editorial Ações judiciais impetradas para obtenção de medicamentos e tratamentos especiais: a judicialização da saúde Lucimar R. Coser Cannon Prover o acesso universal aos serviços, medicamentos e a outros insumos e produtos de saúde é um desafio para a garantia plena do direito à saúde. O Brasil reconhece que a promoção, a proteção e a recuperação da saúde é um direito fundamental, que deve ser assegurado pelo Estado por meio de um conjunto de políticas e ações governamentais que dão sustentação ao Sistema Único de Saúde – SUS. Os usuários dos serviços públicos de saúde recorrem à Justiça quando julgam que seus direitos foram violados, deixando claro um descompasso entre a demanda, a oferta de atenção à saúde e as expectativas dos cidadãos em face da universalidade do SUS. O mesmo fenômeno ocorre em países com sistemas públicos universais de saúde, os quais vêm observando um aumento de demandas judiciais para viabilizar o acesso a procedimentos médicos, medicamentos ou outros insumos, de forma oportuna e segura. O processo, conhecido como judicialização da saúde, baseia-se em prescrições médicas individuais, na condição econômica desvantajosa dos pacientes e ou na urgência e nos riscos descritos em pareceres médicos. O processo de judicialização tem raízes na burocracia dos sistemas de saúde, na debilidade da oferta de prestação de serviços e na incorporação lenta de novas tecnologias, e pode aumentar os gastos do Estado com a compra urgente de medicamentos, exames, procedimentos e outros insumos de saúde. Os altos custos estão relacionados com a perda da economia de escala, pois compras individualizadas e urgentes geralmente são mais caras. O grande volume de ações judiciais levanta discussões sobre o direito individual versus direito Lucimar R. Coser Cannon – médica, mestre, doutora, titular da Academia de Medicina de Brasília coletivo e sobre o comprometimento do orçamento dos sistemas públicos e universais de saúde. A ação do Judiciário pode alertar o gestor público sobre as dificuldades vivenciadas pela população no acesso aos bens e serviços de saúde. Constitui, também, um canal de reivindicações e de atuação legítima dos usuários dos serviços públicos de saúde em busca de seus direitos. Por isso, a judicialização tem sido foco de uma significativa discussão acadêmica, jurídica, sanitária e legislativa. Estudos mostram que existem similaridades entre processos de judicialização, principalmente em suas causas, sua natureza e suas repetições. Os pacientes recorrem à Justiça para receberem medicamentos, outros insumos de saúde e outros produtos, serem submetidos a tratamentos especializados e realizarem exames ou procedimentos, que não estão disponíveis na rede pública. Muitas vezes o paciente não possui a documentação exigida, apresenta prescrição em desacordo com os critérios de dispensação, vive uma longa espera até o início do tratamento requerido e sofre com a imbricada burocracia da via administrativa. Tudo isso cria espaço para a judicialização. As ações judiciais para acesso aos medicamentos são as mais frequentes e, em grande parte, são devidas ao desabastecimento do sistema público de saúde e à falta de atualização dos protocolos de assistência farmacêutica e de ampla divulgação destes às áreas clínicas específicas. Vários princípios Brasília Med 2012;49(3):147-149 • 147 editorial ativos podem constar de uma única ação judicial. O medicamento demandado pode estar listado ou não na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, ser de dispensação excepcional ou produzido exclusivamente no exterior. A judicialização também faz parte do cotidiano do SUS no Distrito Federal, pois a Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF) é constantemente demandada a dispensar medicamentos, viabilizar exames, produtos, insumos, procedimentos e tratamentos médicos específicos. Em 2010, a SES-DF criou um grupo de trabalho para analisar o processo de judicialização, que revelou que a instituição desconhecia o volume de ações judiciais recebidas e as categorias de demandas existentes. Faltava uma metodologia para o controle do recebimento, o cumprimento das ações e as respostas ao Judiciário. Assim, a falta de um fluxo para