto o ativismo é uma forma proativa de
interpretar a Constituição Federal em especial em momentos de retração do
Poder Legislativo.
Afirma o mencionado autor71:
A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e
intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com
maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura
ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação
direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto
e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de
inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em
critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii)
a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em
matéria de políticas públicas.
As decisões judiciais no âmbito da saúde pública, para BARROSO, se encontram
na categoria de ativismo judicial mediante imposição de condutas ou de
abstenções ao Poder Público, principalmente em matérias de políticas públicas.
Ele exemplifica com o caso de distribuição de medicamentos e determinações
de terapias mediante decisão judicial.
Ocorre que a imposição judicial, no mais das vezes, é de caráter individual e
não influi nas políticas públicas, até prejudicando a realização delas nas
ocasiões em que comprovadamente a Prefeitura é obrigada, por decisão
judicial, a custear medicamento de alto preço para uma situação individual
específica, o que permite inferir que tais valores não serão utilizados em
políticas públicas de saúde que haviam sido planejadas e orçadas por aquele
governo municipal.
É claro que nos casos em que o Poder Judiciário determina, por exemplo, que
é direito de todos exigirem o fornecimento de medicamentos de uso continuado
para doenças crônicas, a situação é de imposição de políticas públicas; mas
nas decisões individualizadas, que chegam em número expressivo aos
71
Obra citada, p. 279.
99
Tribunais brasileiros, a aplicação da Constituição Federal ao caso concreto não
tem o condão de gerar o planejamento e a implantação de uma política de
saúde.
Nesse sentido, o próprio LUIS ROBERTO BARROSO72 afirma:
Ao lado de intervenções necessárias e meritórias, tem havido uma profusão de
decisões extravagantes ou emocionais em matéria de medicamentos e terapias,
que põem em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde,
desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocação dos
escassos recursos públicos. Em suma: o Judiciário quase sempre pode, mas nem
sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da própria capacidade
institucional e optar por não exercer o poder, em autolimitação espontânea, antes
eleva do que diminui.
Por capacidade institucional BARROSO define a determinação de qual Poder
está mais capacitado tecnicamente para produzir a melhor decisão acerca de
determinado assunto socialmente relevante. Ele menciona, como exemplo, as
decisões recentes do Supremo Tribunal Federal a respeito da demarcação de
terras indígenas e da transposição de rios, que são de caráter extremamente
técnico e nem sempre ao alcance do Poder Judiciário.
O Supremo Tribunal Federal realizou audiências públicas para conhecer mais
detalhadamente aspectos referentes à saúde (em 27, 28 e 29 de abril, e em 4,
6 e 7 de maio de 2009), bem como para conhecer melhor a opinião de
especialistas sobre o início da vida (16 de abril de 2007), com vistas à
interpretação da lei que permite o uso de células-tronco embrionárias para
pesquisas.
Nessas duas oportunidades o Supremo Tribunal Federal buscou a contribuição
técnica de especialistas para construir um posicionamento sobre temas de
relevância social expressiva.
Na abertura da audiência publica de saúde, o Ministro GILMAR MENDES
73
afirma:
Obra citada, p. 285.
MENDES, Gilmar. Discurso de Abertura da Audiência Pública n. 04, convocada em 05 de
março
de
2009.
Disponível
em
72
73
100
A Audiência objetiva esclarecer as questões técnicas, científicas, administrativas,
políticas e econômicas envolvidas nas decisões judiciais sobre saúde.
Por estar relacionada aos vários pedidos de suspensão que tratam da matéria,
esta Audiência Pública distingue-se das demais pela amplitude do tema em
debate. Todos nós, em certa medida, somos afetados pelas decisões judiciais que
buscam a efetivação do direito à saúde.
O fato é que a judicialização do direito à saúde ganhou tamanha importância
teórica e prática que envolve não apenas os operadores do direito, mas também
os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como
um todo.
Se, por um lado, a atuação do Poder Judiciário é fundamental para o exercício
efetivo da cidadania e para a realização do direito social à saúde, por outro, as
decisões judiciais têm significado um forte ponto de tensão perante os
elaboradores e executores das políticas públicas, que se veem compelidos a
garantir prestações de direitos sociais das mais diversas, muitas vezes
contrastantes com a política estabelecida pelos governos para a área da saúde e
além das possibilidades orçamentárias. A ampliação dos benefícios reconhecidos
confronta-se continuamente com a higidez do sistema.
As considerações que serão apresentadas aqui interessam, de diferentes formas,
aos jurisdicionados e a todo o Poder Judiciário de todo o país e poderão ser
utilizadas para a instrução de qualquer processo no âmbito do Supremo Tribunal
Federal.
A fala do então Presidente do Supremo Tribunal Federal evidencia que o
âmbito político das decisões judiciais adotadas para os casos de saúde estava
claro para a Corte Suprema, assim como as consequências das decisões
judiciais no plano político-administrativo municipal.
Por outro lado, a declaração não expressa preocupação do Judiciário com a
ausência de dados técnicos precisos para avaliar o caso individualizado e as
consequências administrativo-financeiras da decisão para o município que terá
que cumpri-la. Nem sopesa que, em alguns casos, o Judiciário deveria deixar a
decisão para órgãos técnicos que pudessem avaliar o pedido com maior
amplitude de análise, considerando não apenas a necessidade individual, mas
também as consequências para a sociedade.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSade/anexo/Abertura_da_Audie
cia_Publica__MGM.pdf. Acesso em 12 de outubro de 2011.
101
Em outras palavras, o Judiciário quer elementos técnicos para continuar a
proferir decisões e não para decidir que não deve atuar em casos para os quais
a solução não seja o debate em torno do cabimento do direito fundamental,
mas a insuficiência de recursos ou a impropriedade de utilizá-los para aquele
caso específico em detrimento de muitos outros que reclamam solução
coletiva.
Para JOANA
DE
SOUZA MACHADO74 é preciso reconhecer, a partir da análise da
realidade brasileira, marcada pela presença de uma Constituição substantiva e
pela fragilidade da cidadania, que judicialização da política e ativismo judicial
são conceitos diferentes.
Para ela, “(...) a judicialização da política, aqui compreendida como a
intervenção judicial em pautas substanciais, pode se fazer necessária em
contextos como o brasileiro. Isso não justifica, sob qualquer hipótese, a ideia de
que as jurisdições constitucionais assumam-se como protagonistas da
construção de uma moralidade pública." 75
E conclui:
Em sociedades pluralistas, não há uma concepção de bem, ou de política, pronta,
partilhada, que possa ser buscada na Constituição por intérpretes especializados.
Há, ao contrário, um desacordo permanente que só é estabilizado pelo Direito
quando este se produz em ambiente de ampla participação política.
A partir dessas premissas, a pesquisa definiu como manifestação de ativismo
judicial, ou, prática jurisdicional exorbitante, a tentativa de um protagonismo moral
ou político pelos Tribunais Constitucionais, pois nem mesmo o reconhecimento da
importância dessas instituições em sociedades órfãs de instituições políticas
sólidas pode autorizar que se implemente uma tecnocracia judicial.
No entender de JOANA
DE
SOUZA MACHADO, o ativismo judicial não contribui
para a efetividade democrática, até porque invade a esfera do debate político
necessário nas sociedades plurais.
MACHADO, Joana de Souza. Ativismo Judicial no Supremo Tribunal Federal. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, 120 páginas, dissertação. Programa de Teoria
do Estado e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, 2008, p. 108.
75
Obra citada, p. 108.
74
102
Entendimento semelhante tem ELIVAL DA SILVA RAMOS76:
[...] por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para
além
dos
limites
impostos
pelo
próprio
ordenamento
que
incumbe,
institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições
subjetivas (conflitos de interesses) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva
(conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no
tocante às práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica
do Poder Judiciário, em detrimento dos demais poderes. Não se pode deixar de
registrar que o fenômeno golpeia mais fortemente o Poder Legislativo, o qual tanto
pode ter o produto da legiferação irregularmente invalidado por decisão ativista
(em sede de controle de constitucionalidade), quanto o seu espaço de
conformação normativa invadido por decisões excessivamente criativas.
O debate se acirra exatamente nesse aspecto: a divisão entre aqueles que
acreditam que a atuação do Poder Judiciário deva ocorrer como forma de
efetivar os direitos fundamentais que a fragilidade do Executivo e do Legislativo
tem impedido no Brasil pós-88, e a corrente do pensamento contemporâneo,
que detecta mais problemas do que soluções na atuação do Poder Judiciário
no âmbito das questões políticas, situação essa que contribui para fragilizar
ainda mais o sistema democrático.
Esse debate não é recente!
SAMPAIO DÓRIA77, em 1926, já se pronunciava sobre o tema:
O que é preciso antes do mais é não cair na armadilha de que as questões
políticas são fenômenos simples e unilaterais. Não há uma só questão, mas
questões várias, na “questão política”. E estas várias questões que se encerram
na “questão política”, ora são realmente e exclusivamente políticas, ora realmente
e exclusivamente judiciais. É política, quando se resolve pela apreciação arbitrária
das conveniências, sem que haja direitos legais em jogo. É judicial, quando se
resolve pela aplicação da lei a direitos individuais, certos e líquidos.
Mais recentemente, CASS SUSTEIN78 afirmou:
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial. Parâmetros Dogmáticos. S.Paulo: Saraiva, 2010,
p. 129.
77
DORIA, Sampaio. Princípios Constitucionais. Apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo
Judicial. Parâmetros Dogmáticos. S.Paulo: Saraiva, 2010, p. 147.
78
SUSTEIN, Cass. A Constituição Parcial. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 186-190.
76
103
As cortes possuem graves limites institucionais, os quais são argumentos contra
um papel judicial de maior importância nas reformas sociais. São três os
problemas de maior interesse: 1) depender das cortes poderá prejudicar os canais
democráticos utilizados para a busca de mudanças, e de duas maneiras. Poderia
distrair as energias e recursos da política, e a eventual decisão judicial poderia
barrar um desfecho político; (...) 2) as decisões judiciais são notavelmente
ineficazes para propalar mudanças sociais. Estudos diversos chegaram a
documentar essa conclusão (...) 3) a adjudicação é um sistema excepcionalmente
fraco para reforma social em grande escala. Raramente os tribunais se tornam
especialistas nas áreas em questão. Ademais, o enfoque nos casos sob litígio
dificulta aos juízes a compreensão dos efeitos complexos e frequentemente
imprevisíveis da intervenção judicial. O conhecimento desses efeitos é crucial mas
às vezes está inacessível.
Alinhando-se entre os que defendem a preponderância do papel do Poder
Judiciário, MARCO AURÉLIO ROMAGNOLI TAVARES79 afirma:
Dentro das relações de poder, intrínsecas ao Estado, surge a figura proeminente
do Judiciário, hoje o poder em voga no Brasil, já que está em curso uma gradativa
execução de uma forma de ativismo judicial, capitaneado pelo STF, ou seja, diante
da clara impossibilidade da existência de vácuo de poder, decorrente diretamente
de um legislativo inoperante, dominado por escândalos de corrupção, bem como
de um executivo anabolizado, que busca dominar politicamente todas as esferas
de poder. Surge a figura protagonista dos tribunais e de magistrados que aos
poucos buscam limitar os excessos praticados pelas administrações, assim como
suprir a ausência de definições legislativas que deveriam acompanhar os avanços
econômicos, sociais e científicos. [...]
O Judiciário nacional, porém, encontra-se em uma encruzilhada pois necessita
atuar cada vez mais, já não somente para adequar a constituição jurídica à
constituição real como defende Hesse, mas para se fazer presente em áreas não
afeitas à sua concepção original. Frise-se que esta expansão se faz primordial
para a manutenção da paz social e integridade das instituições governamentais,
mas cria distorções já que o sistema tripartite clássico não responde
adequadamente às necessidades sociais dos dias atuais.
E ressalta ROMAGNOLI TAVARES,
TAVARES, Marco Aurélio Romagnoli. Ativismo Judicial e Políticas Públicas. Porto Alegre:
Sergio Fabris, 2011, p.105-112.
79
104
[...] quando se fala em uma jurisdição ativa, fala-se, na realidade, na necessidade
de intervenção do Estado-juiz dotado de consciência social e formação política
suficientes para identificar as causas que reivindicam a sua interferência,
buscando-se sempre o equilíbrio social das desigualdades e a aproximação dos
direitos fundamentais daqueles que somente os conhecem por ouvir dizer. [...]
[...] a vontade popular manifestou-se na Constituinte e foi a de que se iniciasse de
imediato o cumprimento pelo Estado dos direitos individuais e sociais
fundamentais previstos, não cabendo, no presente momento, a retomada de
qualquer discussão a esse respeito, em qualquer esfera de poder.
Dessa forma, encontra-se a atuação do Juiz com consciência sociopolítica, ao
interferir no ato administrativo ou legislativo, fundamentada no tripé básico que
sustenta o Estado democrático de direito contemporâneo, qual seja, na Justiça, no
Direito e na Lei.
A ênfase em uma Justiça que possa realizar sozinha o processo democrático
não é opinião isolada de ROMAGNOLI TAVARES. Não raro é defendida por
magistrados que acreditam que a fragilidade do Executivo e do Legislativo
possa ser compensada com êxito por decisões judiciais individuais que obrigue
o Estado a realizar a efetividade do direito de quem requereu.
Essa linha de pensamento evidencia o quanto a prática política perdeu
credibilidade no Brasil, associada hoje mais comumente a uma atividade inútil,
quando não voltada exclusivamente para o atendimento dos interesses
particulares dos parlamentares e membros do Executivo. O cidadão brasileiro
contemporâneo, em sua maioria, identifica como prática política apenas o voto
obrigatório, sem se motivar para a inserção em partidos políticos, associações,
sindicatos, conselhos ou outras formas de debate coletivo de ideias
fundamentais para a sociedade.
Os debates políticos travados por grupos plurais em jornais ou em programas
de rádio, próprios da primeira metade do século XX, foram substituídos pela
notícia pasteurizada dos noticiários, das revistas semanais e dos jornais, quase
sempre sem a profundidade de análise necessária para permitir reflexões mais
alargadas.
A dimensão social da prática política perdeu espaço no Brasil após a ditadura
militar iniciada em 64; mas, se o contexto histórico pudesse ser analisado com
105
maior largueza neste trabalho (o que não será viável por não ser este o objetivo
da pesquisa), seria possível constatar que a participação política do cidadão
brasileiro quase sempre foi tímida e exclusivamente pontual, como nos
momentos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, das Diretas Já ou,
ainda, do Movimento Sindical de São Bernardo do Campo, mas descontinuada
e difusa.
O Estado autoritário (acostumado a recorrer a militares para garantir a ordem),
as elites conservadoras na manutenção de seus interesses tanto políticos
como econômicos e a baixa qualidade e quantidade de acesso à educação são
fatores, dentre outros, que podem ser apontados como determinantes na
fragilidade da participação política brasileira.
No momento contemporâneo existem indícios de um novo modo de pensar a
participação política com o uso das redes sociais, o que sinaliza a possibilidade
de crescimento da participação dos cidadãos no debate político, em especial
na compreensão do papel a ser exercido coletivamente pelo povo no processo
democrático.
Associar a ideia de cidadania ativa ao ato de um cidadão ir ao Poder Judiciário,
sozinho, requerer concessão de medicamentos gratuitos, fornecimento de
órteses, próteses ou medicamentos excepcionais de alto custo ou tratamentos
experimentais em outros países (entre outros pedidos formulados diariamente
nos vários fóruns do País), limita em muito o conceito de cidadania, e ainda
restringe por demasia a atividade política.
Quem pretende obter, por meio de uma decisão judicial, um direito para seu
caso concreto age com uma dimensão de cidadania, mas não incorpora a
prática política coletiva a essa cidadania; ao contrário, mantém a cidadania nos
estreitos limites do conceito liberal do século XVIII.
Por outro lado, o magistrado que decide o caso concreto individual
determinando a efetividade da aplicação de direitos sociais constitucionalmente
a todas as pessoas sinaliza para a coletividade que casos semelhantes
poderão ter o mesmo desfecho, mas não consolida o acesso aos direitos nem
à democracia.
106
EVALDO VIEIRA80 afirma:
O mais perfeito e seguro sustentáculo do Estado de direito é a sociedade
democrática. Só ela possui vitalidade capaz de mantê-lo e protegê-lo contra as
paixões antropofágicas de seus defensores e de seus opositores. Falar da
sociedade democrática é de novo aludir a palavras de gasto diário na atualidade.
De tão mencionadas podem significar tudo ou podem significar nada, quando
precisam ter um sentido determinado.
Para alguns, a sociedade industrial de massas ou sociedade de consumo de
massas é a sociedade democrática. Pensam eles que a integração da população
ao mercado da produção industrial, inclusive da população ainda à margem do
grande consumo, é o ato final da edificação da sociedade democrática. Mas aqui
se fala da sociedade democrática, fundamental para a estabilidade do Estado de
Direito.
As sociedades de nossos dias são sociedades de massa, mesmo quando algumas
ainda caminham para o consumo amplo. Porém, nem toda sociedade é sociedade
democrática. Sociedade democrática é aquela na qual corre real participação de
todos os indivíduos nos mecanismos de controle das decisões, havendo portanto
real participação deles nos rendimentos da produção. Participar dos rendimentos
da produção envolve não só mecanismos de distribuição da renda, mas sobretudo
níveis crescentes de coletivização das decisões principalmente nas diversas
formas de produção.
Sem o debate político prévio e o esgotamento das vias institucionais
democráticas, a utilização do Poder Judiciário para obtenção de direitos
individuais na área de direitos sociais é próxima da obtenção de um “serviço”
disponível para poucos, até porque não são todos que necessitam de direitos
sociais que dispõem de condições de acessar o Judiciário, ainda que por meio
da advocacia pública.
Existe o risco do papel ativo do Poder Judiciário se converter em “prestação de
serviços” para os que dispõem de acesso à Justiça, o que contribuirá para
maior fragilidade dos poderes Legislativo e Executivo que serão instigados
apenas no caso individual e não para o planejamento e execução de medidas
coletivas de efetividade dos direitos sociais.
80
VIEIRA, Evaldo. Direitos e Política Social. 3ª edição, S.Paulo: Cortez, 2009, p. 134.
107
Ao contrário de “capitanear” uma transformação diante do vácuo de poder,
como afirma ROMAGNOLI TAVARES, o Poder Judiciário poderá se converter em
mecanismo de maior esvaziamento do Estado Democrático de Direito, seja em
relação à fragilidade dos demais poderes, seja para a construção de um
cidadão ainda mais isolado, que só entende de direitos por uma dimensão
individualizada e pragmática de obtenção de resultados por sentença proferida
em juízo.
A fragilidade do Executivo e do Legislativo se caracterizará, então, pela
ausência de participação do cidadão na fiscalização de suas atuações e,
consequentemente, pelo maior distanciamento entre as decisões e a vontade
popular. Enfraquecidos pela falta de credibilidade, e isolados pelo não uso dos
mecanismos constitucionais de fiscalização, os poderes Executivo e Legislativo
poderão atuar de forma ainda mais inconsistente do que já atuam na atualidade
no Brasil.
Pondera SARLET81:
[...] assume caráter emergencial uma crescente conscientização por parte dos
órgãos do Poder Judiciário, de que não apenas podem como devem zelar pela
efetivação dos direitos fundamentais, mas que, ao fazê-lo, haverão de obrar com
máxima cautela e responsabilidade, seja ao concederem (seja quando negarem)
um direito subjetivo a determinada prestação social, ou mesmo quando
declararem a inconstitucionalidade de alguma medida estatal com base na
alegação de uma violação de direitos sociais, sem que tal postura, como já
esperamos ter logrado fundamentar, venha a implicar necessariamente uma
violação do princípio democrático e do princípio da separação de Poderes. Neste
sentido (e desde que assegurada a atuação dos órgãos jurisdicionais, quando e
na medida do necessário) efetivamente há que se dar razão a Holmes e a
Sunstein quando afirmam que levar direitos a sério (especialmente pelo prisma da
eficácia e da efetividade) é sempre também levar a sério o problema da escassez.
[...]
No que diz com a atuação do Poder Judiciário, não há como desconsiderar o
problema de sua prudente e responsável autolimitação funcional (do assim
designado judicial self restraint), que evidentemente deve estar sempre em
sintonia com a sua necessária e já afirmada legitimação para atuar, de modo
81
SARLET, Ingo Wolfgang. “Os Direitos Fundamentais Sociais: Algumas Notas sobre seu
Conteúdo, Eficácia e Efetividade nos Vinte Anos da Constituição Federal de 1988”. In: AGRA,
Walber de Moura (coordenador), Retrospectiva dos Vinte Anos da Constituição Federal.
S.Paulo: Saraiva, 2009.
108
proativo, no controle dos atos do poder público em prol da efetivação ótima dos
direitos (de todos os direitos fundamentais). Que a atuação jurisdicional – sempre
provocada – não apenas não dispensa, como inclusive exige uma contribuição
efetiva dos demais atores políticos e sociais, como é o caso do Ministério Público,
das agências reguladoras, dos Tribunais de Contas, das organizações sociais de
um modo geral, bem como dos cidadãos individualmente considerados, resulta
evidente, mas nem sempre corresponde a uma prática institucional efetiva nesta
seara.
Também pondera SILVIA BADIM MARQUES82:
Revela-se, portanto, fundamental que os juízes, promotores de justiça, gestores
públicos, sociedade civil, operadores do direito, sanitaristas, membros de
academia, entre outros envolvidos na temática, discutam de forma ampla o tema
em debate e proponham soluções conjuntas para minimizar o conflito socialpolítico evidenciado. Porém, é dentro de cada instrução processual que devem ser
traçados os rumos da atuação judicial, por parte dos atores que o compõem. É
dentro de cada processo que devem ser postos os meios à disposição dos juízes,
capazes de balizar a sua decisão. E, também é dentro de cada processo que o
direito individual à saúde deve ser confrontado com o direito coletivo e com a
política pública estabelecida em matéria de saúde, por meio de provas e saberes
técnicos necessários para discutir o caso concreto.
E, se é preciso que o Poder Judiciário avance em relação à incorporação da
dimensão política que compõe o direito à saúde, é preciso também que os
gestores públicos avancem em relação à elaboração e implementação das
políticas de saúde no Brasil, bem como em relação à organização administrativa
da prestação dos serviços de saúde, que, muitas vezes, deixam os cidadãos sem
a correta assistência médica e farmacêutica e também sem espaço adequado e
direto para participação popular, sem um canal administrativo capaz de ouvir e
processar as diferentes demandas da sociedade nesta seara, sem informações
disponíveis de forma clara a todos que necessitam de um medicamento ou
tratamento de saúde. Este é um quadro que, frequentemente, não confere ao
cidadão outra alternativa senão buscar a tutela jurisdicional para ver garantido o
direito.
Faz-se, necessário, ainda, o avanço da própria ciência, no sentido de analisar as
diferentes variáveis do problema exposto e de harmonizar o entendimento sobre o
MARQUES, Silvia Badim. Judicialização do Direito à Saúde. S.Paulo: Revista de Direito
Sanitário, v.9, n.2, p.65-72, julho/outubro 2008.
82
109
que se convencionou chamar, hoje, de “judicialização” das políticas de saúde ou
apenas “judicialização” da saúde.
As posições de SARLET e MARQUES refletem, em boa medida, o pensamento de
parte do Poder Judiciário, que já se deu conta de que as decisões
individualizadas não solucionam o problema da efetividade do acesso à saúde
no Brasil, porque a cada caso solucionado outros milhares surgem e quase
sempre com pedidos muito semelhantes.
O que antes poderia ser tratado como o papel central do Judiciário na função
de guardião da Constituição Federal, hoje, com o acúmulo de processos
judiciais requerendo sempre os mesmos instrumentos para a efetividade dos
direitos sociais, é preocupante, e levou o Conselho Nacional de Justiça a
incentivar um debate nacional sobre a questão, inclusive para a construção de
soluções de ordem prática para permitir aos magistrados brasileiros que
conheçam melhor os temas sobre os quais estão julgando.
Em 03 de agosto de 2010, o Conselho Nacional de Justiça criou o Fórum
Nacional do Judiciário para Monitoramento e Resolução das Demandas de
Assistência à Saúde, que tem como objetivo83:
[...] a elaboração de estudos e a proposição de medidas e normas para o
aperfeiçoamento de procedimentos e a prevenção de novos conflitos judiciais na
área da saúde. O fórum busca criar ainda medidas concretas voltadas à
otimização de rotinas processuais bem como à estruturação e organização de
unidades judiciárias especializadas.
O Fórum foi criado após a realização da Audiência Pública n. 04 pelo Supremo
Tribunal Federal, e aprovou a Resolução n. 107, de 201084 e a Resolução 31,
de 30 de março de 2010.85
Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/saude-e-meio-ambiente. Acesso
em 15.10.2011.
84
RESOLUÇÃO Nº 107, DE 6 ABRIL DE 2010
Institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de
assistência à saúde
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições
constitucionais e regimentais, e,
CONSIDERANDO o elevado número e a ampla diversidade dos litígios referentes ao direito à
saúde, bem como o forte impacto dos dispêndios decorrentes sobre os orçamentos públicos;
83
110
CONSIDERANDO os resultados coletados na audiência pública nº 04, realizada pelo Supremo
Tribunal Federal para debater as questões relativas às demandas judiciais que objetivam
prestações de saúde;
CONSIDERANDO o que dispõe a Recomendação nº 31 do Conselho Nacional de Justiça, de 30
de março de 2010;
CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça na 102ª Sessão
Ordinária, realizada em 6 de abril de 2010, nos autos do ATO 0002243-92.2010.2.00.0000;
RESOLVE:
Art. 1º Fica instituído, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o Fórum Nacional para o
monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde, com a atribuição de
elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas para o aperfeiçoamento de
procedimentos, o reforço à efetividade dos processos judiciais e à prevenção de novos
conflitos.
Art. 2º Caberá ao Fórum Nacional:
I - o monitoramento das ações judiciais que envolvam prestações de assistência à saúde,
como o fornecimento de medicamentos, produtos ou insumos em geral, tratamentos e
disponibilização
de
leitos
hospitalares;
II - o monitoramento das ações judiciais relativas ao Sistema Único de Saúde;
III - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à otimização de rotinas
processuais, à organização e estruturação de unidades judiciárias especializadas;
IV - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à prevenção de conflitos
judiciais
e
à
definição
de
estratégias
nas
questões
de
direito
sanitário;
V - o estudo e a proposição de outras medidas consideradas pertinentes ao cumprimento do
objetivo do Fórum Nacional.
Art. 3º No âmbito do Fórum Nacional serão instituídos comitês executivos, sob a
coordenação de magistrados indicados pela Presidência e/ou pela Corregedoria Nacional de
Justiça, para coordenar e executar as ações de natureza específica, que forem consideradas
relevantes, a partir dos objetivos do artigo anterior.
Parágrafo único. Os relatórios de atividades do Fórum deverão ser apresentados ao Plenário
do CNJ semestralmente.
Art. 4º O Fórum Nacional será integrado por magistrados atuantes em unidades
jurisdicionais, especializadas ou não, que tratem de temas relacionados ao objeto de sua
atuação, podendo contar com o auxílio de autoridades e especialistas com atuação nas áreas
correlatas, especialmente do Conselho Nacional do Ministério Público, do Ministério Público
Federal, dos Estados e do Distrito Federal, das Defensorias Públicas, da Ordem dos
Advogados do Brasil, de universidades e outras instituições de pesquisa.
Art. 5º Para dotar o Fórum Nacional dos meios necessários ao fiel desempenho de suas
atribuições, o Conselho Nacional de Justiça poderá firmar termos de acordo de cooperação
técnica ou convênios com órgãos e entidades públicas e privadas, cuja atuação institucional
esteja voltada à busca de solução dos conflitos já mencionados precedentemente.
Art. 6º O Fórum Nacional será coordenado pelos Conselheiros integrantes da Comissão de
Relacionamento Institucional e Comunicação.
Art. 7º Caberá ao Fórum Nacional, em sua primeira reunião, a elaboração de seu programa
de trabalho e cronograma de atividades.
Art. 8º As reuniões periódicas dos integrantes do Fórum Nacional poderão adotar o sistema
de videoconferência, prioritariamente.
Art.
9º
Esta
Resolução
entra
em
vigor
na
data
de
sua
publicação.
