JUSTIÇA E DIREITO NATURAL O jusnaturalismo é uma corrente jurisfilosófica a qual encontra profunda relação com a concepção de direito justo. O direito natural, nas lições de Noberto Bobbio, corresponderia a uma exigência perene, eterna ou imutável de um direito justo, representada por um valor transcendental ou metafísico de justiça. Enquanto o direito positivo corresponderia ao fenômeno jurídico empiricamente verificável, tal como ele se expressa através das fontes de direito, especialmente, aquelas de origem estatal. Este respeitável pensador professa ainda que, na visão jusnaturalista, o direito natural é considerado como algo a priori e superior ao direito positivo. O direito positivo, portanto, deveria, conforme a doutrina jusnaturalista, adequar-se aos parâmetros imutáveis e eternos de justiça. O direito natural enquanto representativo da justiça serviria como referencial valorativo (o direito positivo deve ser justo) e ontológico (o direito positivo injusto deixa de apresentar juridicidade), sob pena de a ordem jurídica identificar-se com a força ou o mero arbítrio. Neste sentido, o direito vale caso seja justo e, pois, legítimo, daí resultando a subordinação da validade à legitimidade da ordem jurídica. As diversas correntes acerca do direito natural e da justiça ao longo da história, ainda que apresentem os fundamentos comuns acima explicitados, orientam-se por diferentes sistemas de pensamento. O jusnaturalismo, portanto, aparece nos seguintes períodos históricos: jusnaturalismo clássico, que se subdivide em jusnaturalismo cosmológico, vigente na Antigüidade clássica e jusnaturalismo teológico, surgido na Idade Média; jusnaturalismo racionalista, surgido no seio das revoluções liberais burgueses do século XVII e XVIII; e o jusnaturalismo contemporâneo. Nos primórdios da história encontram-se registros de sentimento de justiça e de um direito acima do direito humano. Sófocles, na antiga Grécia, por intermédio de sua personagem teatral Antígona, invoca leis divinas eternas para justificar a desobediência à ordem real. No oriente, discípulos de Buda criticando o regime de castas, anunciaram a existência de uma “igualdade da natureza humana”. Confúcio, na China, propunha um governo de homens justos. Entre os hebreus, o Decálogo de Moisés apresenta regras baseadas numa ordem natural das coisas. No denominado período cosmológico grego (anterior ao século VI a.c) cogitava-se de uma justiça natural, oriunda da ordem cósmica, de modo que as noções de natureza, direito e justiça eram indissociáveis. Os sofistas responsáveis pelo que pode ser considerado uma reviravolta copérnica no pensamento da época. Utilizando-se de suas habilidades retóricas, marcaram a passagem do período divino e cosmológico para o natural antropológico. Com os Sofistas, evolui a noção de direito natural, que deixa de se assentar em origem divina ou cósmica, para um direito natural baseado no homem. Desmitificaram o caráter divino do direito grego. Às leis decretadas pelo governante (nomos), estabeleceram o antagonismo com as leis da natureza (phýsis), sinalizando que a diferença entre as normas convencionais e as naturais é que aquelas se identificam com os interesses do grupo mais forte. Partiam da injustiça essencial das leis (positivas), que tem sempre por fundamento o interesse daqueles que as elaboram. Os sofistas combateram a injustiça da economia escravista e desigualdade entre helenos e bárbaros. Diziam que os deuses nos fizeram livres e a ninguém escravo e que a separação dos indivíduos é pura convenção dos homens. Os sofistas implantaram a discussão sobre o problema do antagonismo entre o justo por lei e o justo por natureza. O que é justo segundo a lei, é justo por natureza? Interrogavam se a justiça tinha ou não um fundamento natural. Enfatizaram a contraposição entre a natureza e a lei, em que se baseiam o direito natural e o positivo. Com preocupação antropocêntrica, Sócrates sustentava que os costumes da cidade, assim como o direito positivado eram expressões de uma sabedoria divina, a qual seria nascedouro de todo o direito. Considerava a polis grega e as instituições sagradas, sobrepondo-se em hierarquia ao cidadão. Pregava uma obediência inarredável às leis e às decisões da polis, identificando