facilitar o acompanhamento das demandas judiciais resultava em uma ausência de memória institucional do processo. Havia desconhecimento e, até mesmo, um ressentimento relacionado com a ação do Judiciário, que apontava para a necessidade de sensibilização interna sobre a importância do atendimento das demandas judiciais. Com a reestruturação da Secretaria de Saúde, em dezembro de 2011, foi criado o Núcleo de Judicialização (NJUD), que possibilitou desenvolver um trabalho de forma mais organizada, dar mais celeridade às respostas e apresentar eficácia no atendimento das demandas. Hoje, o NJUD é a porta de entrada de todas as ações judiciais na SES-DF. Possui a memória da judicialização e, entre seus atributos, estão a análise dos processos e resultados; o atendimento da demanda espontânea do público; o acompanhamento de todos os processos para reduzir o tempo de cumprimento; o fornecimento de subsídios à Procuradoria do Meio Ambiente e Imobiliário (Promai) e à Procuradoria Administrativa (Procad) do Governo do Distrito Federal; a prestação de informações ao Poder Judiciário, ao Ministério Público e às Defensorias Públicas do DF e da União; além da articulação com todas as áreas e unidades da SES-DF. 148 • Brasília Med 2012;49(3):147-149 Em 2011, a maioria das ações recebidas pelo NJUD foi relativa ao acesso a medicamentos, que foram seguidas pelas demandas de tratamentos radioterápicos e ou quimioterápicos. A ausência de uma rede completa de serviços especializados na atenção aos usuários de drogas produziu uma demanda importante de internação psiquiátrica. O lançamento do Programa de Atendimento às Demandas Judiciais – PADJUD conferiu maior celeridade ao processo de atendimento às ações judiciais. O PADJUD recebe um orçamento bimestral de 150 mil reais para a compra de medicamentos, insumos e serviços, que é realizada de acordo com a urgência e as necessidades do paciente. Cada ação judicial pode demandar uma série de reivindicações que devem ser atendidas segundo a legislação para compras no setor público. O atual Governo do DF se esforça para viabilizar o cumprimento das ações judiciais; no entanto, existem fatores que interferem e até inviabilizam seu atendimento, como os prazos exíguos para o cumprimento, considerando-se o processo de licitação, a documentação exigida do fornecedor e outros tantos fatores. As demandas de exames laboratoriais ou de diagnóstico por imagem são, em sua maioria, daqueles que não são oferecidos pelo SUS-DF. A sensação resultante é de que existe um atraso ou retrocesso tecnológico na rede, mas até na vida privada é difícil o acompanhamento pari passu dos avanços na área de tecnologia. A evolução rápida da tecnologia versus sua alocação é um constante desafio aos sistemas de saúde, devido às dificuldades de financiamento, pessoal capacitado e manutenção. Concluindo-se, significativos progressos foram observados no cumprimento das ações judiciais de saúde no DF, tais como centralização e controle do processo, celeridade na defesa e resposta ao juízo, disponibilidade de dados para a tomada de decisão, atualização e elaboração de protocolos terapêuticos, contato direto com a Defensoria Pública, Ministério e Juízes das Varas de Fazenda Pública, e a criação do Comitê Executivo Distrital de Saúde do Tribunal de Justiça do DF e Territórios. Lucimar R. Coser Canno • A judicialização da saúde A judicialização evidencia debilidades dos sistemas públicos de saúde, tanto no acesso e na incorporação de novas tecnologias quanto nos processos de gestão. O dilema entre as demandas individuais e a garantia do acesso coletivo à saúde está posto, tendo em vista o que prescreve a política de saúde pública. Maior aproximação entre o Judiciário e a comunidade de saúde é imprescindível para que se estabeleçam diálogos e se unam conhecimentos e forças para garantir o direito à saúde. Os Comitês Executivos Distritais de Saúde, em que defensores, promotores, juízes, instituições afins, gestores estaduais e municipais fazem uma reflexão intensa em defesa da saúde da população, constituem a atual e melhor opção para reduzir e resolver possíveis conflitos entre o setor da saúde e os operadores do Direito. Brasília Med 2012;49(3):147-149 • 149