Ministro GILMAR MENDES
85
Resolução n. 31 de 2010
CONSIDERANDO, finalmente, indicação formulada pelo grupo de trabalho designado, através
da Portaria nº 650, de 20 de novembro de 2009, do Ministro Presidente do Conselho
Nacional de Justiça, para proceder a estudos e propor medidas que visem a aperfeiçoar a
prestação jurisdicional em matéria de assistência à saúde;
CONSIDERANDO a decisão plenária da 101ª Sessão Ordinária do dia 23 de março de 2010
deste E. Conselho Nacional de Justiça, exarada nos autos do Ato nº 000195462.2010.2.00.0000;
RESOLVE:
I. Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais que:
a) até dezembro de 2010 celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico
composto por médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo
111
A Resolução 31 de 2010 fornece diretrizes para o trabalho dos magistrados,
principalmente em relação à necessidade de informações médicas para
respaldar as decisões que serão tomadas. Também recomenda que os
gestores da área de saúde sejam ouvidos para que possam esclarecer as
razões de suas decisões, em especial quanto a negativas de atendimento, de
internação, de fornecimento de medicamentos ou outras.
Especialmente importante é a recomendação no sentido de que os magistrados
determinem, no momento da concessão de medida abrangida por política
pública existente, a inscrição do beneficiário nos respectivos programas. Esse
enfoque fortalece o âmbito político do debate e das práticas de saúde pública,
em contraposição às sentenças judiciais individualizadas que afastam essa
dimensão.
de valor quanto à apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes das ações
relativas à saúde, observadas as peculiaridades regionais;
b) orientem, através das suas corregedorias, aos magistrados vinculados, que:
b.1) procurem instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com
descrição da doença, inclusive CID, contendo prescrição de medicamentos, com
denominação genérica ou princípio ativo, produtos, órteses, próteses e insumos em geral,
com posologia exata;
b.2) evitem autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela ANVISA,
ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei;
b.3) ouçam, quando possível, preferencialmente por meio eletrônico, os gestores, antes da
apreciação de medidas de urgência;
b.4) verifiquem, junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (CONEP), se os
requerentes fazem parte de programas de pesquisa experimental dos laboratórios, caso em
que estes devem assumir a continuidade do tratamento;
b.5) determinem, no momento da concessão de medida abrangida por política pública
existente, a inscrição do beneficiário nos respectivos programas;
c) incluam a legislação relativa ao direito sanitário como matéria individualizada no programa
de direito administrativo dos respectivos concursos para ingresso na carreira da
magistratura, de acordo com a relação mínima de disciplinas estabelecida pela Resolução
75/2009 do Conselho Nacional de Justiça;
d) promovam, para fins de conhecimento prático de funcionamento, visitas dos magistrados
aos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde, bem como às unidades de saúde pública ou
conveniadas ao SUS, dispensários de medicamentos e a hospitais habilitados em Oncologia
como Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia - UNACON ou Centro de
Assistência de Alta Complexidade em Oncologia - CACON;
II. Recomendar à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM,
à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho - ENAMAT e
às Escolas de Magistratura Federais e Estaduais que:
a) incorporem o direito sanitário nos programas dos cursos de formação, vitaliciamento e
aperfeiçoamento de magistrados;
b) promovam a realização de seminários para estudo e mobilização na área da saúde,
congregando magistrados, membros do ministério público e gestores, no sentido de propiciar
maior entrosamento sobre a matéria;
Publique-se e encaminhe-se cópia desta Recomendação a todos os Tribunais.
Ministro GILMAR MENDES
112
Não menos importante é a recomendação para que os magistrados evitem
conceder medicamentos experimentais ou ainda não registrados pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária. Em princípio, essa recomendação soa quase
como desnecessária porque não é crível que seja preciso dizer ao Poder
Judiciário para acatar as decisões do Poder Executivo em sua área técnica de
atuação. Porém, em tempos marcados por casos de difícil solução e, tendo-se
em vista que o modelo gerencial de Estado vê no trabalho das agências uma
importante forma de atuação técnica que ainda não se consolidou inteiramente
na cultura jurídica nacional, a recomendação do Conselho Nacional de Justiça
é compreensível e enfatiza a importância de reconhecer na Agência Nacional
de Vigilância Sanitária o órgão técnico especializado para definir que
medicamentos são passíveis de serem adotados no Brasil e quais não são.
Novamente aqui a decisão individualizada perde importância em relação à
decisão coletiva adotada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que
leva em conta aspectos técnicos objetivos, e que visualiza a dimensão pública,
em especial para o fornecimento de medicamentos como políticas públicas de
saúde.
Por fim, a Resolução 31 de 2010 do Conselho Nacional de Justiça quer que os
magistrados sejam mais bem informados sobre os aspectos específicos da
saúde, e que interajam com organismos como os Conselhos Municipais e
Estaduais de Saúde e também com as unidades de saúde pública ou
conveniadas ao SUS, dispensários de medicamentos e a hospitais habilitados
em Oncologia como a Unidade de Assistência de Alta Complexidade em
Oncologia (UNACON) ou o Centro de Assistência de Alta Complexidade em
Oncologia (CACON), entre outros existentes e atuantes nas políticas públicas
de saúde.
Essa recomendação situa o debate na esfera pública e minimiza os ganhos
obtidos no âmbito individualizado, reconduzindo a questão da saúde pública
para o seu locus próprio em um Estado Democrático de Direito.
113
Nesse sentido, afirma CASS R. SUNSTEIN86
Depender das cortes poderá prejudicar os canais democráticos utilizados para a
busca de mudanças, e de duas maneiras. Poderia distrair as energias e os
recursos da política, e a eventual decisão judicial poderia barrar um desfecho
político.
Em ambas as acusações, o prejuízo para a democracia poderá ser muito sério. O
recurso à política tende a mobilizar os cidadãos sobre as questões públicas, e a
mobilização é boa para os indivíduos e para a sociedade como um todo. Pode
inculcar compromissos políticos, entendimentos mais amplos, sentimentos de
cidadania e dedicação à comunidade. A ênfase no judiciário frequentemente
compromete esses valores. A invalidação judicial de desfechos políticos poderia
muito bem ter efeitos corrosivos sobre os processos democráticos. Dentro dessa
conexão é importante que se lembre que muito possivelmente Martin Luther King
foi uma fonte muito mais importante de mudanças constitucionais do que qualquer
uma ou até mesmo do que todas as decisões sobre questões raciais da Suprema
Corte do Justice Warren.
E FABIANA MARION SPLENGER87 problematiza:
[...] em torno do Judiciário vem se criando uma inovadora arena pública, externa
ao circuito clássico “sociedade civil – partidos – representação – formação da
vontade majoritária”, consistindo em ângulo perturbador para a teoria clássica da
soberania popular. Nessa nova arena, os procedimentos políticos de mediação
cedem espaço aos judiciais, expondo o Poder Judiciário a uma interpelação direta
do indivíduo, de grupos sociais e até de partidos a um tipo de comunicação em
que prevalece a lógica dos princípios, do Direito material, deixando-se para trás as
antigas fronteiras que separavam o tempo passado , no qual a lei geral e abstrata
embasa seu fundamento, no tempo futuro, aberto à infiltração do imaginário, do
ético e do justo. [...]
Nesses termos, a dúvida se instala: “não será a justiça em sua atual conformação,
além de substituta do imperador, o próprio monarca substituído?”. De fato, cria-se
a expectativa de que o Judiciário funcione como uma instância moral, atuando
como um terceiro neutro e imparcial, auxiliando as partes na solução dos conflitos
Obra citada, p. 186.
SPLENGER, Fabiana Marion. “A
Jurisdicional: (IN)Eficiência Face à
Rogério Gesta (organizadores)
Contemporâneos – volume 8. Santa
86
87
Crise da Jurisdição e os Novos Contornos da Função
Conflituosidade Social”. In: REIS, Jorge Rento. LEAL,
Direitos Sociais & Políticas Públicas – Desafios
Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2271
114
por meio de uma decisão imparcial e objetiva. Então, o Magistrado passa a ter um
papel central, como um ser excepcional.
A Recomendação 31, de 2010, do Conselho Nacional de Justiça, estimula os
magistrados a abdicarem do papel central a que se refere SPLENGER, ou a
agirem de forma a não barrar o desfecho político, como sugere SUNSTEIN.
A proximidade com os Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde, com os
dispensários de medicamentos e com outros órgãos que efetivem as políticas
públicas de saúde poderá permitir ao Poder Judiciário que indique, em suas
decisões, caminhos públicos mais eficientes para a solução de casos concretos
do que aqueles que seriam obtidos por meio de uma sentença judicial
individualizada.
O diálogo democrático plural construído com o auxílio de diferenciados atores
sociais se torna mais eficaz se contar com a colaboração do Poder Judiciário
que, conhecendo os mecanismos já implantados pela Administração Pública
para a efetividade do acesso à saúde, poderá compreender melhor os pleitos
individuais e, principalmente, decidir por soluções que não estabeleçam
privilégios e respeitem os esforços que estão sendo realizados para contemplar
os direitos de todos.
1. Análise por amostragem de argumentos que fundamentam algumas
decisões judiciais sobre saúde no Brasil
A análise de algumas decisões judiciais proferidas por Tribunais de Justiça e
pelo Supremo Tribunal Federal contribuirá neste trabalho para a compreensão
dos principais argumentos utilizados pelos magistrados para fundamentar as
decisões.
De forma intencional, foram analisadas poucas decisões judiciais para que
houvesse maior espaço para a reflexão sobre os argumentos utilizados, e o
diálogo dessas decisões com a produção acadêmica sobre o tema.
115
Existem estudos sistemáticos sobre as decisões judiciais na área de saúde
tanto pública como privada88 que foram consultados para este trabalho. Mas
aqui o objetivo não é a comparação das decisões, mas a pesquisa de alguns
argumentos utilizados pelos magistrados de forma reiterada para fornecer
substrato jurídico aos julgados. Tais argumentos têm especial importância
porque constituem as mensagens que a sociedade civil e a Administração
Pública recebem e, nessa medida, sinalizam os procedimentos a serem
adotados em casos semelhantes.
Para os cidadãos brasileiros cada decisão judicial representa a extensão do
que é possível conseguir em juízo em relação à efetividade do direito social à
saúde. Por isso, não raro, decisões judiciais são divulgadas pela mídia
nacionalmente, têm grande repercussão e incentivam novos processos judiciais
para obtenção de medicamentos, tratamentos, órteses, próteses e outras
formas corriqueiras ou excepcionais de tratamento de saúde.
A análise que este trabalho pretendeu realizar se cinge aos fundamentos, sem
derivar para análise do discurso ou para a análise da teoria da argumentação,
embora reconheçamos a grande importância de tais estudos contemporâneos
para a compreensão das decisões judiciais.
Aqui a análise está restrita aos dispositivos legais utilizados nos acórdãos e a
compreensão dos magistrados sobre a aplicação dos direitos sociais
constitucionais. Foram analisados detalhadamente cinco acórdãos estaduais e
dois do Supremo Tribunal Federal, embora tenham sido pesquisados e
estudados cinquenta julgados.
A leitura dos cinquenta julgados permitiu detectar que os argumentos utilizados
são, quase sempre, a conjugação do artigo 6º com o artigo 196 da Constituição
Federal, para concluir que o cidadão tem direito de ter acesso integral à saúde.
TRETTEL, Daniela Batalha. Planos de Saúde: O Direito à Saúde está sendo Efetivado?
Estudo do Posicionamento dos Tribunais Superiores na Análise dos Conflitos entre Usuários e
Operadoras de Planos de Saúde. S.Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, 2009, 154 páginas. Dissertação, Programa de Direitos Humanos da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. WANG, Daniel Wei Liang. Escassez de Recursos,
Custos dos Direitos e Reserva do Possível na Jurisprudência do STF. S.Paulo: Revista Direito
GV São Paulo, n.04 (2), p. 539-568, julho-dezembro de 2008.
88
116
Também é recorrente o fato de que os argumentos apresentados pelo médico
assistente do requerente são considerados verdadeiros, substrato de fato
suficiente para a decisão judicial, em especial quando há alegação de urgência
ou de emergência.
Os cinco casos selecionados foram os que mais claramente ignoraram os
argumentos utilizados pelo Estado em sua defesa.
O primeiro acórdão, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, trata de
pedido de fornecimento de angioplastia com stent.89
1.1. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS
5ª Câmara Cível
Relator – Desembargador NEPOMUCENO SILVA
Processo n.º 1.015309.090175-9/0001 (1)
Julgado em 01/07/2010
Publicado em 21/07/2010
EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA - DIREITO A SAÚDE - OBRIGAÇÃO
SOLIDÁRIA DO MUNICÍPIO - SEGURANÇA QUE SE MANTÉM. AÇÃO
ORDINÁRIA. TUTELA ANTECIPADA. DIREITO À SAÚDE. OBRIGAÇÃO DO
ESTADO. A efetivação do direito à saúde é dever inafastável do Estado,
devendo ele empreender todos os esforços para a sua concretização, sob
pena de violação ao direito fundamental maior que é a vida.
[...]
VOTO
Trata-se de mandado de segurança, impetrado por JANDIRA CHATHOUD DE
BARROS, contra ato do SECRETÁRIO MUNICIPAL DE SAÚDE DA CIDADE DE
CATAGUASES, alegando, em síntese, necessitar, em razão do seu estado de
saúde, inclusive, com risco de vida, por ser portadora de síndrome coronariana
grave, realizar uma angioplastia com stent, não tendo condições financeiras para
custear tal exame. Inconformado com a r. sentença, de fls. 85/88, que concedeu a
STENT - pequena
mola de aço inoxidável entrelaçado. Disponível em
http://www.hc.unicamp.br/laboratorios/lab-cateterismo.shtml. Acesso em 15 de outubro de
2010.
89
117
segurança, o MUNICÍPIO DE CATAGUASES interpôs o presente recurso, pelas
razões expostas nas fls. 98/122.
Contrarrazões (fls. 128/135), em infirmação óbvia.
Parecer ministerial (fl. 143/146) pela confirmação da sentença, prejudicado o
apelo.
É o relato, no breve.
Recurso próprio e tempestivo, dele conheço.
Trata-se de tema corriqueiro neste Sodalício. Por sua exauriência, basta ao
desate, transcrever o parecer do Dr. Oliveira Salgado de Paiva, ilustre Procurador
de Justiça.
Com efeito, a Constituição Federal, em seu art. 196, estabelece ser de
responsabilidade do Estado a manutenção de Sistema Único que garanta ao
Cidadão o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção de
sua saúde, proteção e recuperação.
Por outro lado, o art. 198, da Lei Maior, estabelece que o sistema único de saúde
visa o atendimento integral, o qual, além das medidas preventivas, engloba
também os serviços assistenciais.
Ao contrário do entendimento do apelante, o Estado, assim como os demais entes
da federação, é detentor de competência para cuidar da saúde e da assistência
pública, uma vez que o Sistema Único de Saúde está fundado no princípio da
cogestão, fazendo com que haja participação simultânea de cada ente estatal em
sua administração.
Finalmente, cabe ressaltar que o direito à saúde e, via de consequência, o direito
à própria vida, consagrados na Constituição Federal, mostram-se auto-executável,
merecendo, portanto, ser sempre resguardados, mormente quando confrontados
com normas de caráter meramente administrativo.
Destarte, considerando ser direito do cidadão o acesso ao sistema único de saúde
e dever do Poder Público o atendimento a esse direito, não resta dúvida alguma
de que a impetrante deve ser atendida pelo Estado no que concerne ao
fornecimento dos medicamentos necessários para sua saúde.
118
Os documentos juntados à inicial, por sua vez, demonstram a necessidade e
urgência da providência requerida.
Logo, qualquer decisão administrativa em sentido contrário, por parte das
autoridades responsáveis pelo SUS, choca-se frontalmente com a Constituição
Federal.
Ora, no caso dos autos a impetrante, para ver assegurada sua saúde, necessita
ser internado com urgência, em razão do seu quadro de saúde.
Não se pode, pois, o Estado, através de seus administradores, se furtar ao dever,
constitucionalmente previsto, de manter o sistema de saúde pública, transferindo o
ônus financeiro do tratamento médico recomendado para o particular.
Com tais expendimentos, rogando vênia, em reexame, confirmo a sentença,
ressaindo prejudicado.
O primeiro fundamento é o artigo 196 da Constituição Federal, destacado o
aspecto da responsabilidade do Estado na manutenção do Sistema Único de
Saúde de forma a garantir ao cidadão o acesso universal e igualitário às ações
e serviços para a promoção de sua saúde, proteção e recuperação.
Em seguida, o acórdão fundamenta a decisão no artigo 198 do texto
constitucional, que estabelece que o Sistema Único de Saúde tem por objetivo
o atendimento integral que, além das medidas preventivas, engloba os serviços
assistenciais.
Também foi utilizado como fundamento o direito à própria vida que, consagrado
na Constituição Federal como refere o acórdão, é auto executável e merece ser
resguardado, em especial quando confrontado com normas de caráter
administrativo.
O segundo acórdão, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, trata
da concessão de cirurgia bariátrica de emergência.
1.2. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
119
SEGUNDA CÂMARA CÍVEL
Relator – Desembargador JESSÉ TORRES
AGRAVO DE INSTRUMENTO
JULGAMENTO: 23/02/2011
0003886-22.2011.8.19.0000 DE C I S Ã O
Agravo de Instrumento. Ação de obrigação de fazer.
Decisão que impôs ao ente público o dever de proceder a intervenção cirúrgica.
Paciente hipossuficiente patrocinado pela Defensoria Pública. Responsabilidade
solidária da União, dos Estados e Municípios na operação do Sistema Único de
Saúde.
Recurso a que se nega seguimento.
Trata-se de agravo de instrumento interposto pelo MUNICÍPIO DE MAGÉ contra
decisão proferida pelo MM. Juízo de Direito da 1ª Vara Cível da Comarca de
Magé, que deferiu pleito de tutela antecipada para “compelir os réus a fornecer à
autora o procedimento cirúrgico e a sua internação pelo prazo necessário à
realização da cirurgia bariátrica, no prazo de 48 horas, sob pena de sequestro dos
ativos necessários à sua realização na rede hospitalar privada junto aos cofres do
Município ...”, no entendimento de que a doença da autora é grave e o
procedimento cirúrgico é indispensável à manutenção da saúde da autora (fls. 17).
Sustenta o Município agravante que não há prova de fundado receio de dano
irreparável ou de difícil reparação. Destarte, não estão presentes os requisitos
legais para a concessão da medida, pois a autora não comprovou que sua doença
lhe traz risco de vida, além do que sua moléstia não evolui de forma rápida,
indispensável à antecipação de provimento do mérito.
Pretende o agravante que o recurso seja recebido com eficácia suspensiva, para
que seja desobrigado de realizar a cirurgia.
O instrumento, ao abrigo da gratuidade (fls. 17), veio instruído com as peças
obrigatórias e outras que o recorrente reputou importantes (fls. 07-26).
A autora, ora agravada, dirigiu ação de obrigação de fazer ao Município de Magé e
ao Estado do Rio de Janeiro, em busca da realização de cirurgia bariátrica. Na
inicial, narra ser portadora de obesidade mórbida, com quadro clínico grave,
correndo risco de morte, daí os pareceres médicos que indicam a urgência da
cirurgia (fls. 07-14). Trouxe declaração da Secretaria Municipal de Magé no
120
sentido de que, em consequência da obesidade mórbida, a paciente encontra-se
hipertensa e com quadro de depressão (fls. 16).
É o relatório.
A questão em lide não oferece maior indagação, tanto que já foi esquadrinhada e
decidida pelos Tribunais, de modo a compor firme e convincente orientação em
face da Constituição da República e da legislação específica, que determinam ser
dever do Estado fornecer medicamentos e tratamento de saúde àqueles que não
têm condições financeiras de suportar os gastos deles decorrentes, ao menos em
situação
emergencial,
tendo
a
autora
comprovado
sua
necessidade
documentalmente, compondo o quadro de verossimilhança indispensável.
Trata-se de compelir a Administração Pública, através do Sistema Unificado de
Saúde-SUS de intervenção cirúrgica indispensável ao tratamento imediato, nos
termos de prescrição médica, de patologia de que é portadora paciente
hipossuficiente (cirurgia bariátrica).
A Súmula nº 65, do Tribunal de Justiça deste Estado, firmou o entendimento de
que “deriva-se dos mandamentos dos artigos 6º e 196 da Constituição Federal de
1988 e da Lei nº 6.080/90, a responsabilidade solidária da União, Estados e
Municípios, garantindo o fundamental direito à saúde e consequente antecipação
da respectiva tutela”.
A questão chegou às Cortes Superiores e lá a solução não discrepa da adotada
nos Pretórios Estaduais, dando-lhe sustentação. Basta rever a síntese lançada em
decisão do Supremo Tribunal Federal, que afirma ser dever do Estado promover a
saúde, ou na alegada afronta ao princípio da separação dos Poderes, a par de
mostrar o fundamento meritório da pretensão, verbis:“O preceito do artigo 196 da
Carta da República, de eficácia imediata, revela que ‘a saúde é direito de todos e
dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário
às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação’. A referência,
contida no preceito, a ‘Estado’ mostra-se abrangente, a alcançar a União Federal,
os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municípios. Tanto é assim
que, relativamente ao Sistema Único de Saúde, diz-se do financiamento, nos
termos do artigo 195, com recursos do orçamento, da seguridade social, da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Já o
caput do artigo informa, como diretriz, a descentralização das ações e serviços
públicos de saúde que devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, com
direção única em cada esfera de governo. Não bastasse o parâmetro
constitucional de eficácia imediata, considerada a natureza, em si, da atividade,
afigura-se como fato incontroverso, porquanto registrada, no acórdão recorrido, a
existência
de
lei
no
sentido
da
obrigatoriedade
de
fornecerem-se
os
121
medicamentos ... às pessoas carentes... Reclamam-se do Estado (gênero) as
atividades que lhe são precípuas, nos campos da educação, da saúde e da
segurança pública, cobertos, em si, em termos de receita, pelos próprios impostos
pagos pelos cidadãos. É hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio
Estado, ou seja, proporcionar vida gregária segura e com o mínimo de conforto
suficiente a atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do
homem. Pelas razões supra, ressaltando, mais uma vez, que, ao invés de conflitar
com os artigos 196, 197 e 198 da Constituição Federal, o acórdão atacado com
eles guarda perfeita afinidade, conheço do pedido formulado neste agravo, mas a
ele nego acolhida” (Ag. Inst. nº 238.328-0/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU, de
11.05.99, págs. 30-31).
Adite-se, no que respeita às repercussões orçamentárias, que sequer as normas
de contenção da despesa pública, consolidadas na Lei de Responsabilidade Fiscal
(Lei Complementar nº 101/00), são impeditivas do atendimento às necessidades
da população hipossuficiente pelos órgãos do SUS, sua clientela natural. Não o
são. Para esses órgãos, cuja finalidade institucional é aquele atendimento (no
desempenho da ação governamental a que se refere o art. 16 da LRF), o
fornecimento gratuito de assistência médica corresponde à despesa corrente
obrigatória de caráter continuado, cujo manejo decorra de lei, medida provisória ou
ato administrativo normativo (art. 17). Basta aplicá-lo. E ainda considerar,
analogicamente, que despesa decorrente de ordem judicial estará excluída das
despesas proibidas pela LRF, como o seu art. 19, § 1º, IV, proclama em relação
aos limites de despesas com pessoal.
A inicial trouxe prova da hipossuficiência da autora, assistida pela Defensoria
Pública; da gravidade da patologia de que é portadora; do tratamento que lhe foi
prescrito por serviço médico do próprio Município, tratamento ao qual é
indispensável a imediata cirurgia, com cujos custos a autora não tem condições de
arcar em rede particular. O suporte factual do pleito é, destarte, inequívoco.
O acórdão faz referência a Súmula nº 65, do próprio Tribunal de Justiça deste
Estado, que firmou o entendimento de que “deriva-se dos mandamentos dos
artigos 6º e 196 da Constituição Federal de 1988 e da Lei nº 6.080/90, a
responsabilidade solidária da União, Estados e Municípios, garantindo o
fundamental direito à saúde e consequente antecipação da respectiva tutela”.
Nesse caso, ainda, a argumentação da decisão está fundamentada no disposto
na Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101/00 –, cujas
122
normas de contenção da despesa pública não são impeditivas ao atendimento
das necessidades da população hipossuficiente pelos órgãos do SUS, sua
clientela natural, conforme entendimento do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro.
Afirma ainda o acórdão que, para esses órgãos cuja finalidade institucional é o
atendimento da população hipossuficiente, o fornecimento gratuito de
assistência médica corresponde à despesa corrente obrigatória de caráter
continuado. Além disso, destaca o acórdão que a despesa decorrente de
ordem judicial está excluída das despesas proibidas pela LRF, como consta do
art. 19, § 1º, IV.90
Esse argumento é importante porque interpreta o artigo 24 da Lei
Complementar 101, de 2000, de forma mais abrangente do que aquela que
aparentemente pretendeu o legislador.
Está consignado no artigo 24 da mencionada lei que:
Art. 24. Nenhum benefício ou serviço relativo à seguridade social poderá ser
criado, majorado ou estendido sem a indicação da fonte de custeio total, nos
o
termos do § 5 do art. 195 da Constituição, atendidas ainda as exigências do art.
17.
o
§ 1 É dispensada da compensação referida no art. 17 o aumento de despesa
decorrente de:
I - concessão de benefício a quem satisfaça as condições de habilitação
prevista na legislação pertinente;
II - expansão quantitativa do atendimento e dos serviços prestados;
III - reajustamento de valor do benefício ou serviço, a fim de preservar o seu
valor real.
o
§ 2 O disposto neste artigo aplica-se a benefício ou serviço de saúde,
previdência e assistência social, inclusive os destinados aos servidores públicos e
militares, ativos e inativos, e aos pensionistas.
Art. 19. Para os fins do disposto no caput do art. 169 da Constituição, a despesa total com
pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá exceder os
percentuais da receita corrente líquida, a seguir discriminados:
I - União: 50% (cinquenta por cento);
II - Estados: 60% (sessenta por cento);
III - Municípios: 60% (sessenta por cento).
§ 1o Na verificação do atendimento dos limites definidos neste artigo, não serão
computadas as despesas:
[...]
IV - decorrentes de decisão judicial e da competência de período anterior ao
da apuração a que se refere o § 2o do art. 18;
90
123
A interpretação literal conduz à conclusão de que não há tanta margem de
autonomia por parte do Executivo que, no atendimento às necessidades de
saúde, terá que se ater à indicação da fonte de custeio. No entanto, o acórdão
do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro permite
compreender que, como não se trata de majoração, criação ou extensão de
benefício, mas tão somente de efetividade de benefício já previsto no texto da
Constituição Federal (acesso integral à saúde), a aplicação da Lei
Complementar 101 de 2000 não pode ser impeditiva.
Além disso, ao destacar no texto do acórdão que as decisões judiciais não
serão computadas como despesas, a decisão do Estado do Rio de Janeiro
pode ser recepcionada como um incentivo ao Poder Executivo para que não
atenda às demandas de acesso à saúde mais dispendiosas e que aguarde a
decisão judicial que, no âmbito da lei de responsabilidade fiscal, será mais
conveniente para o poder público.
Isso, de alguma forma, pode ser considerado um incentivo para que não haja
alternativa
administrativa
de
solução
de
casos
mais
complexos
ou
dispendiosos, ou em outras palavras, um incentivo à judicialização do acesso à
saúde.
As sucessivas decisões judiciais determinando a efetividade do direito à saúde
podem não atuar no sentido de motivar o Poder Público a um planejamento
ampliado, que garanta eficiência e gerenciamento na atenção à saúde. As
decisões judiciais podem não cumprir seu papel de indicativo para o Executivo
de que o Judiciário está atento à forma como o cidadão é tratado. Ao contrário,
as decisões judiciais poderão se converter em incentivo à falta de planejamento
com o custeio público da saúde, ancorados no argumento de que decisões
judiciais não impactam a responsabilidade fiscal.
O terceiro acórdão, do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, trata da
obrigação do município de fornecer fórmula alimentar para criança com
necessidade alimentar especial.