a justiça com a lei. Sócrates conheceu leis de duas naturezas. A primeira delas teria origem divina, estando longe, portanto, da vontade humana aspectos como a sua alteração e o seu cumprimento; ao homem, nesses casos, só caberia seguir o que determinava a natureza, pois esta teria como origem o desejo dos deuses. Pensamento bastante corrente à época, essa idéia é matriz do direito natural. A outra espécie seriam as leis humanas, as quais deveriam ser baseadas nas leis divinas e, igualmente, não deveriam ser passíveis de discussão quanto à aplicação. Ainda que fossem inferiores às leis divinas, as leis humanas, para Sócrates, não deveriam ser desrespeitadas. E, ainda que uma lei seja injusta, é dever do cidadão respeitá-la, porque o simples fato de ela ter emanado da vontade coletiva a dota de uma obrigatoriedade incondicional. Platão identifica a justiça com o Bem e com o conhecimento verdadeiro. Não aceitando que a justiça possa estar ao sabor das paixões humanas, Platão cria uma metafísica para mostrar o que é o Bem. Esta metafísica se apóia na distinção em mundo sensível e mundo das idéias. O mundo sensível é um mundo de sombras, de ilusão. Assim, o conhecimento verdadeiro não poderia ser acessível por este mundo de sombras. O mundo que está em um plano superior ao mundo sensível é o mundo das idéias. O mito da Caverna expõe a doutrina metafísica de Platão sobre a existência desses dois mundos. O conhecimento do Bem e da Justiça só é possível para aqueles que têm contato com o mundo das idéias. Juntamente com o Mito da Caverna há na República o Mito de Er, o qual tem o sentido de reiterar que a prática da justiça será recompensada, e que os injustos sofrerão as conseqüências de seus atos. A justiça é a maior virtude, assim: “A grande virtude proporciona altos prêmios e recompensas, de uma magnitude que ultrapassa a curta duração da vida humana”. Aristóteles, sem fugir muito à linha de pensamento de seus antecessores, defendia em sua “Política” o direito natural dos mais fortes, afirmando que fora a própria natureza que fez os animais fortes e fracos e que a lei civil é mero reflexo dessa realidade já existente. Pretende realizar na justiça, o princípio de igualdade, admitindo este sob as vertentes de justiça distributiva e justiça corretiva. A justiça distributiva seria concernente aos méritos pessoais de cada um, individualmente considerado. A segunda – justiça corretiva – liga-se aos cidadãos em convivência entre si, nos termos dos danos e benesses que possam experimentar em suas relações. Diferencia o justo por natureza (dikation physikón) do justo por convenção ou legal (dikation nomikón), explicando que o primeiro não depende de qualquer positividade, é algo que existe naturalmente, podendo ser realizado das mais variadas formas possíveis. Já o justo legal estabelece que, uma vez positivado um dos comportamentos naturalmente possíveis, com a criação da lei, aquela conduta passa a ser necessária. Epicuro defendeu que as leis da República são carentes de justiça natural, razão pela qual não incentiva a obediência aos seus mandamentos. Propagava o pensamento de que direito e justiça fundam-se nas convenções humanas, na utilidade que proporcionam à vida social. A Escola Estóica admitiu a existência de um Direito Natural, que seria aquele em harmonia com a lógica que governa o universo. Os estóicos correlacionavam a divindade com a natureza, demonstrandose panteístas. Apesar de não terem um pensamento específico sobre a Justiça e a Lei, entendiam que com a instauração de um Estado único, o Direito Natural se concretizaria espontaneamente, independente da existência de leis, pois estas não mais seriam necessárias. O direito natural clássico teológico, que vigeu durante a Idade Média, encontra seu fundamento na Filosofia Cristã. No início, os denominados “cristãos primitivos” debatiam acerca das idéias de Jesus Cristo e seus seguidores, e, por meio delas, questionavam os poderes vigentes, a escravidão e a miséria material, perquirindo acerca da justeza de tais iniqüidades. Contudo, o cristianismo propagado foi o chamado cristianismo triunfante. Este foi se solidificando como a Igreja do Santo Império Romano desde 311 d.c, em que foi reconhecida aos cristãos a liberdade de culto no Edito de Constantino, até o ano de 387 d.c no Edito de Theodósio, onde foi instituída a religião cristã como a religião oficial do império romano. Assim, essa doutrina foi perdendo as suas vestes primitivas e se transmudando em uma ideologia que traria consigo o cerne da cultura medieval: o teocentrismo. Observa-se, ainda, que o direito natural clássico refere-se à lei e não ao direito subjetivo. “O direito natural é dever-ser conforme a lei natural, é concebido como um conjunto de princípios morais, enuncia deveres, os direitos (subjetivos) apenas deles derivam. A lei está em primeiro lugar, ela pré-existe”. (Steudel, 2007, p.46). Os princípios imutáveis e universais do direito natural podiam ser sintetizados na fórmula segundo a qual o bem deve ser feito, daí advindo os deveres dos homens para consigo mesmos, para com os outros homens e para com Deus. A doutrina cristã veio introduzir novas dimensões ao problema da justiça. Tratando-se de uma concepção religiosa de justiça, deve se dizer que a justiça humana é identificada como uma justiça transitória e sujeita ao poder temporal. Para o cristianismo, não é nela que reside necessariamente a verdade, mas na lei de Deus, que age de modo absoluto, eterno e imutável. Ocorreu, assim, uma verdadeira revolução da subjetividade, prevalecendo a atitude ou disposição de ser justo sobre a aspiração de ter uma idéia precisa de justiça. A Filosofia Cristã divide-se nos períodos da Patrística (entre os séculos I e V) e da Escolástica (que vai do século X ao XIV). Nos dois períodos imperou a idéia de direito natural de conteúdo teológico, fundado na inteligência e na vontade divina, as Sagradas Escrituras eram um ponto de partida indiscutível dessa filosofia; e percebeu-se o direito natural como algo que é dado aos homens, um dom desse ser universal e eterno. Santo Agostinho é o principal representante da Patrística. Para ele a lei eterna encontra-se refletida na consciência humana como uma lei natural. E a lei natural serve como referência para a lei humana. Considera, ainda, que a lei eterna é imutável, pois que provêm da idéia divina, mas a lei humana é variável, mutável, conforme as circunstâncias históricas, cabendo ao legislador atuar no cumprimento da lei natural apenas no que diga respeito aos fatos sociais mais relevantes. No que se refere à justiça, Santo Agostinho compartilha da definição de Cícero, segundo a qual a justiça é a tendência da alma de dar a cada um o que é seu. Santo Agostinho afirma que o termo justiça foi cunhado em tempos imemoriais. E adiciona que ali onde não há justiça, não existe sociedade (De civ. Dei, XIX, 21, 1). Sem abandonar inteiramente a filosofia clássica ou as idéias do direito romano sobre a justiça, enraizadas em sua concepção de que a justiça é o hábito da alma ou a virtude pela qual uma pessoa dá a cada um o que lhe é devido, Agostinho acentua sua compreensão das idéias expostas no Novo Testamento e pelos Padres Latinos acerca da justiça identificando a virtude com o amor que é devido a Deus e ao próximo. A idéia filosófica clássica de justiça, que se concebe em termos de justiça distributiva natural, se transforma assim em termos cristãos, expressando-se como dar a Deus e ao próximo o amor que lhes é devido, em virtude do mandamento do amor (De Trinitate VIII, 10). O apogeu da Escolástica deu-se com Santo Tomás de Aquino, o qual admite uma diversidade de leis: a lei divina revelada ao homem, a lei humana, a lei eterna e a lei natural, contudo, não as considera como compartimentos estanques. A lei eterna é a razão oriunda do divino que coordena todo o universo, incluindo o homem. A natural, o reflexo da lei divina existente no homem. Afirma ele a necessidade da complementação desta pelas leis divina e humana, a fim de se conseguir a certeza jurídica e a paz social, bem como facilitar a interpretação dos julgadores. Em seu Tratado da Justiça, parte integrante da “Summa Theologica”, Santo Tomás de Aquino (Apud D’ALVA; SOUZA FILHO, 2002, p.98) discute a divisão entre direito natural e direito positivo da seguinte forma: O direito ou o justo é aquilo que se excuta por outro, segundo uma certa norma de equidade. E algo pode ser adequado ao homem de duas maneiras: a primeira pela natureza da coisa em si mesma; por