1.3. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA
124
MANDADO DE SEGURANÇA: 52397-0/2008
Julgamento em 05/03/2009
Relatora Daysi Lago Ribeiro Coelho
CAMARAS CÍVEIS REUNIDAS
MANDADO DE SEGURANCA N.° 52397-0/2008
ORIGEM: SALVADOR
IMPETRANTE: SILVIA VIEIRA PASSOS, REP. POR SILVANA DE OLIVEIRA
VIEIRA
ADVOGADA: TATIANA PINHEIRO COUTINHO - OAB/BA 25.231
IMPETRADOS:
SECRETÁRIO
DE
SAÚDE
DO
ESTADO
DA
BAHIA
e
SECRETÁRIO DE SAÚDE DO MUNICÍPIO DO SALVADOR
RELATORA: DESA. DAISY LAGO RIBEIRO COELHO
EMENTA: MANDADO DE SEGURANCA.
FORNECIMENTO DE FÓRMULA ALIMENTAR NEOCATE A PESSOA DE
RECURSOS INSUFICIENTES. OBRIGAÇÃO DO PODER PÚBLICO.
PRELIMINARES REJEITADAS. LEGITIMIDADE PASSIVA DO SECRETÁRIO
MUNICIPAL DE SAÚDE. VIA MANDAMENTAL ADEQUADA. LAUDO MÉDICO
QUE DISPENSA DILAÇÃO PROBATÓRIA. CONCRETIZAÇÃO DA NORMA
CONSTITUCIONAL INSCRITA NO ART. 196. INCABÍVEL ARGUMENTAÇÃO
QUE OPONHA POLÍTICA PÚBLICA COMO ÓBICE DE ACESSO AO SISTEMA
PÚBLICO DE SAÚDE. OBRIGATORIEDADE DO MUNICÍPIO DE PRESTAR
ATENDIMENTO ÀQUELES QUE O PROCUREM EM SUAS UNIDADES DE
SAÚDE. PROGRAMA PÚBLICO ESPECÍFICO QUE COMPROVA A EXISTÊNCIA
DE
PREVISÃO
ORCAMENTÁRIA
E
RECURSOS
FINANCEIROS.
NÃO
INCIDÊNCIA DA RESERVA DO IMPOSSÍVEL. INAFASTABILIDADE DA TUTELA
JURISDICIONAL. NÃO VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS
PODERES. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA ENTRE O ESTADO DA BAHIA E
O MUNICÍPIO DO SALVADOR. PROVIMENTO TOTAL DA SEGURANCA.
1. O município não está obrigado a prestar atendimento a saúde apenas daqueles
que possuam comprovada residência em seus limites territoriais, mas daqueles
que busquem atendimento nas unidades por ele administradas. Interpretação que
restringe o acesso dos cidadãos nacionais ao sistema publico de saúde não se
compatibiliza com a forma federativa de organização do Estado brasileiro nem
respeita a Universalidade de acesso e a Descentralização, princípios norteadores
do SUS. Tendo havido omissão de unidade de saúde municipal na prestação do
125
alimento Neocate, e parte legitima o Secretario de Saúde do Município para figurar
como autoridade coatora do mandado de segurança;
2. O laudo médico de conteúdo claro e conclusivo acerca da situação patológica e
das medidas terapêuticas necessárias ao restabelecimento da saúde da
impetrante e prova documental suficiente. Não havendo nos autos quaisquer
razões para duvida acerca da idoneidade e isenção da profissional que o firmou,
dispensa-se dilação probat6ria. A via mandamental e adequada ao reclamo do
direito;
3. O direito da impetrante ao atendimento publico de saúde, sendo esta uma
pessoa cujos recursos financeiros não lhe possibilitem arcar com o tratamento,
surge no momento em que se lhe apresenta a enfermidade, e não após submeterse a procedimentos administrativos. Os argumentos da política pública e da
necessária submissão a complexos procedimentos administrativos, colocados
como obstáculo de acesso do cidadão a saúde, retiram da norma inserta na
segunda parte do art. 196 a característica garantidora, o que não se mostra
compatível com a sistemática constitucional;
4. A existência do "Programa para Crianças com Necessidades Alimentares
Especiais", já implementado e vigente, demonstra que o Município do Salvador
possui não apenas recursos financeiros como previsão orçamentária especifica
para o fim buscado na ação. O reconhecimento pelo poder Judiciário do direito ao
recebimento da fórmula Neocate por pessoa carente e necessitada não viola a
separação dos poderes. Também não socorre a autoridade municipal o Principio
da Reserva do Possível;
5. Os Entes Federativos são solidariamente responsáveis pelo fornecimento
gratuito de medicamentos e congêneres, além de outras medidas terapêuticas,
necessários ao tratamento adequado de pessoa enferma que não possua
condições financeiras de custeá-lo.
PROVIMENTO TOTAL.
O acórdão tem na Ementa o argumento da aplicação do artigo 196 da
Constituição Federal e, nesse sentido, é bastante semelhante a todos que
tratam do mesmo tema. Inova, porém, em dois aspectos: ao decidir que não se
pode opor restrição de verbas de política pública já implementada pelo
Executivo (neste caso municipal); e que o município é responsável por prestar
126
atendimento àqueles que procurem suas unidades, independentemente de
serem ou não moradores do mesmo.
Também destaca que o laudo médico é suficiente para provar a necessidade
pleiteada sem cogitar que outra avaliação pudesse ser produzida por outro
médico da rede pública e afeto à política pública implantada pelo município
para atender casos semelhantes.
No caso concreto de que trata o acórdão, o município de Salvador alegou que
possui um Programa para Crianças com Necessidades Alimentares Especiais e
que esse programa sequer foi procurado pelos genitores da criança que
necessita do alimento especial. Afirmou o município, ainda, que não pode o
cidadão pretender obter perante o Judiciário aquilo que o Executivo fornece,
mas sim que compete ao cidadão procurar os mecanismos existentes, atender
às solicitações de ordem administrativa e, dessa forma, se inserir no
atendimento.
Os argumentos foram afastados pelo Judiciário, que concedeu segurança para
garantir à criança, representada por seus pais, o acesso ao suplemento
alimentar necessário.
É importante destacar, também, que a criança e seus genitores não eram
moradores da capital do Estado, e sim de outro município, mas que buscaram
o serviço público de saúde em Salvador e ingressaram com o mandado de
segurança para conseguir que aquele município – e não o município de seu
domicílio – garantisse o fornecimento do suplemento alimentar.
Como um município poderá planejar políticas públicas de atendimento à saúde
de seus cidadãos se, de vez em quando, uma decisão judicial o obriga a inserir
mais um beneficiado, residente em outro município, mas que procurou seu
serviço de atendimento em saúde porque ele é mais eficiente?
Por que razão o Judiciário não determinou ao município de residência da
criança e de seus genitores que ressarcisse o município de Salvador das
despesas que ele terá que fazer para atender a um caso que não estava
orçado, não estava planejado e que se refere a morador de outra área?
127
Como garantir equilíbrio e harmonia entre os poderes da República se o
argumento da existência da política pública destinada especificamente a esse
caso não é válido?
Como estimar custos para implantar políticas públicas em um cenário sujeito a
contingenciamento de verbas para pessoas não residentes e que, igualmente,
não são contribuintes?
Essas questões que, a princípio, podem soar apenas como parte de um
raciocínio esquemático, administrativo, que prioriza os meios em detrimento da
finalidade a ser alcançada (que, neste caso, é um direito fundamental) ganham
relevância à luz do artigo 37 da Constituição Federal, que associa o princípio
da legalidade ao da eficiência.
Se o município, por meio do Legislativo, cria políticas públicas devidamente
alocadas no orçamento e previamente planejadas para serem custeadas com
recursos obtidos pelo recolhimento de tributos e é surpreendido com
sucessivas decisões judiciais que ultrapassam esse orçamento e a destinação
porque inserem entre os beneficiários aqueles que não são munícipes, como
gerir com eficiência a Administração Pública?
Outro aspecto que merece reflexão é o posicionamento dos municípios que
não implantam políticas públicas de efetividade da saúde e que, em razão de
decisões judiciais dessa natureza, se sentirão mais confortáveis em promover o
transporte para municípios vizinhos que tenham um sistema público de saúde
melhor. Isso acontece comumente nos hospitais públicos das cidades com
maiores recursos médicos e financeiros.
A maior complexidade, no entanto, reside no fato de o Judiciário ter que aplicar
todos esses princípios administrativos e de organização pública a um caso
concreto e, com isso, negar o acesso à saúde para uma criança. Se proceder
dessa forma, o Judiciário cumprirá a lei e não fará justiça.
Existem, portanto, evidências suficientes para se afirmar que esses casos não
devam ser solucionados no âmbito do Poder Judiciário, mas sim na esfera
pública dos órgãos administrativos municipais, estaduais e federais com
fiscalização do Ministério Público e dos Defensores Públicos, como se tratará
no capítulo IV deste trabalho.
128
O quarto acórdão, do Tribunal de Justiça do Estado do Pernambuco, trata do
fornecimento de medicamento de alto custo para paciente portador de
patologia grave.
1.4. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PERNAMBUCO
Segundo Grupo de Câmaras Cíveis
Julgamento – 22/09/2010
Processo nº 0015536-91.2009.8.17.0000 (200828-2)
Relator - Antônio Fernando de Araújo Martins
MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO DE ALTO
CUSTO. PATOLOGIA GRAVE. PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE PROVA PRÉCONSTITUÍDA - REJEITADA. PRELIMINAR DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA
DO PEDIDO - NÃO CONHECIDA. MÉRITO: EXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO
E CERTO. APLICAÇÃO DA SÚMULA 18 DO TJPE. Preliminar de ausência de
prova pré-constituída - rejeitada. É inquestionável que a saúde pública no nosso
país está longe de ser considerada eficiente, quão mais de garantir acesso amplo
e irrestrito aos cidadãos que dela necessitam. Assim sendo, não há como se
pretender que apenas os pacientes do quadro de médicos vinculados ao Sistema
Público de Saúde possam usufruir dos direitos consagrados na Constituição
Federal, Constituição do Estado de Pernambuco, bem como na Lei 8.080/90.
Preliminar de impossibilidade Jurídica do Pedido - não conhecida por se confundir
com a questão meritória. É cediço caber ao poder público velar pela preservação
da saúde e vida humanas, conforme consagra o caput do art. 5° da nossa Carta
Maior, o art. 159 da Constituição do Estado de Pernambuco, bem como a Lei
8.080/90.
À UNANIMIDADE DE VOTOS, FORAM REJEITADAS AS PRELIMINARES DE
AUSÊNCIA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA E DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA
DO PEDIDO. NO MÉRITO, AINDA À UNANIMIDADE, CONCEDEU-SE A
SEGURANÇA, NOS TERMOS DO VOTO DO EMINENTE DESEMBARGADOR
RELATOR.
Nos argumentos utilizados está a Súmula 18 do Tribunal de Justiça do Estado
do Pernambuco que tem a seguinte redação:
129
Súmula 18 – É dever do Estado-membro fornecer ao cidadão, sem ônus para
este, medicamento essencial ao tratamento de moléstia grave, ainda que não
previsto em lista oficial.
Neste caso concreto, o argumento do Poder Executivo é o de que não pode
aceitar a indicação exclusiva do medicamento por receituário de médico que
não pertença à rede pública, ou seja, de médico particular. Também alega que
os medicamentos devam ser adquiridos por meio de licitação prévia, em vista
do alto custo do produto.
Entendeu o Tribunal que o fato de o receituário ter sido prescrito por médico
não integrante do sistema público de saúde não é um problema. E, ainda, que
o risco a que está submetido o paciente – o de que poderá morrer se não
ingerir o medicamento, justifica a desnecessidade de licitação prévia.
No corpo do acórdão, o argumento utilizado é a aplicação do artigo 196 da
Constituição Federal e do 159 da Constituição do Estado do Pernambuco, que
assim determina:
Artigo 159 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, assegurada mediante
políticas sociais, econômicas e ambientais, que visem a eliminação de riscos de
doenças e outros agravos e ao acesso universal e igualitário a ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.
Além disso, o Egrégio Tribunal do Estado do Pernambuco entendeu que:
[...] em casos como o desta espécie, deve-se atender ao critério do
balanceamento dos interesses em jogo (princípios da proporcionalidade e
razoabilidade), uma vez que, não sendo a patologia em questão devidamente
tratada, poderá ocasionar risco de óbito ao impetrante.
Registre-se, ainda, que não se pode aceitar qualquer argumentação no sentido de
restrição orçamentária para justificar o não deferimento do medicamento de que
necessita o impetrante. Nesse sentido, esta Egrégia Corte já firmou entendimento:
A comprovada necessidade do medicamento e a falta de condições de adquiri-lo,
legitima o direito do autor em buscar a tutela jurisdicional, amparada pela norma
constitucional (arts. 6º e 196), ante a omissão do Estado. Assim, não pode o Poder
Público furtar-se de cumprir com sua obrigação constitucional e garantir a saúde
de todos, sobre o manto da legalidade e suscitar questões administrativas e
130
orçamentárias para se escusar de cumprir sua obrigação constitucional de garantir
a saúde de todos. (Mandado de Segurança 91094-3, Relator: Eduardo Augusto
Paura Peres, 1º Grupo de Câmaras Cíveis, julgamento 22/10/2003, Publicação: nº
DJ 109, 15/06/2004).
Algumas ponderações também podem ser construídas neste caso concreto.
A primeira delas é debater qual teria sido o prejuízo se um médico do sistema
público de saúde tivesse analisado o receituário prescrito e, por hipótese,
tivesse sugerido outro medicamento, com o mesmo potencial do indicado pelo
médico privado, porém já existente no dispensário público do Estado.
Não é raro que se encontre na vida prática medicamentos que custam muito
mais do que outros, e cujos laboratórios incentivam os médicos a receitá-los,
seja custeando pesquisas e participações em congressos, seja custeando
viagens de lazer ou aquisição de equipamentos para uso profissional ou,
simplesmente, remunerando em dinheiro as receitas firmadas pelo médico.
Causou forte impacto na análise crítica da indústria de medicamentos a
publicação do livro A Verdade sobre Os Laboratórios Farmacêuticos – como
somos enganados e o que podemos fazer a respeito, publicado por MARCIA
ANGELL, ex- editora do New England Journal of Medicine e atualmente
integrante do Departamento de Medicina Social da Harvard Medical School,
publicado em 2007, no Brasil91.
Especial destaque na obra é o tratamento dado aos chamados novos
medicamentos que, no entender da autora, muitas vezes são apenas imitações
de produtos já existentes no mercado, com pouquíssimas modificações e que
visam exclusivamente à renovação da patente e ao direito de exclusividade na
comercialização por mais 20 anos (prazo de validade das patentes nos Estados
Unidos).92
A mídia brasileira tem publicado com regularidade situações controvertidas de
médicos que são surpreendidos por receitar medicamentos mais caros ou
incompatíveis
91
para
determinadas
patologias
apenas
porque
recebem
ANGELL, Marcia. A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos. S.Paulo: Record, 2007,
traduzido por Waldéa Barcellos.
92
Obra citada, p. 14, 69, 91.
131
remuneração dos laboratórios farmacêuticos para estimularem a venda de
determinados produtos, normalmente, de custo mais caro.
Nessa realidade já bastante conhecida no Brasil, e sem comprometer o
tratamento do paciente que requereu o medicamento em juízo, indagamos: não
teria sido razoável propor que o Poder Executivo fizesse por meio de seu corpo
médico a análise do medicamento recomendado, e emitisse um laudo para
corroborar a recomendação do médico privado ou sugerir que outro
medicamento fosse utilizado?
Também parece razoável argumentar que teria sido recomendável, desde que
não houvesse prejuízo para o paciente, ou seja, em curtíssimo espaço de
tempo, que fosse feita a verificação sobre o medicamento existir no dispensário
da rede pública ou outro similar que pudesse ser utilizado sem prejuízo até que
a licitação fosse realizada.
É difícil sugerir essa forma de proceder ao magistrado quando ele está diante
do cidadão cuja vida está em perigo pelo não fornecimento do medicamento.
Mas como regra, não é impossível propor que os pacientes, antes de se
dirigirem ao Poder Judiciário comprovem que buscaram o fornecimento do
medicamento junto ao Poder Executivo, ainda que para isso tenham que ser
submetidos à nova avaliação médica.
Salvo os casos em que esse procedimento administrativo possa fazer a
diferença entre a vida e morte do paciente, nos demais é possível pensar que
dessa maneira os poderes republicanos atuariam de forma mais compatível
com os ditames fundamentais do Estado Democrático de Direito.
A esse respeito, afirma MOTA93:
[...] em um conceito de Estado Democrático de Direito que tenha efetividade e não
seja uma quimera simplesmente programática, a materialidade dos direitos
prestacionais deve ser aquela necessária para a segurança dos desfrutes
privados, alcançáveis pelos indivíduos de maneira autônoma.
Portanto, o Estado de Direito não pode ser delimitado somente como aquele que
garante a liberdade de um ponto de vista formal, o império da lei, nem por outro
MOTA, Maurício. “Paradigma Contemporâneo do Estado Democrático de Direito: PósPositivismo e Judicialização da Política”. In MOTA, Luis Eduardo. MOTA, Maurício
(organizadores). O Estado Democrático de Direito em Questão. S.Paulo: Campus Jurídico,
2011, p. 15-16.
93
132
lado como um Estado igualitário, onde a liberdade de escolha de cada cidadão
acerca do seu próprio projeto de vida não esteja assegurado.
Há que se fazer assim uma delimitação conceitual. Para que exista um Estado
Democrático de Direito é necessário que existam as condições políticas para que
todos, inclusive o Estado, estejam efetivamente submetidos ao direito, e o controle
do poder político deste esteja assegurado. Isso envolve direitos políticos e
liberdades e as condições materiais assecuratórias para o exercício de tais
liberdades.
Esse Estado de Direito não se confunde, entretanto, com um Estado prestacional.
A excessiva intervenção estatal, com fins igualitários, pode, em determinadas
circunstâncias, pôr em perigo a liberdade. Do mesmo modo, as liberdades, sem
um marco de igualdade de oportunidades sociais e econômicas, se convertem em
fórmulas vazias. O Estado Democrático de Direito deve ser, primordialmente, uma
forma de organizar o Estado onde todos tenham a potencialidade de se expressar
e influir na formação da vontade política desse Estado.
O desenvolvimento de potencialidades individuais dos cidadãos brasileiros em
relação ao acesso à saúde integral não será construído apenas por decisões
judiciais. A ampliação do diálogo entre os Poderes da República se coloca
como uma das formas que permitirá aos cidadãos o acesso a tudo o quanto
seja essencial para seu bem-estar.
O quinto acórdão analisado neste trabalho é do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul, e trata do fornecimento de medicamentos de alta
especialidade e alto custo, necessários para a realização de tratamento de
reprodução assistida.
1.5.TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL
APELAÇÃO CIVIL
VIGÉSIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVIL
PROCESSO N.º 70039644265
APELANTE – ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e MUNCÍPIO DE BOM JESUS
APELADA – CENILDA PEDROSO DOS SANTOS
RELATOR – ARMÍNIO JOSE LIMA DE ABREU DA ROSA
133
Data do julgamento – 26/01/2011
Publicado em 11/02/2011
CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO À SAÚDE. INTERESSE DE
AGIR. PEDIDO ADMINISTRATIVO. DESNECESSIDADE.
Não se deve cogitar de falta de interesse de agir por não ter a autora efetuado
pedido na esfera administrativa, pois não está o cidadão atrelado à referida via
para ingresso em juízo, tendo em vista a existência de norma constitucional que
prevê o livre acesso ao Poder Judiciário.
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. ILEGITIMIDADE PASSIVA DOS ENTES
PÚBLICOS.
INOCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DE TODOS
OS ENTES DA FEDERAÇÃO. ARTIGOS 6º, 23, II E 196, CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. PRECEDENTES. IRRELEVÂNCIA DE OS MEDICAMENTOS NÃO
ESTAREM PREVISTOS EM LISTA. PRECEDENTES.
De acordo com firme orientação do Supremo Tribunal Federal e do Superior
Tribunal de Justiça, o direito à saúde é dever do Estado, lato sensu considerado, a
ser garantido modo indistinto por todos os entes da federação – União, Estados,
Distrito Federal e Municípios –, forte nos artigos 6º, 23, II e 196 da Constituição
Federal, sendo irrelevante, no mais, a circunstância de os fármacos não
integrarem a lista dos medicamentos básicos, excepcionais ou especiais.
REPRODUÇÃO ASSISTIDA. INFERTILIDADE HUMANA E SAÚDE. DIREITO DO
CIDADÃO. ART. 226, § 7º, CF/88. INFERTILIDADE E SAÚDE. ARTIGOS 6º, 23,
II, E 196, CF/88.
A infertilidade humana corresponde a problema de saúde, como reconhecido pelo
Conselho Federal de Medicina, não deixando a reprodução assistida, consistente
no procedimento médico de assegurar a gravidez, de atender dever do Estado
vinculado ao planejamento familiar, cujo regramento constitucional está no art.
226, § 7º, CF/88.
Reconhece o Estado brasileiro, regulamentando pauta constitucional, ser direito
de todo cidadão o planejamento familiar (art. 1º, Lei nº 9.263/96), com o que
assumiu prestações de ordem variadas para permitir sua efetivação, inclusive no
campo da saúde, atraindo toda a jurisprudência formada em torno dos arts. 6º, 23,
II e 196, CF/88.
Se é certo, quanto aqueles que não disponham de condições financeiras, estar
prevista cobertura pelo SUS (art. 3º, parágrafo único, Lei nº 9.263/96), em cujo
âmbito instituída a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana
Assistida (Portaria nº 426/GM, de 22.03.05; Portaria nº 388, do Secretário de
134
Atenção à Saúde, de 06.07.05), no entanto não se pode deixar ao relento casos
em que tal atendimento resta impossibilitado ou extremamente difícil.
SERVENTIA
ESTATIZADA
E
CUSTAS
PROCESSUAIS.
ARTIGO
11,
REGIMENTO DE CUSTAS (LEI ESTADUAL Nº 8.121/85). DIFERENÇA ENTRE
ESTADO E MUNICÍPIO.
Não cabe imposição de o Estado pagar as custas processuais, quanto a serventia
estatizada, tal qual dispõe, expressamente, o artigo 11, Regimento de Custas.
Já quanto ao Município, mostra-se cabível a condenação ao pagamento de custas
pela metade, na forma do artigo 11, caput, da Lei Estadual nº 8.121/85, em sua
redação original.
Cumpre ressalvar, todavia, a isenção total, após a vigência da Lei Estadual nº
13.471/10.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CONDENAÇÃO DO ESTADO EM CAUSA
PATROCINADA PELA DEFENSORIA PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA
421 DO STJ.
Consoante entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça (Súmula
421), sendo a Defensoria Pública órgão do Estado, não se pode recolher
honorários sucumbenciais decorrentes de condenação contra a Fazenda Pública
Estadual, em causa patrocinada por Defensor Público.
HONORÁRIOS PARA A DEFENSORIA PÚBLICA. MUNICÍPIO. CABIMENTO.
É devida pelo Município verba honorária em causas patrocinadas pela Defensoria
Pública, porquanto, ainda que esta seja órgão integrante do Estado do Rio Grande
do Sul, não se confunde com a pessoa jurídica do Município.
É importante destacar que o Estado do Rio Grande do Sul, em sede de recurso
de apelação, sustentou que:
Nas suas razões recursais, sustenta o primeiro Apelante que os medicamentos (1)
menotropina altamente purificada (hmg) 75 ui; (2) estradiol 2mg; (3) folitropina
recombinante 900ui; (4) antagonista do gnrh; e (5) hcg 5000ui, não constam das
listas de medicamentos excepcionais/especiais disponibilizados pelo estado, não
podendo ser responsabilizado pelo seu fornecimento, razão pela qual, deve ser
extinto o feito com base no art. 267, VI, CPC. Aduz que o dever de prestar
assistência à saúde, na forma dos arts. 23, II, e 198, da CF/88, é compartilhado
entre os municípios, os estados e a união. Argumenta que o tratamento de
135
reprodução assistida é fornecido pelo sistema público de saúde, desde que os
interessados se inscrevam no programa e aguardem a chamada, contudo, tal
procedimento não pode ser considerado essencial e muito menos urgente, afinal,
o não atendimento imediato do pleito não acarreta grave prejuízo à parte.
No corpo do acórdão muitos argumentos são colocados de forma jurídica
irrepreensível, em especial o de que não é obrigatório ao cidadão tentar
primeiramente a via administrativa antes de pleitear em juízo o direito que
pretende ver efetivado. Argumentam os magistrados que os diversos entes
políticos, Estado, Município e Federação devem se articular e organizar no
sentido de buscar os recursos necessários para o tratamento requerido, não
sendo lícito exigir que o cidadão se dirija primeiramente a um desses entes
antes de requerer em juízo. Também é utilizado o argumento da integralidade
da saúde garantido no artigo 196 da Constituição Federal e, nesse sentido da
integralidade, a pretensão de ser mãe é legítima, legal e deve merecer guarida
do Estado.
O artigo 23, inciso II, da Constituição Federal é utilizado neste caso. O referido
artigo determina no caput que é comum a competência da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios para II - cuidar da saúde e assistência
pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência.
Afirma o texto do acórdão que: “A reprodução assistida está compreendida
no planejamento familiar (art. 226, § 7º, CF/88; Lei nº 9.263/96). No entanto,
em se tratando de infertilidade humana, não se está apenas diante de
nítido tema de saúde, afeito aos arts. 6º, 23, II, e 196, CF/88.” 94
Em conformidade com a proposta de análise crítica deste trabalho, é o
momento de questionar se os valores a serem gastos com o tratamento de
reprodução assistida da requerente não seria um dispêndio excessivo em face
das necessidades mais urgentes de parte expressiva da população daquele
Estado-membro.
Disponível em
http://www1.tjrs.jus.br/busca/?q=70039644265&tb=jurisnova&pesq=ementario&partialfield
s=%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao%3Amonocr%25C
3%25A1tica%29&requiredfields=&as_q=. Acesso em 18 de outubro de 2011.
94
136
O pressuposto é que ser mãe seja um direito colocado em condições de
igualdade com outros direitos fundamentais, como o direito à vida, por
exemplo. Mas de maneira crítica pode-se argumentar que o direito de ser mãe
está limitado a uma condição física que algumas mulheres possuem e outras
não. Não ser mãe não coloca as pessoas necessariamente em condições de
deficiência, mas de ausência de condições físicas para realizar determinadas
atividades, assim como, mal comparando, aquele que não possui uma estatura
avantajada não poderá ser atleta de algumas modalidades esportivas, como o
basquete, por exemplo.
Ainda em consonância com um pensamento crítico sobre os argumentos
utilizados no acórdão, é o caso de se perguntar: se o sentimento de
maternidade é tão relevante para uma mulher a ponto de a impossibilidade de
gerar ser equiparada a deficiência, por que não se pode recomendar a ela a
adoção de uma criança?
Nessa mesma linha de raciocínio, é de se supor que, se ao final o tratamento
custeado pelo Estado não se mostrar eficiente para que a mulher tenha um
filho, ela poderá requerer indenização ao Estado por não ter realizado o direito
de ser mãe? Ou ainda: poderá requerer indenização pelo fato de o Estado não
ter sido eficiente para garantir o direito básico à saúde de ser mãe de filhos
biológicos?
Vale registrar aqui a reflexão de ANA PAULA DE BARCELLOS95:
[...] A prestação de saúde concedida por um magistrado a determinado
indivíduo deveria poder ser concedida também a todas as demais pessoas na
mesma situação, pois o conteúdo do mínimo existencial é dado por prestações
em relação às quais seja factível afirmar que todos os indivíduos têm direito, e
não apenas aqueles que vão ao Judiciário.
Se a decisão judicial que concede determinado bem ou serviço não pode ser
razoavelmente universalizada, acaba-se por consagrar uma distribuição no
mínimo pouco democrática dos bens públicos: todos custeiam – sem que
tenham decidido fazê-lo – determinadas necessidades de alguns, que tiveram
condições de ir ao Judiciário e obtiveram uma decisão favorável. Repita-se que
BARCELLOS, Ana Paula de. “O Direito a Prestações de Saúde: Complexidade, Mínimo
Existencial e o Valor das Abordagens Coletivas e Abstratas”. In: SOUZA NETO, Cláudio
Pereira. SARMENTO, Daniel (coordenadores) Direitos Sociais – Fundamentos, Judicialização e
Direitos Sociais em Espécie. R.de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 820.
95
137
no caso do mínimo existencial, diferentemente, há sim uma posição política
fundamental – constitucional –, pela qual toda a sociedade comprometeu-se a
custeá-lo para assegurar a dignidade de todos os homens, ao menos em
patamares mínimos. [...]
Ao mesmo tempo em que tais prestações são concedidas a autores isolados
de ações judiciais, centenas de pessoas morrem sem atendimento adequado
na rede pública por falta de prestações que, por certo, estariam compreendidas
no conceito de mínimo existencial.
Em semelhante posição de questionamento sobre os parâmetros a serem
utilizados pelo julgador em casos semelhantes àquele que ora está sendo
analisado, ROGÉRIO JOSÉ BENTO SOARES DO NASCIMENTO96 afirma:
A maior complexidade do conceito de saúde, aliada a ampliação da escala de sua
efetivação, que como visto, ultrapassa as fronteiras do Estado nacional, dificulta
sua concretização equitativa. O risco da doença é geral, o tipo de agravo pode
variar conforme a posição social e econômica de cada um e até em razão da
origem ou de condições geográficas, mas estar sujeito ao risco de adoecer é algo
inerente à condição humana. Que tipo de igualdade deve presidir a provisão de
meios para uma vida saudável? [...]
Já seguindo o princípio da diferença de Rawls: as desigualdades econômicas e
sociais devem ser ordenadas no benefício dos mais desfavorecidos, maximizando
o bem-estar da pessoa que possa ser tomada como representativa da pior
condição em sociedade. Nesta ótica, há espaço para discriminação positiva ou
negativa de acordo com a pior ou melhor situação relativa do estado de saúde e
de cobertura por serviços de saúde.
A decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul está
ancorada na Constituição Federal de 1988, não há dúvida, bem como na
legislação correlata, conforme bem demonstrado na ementa do acórdão. No
entanto, não está por completo amparada no sentido de justiça se se levar em
conta os direitos de outros tantos cidadãos brasileiros, residentes no mesmo
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. “Concretizando a Utopia: Problemas na
Efetivação do Direito a uma Vida Saudável”. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira. SARMENTO,
Daniel (coordenadores) Direitos Sociais – Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em
Espécie. R.de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 916.
96
138
Estado Federativo, necessitando da dispensação de medicamentos não
fornecidos pelo poder público e que, por razões diversas, principalmente por
não disporem de conhecimento sobre a possibilidade de utilização da
advocacia pública para pleito judicial, não levaram seus casos individuais ao
conhecimento do Poder Judiciário. Ou, ainda, se a análise da distribuição da
justiça ao caso concreto for realizada sob a óptica daqueles que eventualmente
poderão sofrer atraso ou suspensão no fornecimento de medicamentos
essenciais para sua saúde, por ausência de recursos financeiros do Estado
que está compelido a atender sentença judicial em tempo por ela determinado
e sem margem para realizar a aquisição pelo melhor preço em razão da
necessidade de imediato cumprimento da ordem expedida pelo Poder
Judiciário.
Os dois últimos exemplos judiciais a serem analisados neste capítulo são do
Supremo Tribunal Federal.
1.6. DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O primeiro é o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 393.175 – Rio
Grande do Sul, julgado em 12 de dezembro de 2006, pela Segunda Turma –
tendo como Relator o Ministro CELSO DE MELLO e com a seguinte ementa:
Ementa – Pacientes com Esquizofrenia paranoide e doença maníaco-depressiva
crônica, com episódios de tentativa de suicídio – Pessoas destituídas de recursos
financeiros – Direito à vida e à saúde – Necessidade imperiosa de se preservar,
por razões de caráter ético-jurídico, a integridade desse direito essencial –
Fornecimento gratuito de medicamentos indispensáveis em favor de pessoas
carentes – Dever constitucional do Estado (CF, arts. 5º, “caput”, e 196) –
Precedentes (STF) – Abuso do direito de recorrer – Imposição de multa – Recurso
de Agravo improvido.
Os principais argumentos utilizados no acórdão estão assim colocados:
O direito à saúde representa consequência constitucional indissociável
do direito à vida.
139
- O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica
indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria
Constituição
da
República
(art.
196).
Traduz
bem
jurídico
constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de
maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e
implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a
garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência
farmacêutica e médico-hospitalar.
- O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental
que assiste a todas as pessoas – representa consequência
constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público,
qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da
organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao
problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por
censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.
A interpretação da norma programática não pode transformá-la em
promessa constitucional inconsequente.
- O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta
Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que
compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado
brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional
inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas
expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de
maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por
um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que
determina a própria Lei Fundamental do Estado.
Distribuição gratuita, a pessoas carentes, de medicamentos essenciais à
preservação de sua vida e/ou de sua saúde: um dever constitucional que
o Estado não pode deixar de cumprir.
- O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de
distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá
efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República
140
(arts. 5º, “caput”, e 196) e representa, na concreção do seu alcance,
um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das
pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a
não ser a consciência de sua humanidade e de sua essencial
dignidade. Precedentes do STF.
O acórdão se fundamenta de maneira clara nos artigos 5º e 196 da
Constituição Federal brasileira e interpreta os artigos na linha proposta pelo
neoconstitucionalismo, conforme tratado no capítulo II desta pesquisa, ou seja,
para obter a máxima efetividade do texto constitucional.
É possível reconhecer na argumentação do acórdão aspectos do protagonismo
judicial já referido neste trabalho, na medida em que “a interpretação da
norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional
inconsequente.”
De fato, não é possível tratar a norma programática como no passado anterior
à Constituição Federal de 1988; mas afirmar que todas as normas
programáticas deverão ser interpretadas de maneira a cumprir as promessas
de direitos sociais é minimizar a importância dos custos dos direitos. Ou, na
mesma dimensão, é tratar os direitos fundamentais sociais como absolutos
quando, em verdade, o debate se dá em torno da distribuição dos recursos dos
mais necessitados para os menos.
Na mesma medida se coloca o dever do Estado de fornecer medicamentos
para as pessoas carentes. O acórdão determina que isso é um dever que o
Estado não pode deixar de cumprir, sem relativizar que, em alguns momentos,
os estados-membros da federação poderão ter que deixar de cumprir o dever
de fornecimento de medicamentos para determinadas doenças e combater
epidemias que possam significar a morte de milhares de crianças, por exemplo.
Colocados da forma como se encontram nesse acórdão, os argumentos do
Supremo Tribunal Federal podem ser utilizados em muitos e diversificados
casos de pleito de acesso à saúde, alguns dos quais não terão a mesma
relevância ou não estarão necessariamente inseridos nas mesmas condições
contextuais que este.
141
O outro acórdão do STF escolhido para análise é de 17 de março de 2010, e
tem a seguinte ementa:
DJE n.º 76 – Divulgação 29/04/2010
Ementário n.º 2399-1
Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada 278 Alagoas
Relator Ministro Presidente GILMAR MENDES
Agravante – Estado de Alagoas
Agravado – Maria de Lourdes da Silva
Ementa – Suspensão de Tutela Antecipada. Agravo Regimental. Saúde
Pública. Direitos Fundamentais sociais. Artigo 196 da Constituição.
Audiência Pública. Sistema Único de Saúde – SUS. Políticas Públicas.
Judicialização do direito à saúde.
Separação de Poderes. Parâmetros
para a solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde.
Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde.
Fornecimento
de
medicamento:
Rituximabe
(Mabthera).
Fármaco
registrado na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à
economia, à saúde e à segurança pública. Possibilidade de ocorrência de
dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento.
Trata-se de ação cominatória ajuizada contra o Estado de Alagoas com pedido
de tutela antecipada, com a finalidade de obter da Secretaria Estadual de
Saúde o fornecimento gratuito do medicamento Mabthera (Rituximabe), nas
dosagens 500 mg e 100 mg, por ser portadora de Leucemia Linfocítica Crônica
(CID C 91.1) e não dispor de condições financeiras para arcar com os custos
do tratamento, orçado em R$ 162.707,16 (12 frascos de Mabthera 500 mg e 24
frascos de Mabthera 100 mg).
O Estado de Alagoas requereu a suspensão dos efeitos da antecipação de
tutela sob o argumento de que o medicamento não consta da Portaria 2.577 do
Ministério da Saúde97, e que seu fornecimento seria de responsabilidade do
município de Maceió.
97
PORTARIA Nº 2.577/GM 27 DE OUTUBRO DE 2006.
Aprova o Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional.
142
O MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE, no uso de suas atribuições, e
Considerando as diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Medicamentos, constante
da Portaria nº 3.916/GM de 30 de novembro de 1998;
Considerando os princípios e eixos estratégicos definidos pela Política Nacional de Assistência
Farmacêutica aprovada pela Resolução nº 338, de 2004, do Conselho Nacional de Saúde;
Considerando a necessidade de aprimorar os instrumentos e estratégias que asseguram e
ampliam o acesso da população aos serviços de saúde, incluído o acesso aos medicamentos
em estreita relação com os princípios da Constituição e da organização do Sistema Único de
Saúde;
Considerando as Portarias nº 399/GM, de 22 de fevereiro de 2006, que Divulga o Pacto
pela Saúde e nº 698/GM, de 30 de março de 2006, - Organização dos recursos federais de
custeio em Blocos de Financiamento; e
Considerando a pactuação na reunião da Comissão Intergestores Tripartite do dia 5 de
outubro de 2006,
R E S O L V E:
Art. 1º Aprovar o Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional, como parte da
Política Nacional de Assistência Farmacêutica do Sistema Único de Saúde, conforme termos
constantes do Anexo I a esta Portaria.
Art. 2º Redefinir os procedimentos e valores do Grupo 36 - Medicamentos da Tabela
Descritiva do Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS),
na forma e redação estabelecidas no Anexo II a esta Portaria.
§ 1º Os procedimentos e novos valores estabelecidos no caput terão vigência a partir da
competência novembro de 2006.
§ 2º O Departamento de Regulação, Avaliação e Controle de Sistemas, da Secretaria de
Atenção à Saúde (DRAC/SAS) e o Departamento de Informática do SUS (DATASUS), deverão
proceder às adequações nos sistemas operacionais e de informações sob sua
responsabilidade, a fim de garantir o estabelecido no parágrafo anterior.
§ 3º No prazo de 180 (cento e oitenta) dias, a partir da competência, componente de
Medicamentos e Dispensação Excepcional, serão analisados os impactos decorrentes das
medidas implementadas no âmbito do Componente de Medicamentos de Dispensação
Excepcional (CMDE), com vistas a possíveis ajustes.
Art. 3º Estabelecer o prazo de junho de 2007 para implantação de sistema informatizado
para o gerenciamento técnico e operacional do CMDE.
Art. 4º Caberá à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, editar normas
complementares referentes à operacionalização do Componente de Medicamentos de
Dispensação Excepcional.
Art. 5º Caberá à Secretaria de Atenção à Saúde, por intermédio do Departamento de
Regulação, Avaliação e Controle de Sistemas (DRAC/SAS), editar normas complementares
relacionadas à operacionalização do Sistema de Informações, relativos à tabela de
procedimentos.
Art. 6º Definir que os recursos orçamentários de que trata esta Portaria corram por conta da
funcional programática 10303.1293.4705.0001 assistência financeira para aquisição e
distribuição de medicamentos excepcionais, do orçamento do Ministério da Saúde.
Art. 7º Esta Portaria regulamenta o Componente de Medicamentos de Dispensação
Excepcional do Bloco de Financiamento da Assistência Farmacêutica.
Art. 8º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 9º Ficam revogadas as Portarias nº 1.481/GM, de 28 de dezembro de 1999, publicada
no Diário Oficial nº 249-E, de 24 de dezembro de 1999, Seção 1, página 24, nº 1.318/GM,
de 23 de julho de 2002, publicada no Diário Oficial da União nº 141, de 21 de julho de 2002,
Seção 1, página 68, nº 445/GM, de 6 de março de 2006, publicada no Diário Oficial da União
nº 45, de 7 de março de 2006, Seção 1, página 27, nº 562/GM, de 16 de março de 2006, nº
203/SAS, de 19 de abril de 2005, publicada no Diário Oficial da União nº 112, de 14 de
junho de 2005, Seção 1, página 38, nº 409/SAS, de 5 de agosto de 1999, publicada no
Diário Oficial nº 150, de 6 de agosto de 1999, Seção 1, página 52, e nº 921/SAS, de 25 de
novembro de 2002, publicada no Diário Oficial da União nº 227, de 25 de novembro de
2002, Seção 1, página 64. JOSÉ AGENOR ÁLVARES DA SILVA
143
Alegou que, diante da necessidade de prover o medicamento, haveria lesão à
ordem, à economia e à saúde públicas.
O medicamento requerido é de alto custo, sendo admissível que um município
capital de um estado federativo, conhecido por seus altos índices de pobreza,
tenha dificuldades no fornecimento do medicamento. Como este não consta da
portaria do Ministério da Fazenda, a responsabilidade é integralmente do
município e, nesse sentido, é certo que causará um impacto no orçamento.
Ainda que não existam dados na decisão que permitam avaliar qual a extensão
do impacto orçamentário, é possível inferir que ele existirá porque a compra de
um medicamento dessa natureza e preço não é comumente previsto no
orçamento do município, ou mesmo do estado da federação. Portanto, o
argumento utilizado pelo estado federativo em sua defesa não é aleatório ou
desprovido de fundamento.
Além disso, um caso concreto decidido de forma favorável pelo STF consolida
uma prática a ser utilizada em muitos outros casos semelhantes, com
repercussão para o planejamento e o orçamento públicos que, minimamente,
deverão começar a contingenciar verbas para exercícios futuros, porque
certamente novos casos semelhantes serão julgados da mesma maneira.
É possível afirmar que os argumentos utilizados nas decisões judiciais
analisadas neste trabalho têm um traço marcante em comum: são fundados na
Constituição Federal brasileira e inteiramente aplicáveis aos casos concretos
tratados.
Os artigos 1°, 5° e 196 da Constituição Federal são imprescindíveis em todos
os casos, porque tratam da supremacia da dignidade da pessoa humana como
princípio fundamental das relações sociais do País e da integralidade da
assistência à saúde.
Os demais argumentos fincados na legislação ordinária ou mesmo na
legislação administrativa do Ministério da Saúde se ancoram na determinação
constitucional e com ela estão consonantes.
144
Milhares de outros casos concretos nos quais os requerentes pleiteiem
internação em hospital privado (por falta de leitos de unidade de terapia
intensiva em hospitais públicos), fornecimento de leites especiais para
portadores de intolerância a lactose, fornecimento de próteses ou órteses,
cirurgias
corretivas,
medicamentos
excepcionais
ou
qualquer
outra
necessidade da área de saúde, cujos pedidos estejam corroborados por um
laudo ou receita médica, estarão suficientemente providos para acionar o
dispositivo constitucional que protege o direito à dignidade da pessoa humana
e a integralidade do acesso à saúde. O contrário disso seria negar a primazia
constitucional e, na mesma esteira, negar o Estado Democrático de Direito.
Por outro lado, as ponderações sobre custos, sobre a concretização de direitos
individuais e o impacto nos direitos coletivos também são válidas e aplicáveis
aos casos concretos.
Para os executivos municipal, estadual e federal, a garantia da efetividade do
direito à saúde não ocorre a partir da intenção ou da necessidade de cumprir
sentença judicial ou tutela antecipada. Faz-se concretamente com recursos
financeiros que devem ser retirados dos cofres públicos para atender aquela
necessidade imediata, sem que haja tempo sequer para comprar pelo melhor
preço numa licitação. Provém daí a indagação: por essa razão, deveria o Poder
Judiciário julgar de forma diferente e deixar de concretizar o direito da parte se
ele não estiver previsto no orçamento?
ANA PAULA DE BARCELLOS98 pondera:
É certamente penoso para um magistrado negar, e.g., o transplante ou o
medicamento importado que poderá salvar a vida do autor da demanda, pelo fato
de tais prestações não estarem compreendidas no mínimo existencial que decorre
da Constituição e nem constarem de qualquer outra norma jurídica ou de uma
opção política adicional veiculada pelo Legislativo ou pelo Executivo. Nesse
contexto, as impressões psicológicas e sociais do magistrado, a quem cabe afinal
aplicar a Constituição, não podem ser desconsideradas. Um doente com rosto,
identidade, presença física e história pessoal, solicitando ao Juízo uma prestação
de saúde é percebido de forma inteiramente diversa da abstração etérea do
orçamento e das necessidades do restante da população, que não são visíveis
naquele momento e têm sua percepção distorcida pela incredulidade do
98
Obra citada, p. 819.
145
magistrado, ou ao menos pela fundada dúvida de que os recursos públicos estejam
sendo efetivamente utilizados para promoção da saúde básica.
O pedido individual de acesso à saúde, quando chega ao Poder Judiciário, é
para ser decidido. Não cabe mais o debate em torno da pertinência ou da
possibilidade orçamentária, porque, salvo quando se tratar de comprovada
fraude no pedido, o requerente está lá amparado por um documento médico
que prova sua necessidade e (não raro) a urgência na concretização do
pedido. Nessa situação, o Poder Judiciário é um locus limitado porque a ele
não compete o debate, mas a avaliação das provas apresentadas pelas partes
e a decisão.
Aspectos como mínimo existencial, reserva do possível, maior valor do
saneamento básico ou da cirurgia bariátrica que poderá dar qualidade e
perspectiva de vida para uma jovem com obesidade mórbida e com moléstias
correlatas (como hipertensão arterial e diabetes), medicamentos de alto custo
para pessoas portadoras de câncer em grau elevado de disseminação, entre
outras inúmeras situações, não deveriam chegar necessariamente ao Poder
Judiciário. Instâncias políticas anteriores precisam ser pensadas para evitar
que o acesso à saúde no Brasil seja decidido prioritariamente em tal âmbito. É
no espaço administrativo, prioritariamente, que o debate poderá ser feito de
forma mais ampla, inclusive para avaliar se o pedido formulado pelo sujeito já
não se encontra disponibilizado por meio de políticas públicas implementadas
pelo município ou pelo estado federativo e para as quais seja necessária a
comprovação da necessidade, a inscrição e, não raro, a espera para ser
chamado e usufruir de uma oportunidade que não pode ser concedida a todos
ao mesmo tempo em vista da necessidade de adequação dos recursos
públicos disponíveis.
O Poder Judiciário não tem acesso a todas as informações sobre políticas
públicas do município e do estado federativo, e nem tem como tê-las, porque,
se tivessem, o tempo dos magistrados seria dedicado à leitura de orçamentos
e de relatórios que noticiam o cumprimento das rubricas orçamentárias.
Também não se pode exigir do magistrado que tenha conhecimento técnico em
área médica para avaliar se a recomendação do médico é ou não adequada
146
para o caso concreto, ou se existem outras maneiras menos custosas de
resolver o problema. Se houver tempo para a realização de prova pericial
médica e existirem recursos públicos para realizá-las, o magistrado poderá
determinar que seja esse o caminho; mas, se não houver tempo, nada poderá
ser feito a não ser a decisão com base no parecer médico trazido pela parte
que invoca o direito.
Todos esses fatores conduzem à conclusão de que a melhor decisão para a
utilização dos recursos públicos para a área da saúde não é aquela adotada
pelo Judiciário. Quando o caso concreto chega a esse âmbito, já não há mais
espaço ou tempo para o debate, para os estudos de viabilidade, para a
discussão em torno da pertinência ou impertinência da medida médica
apresentada: só cabe a seus agentes avaliar a prova produzida e decidir.
Assim, não se trata simplesmente de ativismo ou protagonismo judicial. Nos
casos concretos que decidem o acesso à saúde pública é preciso resgatar o
debate político sobre o uso de recursos públicos, e esse debate precisa ser
efetivado fora da dimensão judicial até para que a efetividade da cidadania no
Brasil não se restrinja a uma decisão judicial procedente.
As possibilidades do debate político que antecedem a dimensão do Poder
Judiciário serão analisadas no Capítulo IV desta pesquisa.
147
CAPÍTULO IV
SOLUÇÕES POSSÍVEIS PARA DIMINUIR A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
Este capítulo tem por objetivo analisar alternativas que possam mitigar a
judicialização da saúde, entendido que a busca pela solução judicial não
deixará de ser praticada no Brasil em curto espaço de tempo porque as
deficiências da saúde pública são muitas e tampouco deixarão de existir tão
cedo.
Segundo declarações do atual Ministro da Saúde ALEXANDRE PADILHA99, o
Brasil investe em saúde cerca de 3,4 a 3,6% do Produto Interno Bruto do País,
o que significa menos que a metade do que investe a Argentina e abaixo de
outros países da América Latina.
Mesmo que se possa argumentar que o valor dos investimentos em saúde não
é o único problema do Sistema Único de Saúde porque também é preciso
avaliar de que forma esses recursos são investidos, ainda assim é forçoso
reconhecer que o investimento é pequeno se levarmos em conta a quantidade
de usuários do sistema público, a diversidade das necessidades de um país
com dimensões continentais como o Brasil e, as peculiaridades deste momento
histórico da saúde em que coexistem exigências por cuidados básicos em
saúde e por incorporação de novas tecnologias quase sempre de alto custo.
A Medicina contemporânea, em termos de tecnologia, tem essa característica
peculiar: a de que a inserção de uma nova tecnologia nem sempre substitui
uma anterior e nem sempre significa menor custo. Um médico ortopedista, para
avaliar corretamente uma lesão, poderá solicitar que o paciente realize um
Disponível em http://www.redebrasilatual.com.br/temas/saude/2011/04/para-padilhasaude-precisa-mostrar-boa-gestao-para-conquistar-mais-recursos. Acesso em 02 de
novembro de 2011.
99
148
exame de raio X e uma ressonância magnética e justificará, cientificamente,
que necessita da tecnologia antiga (raio X) e da nova (ressonância magnética)
para aferir corretamente a extensão do problema que o paciente apresenta.
Se considerarmos que dados econômicos recentes dão conta de que, entre
1995 e 2008, 12,8 milhões de brasileiros saíram da condição de pobreza
absoluta (renda per capita de até meio salário mínimo) e 12,1 milhões saíram
da pobreza extrema (renda per capita de até um quarto do salário mínimo)100
segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) a partir da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), é possível prever que muito em breve um novo
contingente de brasileiros atentará para a possibilidade de exigir pela via
judicial acesso a procedimentos de saúde que não estejam facilmente
disponibilizados
na
rede
pública,
como
medicamentos
excepcionais,
fornecimento de próteses, órteses, exames de imagem e outros.
Inseridos em um novo patamar de consumo e de absorção de informações por
novos mecanismos, como o acesso a rede mundial de computadores, por
exemplo, essa parcela da sociedade brasileira estará mais preparada para
exigir direitos e utilizar os mecanismos colocados à disposição para essa
finalidade, como as defensorias públicas e outras instituições pertinentes.
A perspectiva de aumento da judicialização como forma de acesso à saúde
pública no Brasil também está vinculada à formação dos profissionais de
Direito, como já afirmado neste trabalho, que continua a ter marcada tendência
para a prática judicial, e que ainda estuda e pesquisa pouco os mecanismos de
solução de conflitos que não sejam judiciais.
Se o aumento da judicialização é uma perspectiva concreta, é necessário
refletir sobre alternativas que possam diminuir a incidência do fenômeno e, ao
mesmo tempo, despertar a sociedade brasileira contemporânea para a busca
de soluções mais rápidas que as decisões judiciais, levando em consideração
a dimensão política do problema da saúde, que exige, na maioria das vezes,
soluções coletivas.
Disponível em http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,brasil-deve-eliminarmiseria-ate-2016-diz-ipea,27206,0.htm. Acesso em 02 de novembro de 2011.
100
149
Solução de conflitos por mecanismos não judiciais pode ser interpretada como
sinal de maturidade política de uma sociedade organizada, porque atribui
importância ao diálogo e ao sopesamento de argumentos em lugar da busca
por uma solução ditada por um magistrado que, nem sempre, terá condições
objetivas de levar em conta o impacto de sua decisão para o conjunto da
sociedade.
O diálogo e o debate das questões públicas ainda são precários no Brasil, até
porque a estrutura da organização política oferece poucos espaços para a
manifestação da cidadania ativa. Apesar das inúmeras previsões existentes na
Constituição Federal brasileira para a participação direta da população (como
nos Conselhos Municipais de Saúde, de Educação e Tutelar, entre outros), a
realidade é que a herança do modelo de Estado autoritário ainda é muito
presente e, quase sempre, o cidadão se sente mais motivado a procurar a
tutela jurisdicional do Estado do que motivado a tentar obter a efetividade de
seus direitos por mecanismos coletivos de participação social.
Além disso, a sociedade brasileira contemporânea tem como traço marcante
um acentuado individualismo, resultante tanto da centralidade do consumo
(considerado elemento distintivo, inclusive na construção da identidade social)
como da nova concepção da estrutura familiar (hoje mais focada na dimensão
pais/filhos do que no passado recente, quando era comum a convivência diária
com avós, primos e tios), e, ainda, como consequência do modo de vida típico
dos grandes centros urbanos, que fragilizou os laços de comunitários, na
mesma medida em que subtraiu o tempo livre da agenda diária dos indivíduos.
Nesse contexto social fortemente marcado pelo individualismo, a busca de
soluções políticas que sejam resultado do diálogo, do debate, da troca de
ideias diferentes para encontrar um resultado que satisfaça a todos é avaliada
como ineficiente, até porque são raros os espaços públicos nos quais as
pessoas possam exercitar o diálogo. Além disso, diálogo só pode ser praticado
com tempo e envolvimento pessoal, com capacidade de ouvir e pesar os
argumentos contrários, o que quase sempre é incompatível com o modo de
vida da população dos grandes centros urbanos, que sequer dispõe de tempo
para atender suas necessidades particulares.
150
Além desses fatores, é preciso considerar que, no imaginário da população, a
solução dos problemas públicos é função exclusiva dos governos, porque os
cidadãos pagam os tributos para isso.
É preciso, no entanto, que a barreira do individualismo seja rompida
paulatinamente uma vez que, numa sociedade complexa, com múltiplos
problemas em áreas fundamentais para a dignidade humana, como educação,
saúde e assistência social, as soluções individualizadas serão sempre mais
dispendiosas e pouco eficientes para a construção da cidadania ativa.
No caso da saúde pública, a primeira alternativa que este trabalho estuda para
minimizar a judicialização é a criação das Câmaras Técnicas, mecanismo de
auxílio aos magistrados para fornecimento de argumentação técnica a ser
adotada na solução dos casos concretos.
As Câmaras Técnicas ou Núcleos de Assessoria Técnica são grupos
multiprofissionais que analisam os casos judiciais e fornecem laudos técnicos
para os magistrados alicerçarem suas decisões em processos que pleiteiam
medicamentos, tratamentos, internações em hospitais, órteses, próteses e
outros.
No Brasil o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem um Núcleo de
Assessoria Técnica implantado experimentalmente desde fevereiro de 2009 e
que já conta com a experiência de elaboração de mais de dois mil pareceres
técnicos na área de dispensação de medicamentos no setor público.101 Esse
Núcleo atende todas as Varas da Fazenda Pública da Capital e as 20 Câmaras
Cíveis do Tribunal de Justiça. Seu trabalho é feito em parceria com a
Secretaria de Saúde do Estado, por meio de assinatura de convênio e
interligado em tempo real com a Secretaria.
O prazo para emissão do parecer técnico é de 48 horas, porque é ele que vai
fundamentar, no âmbito técnico-médico, a decisão do magistrado no pedido de
liminar.
Disponível em
http://www.legisus.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=360:nucleo-dotjrj-completa-um-ano-com-dois-mil-laudos-sobre-medicamentos-mas-pouca-e-a-articulacaodo-tj-com-os-municipios&catid=61:fevereiro&Itemid=37. Acesso em 02 de novembro de
2011.