exemplo, quando alguém entrega algo com a finalidade de obter a outra coisa equivalente, e então chama-se de “direito natural”. A segunda, quando uma coisa é adequada ou equivalente a outra, por um mútuo acordo, ou por um contrato (...). E isto pode acontecer de dois modos: primeiro, (...) quando se firma um contrato entre duas pessoas em privado; e segundo, por lei pública, (...) quando o ordena o governante, que dirige os destinos do povo e o representa. E neste último caso chama-se “direito positivo”. Segundo a doutrina Tomista (DEL VECCHIO, 1964, p. 32), a lei humana deve ser obedecida ainda quando se encontre em contradição com a lei eterna ou a lei natural a fim de que mantenha a ordem. Contudo, esse respeito à lei humana e a manutenção da ordem colocada por Santo Tomás excetuam-se em circunstâncias de arbítrio e tirania, tendo este pensador defendido, inclusive, o direito de resistência como um direito natural. Conforme se aduz dos escritos de Tomás de Aquino acerca da questão do roubo por necessidade: O que é do direito positivo, humano, fica derrogado pelo direito natural e pelo direito divino. E, segundo a ordem natural, instruída pela divina providência, todos os objetos inferiores estão ordenados a auxiliar as necessidades humanas. Portanto, sendo a divisão e a apropriação de coisas objeto do direito humano, nada impede que se socorra a necessidade de um homem mediante tais coisas. Portanto, por direito natural, todas aquelas coisas que sobejam ao rico, estão destinadas para a sustentação do pobre. Por isso Ambrósio no Sermão do Tempo, num. 64: “O pão que tu guardas, é de quem tem fome; o vestido que tu escondes, pertence ao nu; o dinheiro que escondes na terra, é a redenção e libertação do miserável”. (Apud D'ALVA E SOUZA FILHO, 2002, p. 99) Na Suma Teológica, ao tratar da justiça, Tomás de Aquino afirma que a mesma pode ser vista como uma virtude geral, uma vez que, tendo por objeto o bem comum, ordena a este os atos das outras virtudes. Como cabe à lei ordenar para o bem comum, tal justiça é chamada de justiça legal. Por meio dela, o homem se harmoniza com a lei que ordena os atos de todas as virtudes para o bem comum. A filosofia jurídica dos séculos XVII e XVIII é marcada por proposições doutrinárias do jusnaturalismo racionalista e do contratualismo social. Em tal contexto, conforme aponta Antônio Carlos Wolkmer, a interpretação de conceitos como estado da natureza, razão humana e direito natural determinam direções teóricas que moldam a cultura individualista burguesa. A partir do século XVII passa-se a ter uma concepção inovadora de direito natural, que ficou conhecida como Doutrina do Direito Natural Racionalista, que afasta o vínculo teológico e procura o fundamento de validade do direito natural na própria razão humana. É significativa para a compreensão dessa nova visão a célebre afirmação de Hugo Grócio, de que o direito natural existe, mesmo que, por absurdo que seja, admita-se que Deus não existe. Não mais existem as condições que na Idade Média praticamente impunham a fé (religiosa) como base do conhecimento. Já não é da idéia de um Criador supremo que decorre a lei justa ou a ordem justa, mas ela será justa quando e porque ditada pela razão humana. Agora, o homem é o centro do universo. O que preside essa diversa concepção é a influência do racionalismo, entendido por toda idéia que coloque a função da razão, do entendimento de que o ser humano é capaz. As novas concepções jusnaturalistas representam uma profunda ruptura com as idéias jusnaturalistas clássicas. Para tanto, contribuíram, v.g: a desvinculação deste do seu fundamento divino; a concepção empirista da natureza humana; o racionalismo abstrato, a-histórico, axiomático e sistemático; o individualismo, isto é, a divisão do direito em dois sistemas normativos, natural e positivo; a separação entre moral e direito. Entre os novos jusnaturalistas existem distinções sensíveis no modo de ver o homem e a sociedade. O que os reúne sob a denominação comum de Escola do Direito Natural é a idéia de que o direito natural pode ser deduzido apenas da razão. Ainda é a natureza, mas já não entendida como cosmologia metafísica, e sim natureza racional do homem social. Embora a história do Direito Natural Moderno seja