101
151
A equipe tem na atualidade 26 profissionais, entre farmacêuticos, enfermeiros,
nutricionistas, médicos e servidores de área administrativa do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro. O núcleo atua na verificação da listagem de
medicamentos
disponíveis
nos
estoques
do
estado,
adequação
do
medicamento solicitado à patologia indicada pelo médico assistente, e acesso
a vagas em hospitais públicos.102
A equipe técnica do Núcleo de Assessoria Técnica do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro é formada por profissionais cedidos pelo governo do
Estado e que tem por objetivo, principalmente, “assessorar os juízes em suas
decisões, fornecer apoio técnico aos magistrados para inviabilizar fraudes além
de indicar ao juiz, por exemplo, se determinado remédio pode ser substituído
por outro com o mesmo princípio.”103
Em matéria publicada na rede mundial de computadores em 27 de novembro
de 2009 relatando a participação do Secretário Estadual de Saúde do Rio de
Janeiro, SÉRGIO CÔRTES, no VIII Seminário de Ética nos Relacionamentos do
Setor de Saúde, evento promovido pela Mútua dos Magistrados do Estado do
Rio de Janeiro, afirma que104:
[...] foi constatado que em 84% dos casos os tratamentos estavam disponíveis em
estoque na secretaria ou poderiam ser substituídos por outro indicado para o
mesmo tipo de patologia. [...]
Mesmo com o direito ao recebimento desses medicamentos assegurado pelo
SUS, muitos ainda optam por procurar na Justiça o caminho para pleitear a
dispensação dos tratamentos. [...]
Além das ações desnecessárias, outro problema foi constatado pelo projeto piloto
do NAT: o de medicamentos da chamada "zona cinzenta". São solicitações para
remédios que não fazem parte de nenhuma lista pública. Das ações deste grupo,
102
Disponível em
http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=14208:nucleo-deassistencia-as-demandas-judiciais-de-saude-do-rj-ja-emitiu-2800pareceres&catid=223:cnj&Itemid=583. Acesso em 02 DE NOVEMBRO DE 2011.
Disponível em http://www.saude.rj.gov.br/imprensa-noticias/620-secretario-sergiocortes-participa-do-viii-seminario-etica-nos-relacionamentos-do-setor-saude-. Acesso em 02
de novembro de 2011.
103
Disponível em http://www.saude.rj.gov.br/imprensa-noticias/620-secretario-sergiocortes-participa-do-viii-seminario-etica-nos-relacionamentos-do-setor-saude-. Acesso em 02
de novembro de 2011.
104
152
74% dos casos, todos ou metade dos medicamentos pedidos, em tese, poderiam
ser substituídos por remédios fornecidos regularmente pelos programas estaduais
ou municipais. Em somente 26% das ações analisadas os pedidos eram
referentes a medicamentos em que não existia a possibilidade de substituição por
outro fornecido regularmente. Isso significa que 75% desse tipo de ação poderia
ser evitada.
É relevante destacar que parte expressiva dos pedidos judiciais de
fornecimento se referia a medicamentos que poderiam ser encontrados na rede
pública estadual mediante a simples inserção do cidadão no programa de
dispensação. A falta de conhecimento do cidadão e de seu advogado e, mais
grave, a ausência de interesse em consultar a rede pública para saber se o
medicamento estaria disponível por meio de políticas públicas de dispensação,
propicia o ingresso em juízo com uma demanda desnecessária, que acaba
sendo solucionada por meio de uma informação do Núcleo de Assessoria
Técnica muito mais do que por uma decisão com fundamentação jurídica.
Mais complexa é a situação dos medicamentos da chamada “zona cinzenta”
definidos como aqueles que não aparecem em nenhuma lista pública. Parte
desses medicamentos poderia ser substituída por outros regularmente
fornecidos nos programas de dispensação estadual ou municipal, mas o pedido
judicial é sempre na exata descrição dada pelo médico que assiste o paciente,
ou seja, se ele prescreve um medicamento específico, o paciente e seu
advogado tenderão a acreditar que aquele é o único que efetivamente pode
trazer melhoras para o estado de saúde do paciente.
Ainda falta aos médicos brasileiros a iniciativa de prescrever o princípio ativo e
enfatizar que todos os medicamentos contendo aquele princípio, de marca ou
genéricos, poderão ser utilizados pelo paciente sem problemas. É evidente que
isso só pode ser feito realmente nos casos em que a marca ou o genérico
produzam o mesmo resultado, e não nos casos em que o médico tenha dados
científicos que comprovem que somente um medicamento de marca específica
poderá conduzir aos resultados esperados.
O tema da prescrição de medicamentos é bastante polêmico. Existem
indicativos concretos de que muitos laboratórios farmacêuticos tenham práticas
153
pouco
éticas
em
relação
aos
médicos,
incentivando-os
inclusive
financeiramente para que prescrevam medicamentos de um determinado
laboratório.
Não fosse esse tema muito sério e recorrente, a Resolução n.º 1.931, de 2009,
do Conselho Federal de Medicina não teria determinado no princípio X – “O
trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivo de
lucro, finalidade política ou religiosa.”
A respeito desse princípio, escreve EDMILSON DE ALMEIDA BARROS JÚNIOR105:
Outra situação não menos comum da exploração do trabalho médico, por
terceiros, com finalidade de lucro é o caso dos laboratórios (fabricantes de
medicamentos, próteses e órteses) que “oferecem” percentuais ou mimos, como
viagens e passagens aéreas aos médicos que direcionarem suas prescrições para
esta ou aquela empresa. O médico que assim se pautar também infringe o
diploma ético.
O relacionamento da classe médica com os laboratórios de medicamentos não
é um tema atual nem restrito ao Brasil. Em muitas outras partes do mundo – e
já há muito tempo – se discute o viés ético de uma relação que pode se tornar
exclusivamente comercial, com incentivo material e financeiro para que os
médicos
prescrevam
medicamentos
de
apenas
um
fabricante,
independentemente de existirem similares mais baratos.
O mesmo Estatuto de Ética Médica prevê no princípio XXII que:
Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de
procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos
pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.
Comentando esse princípio, BARROS JÚNIOR106 pondera:
Nos casos irreversíveis e terminais, a morte virá mais cedo ou mais tarde. É bem
verdade que a ciência e a tecnologia médica de hoje permitem que se mantenha
um paciente vivo por bastante tempo, apesar da gravidade do caso.
Contudo, não se pode olvidar que esse “esticamento” da vida em nada acrescenta
de qualidade e muito menos de dignidade. Na verdade, insistir no inevitável é
BARROS Jr. Edmilson de Almeida. Código de Ética Médica 2010. Comentado e
Interpretado. Resolução CFM 1.931/2009. S.Paulo: Atlas, 2011, p. 65.
106
Obra citada, p. 99.
105
154
prolongar um sofrimento, não uma vida. Não existe dignidade sem vida digna. Não
existe vida digna de quem, sem perspectiva de melhoria, repousa sem
consciência, rodeado de agulhas e tubos, longe de seus entes queridos,
esperando apenas a doença dar seu “cheque-mate” na Medicina e, assim,
finalmente obter o merecido descanso.
O inciso se refere ao dever ético do médico em evitar a realização de qualquer
procedimento desnecessário, seja diagnóstico ou terapêutico, em pacientes
enquadrados em situações clínicas irreversíveis e terminais.
Na atualidade esses casos são bastante discutidos no âmbito da ética médica
e da conduta dos parentes da pessoa doente. A prescrição de uma nova
aplicação de quimioterapia em pacientes cujo estado de saúde já não permite
mais considerar a possibilidade de cura, ou a prescrição de drogas
experimentais em pacientes cujo estágio da doença já está muito avançado
são situações que envolvem alto custo e demonstram a incapacidade de
aceitar que a vida se finda, como certamente ocorrerá com cada uma das
pessoas do planeta Terra.
As novas tecnologias da área de saúde e a intensa produção de medicamentos
nos últimos anos, aliadas ao fato de que as novidades da área da saúde são
fartamente exploradas pela mídia, ocupando as primeiras páginas das revistas
semanais ou dos cadernos especializados dos jornais diários, e, ainda, o
aumento da expectativa de vida de boa parte da população do planeta
potencializou a sensação de que a vida pode ser eterna, ou pelo menos, que o
fim inexorável possa ser adiado em muitos anos.
Evidentemente, salvo os raros casos de suicídio, as pessoas em geral não
querem morrer, por piores que sejam os problemas e circunstâncias que
estejam enfrentando. No entanto, na atualidade, há um sentimento bastante
explorado pela indústria de alimentos funcionais, de medicamentos e de
tecnologia médica no sentido de que a vida pode ser prorrogada de forma
indefinida, bastando ao sujeito adotar condutas saudáveis e, principalmente, ter
acesso
às
novidades
contemporânea oferece.
fármaco-tecnológicas
que
a
ciência
médica
155
As sociedades do culto ao corpo, do culto ao estético, da tecnologia, do
espetáculo e da prosperidade não suportam pensar que as pessoas deixarão
de existir e, como reação, utilizam toda a tecnologia e todos os medicamentos
que estiverem acessíveis para tentar prolongar, ao máximo, o tempo da
existência humana.
A classe médica, de maneira geral, não passa incólume pela pressão dos
pacientes, dos familiares, dos laboratórios farmacêuticos, da mídia, da indústria
de novas tecnologias e da pressão social pelo prolongamento da vida. Em
algum momento essa pressão pode determinar que o médico recomende um
medicamento ou um tratamento ainda não satisfatoriamente comprovado,
porém que agrade à expectativa do paciente e de seus familiares por aquilo
que se costuma denominar “luta pela vida”.
Se, por um lado, conforme já mencionado, grande parte dos médicos sofre
essa pressão e cede a ela indicando aos pacientes órteses e próteses ou
novos exames de imagem, e adotando prescrições e tratamentos apenas no
intuito de lucrar com as benesses das indústrias farmacêuticas, por outro lado,
existem aqueles que acreditam que o novo medicamento, a nova técnica
cirúrgica ou o novo exame de imagem possa, realmente, contribuir para a
melhora do estado de saúde do doente, ou mesmo para sua cura.
Existem profissionais médicos que não pesquisam de forma continuada ou não
têm acesso a resultados de pesquisa de boa qualidade, não raro porque não
dominam a língua inglesa, que é prioritariamente utilizada nos estudos
científicos produzidos em todo o mundo. Dessa forma eles se tornam mais
suscetíveis para acreditar nas notícias trazidas por congressos e feiras
patrocinados
pela
indústria
de
medicamentos
ou
pela
indústria
de
equipamentos, até porque não comparam tais informações com resultados de
pesquisas produzidas nos grandes centros científicos existentes no mundo.
Por todos esses fatores é que se percebe que as Câmaras Técnicas ou os
Núcleos de Assessoria Técnica para os tribunais e magistrados são
importantes e podem contribuir muito para a solução das demandas judiciais da
área de saúde, mas é preciso discutir que método de análise técnica será
utilizado.
156
Não basta que a Câmara ou Núcleo Técnico de Assessoria disponha de
médicos de várias especialidades clínicas diferentes: é preciso questionar que
metodologia de análise eles utilizarão, porque, do contrário, haverá o risco de
que o médico da Câmara ou do Núcleo simplesmente concorde com o colega
que está prescrevendo o tratamento ou o medicamento, sem questionar mais
profundamente os argumentos utilizados, seja por um traço de corporativismo
ainda bastante perceptível na classe médica, seja por não dispor de mais
elementos técnicos para contrariar a prescrição original.
Ilustramos com um exemplo: o médico assistente prescreve uma sessão de
quimioterapia para um paciente em estágio avançado de câncer no fígado,
altamente letal como demonstra a experiência. O hospital público não dispõe
do medicamento porque ele é experimental e de alto custo; tampouco se
encontra o mesmo disponível na relação de medicamentos da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Portanto, só poderá ser comprado
em outro país. Porém, realizar a importação de medicamentos não
relacionados pela agência é um enorme problema de ordem burocrática uma
vez que, em tese, se trata de substância que não pode entrar no Brasil.
Diante disso, indagamos: que método a Câmara ou Núcleo de Assessoria
Técnica do Tribunal de Justiça utilizará para aferir a pertinência do pedido?
Dependendo da opção estará decretado o fim do tratamento e o uso de
paliativos até que ocorra a morte do doente. Como decretar o final do
tratamento com suporte científico capaz de minimizar o impacto emocional do
paciente e de seus familiares, além da contrariedade do médico que fez a
prescrição?
Nesse sentido é que os estudos de Medicina Baseada em Evidências (MBE) e
as diretrizes clínicas devem ser avaliados como metodologia a ser utilizada
pelas Câmaras e Núcleos de Assessoria Técnica dos magistrados e dos
tribunais. Sem um método científico e claramente colocado, tais Câmaras e
Núcleos poderão não ser a solução almejada por toda a sociedade brasileira na
busca de alternativas para a judicialização da saúde.
A Medicina baseada em evidências, assim como a construção de diretrizes
clínicas e de mecanismos de avaliação de incorporação de novas tecnologias
já são práticas adotadas no Brasil pelo Ministério da Saúde, conforme tratado
157
neste trabalho no capítulo I, quando abordamos aspectos fundamentais de
economia e saúde.
Nossa proposta é que essas práticas sejam incorporadas como métodos de
trabalho para as Câmaras ou Núcleos de Assessoria Técnica dos Tribunais de
Justiça
brasileiros não
apenas
com vistas
a uma uniformidade de
procedimento, mas principalmente em razão da racionalidade e equidade que
esses instrumentos propiciam para as decisões de utilização de recursos
públicos em saúde.
OTÁVIO AUGUSTO CÂMARA CLARK107, oncologista e estudioso de Medicina
baseada em evidência, afirma:
Várias questões devem ser examinadas para se determinar se um novo
procedimento vai aumentar ou diminuir gastos:
- Qual o custo da sua aplicação para um indivíduo?
- Esse procedimento complementa outro ou o substitui?
- Quantas vezes o indivíduo fará uso dessa tecnologia?
- Sua aplicação pode se estender à população em geral?
Apenas a experiência pessoal do médico, ou mesmo estudos isolados não podem
por vezes determinar o grau de benefício conferido por uma nova tecnologia.
Muitas vezes é preciso uma visão mais global e somente revisões sistemáticas
podem trazer estas respostas, mas é imprescindível separar os tratamentos que
realmente trazem benefícios adequados daqueles que apenas aumentam os
custos. [...]
Para resolver essa difícil equação, a aplicação das técnicas de Medicina Baseada
em Evidências (MBE) torna-se indispensável para um melhor gerenciamento dos
programas de assistência à saúde. [...]
Por definição, Medicina Baseada em Evidências (MBE) é a integração da melhor
evidência científica com a experiência clínica e os desejos individuais do paciente.
Vamos dissecar cada parte da tríade:
- Evidência é a pesquisa clinicamente relevante, especialmente aquelas centradas
em pacientes e que prezam pela acurácia e precisão de testes diagnósticos, o
CLARK, Otávio Augusto Câmara. “Medicina Baseada em Evidências para Auditores”. In:
GONÇALVES, Viviane Fialho (organizadora) Fronteiras da Auditoria em Saúde. S.Paulo: Farol
do Forte, 2009, p. 28.
107
158
poder de marcadores prognósticos e a eficácia e segurança de procedimentos
terapêuticos e preventivos.
- Experiência clínica é a capacidade de colocar em prática habilidades clínicas e
experiências anteriores para identificar rapidamente o estado de saúde de cada
paciente, seu diagnóstico, seus riscos individuais e os benefícios potenciais.
- Desejos do paciente incluem o nosso entendimento e reconhecimento da
individualidade de cada ser humano, com as preferências, expectativas únicas que
ele traz para a consulta médica e que devem ser integradas e respeitadas numa
decisão clínica.
A MBE possui ferramentas especializadas que aliadas aos sistemas de informação
permitem aos médicos e operadores de saúde:
- Realizar um diagnóstico preciso da realidade do setor
- Determinar as prioridades de ação
- Incorporar racionalmente as novas tecnologias
- Aprimorar a relação custo-benefício
O autor também esclarece como é o método utilizado em uma análise a partir
de Medicina baseada em evidência:108
A MBE constrói suas conclusões através de um processo de múltiplos passos.
Primeiro selecionamos a tecnologia a ser avaliada (pode ser um medicamento de
alto custo, material cirúrgico, procedimento diagnóstico, exames, órteses, próteses,
etc.).
Em seguida é realizada uma pesquisa sistemática em bancos de dados nacionais
e internacionais, na qual recuperamos estudos científicos da melhor qualidade
sobre o tema.
Os dados são então analisados, tabelados, complicados e comparados com
políticas de saúde de vários órgãos mundialmente.
A partir desse trabalho é escrito um parecer que relata se existem ou não bases
científicas para o uso daquela nova tecnologia e, se factível, se ela é superior a
outras ações já disponíveis no mercado.
Sempre que possível avaliamos também aspectos de custo-efetividade. Todas as
recomendações feitas ao final da pesquisa são claras e precisas, para facilitar o
trabalho da equipe de auditoria do cliente.
108
Obra citada p. 30.
159
A pesquisa pode também resultar na criação de um filtro inteligente, isto é, um
algoritmo que permite a incorporação destas informações no sistema de
gerenciamento de guias do cliente, permitindo assim a liberação da negativa do
pedido de forma automática.
A metodologia da Medicina baseada em evidências vai além da simples
experiência médica que, muitas vezes, pode ser insuficiente para determinar
com eficiência o melhor tratamento a ser dado ao caso. Também vai além da
sugestão de que o novo é sempre melhor, porque, antes de ser introduzido
como tratamento, o novo recurso será checado a partir de estudos científicos
que poderão corroborar a eficiência ou demonstrar que, apesar de ser uma
hipótese, ainda não é uma recomendação a ser praticada em determinados
casos concretos.
CLARK E VIANNA109 esclarecem ainda que:
Existem tratamentos ou exames diagnósticos adequados para uma doença num
estágio mais avançado, mas totalmente inadequados para um estágio mais
precoce. Não é incomum que médicos tentem se adiantar e extrapolem
tratamentos que foram testados para uma condição clínica para outra, semelhante
apenas na aparência. Os resultados de tais extrapolações frequentemente são
prejudiciais para os pacientes. Por exemplo: há alguns anos, um novo tratamento
para o câncer de intestino em estágios avançados surgiu, com um medicamento
chamado Irinotecam. Os estudos mostravam claramente que os pacientes que
tinham esse tipo de câncer com metástases se beneficiavam dele. Uma parte dos
oncologistas, porém, extrapolou a condição clínica e passou a prescrever o
Irinotecan para pacientes com doença não metástica, apesar da falta de evidências
de efetividade do medicamento nessa condição. Alguns anos depois, um estudo
clínico mostrou que na realidade esse tratamento aumentava a mortalidade desses
pacientes com doença menos grave.
A conduta proposta para um caso deve ter evidências que demonstrem que essa é
melhor que as outras alternativas existentes através de um estudo comparativo.
Esses estudos são chamados de estudos randomizados – são aqueles em que os
pacientes são “sorteados” para receber um de dois (ou mais) tratamentos
diferentes. Os pacientes são seguidos e no final uma avaliação estatística
determina se os resultados foram melhores para um deles. Costuma-se dizer que
CLARK, Otávio Augusto Câmara; VIANNA, Denizar. “Medicina Baseada em Evidências
como Ferramenta para Decisões Judiciais”. In: BLIACHERIENE. Ana Carla. SANTOS, José
Sebastião dos. Direito à Vida e à Saúde. São Paulo: Atlas, 2010, p. 123.
109
160
Medicina é um exercício de comparação, e apenas comparando um tratamento
com outro pode-se realmente afirmar que um deles é melhor. É inadequado se
tomarem decisões com base apenas na experiência pessoal ou em uma série de
casos que não teve comparador.
O que se pode constatar é que a Medicina baseada em evidência tem um
método objetivo, claro, transparente, que pode ser testado, checado, debatido
de forma científica e que não comporta subjetividade.
As conclusões obtidas a partir do uso da Medicina baseada em evidências
poderão ser até ruins para as intenções de um médico ou de um paciente e
seus familiares, mas são objetivas e permitem que a decisão a ser tomada seja
ancorada em dados técnicos confiáveis.
Ao defender que a utilização da Medicina baseada em evidências pode ser útil
para aumentar a convicção dos magistrados no julgamento do caso concreto,
CLARK e VIANNA110 reconhecem que nem sempre é fácil encontrar profissionais
de área médica que tenham formação para isso, e sugerem algumas perguntas
que os magistrados deveriam formular para os peritos de modo a contribuir
para uma análise técnica mais objetiva e fundamentada. Assim, propõem que,
durante o procedimento pericial, seja indagado:
1.
Qual a melhor evidência (prova) que essa conduta vai beneficiar o paciente.
Existe algum estudo randomizado ou revisão sistemática que recomende a
conduta em questão?
[...]
2.
Qual o benefício clínico que o paciente vai obter, de acordo com os estudos?
Qual o tamanho médio desse benefício, mostrado nos estudos, comparado
com outras alternativas de tratamento?
[...]
3.
Qual o custo da conduta solicitada e qual das alternativas existem hoje?
[...]
4.
O médico prescritor terá algum ganho pecuniário com a conduta? Já recebeu
alguma comissão ou vantagem do fabricante, como pessoa física ou jurídica?
110
Obra citada, p. 125.
161
Haverá algum lucro na comercialização do produto prescrito? A quem esse
lucro será destinado?
Os dois estudiosos também sugerem que os magistrados observem aspectos
específicos dos estudos apresentados pelos médicos peritos assistentes111.
Em relação à questão 1, acima sugerida:
a) Observe se uma revisão sistemática da literatura (às vezes chamada de metaanálise) ou um estudo randomizado é citado ou se são estudos de baixa qualidade
ou opiniões de especialista.
b) Veja se os resultados e a conclusão do estudo citado são condizentes com a
conduta proposta (não é incomum que o médico cite um estudo sobre o assunto,
com conclusões diferentes da que ele alega).
Em relação à questão 2:
a) Observe se o benefício é estabelecido em termos de ganho de sobrevida, cura
ou qualidade de vida ou se é de resultados intermediários, como controle de
exames, redução de tumores, etc.
b) Peça informações sobre quanto o ganho será, em comparação com as
alternativas existentes (algumas vezes o ganho é muito pequeno em relação
ao risco).
Em relação à questão 3:
a)
É importante considerar a questão de custo, pois a sustentabilidade do
sistema pode ser colocada em risco.
b)
Procure pesar o custo com o benefício alegado e lembre-se que novo não
significa melhor.
E, por fim, em relação à questão 4:
111
Obra citada, p. 125.
162
a) Atente para os conflitos de interesse que possam aparecer, caso eles existam,
considere fortemente ouvir outra opinião e um parecer do Conselho Regional de
Medicina.
Aliada à Medicina baseada em evidências, as diretrizes clínicas são outro
instrumento técnico fundamental para a tomada de decisões na área de saúde,
e para a utilização de um método objetivo que permita a racionalização do uso
dos recursos financeiros.
Diretrizes clínicas são posicionamentos ou recomendações sistematicamente
desenvolvidos por cientistas ou entidades médicas e de pesquisa para orientar
médicos e pacientes sobre cuidados apropriados, em circunstâncias clínicas
específicas. Sugerem indicações, contraindicações, benefícios esperados,
riscos, terapias e resultados para casos específicos.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar explica112 o surgimento das
diretrizes clínicas:
As diretrizes de utilização - definidas a partir das melhores evidencias cientificas
disponíveis, acerca da eficácia e efetividade de intervenções – contribuem para a
melhoria da qualidade da assistência e são um poderoso instrumento para a
gestão e a regulação dos sistemas de saúde, visto que possuem grande potencial
de uniformização das praticas em saúde; simplificação dos procedimentos de
auditoria medica; fornecimento de parâmetros clínicos para o tratamento,
reabilitação e diagnostico das principais patologias que acometem os beneficiários
e redução da ocorrência de eventos adversos, garantindo, assim, a segurança do
paciente.
Apesar disso, as Diretrizes de utilização se constituem em um simples recorte de
obrigatoriedade de cobertura de um determinado procedimento, não tendo como
finalidade a impressão de uma boa pratica medica ou a rediscussão de um modelo
assistencial, centrado em procedimentos.
Para tanto, seria necessário mais do que Diretrizes de Utilização. Seria necessária
a produção de Diretrizes Clinicas, pautadas em evidencias cientificas, mas
112
O processo de elaboração, validação e implementação das diretrizes clínicas na Saúde
Suplementar no Brasil / organização Agencia Nacional de Saúde Suplementar, Associação
Medica Brasileira, Conselho Federal de Medicina. – Rio de Janeiro: ANS, 2009. 78 p.
Disponível
em
http://www.ans.gov.br/portal/upload/biblioteca/Primeiras_Diretrizes_Clinicas.pdf. Acesso em
08 de novembro de 2011.
163
legitimas perante todos os usuários do setor e que inserissem a utilização dos
procedimentos dentro de um contexto de gerenciamento do cuidado.
Assim, em 12 de fevereiro de 2009, foi firmado o convenio entre a ANS e a AMB,
para a elaboração de diretrizes clinicas voltadas para o sistema de saúde
suplementar, baseadas em evidencias cientificas e alinhadas a pratica clinica, com
parâmetros da boa pratica em saúde, consolidando assim a parceria da regulação
com a qualificação da assistência prestada.
Diretrizes clínicas podem ser definidas como113:
As diretrizes clínicas, por sua vez, constituem-se em posicionamentos ou
recomendações (statements) sistematicamente desenvolvidos para orientar médicos
e pacientes acerca dos cuidados de saúde apropriados, em circunstâncias clínicas
2
específicas . Contemplam indicações e contra-indicações, bem como benefícios
esperados e riscos do uso de tecnologias em saúde (procedimentos, testes
diagnósticos, medicamentos, etc.) para grupos de pacientes definidos.
A discussão em torno de diretrizes clínicas origina-se da constatação de variações
dos padrões de prática e de utilização de serviços de saúde, de uso inapropriado de
serviços e da incerteza acerca dos resultados obtidos pelo uso ou não uso de
serviços ou procedimentos. Na medida em que as diretrizes baseiam-se no
conhecimento científico, estimativas dos resultados esperados e julgamento
profissional corrente, elas claramente têm um papel na garantia e avaliação de
qualidade dos cuidados de saúde.
Hoje, é internacionalmente aceita a pressuposição de que a implementação de
diretrizes para a prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação de doenças,
definidas a partir da evidência científica disponível acerca da eficácia e efetividade
3,4
de intervenções, produz melhores resultados na população assistida . Além disso,
o desenvolvimento de diretrizes para a assistência à saúde propicia uma utilização
mais racional dos recursos disponíveis, o que é fundamental para diversos sistemas
de saúde, mais ou menos dependentes de recursos públicos, em contextos de
maior ou menor restrição de recursos.
Apesar do reconhecimento de que a utilização de diretrizes clínicas contribui para a
melhoria da atenção prestada, sua efetiva aplicação ainda é insatisfatória, havendo
resistência por parte dos profissionais de saúde, especialmente médicos, e
PORTELA, Margareth Crisóstomo et al . Fatores associados ao uso de diretrizes clínicas
em operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços hospitalares no campo da
Saúde Suplementar no Brasil. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, out. 2008
.
Disponível em <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232008000500020&lng=pt&nrm=iso>.
acessos
em 08 nov. 2011. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232008000500020
113
164
pacientes. Tem sido uma preocupação presente na literatura internacional a
identificação de características facilitadoras do seu uso e estratégias efetivas para a
sua disseminação.
Também integra o conjunto de conhecimentos em torno da Medicina baseada
em evidências e das diretrizes clínicas o conceito de avaliação tecnológica em
saúde.114
A Avaliação Tecnológica em Saúde (ATS) é a síntese do conhecimento produzido
sobre as implicações da utilização das tecnologias médicas e constitui subsídio
técnico importante para a tomada de decisão sobre difusão e incorporação de
tecnologias em saúde (Banta e Luce, 1993). Em outras palavras, a ATS é um
subsídio técnico para mecanismos de regulação do ciclo de vida das tecnologias,
em suas diferentes fases, através de atividades como as de registro e as
associadas ao financiamento de sua utilização (Figura 1). O ciclo de vida das
tecnologias tem sido cada vez mais regulado/influenciado pelos governos e planos
de saúde, cerceando um espaço outrora quase que reservado ao encontro do
médico, influenciado pela indústria produtora desses insumos, e paciente (O'Brien
et al., 2000; Chaix-Couturier et al., 2000; US Congress/OTA, 1994).
No Brasil, o governo hoje regula o ciclo de vida das tecnologias médicas através
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da Secretaria de Assistência
à Saúde do Ministério da Saúde (SAS/MS) e da Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), embora decisões do Judiciário venham também influenciando
a utilização de tecnologias de alto custo. Assim, por exemplo, a tabela de
procedimentos financiados pelo SUS, de responsabilidade da SAS/MS (e o rol de
procedimentos da ANS), pode ou não incluir certas tecnologias (e o plano/segurosaúde pode financiar as tecnologias do rol total ou parcialmente [co-participação]).
A ATS compreende muitas dimensões, principalmente as de acurácia (de
tecnologias diagnósticas), eficácia (probabilidade de benefício de uma tecnologia
em condições ideais), segurança (probabilidade de efeitos colaterais e adversos),
efetividade (probabilidade de benefício em condições ordinárias, locais), custo-
SILVA, Letícia Krauss. Avaliação tecnológica e análise custo-efetividade em saúde: a
incorporação de tecnologias e a produção de diretrizes clínicas para o SUS. Ciênc. saúde
coletiva,
Rio
de
Janeiro,
v.
8,
n.
2,
2003
.
Disponível
em
<http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232003000200014&lng=pt&nrm=iso>.
acessos
em 08 nov. 2011. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232003000200014.
114
165
efetividade, custo-utilidade, impacto, eqüidade e ética. Todavia, as ATSs são, via
de regra, parciais, cobrindo algumas das dimensões, geralmente aquelas
relevantes: para o estágio do ciclo de vida em que se encontra a tecnologia, para
um determinado sistema de saúde e para o patrocinador da ATS.
As dimensões analisadas pelas ATSs se inter-relacionam e os resultados
observados podem variar para diferentes sistemas de saúde e populações. Por
exemplo, o potencial de eqüidade de uma tecnologia depende da sua relação de
custo-eficácia, ou melhor, de custo-efetividade (e custo-utilidade) frente a de
outras alternativas para lidar com um mesmo (ou diversos) problema(s) de saúde.
Entretanto, essas relações, especialmente o componente de efetividade (e de
utilidade) mas também o de custo, precisam ser uma estimativa local, que pode
ser bastante diferente daquela observada em países desenvolvidos (Panerai e
Mohr, 1989; Krauss Silva, 1992; Drummond et al., 1997).
Além de poder contribuir para a efetividade e eficiência de serviços de saúde
como subsídio de mecanismos de regulação do uso de tecnologias médicas, a
exemplo do registro e do financiamento, a ATS pode também subsidiar atividades
conexas, como a elaboração de instrumentos de avaliação e de melhoria da
qualidade dos serviços de saúde (Krauss Silva, 1996, 1999), incluindo a
elaboração de guias ou diretrizes de conduta clínica (clinical practice guidelines),
que vem sendo patrocinada por governos e associações médicas, mas também
por planos de saúde, entre outros (Goodman, 1992; US Congress/OTA, 1994;
Ryan et al., 1996; The Tobacco Use and Dependence Clinical Practice Guidelines
Panel, Staff and Consortium Representatives, 2000; Eddy et al., 1998; ChaixCouturier et al., 2000) (Figura 2). A partir de meados da década de 1980, nos
países desenvolvidos, houve uma ligação mais efetiva das atividades de ATS com
as de elaboração de políticas de saúde e, mais tarde, uma disseminação mais
efetiva (e implementação) do conhecimento produzido para planejadores/gerentes
e clínicos (Banta, 2003).
Os três conceitos atuam de forma integrada.
A Medicina baseada em evidências, assim como as diretrizes clínicas
elaboradas para serem adotadas de maneira uniforme em casos semelhantes,
e a avaliação de tecnológica em saúde são ferramentas por meio das quais os
sistemas de atendimento à saúde, públicos ou privados, poderão uniformizar
procedimentos, racionalizar custos e atingir os melhores resultados possíveis
em face dos conhecimentos já construídos e das terapias já testadas.
166
Em 28 de abril de 2011, foi aprovada a Lei 12.401, que altera a Lei 8.080, de
1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de novas
tecnologias no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Nessa lei é adotada a definição de protocolo clínico e diretriz terapêutica.115 Ela
também determina a necessidade de evidências científicas sobre a eficácia,
acurácia,
efetividade
e
segurança
dos
medicamentos,
produtos
ou
procedimentos que serão analisados pelo relatório da Comissão Nacional de
Lei n.º 12.401, de 28 de abril de 2011.
Artigo 19-N – Para os efeitos do disposto no artigo 19-M, são adotadas as seguintes
definições:
(...) II – protocolo clínico e diretriz terapêutica: documento que estabelece os critérios para o
diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o tratamento preconizado, com os
medicamentos e demais produtos apropriados, quando couber; as posologias recomendadas;
os mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verificação dos resultados
terapêuticos, a serem seguidos pelos gestores do SUS.
Artigo 19- O – Os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas deverão estabelecer os
medicamentos ou produtos necessários nas diferentes fases evolutivas da doença ou do
agravo à saúde de que tratam, bem como aqueles indicados em casos de perda de eficácia e
de surgimento de intolerância ou reação adversa relevante, provocadas por medicamento,
produto ou procedimento de primeira escolha.
Parágrafo único – Em qualquer caso, os medicamentos ou produtos de que trata o caput
deste artigo serão aqueles avaliados quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custoefetividade para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que trata
o protocolo.
(...)
19-Q – A incorporação, a exclusão ou alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos
e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz
terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de
Incorporação de Tecnologias no SUS.
(...)
Parágrafo 2º - O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS
levará em consideração, necessariamente:
I – as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do
medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente
para o registro ou a autorização de uso.
II – a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às
tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar,
ambulatorial ou hospitalar, quando cabível.
19 – R – A incorporação, a exclusão e a alteração a que se refere o artigo 19-Q serão
efetuadas mediante a instauração de processo administrativo, a ser concluído em prazo não
superior a 180 (cento e oitenta) dias, contado da data em que foi protocolado o pedido,
admitida a sua prorrogação por 90 (noventa) dias corridos, quando as circunstâncias
exigirem.
Parágrafo 1º - O processo de que trata o caput deste artigo observará, no que couber, o
disposto na Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, e as seguintes determinações especiais:
(...)
III – Realização de consulta pública que inclua a divulgação do parecer emitido pela
Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.
IV – realização de audiência púbica, antes da tomada de decisão, se a relevância da matéria
justificar o evento.
Artigo 19 – T – São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:
I – o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento
clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária – ANVISA.
II – a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e
produto, nacional ou importado, sem registro na ANVISA.
115
167
Incorporação de Tecnologias do SUS. Em outras palavras, a incorporação de
novas tecnologias e medicamentos fica na dependência da existência de
evidências, ou seja, de pesquisas científicas que comprovem que haverá
eficiência e segurança para os pacientes.
As críticas contra a Medicina baseada em evidências, as diretrizes clínicas e a
avaliação de novas tecnologias são, quase sempre, no sentido de que sistemas
uniformizados de atendimento poderão ignorar peculiaridades específicas de
cada caso concreto e, principalmente, subtrair do médico a autonomia para
decidir o que é melhor para o seu paciente. Esse aspecto provavelmente seja o
principal fator de resistência à adoção integral dessas ferramentas, porque,
conforme analisado no Capítulo I deste trabalho, a Medicina contemporânea
praticada em quase todo o mundo ainda se alicerça, fundamentalmente, nas
impressões e experiências do médico que assiste o paciente. Ele acredita
dispor de absoluta autonomia para prescrever tratamentos, exames e
medicamentos, lastreado apenas e tão somente no seu juízo sobre o caso
analisado.
Em grande medida essa afirmação de que o médico é o único que pode decidir
o que é bom para o seu paciente é corroborada pela sociedade brasileira
contemporânea.
Opiniões
de
outros
médicos
que
não
tenham
sido
expressamente solicitadas pelo paciente ou por seu médico assistente não são
consideradas como auxílio, mas como intromissão, e quase sempre recebidas
como uma agressão à autonomia médica.
Em recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, a Ministra FÁTIMA NANCY
ANDRIGHI afirmou:
Somente ao médico que acompanha o caso é dado estabelecer qual o
tratamento adequado para alcançar a cura ou amenizar os efeitos da
enfermidade que acometeu o paciente; a seguradora não está habilitada,
tampouco autorizada a limitar as alternativas possíveis para o restabelecimento da
saúde do segurado, sob pena de colocar em risco a vida do consumidor. (REsp
1053810 / SP, Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 17/12/2009) (grifo nosso)
168
A decisão da Ministra NANCY ANDRIGHI não é isolada; ao contrário, representa a
convicção de muitos magistrados em todo o País e a da própria população, os
quais acreditam que o médico consultado é o único em condições de definir a
doença e o tratamento a ser utilizado. No capítulo I deste trabalho as razões
históricas e sociais da prevalência da opinião médica foram tratadas com maior
detalhamento.
Com esse imaginário da prevalência do saber do médico assistente ainda
fortemente em vigor na sociedade brasileira, adotar a metodologia de obtenção
de dados a partir de estudos de Medicina baseada em evidências, de diretrizes
clínicas e de avaliação tecnológica em saúde é romper com paradigmas
fortemente alicerçados e ousar criar novos parâmetros muito mais focados em
resultado de experiências comprovadas do que na vivência de cada
profissional de área médica.
Há um temor dos médicos no sentido de que a adoção dessas ferramentas
possa levar a Medicina a ser tratada mais como técnica do que como arte da
cura, e que acabe resultando em “mecanização” dos tratamentos médicos em
contraposição à sensibilidade para avaliar cada caso concreto com suas
peculiaridades.
Opondo-se a essa crítica estão, no entanto, os princípios VII e VIII da
Resolução n.º 1.931 do Conselho Federal de Medicina, de 2009, que
determinam respectivamente:
VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a
prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não
deseja, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de
urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do
paciente.
VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto,
renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou
imposições que possam prejudicar a eficiência e correção de seu trabalho.
Assim, na hipótese de uma diretriz clínica ou um estudo obtido por meio de
Medicina baseada em evidência se mostrar desvantajoso para o paciente, o
médico poderá argumentar com sua autonomia e exigir que seus argumentos
169
sejam levados em conta, inclusive em juízo. Mas isso não o exime de
apresentar indicações técnicas que comprovem que o tratamento que pretende
utilizar seja, efetivamente, mais eficaz para o paciente.
A utilização de dados científicos obtidos por meio de Medicina baseada em
evidências ou a utilização de diretrizes clínicas e de avaliação tecnológica de
saúde poderá, em alguns casos, apontar para o fato inexorável de que não há
mais possibilidades médicas científicas e eficazes para um determinado caso
concreto e, que, então, a única alternativa será o tratamento paliativo que
preserve qualidade na fase final da vida.
Sem pretender entrar na avaliação dos aspectos psicológicos dessa questão,
(mesmo porque fugiríamos do objetivo de nosso trabalho) é possível avaliar
com dados de observação da sociedade brasileira contemporânea que a ideia
da morte é ainda um tabu de difícil aceitação para expressiva parcela da
população, em que pese ao fato de o Brasil ser um país com fortes vínculos de
religiosidade.
O fim do ciclo biológico, o fim da vida, ainda é tratado com uma enorme carga
emocional que, por vezes, dificulta uma avaliação racional, lógica, que permita
concluir o que é um tratamento eficiente e o que é apenas uma tentativa
cientificamente inútil de prolongar a vida. E, embora seja inútil, tal tratamento,
pode ser extremamente caro e causador de forte impacto nas contas públicas.
Se as Câmaras ou Núcleos de Assessoria Técnica não utilizarem como
parâmetros dados obtidos de forma objetiva e científica, o trabalho delas estará
comprometido porque ficará restrito ao parecer de outro médico, emitido por
vezes sem um maior conhecimento do caso especifico focalizado ou do
tratamento recomendado pelo médico assistente, especialmente quando se
tratar de uma nova tecnologia ou de um novo medicamento.
Os dados obtidos por meio de estudos de Medicina baseada em evidência, de
adoção de diretrizes clínicas para a saúde pública e com avaliação de
tecnológica em saúde permitirão a objetividade necessária para que o
magistrado possa sopesar de maneira mais ampla os elementos que envolvem
o caso concreto e decidir com segurança técnica e jurídica.
170
É preciso considerar, no entanto, que mesmo os dados concretos e objetivos
obtidos por meio da MBE, com diretrizes clínicas e com avaliação tecnológica
em saúde, por vezes, poderão ser inconsistentes para que o magistrado avalie
com convicção a conveniência de adoção de um determinado tratamento ou
fornecimento público de um medicamento de alto custo.
Existirão situações em que os estudos serão insuficientes para permitir ao
magistrado decidir com certeza e, nesse caso, o caminho indicado será deferir
o pedido formulado pela parte, de forma a atender a prescrição indicada por
seu médico assistente.
Também é relevante ponderar que, em alguns casos concretos, a indicação
negativa para a adoção do tratamento prescrito pelo médico assistente diante
da realidade do paciente (uma criança de pouca idade, por exemplo), poderá
levar o magistrado a ignorar os dados obtidos pela técnica e deferir o
tratamento ou medicamento de alto custo apoiado tão somente na esperança
de que o médico assistente esteja certo e que os dados científicos coletados
possam estar equivocados.
Ninguém poderá obrigar o magistrado a aderir a dados científicos se eles não
tiverem contribuído para formar sua convicção. Nenhuma sociedade pode
pretender ser democrática se acorrentar seus magistrados a decidir somente
em conformidade com dados técnicos e científicos, porque esse caminho
tecnicista nem sempre se coaduna com a efetividade da Justiça.
Em estudo realizado sobre o juiz e a emoção, LÍDIA REIS
DE
ALMEIDA PRADO116
afirma, a partir da consulta à obra de JEROME FRANK, que os juízes decidem
PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção. Campinas: Millenium, 2003, p. 17-18.
Nos parâmetros da corrente jusfilosófica de que é adepto, Frank (Jerome Frank) elucida que
não existe certeza, segurança ou uniformidade do Direito, no momento de sua aplicação.
Segundo ele, nas sociedades complexas, as decisões jurídicas teriam um caráter plástico e
mutável, com o objetivo de adaptarem-se às novas situações da vida social. Assim, entende
ser essa dimensão de incerteza a responsável pelo progresso do Direito. Cita muitos
exemplos em que a variação da composição pessoal de uma Corte, em razão de falecimento
ou nomeação de algum de seus membros, provoca uma mudança de decisão.
De acordo com o autor, o desejo de uma excessiva estabilidade jurídica não surge de
necessidades práticas, mas de um anseio algo mítico. É interessante – prossegue – que as
pessoas não se espantem com as mudanças jurídicas por via legislativa, mas se assustem
com a falta de previsibilidade dos juízes. Afinal, busca-se a segurança no substituto do pai,
no Juiz Infalível, o qual vai determinar, de modo seguro, o que é justo e o que é injusto.
Para essa falácia da plena segurança e certeza jurídicas colaboraria também a tendência do
homem a fugir das realidades inquietantes ou desagradáveis e refugiar-se na ilusão de um
mundo perfeito.
116
171
sob a influência de sua personalidade, e que é irrefutável o traço marcante da
personalidade de todos aqueles que decidem exercer a magistratura: o apreço
pela vida, pela preservação desse bem superior que merece todo o empenho
da sociedade e, consequentemente, da magistratura, para ser corretamente
preservado.
Na atualidade já se sabe que a preservação da vida tem que estar atrelada à
sua qualidade, ou seja, ao bem-estar que todo ser humano tem direito de
atingir e que é garantido pelo acesso à saúde, à alimentação, à moradia e à
segurança, entre outros componentes do mínimo exigível, já tratado neste
trabalho.
É preciso ressaltar, no entanto, que a garantia do mínimo exigível não é um
direito individual, mas coletivo, o que significa que o magistrado, na formação
de sua convicção e decisão, deve levar em conta que os direitos não são
absolutos de cada cidadão mas relativos, porque pertencem legitimamente a
toda a coletividade.
Não se pode esperar do magistrado, portanto, que decida sem elementos
concretos que possam orientar a convicção e a fundamentação; e, no caso do
acesso a medicamentos e procedimentos de alto custo, os dados científicos
poderão cumprir um ótimo papel no fornecimento de subsídios para formar
essa convicção e fundamentação.
Porém, os problemas de acesso à saúde pública são tão complexos no Brasil
que os dados técnico-científicos obtidos a partir da Medicina baseada em
evidências, diretrizes técnicas e avaliação tecnológica de saúde poderão não
ser satisfatórios se não for oportunizada a participação, nas Câmaras Técnicas
ou nos Núcleos de Assistência, de auditores de saúde – profissionais de saúde
Segundo Frank, as normas gerais seriam apenas um dos ingredientes presentes na sentença.
É que, enquanto o juiz não se pronunciar sobre um processo, não se pode dizer que se tenha
ou não direito sobre o objeto da ação. Portanto, o Direito aperfeiçoa-se, adquire realidade,
não devido à exclusiva interpretação das velhas regras abstratas, mas também pela ação de
seres humanos concretos, cuja mente funciona como a dos demais seres humanos.
(...)
É necessário observar uma vez mais que Jerome Frank reconhece o valor das normas
jurídicas gerais, que cumprem uma função relevante. Nega, porém, que o direito efetivo
produzido pelos tribunais consista exclusivamente em conclusões tiradas das leis, devendo
ser também considerada a influência da personalidade do juiz na produção da sentença.
(grifos do texto original)
172
especialmente preparados e capacitados para orientar sobre o dilema “custo e
resultado” (essencial quando se trata do uso do dinheiro público) –em cada
caso concreto e para fornecer subsídios para a decisão do magistrado.
O Brasil dispõe de um Sistema Nacional de Auditoria (SNA), do Ministério da
Saúde, vinculado ao Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de
Saúde (SUS), criado pela Lei 8.689, de 27 de julho de 1993 e regulamentado
pelo Decreto n.1651, de 28 de setembro de 1995.
O médico ROBERTO ISSAMU YOSIDA117 define auditoria médica como:
[...] um instrumento de cidadania que viabiliza a assistência médica de qualidade, a
um valor justo, baseado na melhor evidência científica disponível na Medicina. Esta
é uma definição que permite vislumbrar a vasta gama de ações do médico auditor.
Permite que a população tenha segurança de que há uma chancela ao
atendimento em saúde, por parte de médicos gabaritados e especialistas. Também
assegura que todos recebam o mesmo tipo de referendo, desta forma permite o
equilíbrio. Menciona qualidade estruturada em ciência. O valor justo e benefícios
agregados ao caráter curativo. Engloba todas as ações de promoção e prevenção.
Refere atualização e conhecimento integrado.
Os pilares de nossa atividade são: moral, ética, legislação, regulamentação,
ciência e bom senso.
A médica GOLDETE PRISZKULNIK118 explica:
Quando pensamos em auditoria no setor público de saúde, a primeira visão que
temos é de um setor mal gerido, mal organizado e sem diretrizes. Vã ilusão. Os
princípios de auditoria, avaliação e regulação da assistência estão mais bem
estruturados no nível público do que no setor supletivo de saúde. [...]
A visão da auditoria no Sistema Público de Saúde difere substancialmente da visão
ainda hoje observada no sistema supletivo de saúde. Enquanto no nível público há
a preocupação na validação dos processos envolvidos no ame da assistência, sua
eficiência, eficácia e efetividade, a auditoria na saúde supletiva está focada no
YOSIDA, Roberto Issamu. “A Auditoria Médica como Instrumento de Responsabilidade
Social”. In GONÇALVES, Viviane Fialho. Fronteiras da Auditoria em Saúde. Volume I.
S.Paulo: Farol do Forte, 2009, p.13.
118
PRISZKULNIK. Goldete. “Auditoria no Sistema Público de Saúde no Brasil”. In:
GONÇALVES, Viviane Fialho. Obra citada, p. 129.
117
173
caso a caso, necessitando de autorizações para permanência hospitalar, exames
subsidiários e utilização de materiais e medicamentos especiais.
O desconhecimento das ações em auditoria na saúde pública é notório. A
população em geral e, principalmente, a população dos profissionais de saúde
desconhece as principais ferramentas de controle do SUS e seus mecanismos de
auditoria.
A médica ressalta que uma auditoria de qualidade depende de conhecimentos
específicos, experiência comprovada do profissional auditor, imparcialidade e
postura ética – elementos sem os quais a auditoria não cumprirá seu objetivo
fundamental de indicar qualidade, eficiência, eficácia e efetividade para as
práticas em saúde.
O médico JOSÉ ROBERTO TEBET119 ensina:
A Medicina Baseada em Evidências, a medicina preventiva, o gerenciamento de
casos e de doenças, a negociação com prestadores de serviços e fornecedores de
materiais e medicamentos, a análise da incorporação de novas tecnologias, a
avaliação de indicadores e da qualidade da atenção, a consultoria especializada
são as áreas mais recentes em que a atuação do médico auditor se faz presente.
Ao médico auditor não cabe mais tão-somente a análise e liberação de
procedimentos, a revisão de contas e menos ainda a sua glosa. Dele, exige-se
hoje atuar como auxiliar da gestão médica, fornecendo subsídios para a tomada de
decisão gerencial, zelar pelo bom uso dos recursos financeiros independente se a
instituição é pública ou privada, atuar junto ao médico assistente, sem no entanto
interferir em sua conduta, buscando como resultado de todas essas ações uma
medicina de mais qualidade e mais efetiva, focada no paciente.
Avaliar a qualidade da atenção médica é hoje, além de uma exigência legal, uma
obrigação para qualquer instituição de saúde. Neste contexto, o médico auditor
exerce papel fundamental.
Se, por um lado, é possível afirmar que a auditoria médica é um mecanismo do
qual as Câmaras Técnicas ou Núcleos de Assessoria não poderão prescindir,
por outro lado é preciso levar em consideração as restrições legais instituídas
para a prática dessa atividade.
TEBET, José Roberto. “Evolução da Auditoria Médica”. In: GONÇALVES, Viviane Fialho.
Obra citada, p. 134.
119
174
EDMILSON DE ALMEIDA BARROS JÚNIOR120 afirma que:
[...] a Auditoria Médica, caracterizada como ato privativo de médico, exatamente
por exigir conhecimento técnico especializado, pleno e integrado da profissão, visa
alcançar um modelo de assistência racional e eficiente, capaz de estabelecer um
juízo crítico sobre os atos auditados, afastados ao máximo da pura concepção
empresarial de incremento de lucros.
Ao contrário do que se possa superficialmente pensar, a auditoria possui como
objetivo maior garantir a qualidade da assistência médica prestada e o respeito às
normas técnicas, éticas e administrativas pó previamente estabelecidas, incluindo
aspectos de avaliação técnica de apuração de resultados.
No entanto, o artigo 94 do Código de Ética Médica determina que é vedado ao
profissional médico intervir, quando em função de auditor, assistente técnico ou
perito, nos atos profissionais de outro médico ou fazer qualquer apreciação em
presença do examinado, reservando suas observações para o Relatório.
Em outras palavras, o médico auditor não pode ameaçar a autonomia
profissional do médico assistente, o que, segundo os Conselhos de Medicina
em reiteradas decisões, se traduz por autorizar, vetar ou modificar
procedimentos propedêuticos ou terapêuticos determinados por um médico,
salvo em situações de total conveniência para o paciente, quando então deverá
justificar, fundamentar e comunicar por escrito suas recomendações.
BARROS JÚNIOR121 afirma que “[...] existe vedação absoluta de o auditor, o perito
ou assistente técnico interferir nas condutas do médico responsável pela
assistência, inclusive no que diz respeito à modificação de procedimentos.”
Assim, se, por um lado, a auditoria técnica é um instrumento essencial para
garantir objetividade da avaliação em saúde, por outro, é passível de restrições
emanadas do Código de Ética Médica, as quais poderão levar o médico auditor
a proceder de forma mais contida do que aquela que seria necessária para
impedir, por exemplo, um procedimento temerário de um colega relativo à
qualidade técnica ou à inadequação de custos do procedimento recomendado
pelo médico assistente.
120
121
Obra citada, p. 335.
Obra citada, p. 342.
175
Isso não significa que as Câmaras Técnicas ou Núcleos de Assessoria Técnica
não devam contar com auditores de saúde. Ao contrário, afirma-se que é
essencial que eles atuem nessas Câmaras ou Núcleos porque poderão
fornecer subsídios técnicos objetivos e fundamentados para que o magistrado
possa formar sua convicção e decidir. Porém, não se pode esperar que a
recomendação do auditor de saúde possa modificar procedimentos médicos
sem a decisão judicial, porque como já afirmado, o médico auditor não pode
modificar, mas tão somente sugerir ou indicar, sendo impedido de determinar
que seja feito o tratamento de maneira diversa daquela escolhida pelo médico
assistente.
No entanto, a existência de Câmaras ou Núcleos de Assistência Técnica, já
operante em alguns estados brasileiros (em especial no Rio de Janeiro, que foi
o objeto de pesquisa deste trabalho), não contribui para diminuir o número de
ações judiciais. Necessariamente deverá existir uma demanda judicial para que
o assunto seja encaminhado para a Câmara Técnica ou Núcleo de Assessoria
Técnica, analisado por médicos especializados ou médicos auditores que
encaminharão um relatório ao magistrado que, por sua vez, decidirá a partir da
análise de todos os dados existentes no processo e à luz da legislação em
vigor.
É evidente que a existência de Câmaras ou Núcleos de Assessoria Técnica
que contem com profissionais especializados em Medicina baseada em
evidências, com auditores de saúde capacitados para a avaliação de novas
tecnologias e novos medicamentos, sempre com fundamento em diretrizes
clínicas e avaliação de tecnologias, contribuirá de maneira expressiva para que
as demandas judiciais na área da saúde pública não constituam apenas uma
corrida por recursos, mas uma busca por tratamentos e medicamentos cuja
eficácia (para aquele determinado caso concreto) seja cientificamente
comprovada ou com índice de comprovação científica suficiente para conseguir
o deferimento requerido.
Nos casos de improcedência do pedido judicial, os magistrados estarão
ancorados em argumentos técnicos que poderão demonstrar que o
procedimento ou medicamento sugerido contraria as experiências realizadas
nos melhores centros de pesquisa, que contraria as diretrizes clínicas ou a
176
avaliação de tecnologias realizada pelo Ministério da Saúde. Ou ainda, poderão
demonstrar que se mostra inadequado porque atende mais às pretensões dos
laboratórios ou dos fornecedores de órteses e próteses do que às reais
necessidades do paciente.
Todavia, conforme mencionado, o atendimento proporcionado pelas Câmaras
ou Núcleos de Assessoria Técnica não consegue evitar as demandas judiciais,
embora ao longo do tempo, em razão da racionalidade da construção dos
argumentos médicos, possa desestimular a busca por tratamentos ou
medicamentos ainda não comprovados cientificamente de forma satisfatória.
Para mitigar o acesso ao Judiciário, o caminho mais eficaz poderá ser a
mediação pré-judicial.
O Conselho Nacional de Justiça, em 29 de novembro de 2010, adotou a
Resolução n.º 125, que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de
tratamento adequado dos conflitos de interesse no âmbito do Poder Judiciário e
dá outras providências. (Íntegra no Anexo I)
A Resolução n.º 125, de 2010, instituiu a Política Pública de Tratamento
Adequado dos Conflitos de Interesse, que tem como objetivo assegurar a todos
o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e
peculiaridade, conforme expresso no artigo 1º.
Também determinou no
parágrafo único do mesmo artigo que aos órgãos judiciários incumbe, além da
solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de
soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais,
como a mediação e a conciliação, assim como prestarem atendimento e
orientação aos cidadãos.
Cumpre destacar a grande ênfase que a Resolução 125, de 2010, do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) dá à capacitação de servidores, conciliadores e
mediadores, com Anexo contendo os módulos de capacitação com as horasaula e conteúdo programático detalhado, o que contribui para facilitar a
implantação da capacitação e uniformizá-la em todo o território nacional.
O Conselho Nacional de Justiça determinou, ainda, que a implementação da
Política Pública de Tratamento Adequado de Conflitos de Interesse seja
realizada com o objetivo de promover ações à autocomposição de litígios e à
177
pacificação social por meio da conciliação e da mediação. Para isso o
programa será efetivado por todos os órgãos do Poder Judiciário e por
entidades públicas e privadas parceiras, inclusive universidade e instituições de
ensino.
Embora a Resolução 125 de 2010 não mencione expressamente a
possibilidade de contar com a colaboração de institutos de pesquisa e de
entidades de Medicina especializada, como o Colégio Brasileiro de Cirurgiões,
Sociedade Brasileira de Cardiologia, Sociedade Brasileira de Pediatria, de
Diabetes, entre outras associações especializadas na área da Medicina, é
possível admitir que essas entidades participem e contribuam com seu
conhecimento para a realização de mediações e conciliações.