uma sucessão de teorias contraditórias, pode-se auferir, consoante Antônio Carlos Wolkmer, alguns princípios gerais próprios do jusnaturalismo como paradigma teórico que vai do século XVI ao XVII, ou seja: a) fundamentação do Direito na natureza humana; b) identificação entre o Direito natural e o Direito da razão; c) existência de direitos naturais inatos, invioláveis e imprescritíveis, que atuam, como princípio de validez do Direito positivo; d) possível construção de um sistema completo de Direito natural, mediante o método axiomático-dedutivo; e) invocação do estado de natureza como suposto racional para explicar a origem do Estado; f) adoção do contrato social como instrumento jurídico destinado a constituir o Estado. Entre os principais pensadores deste período podemos citar: Hugo Grócio, Samuel Pufendorf, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Thomas Hobbes e Immanuel Kant. Autor da obra em três livros De jure belli acpacis (1625), Hugo Grócio investiga e sistematiza os princípios gerais da política, sendo considerado o fundador da moderna Filosofia do Direito. Define o Jusnaturalismo como sendo um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não conforme a própria natureza racional do homem, e a mostrar que tal ato é, em conseqüência disto, vetado ou comandado por Deus, enquanto autor da natureza. A doutrina jusnaturalística de Grócio denota a tentativa de autonomia em relação à Teocracia, presente nas concepções escolásticas do Direito Natural. Propugna que a essência do direito se encontra na natureza humana e na natureza das coisas, inexistindo elemento religioso, sobre-humano e especulativo no processo de formação da ordem jurídica natural. Não há possibilidade de sanção religiosa. O Direito Natural não mudaria seus ditames na hipótese da inexistência de Deus, nem poderia ser modificado por ele. Por meio do método dedutivo, que resulta de um raciocínio, de uma conseqüência lógica, partindo de premissas gerais para se chegar a conclusões particulares, as idéias de Grócio influenciaram bastante na criação do Direito Internacional, principalmente no que concerne às modernas Declarações de Direitos Humanos. Segundo ele, a lei natural que regula a convivência das diversas nações é o Direito das Gentes e esse direito é um fragmento destacado da lei natural. O alemão Samuel Pufendorf, autor das obras Elementa Juris Universalis (1660) e De iure naturae er gentium, buscou conciliar diversas correntes antagônicas. Propôs a existência de um Direito Natural proveniente tanto das convenções humanas quanto dos princípios do direito divino, promovendo um sincretismo entre as idéias escolásticas e o pensamento de Grócio. John Locke, autor de Ensaio sobre o entendimento humano (1690), concebia a existência de estado de natureza inicial, em que predominava a paz (diferentemente da idéia hobbesiana, que sugeria um estado natural de guerra, agindo o homem como lobo do homem – homo homini lupus). Com o surgimento, no entanto, dos conflitos, havia a necessidade da presença de um magistrado para julgar os embates e promover a proteção dos direitos naturais, momento em que se instalaria o estado civil. O estado civil surge, para Locke, eminentemente com o propósito de assegurar a defesa de direitos naturais. A originalidade da obra de Locke está em sua radical defesa dos direitos naturais, que não são inatos, mas de fácil apreensão pela razão e não podem ser desrespeitados pelo “estado civil” que é instituído, exatamente, com o intuito de assegura proteção. A sociedade é, então, apenas o artifício para manteremse os direitos naturais, e não pode corrompê-los, desvirtuá-los ou suprimi-los. Jean-Jacques Rousseau, em seu Du contrat social, apresenta a existência de direitos naturais e direitos civis. Os primeiros são anteriores ao contrato social, predominantes numa fase em que o homem vivia livre de qualquer tipo de opressão humana, de forma bucólica. Já os direitos civis surgem a partir da cessão das liberdades individuais ao Estado, através de um pacto ou convenção social, devendo estar o máximo possível em consonância com os princípios do estado natural. Thomas Hobbes possui como obra de destaque a intitulada Leviatã (1651). Para Hobbes, o estado de natureza humano propicia o