A Resolução prevê, ainda, a interlocução com a Ordem dos Advogados do
Brasil, Defensorias Públicas, Procuradorias e Ministério Público, de modo a
estimular a participação nos Centros Judiciários de Conflitos e Cidadania e a
valorizar a atuação na prevenção de litígios.
Também está prevista na Resolução 125 de 2010 a atuação do Conselho
Nacional de Justiça junto às empresas e agências reguladoras de serviços
públicos, com a finalidade de implementar práticas de autocomposição e
desenvolver acompanhamento estatístico com a instituição de bancos de
dados para visualização de resultados e outorga de selo de qualidade.
Para a concretização da Política Pública de Tratamento Adequado de Conflitos
de Interesses, serão criados os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e
Cidadania, que serão chamados apenas de “Centros”. Serão unidades do
Poder Judiciário preferencialmente responsáveis pela realização das sessões e
audiências de conciliação e mediação, que estejam a cargo de conciliadores e
mediadores, bem como o atendimento e orientação ao cidadão.
Previamente aos Centros, serão criados os Núcleos Permanentes de Métodos
Consensuais de Solução de Conflitos, compostos por magistrados da ativa ou
aposentados e servidores, preferencialmente atuantes na área e que terão
atribuições diversas, entre elas a de instalar os Centros Judiciários de Solução
de Conflitos e Cidadania.
178
Determina o artigo 8º, parágrafo único, que todas as sessões de conciliação e
mediação pré-processuais deverão ser realizadas nos Centros que serão
instalados nos locais onde existam mais de um Juízo, Juizado ou Vara, com
pelo menos uma das competências determinadas no caput do artigo, ou seja,
áreas cível, fazendária, previdenciária, de família ou dos Juizados Especiais
Cíveis e Fazendários.
Obrigatoriamente, à luz do que determina o artigo 10 da Resolução 125, de
2010, os Centros deverão abranger o setor de solução de conflitos préjudiciais, setor de solução de conflitos processual e setor de cidadania.
Duas questões se destacam na implantação dos Centros Judiciários de
Solução de Conflitos e Cidadania, sendo ambas relevantes para as reflexões
deste trabalho: poderão eles ser utilizados na área da saúde pública? E como
tratar os críticos que afirmarão que os Centros contrariam os artigos 5º, XXXV
e 133 da Constituição Federal?
Considerando-se que a Resolução 125 de 2010 foi criada em razão da
necessidade de consolidar uma política pública permanente de incentivo e
aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de conflitos, é
possível afirmar que os conflitos da área de saúde pública poderão ser tratados
pelos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, tanto na esfera
da mediação como na da conciliação.
Mas é importante destacar que os conceitos são diferentes e ainda pouco
estudados no Brasil. A mediação tem por objetivo a desconstrução do conflito e
a construção de uma solução pelas partes conflitantes, de modo que, ao adotar
essa solução, elas se sintam contempladas integralmente e não apenas em
parte. A mediação propõe uma nova forma de solução de conflitos em uma
dimensão “ganha-ganha”, ou seja, sem a forma binária comumente praticada
(perdedor-ganhador, justo-injusto, bom-ruim). Na mediação as partes são
vencedoras no conflito porque ele deixa de existir. Ela restaura a relação social
que existia entre as partes antes da instalação da situação conflitante. Trata-se
de um mecanismo de difícil compreensão para as gerações que foram criadas
na bipolaridade da Guerra Fria (comunismo ou capitalismo; a favor ou contra) e
que migraram paulatinamente para um momento de extrema competitividade
econômica e de supremacia do consumo, que se tornou uma das formas de
179
construção
de
identidade
social.
Além
disso,
na
mediação
importa
necessariamente pensar a diversidade, não se espantar com a diferença,
afastar a perplexidade diante do novo, e agir para tentar compreender o ponto
de vista do outro, que também é parte do conflito.
TANIA ALMEIDA122 ensina:
A mediação privilegia a desconstrução do conflito e a consequente restauração da
convivência pacífica entre as pessoas.
Sabemos que a construção de acordos não garante que seja efetivamente
dirimido o conflito entre as partes e, por vezes, chega a acirrá-lo. Todavia, a base
da pacificação social reside no restauro da relação social e na desconstrução do
conflito entre litigantes. A permanência do conflito possibilita a construção de
novos desentendimentos ou de novos litígios: esgarça o tecido social entre as
pessoas envolvidas em uma discordância e entre as redes sociais que a apoiam e
das quais fazem parte. A permanência do conflito e, portanto, terreno fértil para
manter latente a possibilidade de novas discórdias e o ânimo de desavença entre
os grupos sociais de pertinência dos litigantes.
Por dedicar-se ao restauro da relação social e à desconstrução do conflito – o que
lhe confere caráter preventivo de amplo alcance social -, a mediação vem sendo
considerada o método de eleição ideal ou mais apropriado para desacordos entre
pessoas cuja relação vai perdurar no tempo – seja por vínculos de parentesco,
vizinhança ou parceria.
Esse aspecto de pensar as razões e argumentos do outro para, articulados
com as próprias razões, desconstruir o conflito e construir soluções, restaura a
importância da política na vida social e minimiza a judicialização dos conflitos
como caminho mais democrático para o acesso à Justiça.
Mediação implica substituir a postura adversarial pela colaborativa, e isso só
pode ser feito com eficiência se as razões colocadas como sustentação do
conflito puderem ser analisadas como caminho da compreensão, ou seja, se se
compreender o outro, porque só essa forma é melhor para todos. A mediação,
ALMEIDA, Tania. Mediação e Conciliação: Dois Paradigmas Distintos, Duas Práticas
Diversas. Disponível em http://www.mediare.com.br/08artigos_13mediacaodeconflitos.html.
Acesso em 15 de novembro de 2011. Acesso em 15 de novembro de 2011.
122
180
nessa dimensão, é a busca de um acordo que permita às partes em conflito
lançar para o problema outro olhar, de maior amplitude porque diferente
daquele que cada uma delas contemplava sozinha.
O acordo tem como resultado o empoderamento de cada parte em conflito,
porque ela pode colocar suas razões e argumentos, e, ao mesmo tempo,
perceber que a outra parte também tinha argumentos e razões úteis. Com isso
amplia-se a percepção das razões do conflito e aumenta a possibilidade de
encontrar uma solução em coautoria.
Para agir com alteridade, as partes deverão ser estimuladas pelo mediador a
adotarem um posicionamento ético, compreendida a dimensão ética aqui com
um sentido mais alargado que aquele que normalmente utilizamos no cotidiano.
JOSÉ RICARDO CUNHA123 explica:
A ética nos situa no centro do campo do cuidado. O outro é aquele a quem
dirigimos nosso cuidado, nosso zelo, nossa atenção; ele nos interpela em nossa
capacidade mais profunda de produzir humanidade, de perceber e fazer brotar a
existência humana para que ela cresça e perdure na sua própria vida.
Nessa perspectiva é possível, sim, dizer que a ética produz um ganho subjetivo,
pois a humanidade produzida inevitavelmente transcende o outro para também
crescer no eu que a pratica. É como se a conduta ética gerasse em quem a
pratica um sentimento ao mesmo tempo ligeiro e profundo de realização humana.
Esse é o máximo de satisfação que a ética pode proporcionar ao sujeito, ao eu,
uma vez que ela não se destina à autorrealização, mas à garantia da convivência
humana. Além disso, como ente não-manipulável, não se pode esperar que o
outro aja conforme as minhas expectativas, nem mesmo em relação à sua
conduta ética.
Em outras palavras, não devemos agir eticamente para que o outro também o
faça, até porque seria impossível ter garantias nesse sentido, mas porque
humanamente devemos fazê-lo.
Estamos, portanto, diante de um paradigma ético que demanda de todos senso de
responsabilidade e tolerância. A responsabilidade decorre, acima de tudo, da
consciência de nossa finitude material.
CUNHA, José Ricardo. “Estado Social e Estado Policial: da desigualdade radical”. In:
CUNHA, José Ricardo. NORONHA, Rodolfo. Mediação de Conflitos Comunitários e Facilitação
de Diálogos: relato de uma experiência na maré. Rio de Janeiro: FGV, 2010, p. 30.
123
181
Como seres finitos, não temos razão nenhuma para acreditar que a vida humana
se perpetuará ad infinito no planeta Terra. Por isso, devemos agir para com os
outros e para com o planeta de forma a renovar constantemente as possibilidades
de uma existência digna para todos. Já a tolerância decorre, acima de tudo, da
consciência da inevitável coexistência.
Se a vida humana é um empreendimento coletivo, é imperioso que sejam
respeitadas todas as manifestações pessoais e sociais decorrentes do livre arbítrio
que caracteriza a condição humana.
A dimensão ética apontada por CUNHA é a que melhor se coaduna com a
proposta de mediação. É a visão da ética como o comportamento que respeita
porque acredita que o outro também tem o direito de se expressar e de efetivar
direitos tanto quanto nós próprios temos, e no sentido coletivo de preservação
dos interesses de todos, de compreensão de que nossa vivência em sociedade
é e deve ser sempre ancorada no respeito aos interesses coletivos.
Essa ética, se vigorar entre as partes conflitantes, que a isso poderão ser
levadas pela postura proativa do mediador, poderá modificar a ideia de conflito
para que ele possa ser visto como uma oportunidade de mudança, com uma
carga menos negativa do que aquela com a qual ele é tratado no âmbito da
Justiça em que o conflito sempre gera um vencedor e um derrotado. Nessa
perspectiva, a mediação pode ser a restauração da prática política do diálogo,
do debate de ideias, sempre em benefício do coletivo.
No âmbito da saúde pública, a mediação poderá ser um espaço para o
exercício de um novo papel dos Conselhos Municipais de Saúde, que poderão
atuar como representantes dos cidadãos junto ao poder público municipal,
estadual ou federal, a fim de que as soluções em coautoria sejam políticas
públicas para serem implantadas, fiscalizadas e avaliadas conjuntamente pela
comunidade e pelo governo. Tais políticas públicas de saúde devem ter por
escopo contemplar aspectos reiteradamente conflituosos, como dispensação
de medicamentos, oferta de leitos em unidades especiais, tratamentos
complexos, fornecimento de órteses ou próteses e exames tecnicamente mais
sofisticados (sobretudo os que utilizam imagem), entre outros que muitas vezes
são negados ou procrastinados para o cidadão que depende do sistema
público de saúde.
182
Se a judicialização da saúde tem sido um meio individual para obter acesso ao
serviço público de saúde, a mediação poderá ser, na perspectiva proposta pelo
Conselho Nacional de Justiça, uma dimensão política, ética e, principalmente,
coletiva de definir e implantar políticas públicas tornando a população parte da
solução e não apenas do problema, e dando efetivo poder a essa mesma
população para que fiscalize a execução e os resultados das políticas públicas
definidas como prioritárias.
Nesse ponto, é possível indagar: poderia a mediação ser questionada como
medida contrária ao disposto nos artigos 5º, XXXV e 133 da Constituição
Federal?
Determina o artigo 5º, no inciso XXXV, que a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. O texto da Resolução 125, de
2010, expressamente menciona que: “[..] considerando que o direito de
acesso à Justiça, previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal
além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica acesso à
ordem jurídica justa.” (grifo nosso)
Participar por livre escolha de mediação ou de conciliação após uma fase
prévia em que o cidadão recebe explicações detalhadas e claras sobre cada
uma das possibilidades não se constitui em contraposição ao dispositivo
constitucional. Ao contrário, amplia as possibilidades de acesso à Justiça ao
permitir mecanismos ágeis e, ao mesmo tempo, plenamente acompanhados e
fiscalizados pelo Poder Judiciário.
O artigo 133 da Constituição Federal prevê que o advogado é indispensável à
administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no
exercício da profissão, nos limites da lei.
As práticas de mediação ou de conciliação não excluem e não vedam a
presença dos advogados; ao contrário, eles podem e devem participar desde a
fase prévia de esclarecimento das partes e atuar de forma a orientá-las para a
obtenção de resultados efetivos que serão a solução em coautoria na
mediação e o acordo na conciliação. Mas teriam os advogados brasileiros
formação para participar da mediação compreendida como desconstrução do
conflito e construção de solução em coautoria pelas partes? Não. A formação
183
dos advogados brasileiros, em sua expressiva maioria, ainda é voltada para a
solução judicial dos conflitos, com grande carga de estudo de processo civil e
quase nenhum preparo para os mecanismos de solução não judicial.
TANIA ALMEIDA124 afirma:
A capacitação teórico-prática específica é praxe, em todo o mundo, devido ao
caráter transdisciplinar da Mediação. Aportes de diferentes áreas do saber
precisam ser articulados e apreendidos de maneira a sustentarem a atuação do
mediador e o emprego de um sem-número de intervenções que visam à
desconstrução de impasses e à fluidez do diálogo. [...}
Ensinar Mediação transcende reunir seus aportes teóricos e técnicos em um
programa docente. A Mediação é muito mais do que um método de resolução de
conflitos. Seu aprendizado implica mudanças paradigmáticas que dizem respeito à
convivência pautada na empatia como princípio ético fundamental. É um
aprendizado para a vida, par ao estar no mundo, não exclusivamente para
desempenhar uma função. Constata-se que os programas de capacitação
existentes possuem vertentes mais objetivas ou mais subjetivas e constroem
praticantes habilitados a estimular maiores ou menores mudanças sociais.
Os meios não processuais de solução de conflitos ainda não são tratados em
grande parte dos cursos de Direito no Brasil como prioridade ou como
mecanismos relevantes. São vistos como “alternativos”, o que pode significar
que não representam a solução mais confiável, mas uma maneira secundária
de obter um resultado para um conflito. Têm a seu favor a celeridade em uma
sociedade na qual o Poder Judiciário reconhecidamente não consegue ser ágil
nas soluções.
A adoção da conciliação foi estimulada com os Juizados Especiais,
anteriormente denominados Juizados de Pequenas Causas. Tem sido
largamente utilizada e com resultados positivos. É uma oportunidade para que
as partes coloquem suas razões e pactuem um acordo para pôr fim ao conflito.
A conciliação tem sido amplamente utilizada em casos de acidentes de trânsito,
vícios ou defeitos de consumo, relações com bancos e financeiras, prestadores
ALMEIDA, Tania. Mediação de Conflitos: Um Meio de Prevenção e Resolução de
Controvérsias
em
Sintonia
com
a
Atualidade.
Disponível
em
http://www.mediare.com.br/08artigos.htm. Acesso em 15 de novembro de 2011.
124
184
de serviços de telefonia celular móvel ou televisão a cabo, entre outros de igual
natureza.
A mediação, ao contrário da conciliação, se destina a conflitos nos quais as
partes tenham uma relação mais duradoura, como ocorre nos casos de família,
de relacionamento do cidadão com o poder público e nos problemas
corporativos mais complexos, entre outros assemelhados. Por isso ela contém
etapas em que os advogados serão fundamentais, e outras em que as partes
deverão atuar de maneira mais autônoma, porque, se cada uma das partes não
contribuir por si mesma para a desconstrução do conflito, não poderá contribuir
para a construção da solução.
Como afirma ADOLFO BRAGA NETO125 a respeito da mediação,
“[...] ela não visa pura e simplesmente ao acordo, visa sim atingir a satisfação das
motivações das pessoas. Seu objetivo, entre outros, é estimular o diálogo
cooperativo entre elas para que alcancem a solução das controvérsias em que
estão envolvidas. Neste método pacífico se busca propiciar momentos de
criatividade para que as partes possam analisar qual seria a melhor opção face à
relação existente, geradora da controvérsia.
Para atender a essa perspectiva, a mediação exigirá que o cidadão tome a
frente do debate, coloque suas ideias e propostas, devendo o advogado
exercer a tarefa de orientador e não de protagonista, como acontece nos
processos judiciais.
Para que os advogados brasileiros possam exercer esse papel, em especial
em casos envolvendo acesso à saúde pública, terão que ser capacitados e
esclarecidos, porque se trata de uma proposta de atuação profissional
inovadora e diferente daquela que se estabelece normalmente nos processos
judiciais, nos quais, mesmo na fase de tentativa de conciliação, o advogado é
protagonista do debate e não raro, da solução.
A Ordem dos Advogados do Brasil terá que ser inserida como parceira na
formação dos advogados para atuarem em procedimentos de mediação.
125
BRAGA NETO. Adolfo. A Mediação de Conflitos e suas Diferenças com a Conciliação.
Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/sistemas/436-rodape/acoes-eprogramas/programas-de-a-a-z/movimento-pela-conciliacao/justica-estadual. Acesso em 15
de novembro de 2011.
185
Caberá à Ordem dos Advogados do Brasil, ainda, incentivar as escolas de
Direito em todo o País para que incluam o estudo da mediação e da conciliação
em seus currículos e conteúdos programáticos, não como uma forma
alternativa, mas como uma das formas viáveis para a concretização da justiça.
As práticas jurídicas exercidas nas escolas de Direito também deverão
contemplar mediação, com alunos trabalhando em conjunto com os
mediadores, em especial nas etapas iniciais da mediação, quando todo o
procedimento é explicado detalhadamente para as partes.
Para BRAGA NETO126 a mediação possui oito fases: pré-mediação, abertura,
investigação, agenda, criação de opções, avaliação das opções, escolha das
opções e solução.
De especial atenção para este trabalho são as fases de pré-mediação e
abertura, momentos em que, segundo o autor, o mediador informa de que
maneira ocorrerá o procedimento de mediação, quais seus objetivos, o papel
que se espera que as partes cumpram, a atenção que elas devem dar aos
argumentos da outra, e, ainda, indaga a cada parte as razões que as trouxeram
para a mediação, sobre o efetivo interesse delas em se submeter a essa
modalidade de acesso à Justiça, e esclarece de que maneira ele agirá em
relação às partes e ao conflito.
Somente depois da fase de pré-mediação e de abertura é que as partes
poderão assinar o Termo de Compromisso de Mediação ou Contrato de
Mediação, como sugere o autor citado e, então, serão iniciados os trabalhos e
cumpridas as demais fases.
O esclarecimento e a compreensão sobre os objetivos da mediação e sobre a
forma como ela ocorrerá e, em especial, sobre o papel das partes e do
mediador, é fundamental para que as partes avaliem se aquele conflito poderá
ser solucionado por mediação pré-judicial.
Nos casos de saúde pública, especificamente, é fundamental que a mediação
pré-judicial seja adotada em Centros que possam se utilizar de Câmaras ou
Núcleos de Assistência Técnica, composto por profissionais da área de saúde,
conforme já tratado neste trabalho.
126
Obra citada, pág. 4.
186
Sem o apoio técnico de médicos, psicólogos, farmacêuticos, fisioterapeutas,
enfermeiras, nutricionistas, entre outros profissionais da área de saúde, o
mediador e as partes não disporão de elementos técnicos e objetivos
suficientes para formar uma visão ampliada do conflito.
É possível afirmar que para conflitos em saúde (pública ou privada) seja mais
adequado utilizar um mediador preparado especialmente para aquela função,
capacitado com conhecimentos sobre o funcionamento do Sistema Único de
Saúde, o Ministério da Saúde e suas funções, as funções da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária, as políticas públicas de dispensação de medicamentos
no âmbito do município e do estado federativo em que atua, bem como da
União Federal.
Além dos conhecimentos próprios de mediação já inseridos na Recomendação
125, de 2010, o mediador da área de saúde deverá conhecer aspectos
específicos que comumente motivam os conflitos nesse setor e, dessa
maneira, se preparar adequadamente para atuar em situações delicadas que,
não raro, envolvem a fragilidade física, psíquica e social de uma das partes.
O mediador pré-judicial em atuação conjunta com as Câmaras ou Núcleos de
Assistência Técnica que assessoram os Tribunais de Justiça estará mais
preparado para ajudar as partes no diálogo e na busca de uma solução em
coautoria a partir de dados reais que ele trará para fomentar o diálogo.
É preciso considerar que, quando se trata de solução de conflitos de saúde
pública ou privada, o fator tempo é quase sempre um inimigo do diálogo e da
busca por soluções de consenso. Mesmo nos casos em que não haja urgência
ou emergência, as partes que necessitam de medicamentos ou tratamentos
médicos estarão vivenciando algum tipo de desconforto ou preocupação e,
nessa medida, nem sempre estarão dispostas a vivenciar um procedimento
pré-judicial que poderá se prolongar por semanas.
Há no Brasil, por outro lado, uma “cultura de tutelas antecipadas” já instalada,
que, no imaginário dos cidadãos e de muitos advogados, é sinônima de
concessão de tutela pelo magistrado sempre que o tema da saúde for central
ao problema.
187
Para modificar essa cultura, os magistrados poderão, nos casos em que não
haja urgência ou emergência, aferida a ausência pela Câmara ou Núcleo de
Assessoria Técnica, determinar que seja realizada a primeira fase da mediação
pré-judicial, ou seja, a fase de esclarecimentos das partes antes que o
processo judicial tenha prosseguimento. É uma proposta que provocará críticas
dos que acreditam se tratar de um cerceamento de acesso à Justiça. Mas, em
contrapartida, como o próprio Conselho Nacional de Justiça reconhece que a
mediação e conciliação fazem parte integrante do direito fundamental de
acesso à Justiça, é defensável que a obrigação de se submeter primeiramente
à primeira fase da mediação pré-judicial não seja inconstitucional e, portanto,
possa ser uma proposta capaz de reduzir o número de demandas judiciais na
área de saúde.
Existem casos concretos de pedidos de realização de cirurgia no exterior, ou
de realização de cirurgias que não são aconselhadas para o paciente naquele
momento de sua vida, ou ainda, de requerimento de medicamentos que estão
em fases iniciais de estudo. Os tribunais brasileiros recebem ainda pedidos de
tratamento em clínicas de emagrecimento (spas), de cirurgia para correção de
miopia em situações em que a idade e o grau de comprometimento não
recomendam sua realização, entre outros pedidos que não possuem amparo
técnico ou que apontam para a necessidade de um debate político sobre a
utilização de verbas públicas para que possam ser efetivados.
Casos dessa natureza podem ser solucionados pela via da mediação préjudicial, pois existe tempo para que ela aconteça e, no mais das vezes, o
conflito nasce da falta de conhecimento da parte sobre as razões de ordem
técnica e científica que levaram o órgão público a negar o tratamento ou o
medicamento. É nesse locus que também se poderá construir o debate sobre a
utilização de verbas públicas, sobre o comprometimento do orçamento público
municipal e sobre a necessidade de formulação de políticas públicas para
contemplar não apenas o caso individual, mas outros tantos semelhantes
àquele.
A Resolução 125, de 2010, do Conselho Nacional de Justiça, determina que os
conflitos de interesse sejam tratados como política pública, exatamente por
188
reconhecer que eles ocorrem em larga escala na sociedade contemporânea e
que os cidadãos têm direito constitucional fundamental de acesso à Justiça.
Isso tem um significado muito especial, porque o Conselho Nacional de Justiça
aponta a solução de conflitos por meios pré-judiciais como uma prática a ser
adotada de forma contínua e não circunstancial, objetivando, por meio dos
centros de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, previstos
na seção II, encontrar soluções rápidas e eficientes para o acesso à Justiça. É,
portanto, um programa de Estado e não de governo, o que significa que o
aprimoramento do acesso à Justiça deverá ser sempre perseguido por tantos
quantos sejam os presidentes do Conselho Nacional de Justiça ou dos
Tribunais de Justiça de cada Estado da Federação que ocupem o cargo.
Como política pública, os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e
Cidadania poderão, no entender deste trabalho de pesquisa, motivar a
participação de outros órgãos que tenham por objetivo a garantia de direitos
fundamentais, como os Conselhos Municipais de Saúde.
A contribuição dos Conselhos Municipais de Saúde poderá ser fundamental
para qualificar o debate e a construção de argumentos que poderão levar à
construção de soluções para o conflito. Caberá aos Conselhos trazer para a
discussão individual as perspectivas da repercussão no âmbito público, nos
programas de saúde já custeados e administrados pelo município, o impacto
nas contas públicas e na implantação de futuras políticas públicas necessárias
para a população.
A mediação pré-judicial poderá ser o espaço do debate ampliado, político e
social da saúde pública (que terá início a partir dos casos individualizados), e
contribuir para
desconstruir o
conflito a
partir da
compreensão
da
impossibilidade ou da desnecessidade de acesso a alguns tipos de
medicamento ou de tratamento de saúde.
Em outras situações, o debate ampliado a partir do caso individualizado levado
à medição pré-judicial sinalizará a necessidade de estudo, de previsão
orçamentária e de implementação de novas políticas públicas de saúde,
construindo uma solução que em longo prazo beneficiará a todos os cidadãos
com problemas semelhantes àquele analisado em concreto.
189
A população brasileira de todos os níveis econômicos de renda se sente
credora do Estado, por arcar com altas taxas de impostos e receber em troca,
historicamente, muito pouco em áreas fundamentais, como educação, saúde,
moradia, assistência social e segurança social, entre outras. Quando o cidadão
supera obstáculos para ir ao Judiciário requerer algum direito em matéria de
saúde pública, ele está convencido de que tem direito pelo simples fato de ser
brasileiro e pagar impostos.
É preciso ampliar essa percepção dos cidadãos brasileiros para que possam
entender, de forma lenta, gradual e efetiva, que todos os direitos sociais têm
custos de implementação e que esses custos precisam ser lançados de forma
progressiva para que toda a sociedade conquiste direitos, e não apenas
aqueles que obtiveram uma sentença judicial favorável.
CONCLUSÃO
190
Este trabalho foi elaborado para tentar pesquisar respostas para algumas
perguntas relevantes para compreensão do fenômeno da judicialização da
saúde pública no Brasil.
A primeira delas consiste em saber se a busca do Poder Judiciário para a
solução das questões de saúde pública é sinal de fortalecimento das
instituições democráticas ou, ao contrário, é sintoma de imaturidade das
instituições políticas que deveriam promover o debate coletivo da efetividade
da saúde pública. Ou em outras palavras, se esse fenômeno pode ser
considerado um elemento para a despolitização da sociedade civil brasileira
contemporânea.
A outra pergunta formulada de início foi: de que forma será possível superar o
fenômeno da judicialização da saúde e recuperar o espaço de discussão
política da saúde pública como um direito de todos, conforme previsto na
Constituição Federal?
Dois foram, portanto, os objetivos traçados: compreender o fenômeno da
judicialização do acesso à saúde pública no Brasil, e pesquisar alternativas de
âmbito político-jurídico que permitam mitigar o protagonismo do Poder
Judiciário para garantir efetividade do direito fundamental à saúde.
Ao analisar o papel do médico na construção histórica e social do conceito de
saúde, foi possível detectar que a luta para obter a autonomia de dizer o que é
saúde e o que não é não foi travada apenas por esses profissionais. Eles
contaram com o apoio do aparato de Estado que, em muitos lugares, desde a
Idade Média e até hoje, ainda pauta a organização das cidades e o destino a
ser dado a doentes e cadáveres a partir dos saberes provindos da Medicina.
A arquitetura das cidades se organizou a partir desses saberes, tendo sido os
hospitais e todos os locais de depósito de doentes incuráveis (portadores de
hanseníase, por exemplo) pensados a partir de tais conhecimentos, ancorados
na autoridade do Estado.
191
Assim, os médicos construíram o poder de serem os únicos a determinar o que
é doença e como tratá-la. A ciência os auxiliou e auxilia muito, mas é
fundamentalmente o Estado, com seu poder de coerção, que lhes dá
fundamentos para determinar como deverão ser tratadas as doenças e os
doentes. Assim, esses profissionais possuem mais do que a exclusividade de
detectar a doença e tratar dela: possuem o apoio do Estado para agir.
Na atualidade, esse apoio do Estado se traduz de forma clara na atuação do
Poder Judiciário que, quando instado a decidir sobre uma questão de saúde,
quase sempre o faz no mesmo sentido daquilo que tiver sido determinado pelo
médico que assiste ao paciente.
Fundamentado no parecer do médico que assiste o cidadão é que o Poder
Judiciário toma suas decisões, e sem peso na consciência, independentemente
de valores que serão consumidos ou da repercussão que essa decisão possa
provocar no orçamento público e no atendimento de outras necessidades da
sociedade, como a saúde primária, por exemplo, compreendida aqui como
campanhas de vacinação e práticas de Medicina preventiva.
Contrariar o parecer técnico do médico é inviável para os magistrados, quer
pela complexidade do conhecimento, quer pela exclusividade que se atribui a
esse profissional para tratar dos assuntos referentes à saúde e sua
manutenção. A rigor, até mesmo a opinião de outro médico sobre o mesmo
caso é questionada, principalmente se ele não possuir os mesmos predicados
daquele que formalizou o diagnóstico e prescreveu o tratamento.
Ao mesmo tempo em que auxilia o avanço da Medicina, a ciência também é
utilizada para introduzir inovações que no campo da saúde não se sobrepõem:
ao contrário, se somam e tornam ainda mais caro o tratamento de cura.
Enquanto em outras áreas técnicas uma inovação surge para substituir uma
prática que é imediatamente considerada obsoleta e afastada, no campo das
ciências médicas a ultrassonografia e a ressonância magnética não decretaram
o fim da utilização do raio X. Tudo dependerá do caso concreto que estiver
sendo analisado. Não raro, conforme mencionado no capitulo IV deste trabalho,
o médico utiliza vários exames para obter um diagnóstico que o satisfaça
plenamente.
192
No campo da Farmacologia, o fenômeno também ocorre, e acrescido de um
outro agravante: cada novo produto lançado no mercado de consumo de
medicamentos deve custar o preço necessário para custear todas as
experiências anteriores que não foram bem sucedidas, que não se
transformaram em produtos vendáveis.
Por essas razões, surgem a cada dia novas tecnologias e novos medicamentos
na área de saúde, permitindo aos médicos que tenham cada vez mais
possibilidades de prescrever tentativas de curar seu paciente. Infelizmente, no
mundo capitalista hegemônico, todos os tratamentos e medicamentos têm
custos e, quase sempre, vultosos quando se trata de inovações.
Mas como questionar o médico e dizer que o tratamento não pode ser
realizado? Como dizer ao paciente que seu tratamento é vultoso, poderá
repercutir negativamente no orçamento público do município ou do estado
federativo? Como provar efetivamente essa repercussão negativa se sempre
se poderá alegar que basta retirar os recursos de outras obras não tão
relevantes como a vida humana?
O processo de constitucionalização do Direito vivido no Brasil a partir da
promulgação da Constituição Federal de 1988 foi e ainda é um movimento de
grande importância para a solução de demandas judiciais. A Constituição
Federal de 1988 criou o processo de filtragem constitucional, que permitiu que
todos os casos concretos, de qualquer assunto, pudessem ser tratados na
óptica
constitucional,
independentemente
do
assunto
sobre
o
qual
concretamente versem.
Debatida e construída após mais de vinte anos de ditadura militar, a
Constituição Federal brasileira de 1988 trata de maneira muito especial os
direitos fundamentais, individuais e sociais, e tem como fundamentos a
cidadania e a dignidade da pessoa humana.
Princípio multifacetado e de ampla aplicação na atualidade em razão da
complexidade da organização social e do modo de vida dos seres humanos, a
dignidade da pessoa humana se tornou no Brasil um princípio de uso múltiplo,
sempre a exigir uma hermenêutica adequada às peculiaridades de cada caso
concreto.
193
Invoca a dignidade da pessoa humana a entidade de assistência social que
deseja que o Estado lhe subvencione, como invoca o mesmo princípio o
cidadão que efetua a compra de um bem ou serviço que não lhe é entregue no
prazo correto, ou na forma correta. Nesse contexto, portanto, quase todos os
pedidos formulados no âmbito da efetividade do direito social à saúde pública
se ancoram no respeito à dignidade da pessoa humana, e estão certos, porque
quando se trata da preservação da boa saúde e, consequentemente da vida
humana, é a dignidade que está sendo preservada para toda a sociedade.
A saúde está contemplada no artigo 6º da Constituição Federal, que define os
direitos sociais.
No artigo 196 a Constituição Federal de 1988 define a saúde como um direito
de todos e um dever do Estado, que deverá ser garantido por meio de políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos, e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação.
A Constituição Federal de 1988, no âmbito dos direitos fundamentais, é o
projeto político emancipatório da nação e deve ser efetivado pelo Estado
brasileiro. Mas como efetivar direitos sem conceder privilégios?
O debate em torno de normas programáticas e reserva do possível quando se
trata de acesso à saúde está quase superado. Hoje o debate está focalizado
em efetivar todos os direitos fundamentais para todos, com captação e
administração de recursos marcados pela legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência.
Efetivar todos os direitos fundamentais para todos os cidadãos é utópico, mas
é preciso que os poderes republicanos sinalizem que se movimentam no
sentido de chegar o mais perto possível da concretude.
O Judiciário se tornou, nas últimas décadas, no Brasil, o ente federativo em
melhores condições de acolher as pretensões de exercício da cidadania, ao
mesmo tempo em que o Executivo e o Legislativo se enredaram em denúncias
de corrupção, descrédito, má utilização das verbas públicas, lentidão e falta de
eficiência. Em especial o Legislativo, acossado por infindáveis denúncias de
corrupção de seus membros, tanto na Câmara como no Senado, perdeu a
194
credibilidade junto à população e tornou-se um ente distante, relembrado
apenas em períodos eleitorais.
O chamado protagonismo ou ativismo do Judiciário se deve muito menos à sua
vontade do que a uma condição fática à qual foi guindado mesmo sem tanta
vontade. Uma vez conquistada a condição de poder mais associado à
credibilidade e à honestidade, com espaço garantido na mídia impressa e
televisiva, em especial nas decisões de maior gosto popular, não tardou para
que aquele que não queria o protagonismo a ele se adaptasse “docemente
constrangido”.
A transmissão de decisões judiciais de grande impacto com a organização da
TV Justiça, a repercussão das decisões judiciais nos noticiários mais assistidos
no País e também nos jornais impressos e na mídia eletrônica, contribuíram
(de forma ainda pouco pesquisada mas possível de ser constatada) para que
os magistrados se tornassem no imaginário popular seres que tudo podem
decidir e que têm o poder de determinar que direitos poderão ser usufruídos
por quais pessoas.
De outro lado, analisando-se decisões judiciais em diferentes estados da
federação alicerçadas em diferentes necessidades, é possível constatar que
pouco ou nada podem fazer os magistrados quando recebem casos concretos
com pedidos de dispensação médica ou de tratamento especializado, por
vezes com custos vultuosos, porém ancorados em relatórios médicos que
atestam firmemente a necessidade, por vezes a urgência ou a emergência, da
realização daquele tratamento ou medicamento específico, sem margem de
tempo para que esse debate seja ampliado.
De posse de um relatório médico dessa natureza e diante de um rosto com
nome e expectativas, o magistrado de Primeiro Grau não tem outro caminho a
adotar senão proferir a concessão de tutela, ou a sentença favorável que
permita a ele próprio, ao paciente e por consequência, ao círculo social
envolvido, sentir-se amparado constitucionalmente para usufruir concretamente
do direito à saúde.
Protagonismo ou ativismo judicial? Pouco importa, o que se conclui é que os
casos de acesso à saúde pública não deveriam chegar ao Poder Judiciário, ou
195
chegar apenas em situações extremamente específicas para as quais o
mecanismo de Estado se mostrasse impotente. No entanto, não é o que ocorre
no Brasil neste momento histórico, em que chegam ao Poder Judiciário
milhares de casos que poderiam ser solucionados por políticas públicas
municipais, as quais às vezes são até existentes mas desconhecidas da
população, ou trabalhadas de forma tão precária que resultam ineficientes.
A população vai ao Poder Judiciário para reivindicar acesso a medicamentos, a
tratamentos, internações, órteses e próteses – pedidos esses perfeitamente
passíveis de serem deferidos com a utilização conjugada de alguns poucos
artigos constitucionais, mormente o artigo 6º e o artigo 196. Quase não importa
o que se vai pedir ao Poder Judiciário. Em se tratando de saúde pública, a
conjugação desses dois artigos é mais do que suficiente para determinar ao
Estado que efetive o direito que a parte constitucionalmente detém.
Mas a conjugação desses dois artigos não é suficiente para conseguir que o
Estado no âmbito federal, estadual e municipal se organize adequadamente
para atender ao pleito do cidadão sem que ele precise ir ao Judiciário para
conseguir o que já lhe é devido.
De outro lado, existem elementos concretos para fazer crer que as sucessivas
sentenças judiciais determinando a concessão de medicamentos e custeio de
tratamentos (às vezes em clínicas particulares porque o Estado não tem leitos
em quantidade suficiente), possa contribuir para tornar ainda mais frágeis os
orçamentos públicos dos entes governamentais, impedindo ou ao menos
dificultando que outras políticas públicas, mormente relacionadas à prevenção
de doenças, possam ser implementadas.
Retirar o debate do acesso da saúde pública da área do Judiciário é o grande
desafio. Fazer com que esse debate retorne para a sociedade civil e se faça
em diálogo com o Executivo e com o Legislativo, esse é o caminho a ser
traçado e trilhado. Mas isso ainda não basta: é preciso que o diálogo seja
qualificado, de alto nível, com boa quantidade de informações técnicas e
científicas.
196
Essas informações, por sua vez, ainda que de caráter técnico e científico,
precisarão ser submetidas à comprovação idônea, em centros de pesquisa
referenciados, em estudos randomizados que ofereçam segurança e qualidade.
Portanto, não é suficiente realocar o debate em um espaço público e político: é
preciso que ele se faça de maneira segura, qualificada, com a garantia de que
o cidadão brasileiro terá a proteção constitucional efetivada.
Este trabalho identificou nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e
Cidadania previstos na Resolução 125 do Conselho Nacional de Saúde uma
possibilidade de realocar o debate em torno do direito de acesso à saúde
pública, não da forma como está posto na Resolução mas de maneira que
possa ser implementada sem maiores dificuldades e custos.
Os Centros poderiam ser implantados em parceria com as Centrais ou Núcleos
de Assessoria Técnica dos Tribunais de Justiça, compostos por equipe
multidisciplinar da área de saúde e com atuação fundamentada em Medicina
baseada em evidência, diretrizes clínicas e avaliação de incorporação de novas
tecnologias. As Centrais ou Núcleos de Assessoria Técnica dos Tribunais de
Justiça poderiam contar com a assessoria de um auditor em saúde pública,
com formação em economia da saúde, área que não tem por objetivo glosar
pedidos, mas avaliar
aquilo que se pretende com os resultados já
comprovados na utilização ou na pesquisa.
Os Centros Judiciários, conforme determina a Resolução 125, de 2010,
deverão atuar por meio de mediação pré-judicial e conciliação, podendo
requerer relatórios técnicos sempre que necessário. Esses relatórios poderiam
ser solicitados às Centrais ou Núcleos de Assessoria Técnica dos Tribunais de
Justiça. Ambos trabalhariam em regime de mútua colaboração.
Mas isso não basta para alocar o debate da saúde pública em um espaço que
ele seja também político. Para isso é preciso incorporar aos Centros Judiciários
a possibilidade de, quando necessário e a critério das partes e do mediador
responsável pelo conflito, envolver os Conselhos Municipais de Saúde e as
Secretarias Municipais, cujos representantes compareceriam à reunião ou
reuniões da mediação pré-judicial para tentar compreender o conflito e atuar de
forma a contribuir para uma solução construída em coautoria. Assim, por
197
exemplo, o pedido de um medicamento de alto custo para um tratamento
experimental, que oneraria o erário público municipal com valores capazes de
comprometer o orçamento municipal e a efetividade de políticas públicas de
prevenção de epidemia de dengue, seria debatido entre a parte solicitante e os
representantes da sociedade civil e do Poder Executivo.
É possível acreditar que, num debate dessa natureza, o Direito constitucional
estaria cumprindo seu papel fundamental de garantir o Estado Democrático,
porém de maneira a permitir aos cidadãos que compreendam que a vida em
sociedade não se constrói apenas com o exercício de direitos mas,
principalmente, com o cumprimento de deveres.
Também é possível acreditar que a esse debate iniciado na mediação préjudicial pudessem comparecer outros agentes sociopolíticos de importância,
como organizações não governamentais independentes que acompanhassem
os indicadores de transparência dos governos municipais, e que com estudos e
dados coligidos pudessem demonstrar, por exemplo, que as alegações de
inviabilidade econômica do pedido são inverossímeis porque o Estado tem
recursos. Ou, ainda, demonstrar que a impossibilidade é até concreta, mas
decorre de má utilização de verba pública em outras áreas, ensejando de
imediato a denúncia ao Ministério Público.
Como determina a própria Resolução 125, do Conselho Nacional de Justiça, o
Centro não é apenas um lugar para solucionar conflitos, mas também para
exercer a cidadania. E cidadania é uma dimensão coletiva, política, própria da
participação direta da sociedade civil no arranjo organizacional de suas
instâncias de decisão, execução e fiscalização.
Os casos concretos de maior repercussão social poderão ser encaminhados
para audiências ou consultas públicas, de modo a sugerir ao Executivo
municipal ou estadual políticas públicas que possam solucionar problemas que
tenham sido levados aos Centros Judiciários de forma individualizada; mas, a
partir daí, passarão a receber tratamento coletivo para uma solução que efetive
as normas constitucionais não para alguns, mas para todos aqueles que
tenham necessidade dessa eficácia. Cumpre efetivar direitos sociais para o
coletivo e não privilegiar alguns poucos que conseguiram chegar ao Poder
Judiciário para requerê-los.
198
A ampliação dos objetivos dos Centros Judiciários para receber a sociedade
civil, os poderes Executivo e Legislativo, o Ministério Público e as organizações
não governamentais independentes e sérias podem ser uma forma concreta de
fazer da mediação pré-judicial, em alguns casos de saúde pública, a
construção de uma solução não apenas em coautoria, mas amplificada para
garantir a um dado grupamento social a efetividade constitucional que todos
almejamos.
O Direito não pode pretender dar conta de todos os conflitos sociais por meio
de sentenças judiciais. O Direito é um instrumento que pode ser transformador
se pensado na dimensão coletiva para além da proteção da propriedade
privada e como meio de ação disponibilizado para todos os grupos sociais e
não apenas para aqueles que sabem que têm direito a defender.
O debate em torno da efetividade da saúde pública no Brasil não pode
continuar mudo, assim como as políticas públicas não podem ser definidas por
sentença judicial. As escassas experiências de democracia participativa
realizadas no Brasil foram suficientes para alertar sobre as dificuldades que o
processo proporciona, mas também para esclarecer que seus resultados são
muito mais eficazes do que o cumprimento de uma sentença judicial individual,
embora esta possa de imediato, contabilizar uma vida salva. O que não tem
sido contabilizado são as vidas precarizadas em razão da decisão judicial.
Para que essa conta não seja mais um problema da magistratura e do
Judiciário brasileiro, é preciso acreditar em possibilidades (como a que aqui se
discute) que ampliam o debate em torno da saúde púbica e o reconduzem para
a sociedade civil – a quem compete liderá-lo – como exercício efetivo da
cidadania que pode e deve modelar o Estado.
199
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ANEXO I
Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010
Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de
interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências.
(Publicada no DJ-e n° 219/2010, em 01/12/2010, pág. 2-14 e republicada no DJ-e nº
39/2011, em 01/03/2011, páginas 2-15)
212
RESOLUÇÃO
Nº
125,
DE
29
DE
NOVEMBRO
DE
2010
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas
atribuições constitucionais e regimentais,CONSIDERANDO que compete ao Conselho
Nacional de Justiça o controle da atuação administrativa e financeira do Poder
Judiciário, bem como zelar pela observância do art. 37 da Constituição da República;
CONSIDERANDO que a eficiência operacional, o acesso ao sistema de Justiça e a
responsabilidade social são objetivos estratégicos do Poder Judiciário, nos termos da
Resolução/CNJ nº 70, de 18 de março de 2009;
CONSIDERANDO que o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da
Constituição Federal além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica
acesso à ordem jurídica justa;
CONSIDERANDO que, por isso, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de
tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que
ocorrem em larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito
nacional, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também
os que possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em
especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação;CONSIDERANDO a
necessidade de se consolidar uma política pública permanente de incentivo e
aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios;
CONSIDERANDO que a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de
pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina
em programas já implementados nos país tem reduzido a excessiva judicialização dos
conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças;
CONSIDERANDO ser imprescindível estimular, apoiar e difundir a sistematização e o
aprimoramento das práticas já adotadas pelos tribunais;
CONSIDERANDO a relevância e a necessidade de organizar e uniformizar os serviços
de conciliação, mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos, para
lhes evitar disparidades de orientação e práticas, bem como para assegurar a boa
execução da política pública, respeitadas as especificidades de cada segmento da
Justiça;
CONSIDERANDO que a organização dos serviços de conciliação, mediação e outros
213
métodos consensuais de solução de conflitos deve servir de princípio e base para a
criação de Juízos de resolução alternativa de conflitos, verdadeiros órgãos judiciais
especializados na matéria;
CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça na sua
117ª Sessão Ordinária, realizada em de 23 de 2010, nos autos do procedimento do
Ato
0006059-82.2010.2.00.0000;
RESOLVE:
Capítulo I
DA POLÍTICA PÚBLICA DE TRATAMENTO ADEQUADO DOS CONFLITOS DE INTERESSES
Art. 1º Fica instituída a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de
interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios
adequados à sua natureza e peculiaridade.
Parágrafo único. Aos órgãos judiciários incumbe, além da solução adjudicada
mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em
especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem
assim prestar atendimento e orientação ao cidadão.
Art. 2º Na implementação da Política Judiciária Nacional, com vista à boa qualidade
dos serviços e à disseminação da cultura de pacificação social, serão observados:
centralização das estruturas judiciárias, adequada formação e treinamento de
servidores, conciliadores e mediadores, bem como acompanhamento estatístico
específico.
Art. 3º O CNJ auxiliará os tribunais na organização dos serviços mencionados no art.
1º, podendo ser firmadas parcerias com entidades públicas e privadas.
Capítulo II
DAS ATRIBUIÇÕES DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
Art. 4º Compete ao Conselho Nacional de Justiça organizar programa com o objetivo
de promover ações de incentivo à autocomposição de litígios e à pacificação social por
meio da conciliação e da mediação.
214
Art. 5º O programa será implementado com a participação de rede constituída por
todos os órgãos do Poder Judiciário e por entidades públicas e privadas parceiras,
inclusive universidades e instituições de ensino.
Art. 6º Para desenvolvimento dessa rede, caberá ao CNJ:
I – estabelecer diretrizes para implementação da política pública de tratamento
adequado de conflitos a serem observadas pelos Tribunais;
II – desenvolver conteúdo programático mínimo e ações voltadas à capacitação em
métodos consensuais de solução de conflitos, para servidores, mediadores,
conciliadores e demais facilitadores da solução consensual de controvérsias;
III – providenciar que as atividades relacionadas à conciliação, mediação e outros
métodos consensuais de solução de conflitos sejam consideradas nas promoções e
remoções de magistrados pelo critério do merecimento;
IV – regulamentar, em código de ética, a atuação dos conciliadores, mediadores e
demais facilitadores da solução consensual de controvérsias;
V – buscar a cooperação dos órgãos públicos competentes e das instituições públicas
e privadas da área de ensino, para a criação de disciplinas que propiciem o
surgimento da cultura da solução pacífica dos conflitos, de modo a assegurar que, nas
Escolas da Magistratura, haja módulo voltado aos métodos consensuais de solução de
conflitos, no curso de iniciação funcional e no curso de aperfeiçoamento;
VI – estabelecer interlocução com a Ordem dos Advogados do Brasil, Defensorias
Públicas, Procuradorias e Ministério Público, estimulando sua participação nos
Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania e valorizando a atuação na
prevenção dos litígios;
VII – realizar gestão junto às empresas e às agências reguladoras de serviços
públicos,
a
fim
de
implementar
práticas
autocompositivas
e
desenvolver
acompanhamento estatístico, com a instituição de banco de dados para visualização
de
resultados,
conferindo
selo
de
qualidade;
VIII – atuar junto aos entes públicos de modo a estimular a conciliação nas demandas
que envolvam matérias sedimentadas pela jurisprudência.
Capítulo III
DAS ATRIBUIÇÕES DOS TRIBUNAIS
215
Seção I
Dos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos
Art. 7º Os Tribunais deverão criar, no prazo de 30 dias, Núcleos Permanentes de
Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, compostos por magistrados da ativa
ou aposentados e servidores, preferencialmente atuantes na área, com as seguintes
atribuições, entre outras:
I – desenvolver a Política Judiciária de tratamento adequado dos conflitos de
interesses, estabelecida nesta Resolução;
II – planejar, implementar, manter e aperfeiçoar as ações voltadas ao cumprimento da
política e suas metas;
III – atuar na interlocução com outros Tribunais e com os órgãos integrantes da rede
mencionada nos arts. 5º e 6º;
IV – instalar Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania que concentrarão
a realização das sessões de conciliação e mediação que estejam a cargo de
conciliadores e mediadores, dos órgãos por eles abrangidos;
V – promover capacitação, treinamento e atualização permanente de magistrados,
servidores, conciliadores e mediadores nos métodos consensuais de solução de
conflitos;
VI – na hipótese de conciliadores e mediadores que atuem em seus serviços, criar e
manter cadastro, de forma a regulamentar o processo de inscrição e de desligamento;
VII – regulamentar, se for o caso, a remuneração de conciliadores e mediadores, nos
termos da legislação específica;
VIII – incentivar a realização de cursos e seminários sobre mediação e conciliação e
outros métodos consensuais de solução de conflitos;
IX – firmar, quando necessário, convênios e parcerias com entes públicos e privados
para atender aos fins desta Resolução.
Parágrafo único. A criação dos Núcleos e sua composição deverão ser informadas ao
Conselho Nacional de Justiça.
Seção II
Dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania
216
Art. 8º Para atender aos Juízos, Juizados ou Varas com competência nas áreas cível,
fazendária, previdenciária, de família ou dos Juizados Especiais Cíveis e Fazendários,
os Tribunais deverão criar os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania
(“Centros”), unidades do Poder Judiciário, preferencialmente, responsáveis pela
realização das sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo
de conciliadores e mediadores, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão.
§ 1º Todas as sessões de conciliação e mediação pré- processuais deverão ser
realizadas nos Centros, podendo, excepcionalmente, as sessões de conciliação e
mediação processuais ser realizadas nos próprios Juízos, Juizados ou Varas
designadas, desde que o sejam por conciliadores e mediadores cadastrados junto ao
Tribunal (inciso VI do art. 7º) e supervisionados pelo Juiz Coordenador do Centro (art.
9º).
§ 2º Os Centros deverão ser instalados nos locais onde exista mais de um Juízo,
Juizado ou Vara com pelo menos uma das competências referidas no caput.
§ 3º Nas Comarcas das Capitais dos Estados e nas sedes das Seções e Regiões
Judiciárias, bem como nas Comarcas do interior, Subseções e Regiões Judiciárias de
maior movimento forense, o prazo para a instalação dos Centros será de 4 (quatro)
meses a contar do início de vigência desta Resolução.
§ 4º Nas demais Comarcas, Subseções e Regiões Judiciárias, o prazo para a
instalação dos Centros será de 12 (doze) meses a contar do início de vigência deste
ato.
§ 5º Os Tribunais poderão, excepcionalmente, estender os serviços do Centro a
unidades ou órgãos situados em outros prédios, desde que próximos daqueles
referidos no § 2º, podendo, ainda, instalar Centros nos chamados Foros Regionais,
nos quais funcionem dois ou mais Juízos, Juizados ou Varas, observada a
organização judiciária local.
Art. 9º Os Centros contarão com um juiz coordenador e, se necessário, com um
adjunto, aos quais caberá a sua administração, bem como a supervisão do serviço de
conciliadores e mediadores. Os magistrados serão designados pelo Presidente de
cada Tribunal dentre aqueles que realizaram treinamento segundo o modelo
estabelecido pelo CNJ, conforme Anexo I desta Resolução.
§ 1º Caso o Centro atenda a grande número de Juízos, Juizados ou Varas, o
respectivo juiz coordenador poderá ficar designado exclusivamente para sua
administração.
217
§ 2º Os Tribunais deverão assegurar que nos Centros atuem servidores com
dedicação exclusiva, todos capacitados em métodos consensuais de solução de
conflitos e, pelo menos, um deles capacitado também para a triagem e
encaminhamento
adequado
de
casos.
§ 3º O treinamento dos servidores referidos no parágrafo anterior deverá observar as
diretrizes estabelecidas pelo CNJ conforme Anexo I desta Resolução.
Art. 10 Cada unidade dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania
deverá obrigatoriamente abranger setor de solução de conflitos pré-processual, setor
de solução de conflitos processual e setor de cidadania, facultativa a adoção pelos
Tribunais
do
procedimento
sugerido
no
Anexo
II
desta
Resolução.
Art. 11 Nos Centros poderão atuar membros do Ministério Público, defensores
públicos, procuradores e/ou advogados.
Seção III
Dos Conciliadores e Mediadores
Art. 12 Nos Centros, bem como em todos os demais órgãos judiciários nos quais se
realizem sessões de conciliação e mediação, somente serão admitidos mediadores e
conciliadores capacitados na forma deste ato (Anexo I), cabendo aos Tribunais, antes
de sua instalação, realizar o curso de capacitação, podendo fazê-lo por meio de
parcerias.
§ 1º Os Tribunais que já realizaram a capacitação referida no caput poderão dispensar
os atuais mediadores e conciliadores da exigência do certificado de conclusão do
curso de capacitação, mas deverão disponibilizar cursos de treinamento e
aperfeiçoamento, na forma do Anexo I, como condição prévia de atuação nos Centros.
§ 2º Todos os conciliadores, mediadores e outros especialistas em métodos
consensuais de solução de conflitos deverão submeter-se a reciclagem permanente e
à
avaliação
do
usuário.
§ 3º Os cursos de capacitação, treinamento e aperfeiçoamento de mediadores e
conciliadores deverão observar o conteúdo programático e carga horária mínimos
estabelecidos pelo CNJ (Anexo 1) e deverão ser seguidos necessariamente de estágio
supervisionado.
§ 4º Os mediadores, conciliadores e demais facilitadores do entendimento entre as
partes ficarão sujeitos ao código de ética estabelecido pelo Conselho (Anexo III).
218
Seção IV
Dos Dados Estatísticos
Art. 13 Os Tribunais deverão criar e manter banco de dados sobre as atividades de
cada
Centro,
com
as
informações
constantes
do
Anexo
IV.
Art. 14 Caberá ao CNJ compilar informações sobre os serviços públicos de solução
consensual das controvérsias existentes no país e sobre o desempenho de cada um
deles, por meio do DPJ, mantendo permanentemente atualizado o banco de dados.
Capítulo IV
DO PORTAL DA CONCILIAÇÃO
Art. 15 Fica criado o Portal da Conciliação, a ser disponibilizado no sítio do CNJ na
rede mundial de computadores, com as seguintes funcionalidades, entre outras:
I – publicação das diretrizes da capacitação de conciliadores e mediadores e de seu
código de ética;
II – relatório gerencial do programa, por Tribunal, detalhado por unidade judicial e por
Centro, com base nas informações referidas no Anexo IV;
III – compartilhamento de boas práticas, projetos, ações, artigos, pesquisas e outros
estudos;
IV – fórum permanente de discussão, facultada a participação da sociedade civil;
V – divulgação de notícias relacionadas ao tema;
VI – relatórios de atividades da “Semana da Conciliação”.
Parágrafo único. A implementação do Portal será gradativa, observadas as
possibilidades técnicas, sob a responsabilidade do CNJ.
Disposições Finais
Art. 16 O disposto na presente Resolução não prejudica a continuidade de programas
similares já em funcionamento, cabendo aos Tribunais, se necessário, adaptá-los aos
termos deste ato.
Art. 17 Compete à Presidência do Conselho Nacional de Justiça, com o apoio da
Comissão de Acesso ao Sistema de Justiça e Responsabilidade Social, coordenar as
atividades da Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de
interesses, cabendo-lhe instituir, regulamentar e presidir o Comitê Gestor da
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Conciliação, que será responsável pela implementação e acompanhamento das
medidas previstas neste ato.
Art. 18 Os Anexos integram esta Resolução e possuem caráter vinculante, à exceção
do Anexo II, que contém mera recomendação.
Art. 19 Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Ministro Cezar Peluso
Presidente
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