amplo uso da liberdade, que passa a ser irrestrito, a ponto de uns lesarem, invadirem, usurparem, prejudicarem aos outros. “Não há o controle racional do homem no estado de natureza nem o estado idílico e bucólico de pleno deleite do estado de natureza tal qual concebido por Rousseau, no século XVIII”. Nesse sentido, ditadura de um é preferível à ditadura de todos, e, instaurado o estado de guerra em condições naturais de convívio, é do estado violento que Hobbes mais procura se afastar, defendendo um modelo segundo o qual o jusnaturalismo corresponde a obedecer às leis civis emanadas do soberano, e a ele se submeter de modo irrestrito, alienando-lhe todos os direitos e liberdades. Immanuel Kant nasceu em Koenisberg em 1724, era o quarto irmão mais velho de uma família de onze filhos. O Direito para Kant “é o conjunto das condições segundo as quais o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos restantes, de harmonia com uma lei universal de liberdade” (DEL VECCHIO, p. 137). O homem deve ser respeitado em sua liberdade, sendo a liberdade o valor supremo que coloca o homem acima do mundo fenomênico. Se o homem fosse apenas fenômeno, seria determinado como tudo quanto à natureza pertence. Essa liberdade só é humana enquanto o homem se determina de acordo com a lei moral, implícita em todo ser humano, entretanto uma vez realizada qualquer ação, pertence esta ao mundo fenomênico e como tal já surge determinada. Para Kant os homens nunca se uniram por contrato e a sociedade é independente das deliberações humanas. “O contrato social de Kant, ao contrário do de Hobbes e Rousseau, não refere fato histórico, mas exprime tão-somente uma idéia racional” (BONAVIDES, 2003, p. 137). O Estado não foi, mas deve ser constituído em harmonia com a idéia do contrato social, sendo este seu fundamento jurídico. O Estado deve proteger o indivíduo contra a violência interna e externa, assegurando-lhe liberdade num círculo de ampla segurança jurídica, devendo se organizar baseado no reconhecimento dos direitos da pessoa como síntese da liberdade humana, sendo, portanto, um Estado liberal. A finalidade do Estado “é tão só a tutela do direito. O Estado deverá assegurar aos cidadãos o gozo dos seus direitos, mas não deve ingerir-se nas atividades nem cuidar dos interesses individuais” (DEL VECCHIO, p. 139). Direitos inatos, estado de natureza e contrato social, conquanto diversamente entendidos pelos vários escritores, são os conceitos característicos do jusnaturalismo moderno. Acham-se de tal modo presentes em todas as doutrinas do direito natural dos séculos XVII e XVIII, que se pode falar (na verdade, impropriamente) de uma "escola do direito natural". Isto permitiu que muitos reservassem a expressão jusnaturalismo para as doutrinas desse período histórico. O ideal jusnaturalista do século XVIII teve enormes resultados políticos, pois foi na doutrina do direito natural que se inspirou, conquanto confluíssem também outros elementos históricos e doutrinários, oriundos, sobretudo da tradição constitucionalista inglesa, a Declaração da Independência dos estados Unidos da América (1776), em que todos os homens são possuidores de direitos inalienáveis, como o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Ademais, é de caráter genuinamente jusnaturalista a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) que constituiu um dos primeiros atos da Revolução Francesa e onde se proclamam igualmente como "direitos naturais", dentre outros, a liberdade, a igualdade e a propriedade. A idéia de um sistema racional e universal de normas (que se harmonizava com as tendências da cultura iluminista, tendente à racionalização e à sistematização de todos os aspectos da realidade e excludente das contribuições da tradição e da história, bem como de tudo aquilo que não parecesse ditado pela razão) se opunha de modo gritante à realidade da vida jurídica daquele tempo. Em virtude disso, houve uma forte necessidade de reformas legislativas que dessem ao direito, principalmente, certeza. O jusnaturalismo, com sua teoria de um direito absoluto e universalmente válido, porque ditado pela razão, era capaz de oferecer as bases doutrinais para uma reforma racional da legislação. Com a promulgação dos códigos, particularmente o do napoleônico, o jusnaturalismo exauria a sua função no momento mesmo em que celebrava o seu triunfo. Transposto o direito racional para o código, não se via nem se admitia outro direito senão este. O recurso a princípios ou normas extrínsecos ao sistema do direito positivo foi considerado ilegítimo. Negou-se até que se pudesse recorrer ao direito natural em caso de lacuna do ordenamento jurídico positivo. Triunfou o princípio característico do positivismo jurídico, ou seja, da posição oposta ao jusnaturalismo, de que, para qualquer caso, se pode sempre encontrar solução dentro do ordenamento jurídico do Estado. O jusnaturalismo veio a entrar, assim, no decorrer do século XIX, em total descrédito. Sobreviveu apenas na sua forma católica, baseada na doutrina das leis de São Tomás de Aquino, mas só no âmbito clerical, com uma finalidade conservadora e muitas vezes reacionária, servindo, sobretudo de instrumento de contestação da legitimidade do Estado liberal e constitucional. O adjetivo jusnaturalista é usado pelos juristas em sentido depreciativo, para indicas conceitos ou argumentos estranhos ao campo da juridicidade, não se entendendo mais por jurídico senão o que concerne ao direito positivo. No Século XX, o Direito natural ressurge como crítica aos sistemas positivistas que haviam reduzido o Direito à normatividade, a exemplo de Hans Kelsen. O autoritarismo lógico kelseniano deu suporte ao nazismo alemão e ao fascismo italiano e encontrou na Rússia revolucionária, um exemplo francamente oposto, mas igualmente autoritário. A superação dessas antinomias dar-se-ia com as contribuições valorativas de Gustav Radbruch, Giorgio Del Vecchio, Recaséns Siches, Helmut Coing e Hanz Wenzel, particularmente nas produções póssegunda metade de século XX. O jusnaturalismo que despontava de novo depois da Segunda Guerra Mundial representava uma reação ao estatismo dos regimes totalitários. Em grande parte, o fenômeno se verificou ainda no âmbito da cultura católica, mas também nos ambientes protestantes alemães e em medida bastante notável no mundo laico, a idéia do direito natural se apresentou de novo e, sobretudo como limite ao poder do Estado. A forma em que hoje o jusnaturalismo parece ainda poder ter vitalidade é aquela em que ele se aproxima das doutrinas sociológicas e "realistas" do direito. Estas doutrinas rejeitam o positivismo jurídico por causa do seu formalismo, ou seja, pelo mesmo defeito que o historicismo romântico e idealista imputava ao jusnaturalismo. O jusnaturalismo tem hoje diante de si uma função, cujos limites abrange, todavia, o problema da relação entre o juiz e a lei e, conseqüentemente, também o problema das relações entre o poder legislativo e o poder judiciário, na medida em que admitir que o juiz possa invocar um "direito natural", além de poder comprometer a certeza do direito, atribui aos órgãos judiciários o poder, em resumo, de criar o direito. Por fim, destacando os estudos contemporâneos acerca do jusnaturalismo no Brasil, podemos apontar Miguel Reale como importante filósofo do período, com seu Tridimensionalismo Concreto, concepção amplamente aceita no cenário jurídico. No Ceará, Paulo Bonavides e Arnaldo Vasconcelos assinalaram importantes contribuições para a doutrina jusnaturalista. O primeiro defende a convergência do Direito Natural com a Filosofia do Direito, no sentido da renovação da concepção do Direito. Consoante o emérito jurista, o Direito evoluiu como hermenêutica, passando da norma-regra para o campo da norma-princípio que incorpora a norma-valor. Para ele, o Direito adquire materialidade em razão do domínio da chamada hermenêutica axiológica e principiológica. Salienta o grande fluxo das idéias jusnaturalistas na renovação contemporânea do Direito, em termos de positividade, já manifestada no Direito Constitucional e na Teoria dos Direitos Fundamentais. Já Arnaldo Vaconcelos contribuiu para aprofundar o debate filosófico em torno do Direito Natural, elaborando a Teoria do Tridimensionalismo Axiológico, de cunho eminentemente ideológica. Salienta o professor Arnaldo que o Direito há de assumir um compromisso com o humanismo e com a democracia, antes de tudo, como uma imposição posta pelo prioritário reconhecimento da dignidade da pessoa humana.