EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO OCIDENTAL Sociedades primitivas se caracterizam pelo que se pode denominar de indiferenciação ética. Quanto ao direito, aqui entendido como espécie do gênero ética, isso se dá em dois pontos: primeiro, ele não se distingue nitidamente das demais espécies ou ordens éticas; quando se distingue, trata-se de conflitos extremados, sobretudo no direito penal, coincidindo com moral e religião. Segundo, não parece haver distinção entre o direito justo (ideal, natural) e o direito posto (positivo), o que já exige um elevado grau de complexidade social. Aí a peculiar evolução do direito no Ocidente, na direção dessas separações, hoje patentes, entre o direito e os demais ordenamentos éticos, de um lado, e entre o direito justo e o direito posto, de outro. Na primeira, com a crescente complexidade social, vão se diferenciando a técnica e a ética e, dentro desta, o direito, a religião, a moral, a política, a etiqueta, os usos sociais. O que aqui interessa mais de perto, contudo, é a segunda separação, aquela entre o direito ideal e universal (natural) e o direito localizado, efetivamente praticado. Depois de um longo período de indistinção, quando o direito positivo é tido como espelho da vontade justa dos deuses, a separação entre as duas ordens jurídicas passa a ser clara e surge a poderosa teoria do direito natural, o jusnaturalismo, que, apesar de todas as diferenças internas ao longo de mais de dois mil anos, guarda duas características comuns: a crença na existência de um ordenamento jurídico além do positivo e a necessidade de submissão da ordem posta a este outro ordenamento. Daí a metáfora “natureza” para este ordenamento suprapositivo, em que pese à extrema discordância entre os jusnaturalistas quanto ao seu teor. Embora não concordem sobre a natureza e o conteúdo dessas super-normas, todo jusnaturalista advoga a existência de normas justas e válidas em si mesmas, acima, superiores a qualquer pacto jurídico-político, a qualquer poder positivado. Nesse começo da cultura ocidental, nada obstante, a consciência da distinção entre o justo e o posto não implica o conhecimento dos critérios distintivos. Uma racionalidade avessa ao acaso não se conforma com o fato de que tantas pessoas reconhecidamente justas sofram tanto as vicissitudes da vida e outras, eticamente más, desfrutem de todas as suas vantagens. Daí o Livro de Jó. Daí a tenebrosa visão de Agostinho: todos estão condenados ao inferno, mas Deus, incompreensivelmente, em sua infinita misericórdia, salvará alguns. Mas é despiciendo tentar entender por que... Pode-se chamar essa fase, neste sentido, de irracionalista. O jusnaturalismo teológico, filosofia do Catolicismo vitorioso, já tem uma lógica, como o nome diz. Mas é uma lógica divina, que necessita da intermediação da Santa Madre Igreja para transformar a Lex Naturalis na Lex Humana. A pessoa será julgada para a eternidade por seus atos neste mundo, mas os critérios não estão ao alcance de qualquer um. Por isso, e também com muita violência contra os recalcitrantes, a extraordinária hegemonia conseguida pela Igreja Católica, a única intérprete oficial do direito natural. Na grande revolução do jusnaturalismo aqui denominado antropológico, a lógica já passa a ser humana, cada anthropos racional pode perceber o direito justo, e aí o problema ético passa a ser como decidir se os seres humanos divergem a respeito. Daí a politização da igualdade, mesmo com todas as suas restrições iniciais (os votos capacitário, censitário, familiar, plural) e o surgimento do próximo passo, aqui denominado jusnaturalismo democrático. Mas note-se que Rousseau, Locke, Hobbes, Hegel e tantos outros recusam o princípio da maioria, buscando instâncias de legitimidade que não se reduziriam ao mero contar de cabeças, pois o direito justo não está necessariamente com a maioria, mas pode ser eventualmente “descoberto” e “conduzido” por um grupo minoritário. Acontece que a vontade geral ou o espírito do povo revelaram-se conceitos metafísicos de pouca utilidade jurídico-política e de impossível determinação conceitual. Estava aberto o caminho para o positivismo, filho indesejado da ética jusnaturalista. O positivismo domina, então, como a teoria do direito mais adequada à democracia. Ele tem pretensões de universalidade, sim, mas seu universalismo é meramente formal, procedimental, ele considera a questão do conteúdo ético uma questão extrajurídica. Pela solução da modernidade democrática para esse dilema, igualitária, o direito passa a ser em primeiro lugar, uma questão de maioria, pois justo não é este ou aquele padrão de conduta, mas sim aquilo que a maioria decide que é justo; e, em segundo lugar, o direito torna-se institucionalizdamente mutável, pois sempre novos conteúdos éticos divergentes podem ser submetidos a novas maiorias. O positivismo retira o problema da legitimidade e da justiça da esfera da ciência do direito e abandona o ideal iluminista de um direito internacional. . É certo que, depois de estatuídas as primeiras regras, como em um poder constituinte originário, os poderes legiferantes derivados devem se submeter aos conteúdos éticos escolhidos. Mas o poder constituinte realmente originário não tem qualquer limite ético, pois nenhuma norma vale acima do pacto jurídico-político. E, depois de ele estabelecer suas bases, a legitimidade jurídica é questão de validade, isto é, a norma justa é aquela fruto de autoridade competente e de rito de elaboração de acordo com o sistema. Em suma: novamente critérios exclusivamente formais. Dessa maneira, se a variabilidade é intrínseca ao direito, a universalização de regras jurídicas só pode ter caráter formal, ficando a cargo de cada Estado, cada povo, cada território a fixação de suas regras. Fácil entender, assim, como o positivismo exegético evolui para o decisionismo. Com a crescente complexidade social e o progressivo dissenso sobre a significação concreta dos textos jurídicos, a objetividade, mesmo formal, da legislação é mais e mais posta em dúvida. O positivismo contemporâneo perde seu caráter cientificista e torna-se cada vez mais casuístico, esvaziando o papel do Legislativo e enfatizando a concretização da norma jurídica por meio do Judiciário e demais partes envolvidas no caso concreto. A lei e mesmo o precedente judicial são vistos como textos, não como normas, são meros dados de entrada para construção da norma diante do caso. O apelo a princípios, máximas ou a sobreprincípios como a proporcionalidade, passa a ser mais uma estratégia para dispor de espaço livre na adaptação do sistema à complexidade dos casos. Uma racionalidade casuística ou mesmo casual é o máximo que se pode esperar. Essas dificuldades para uma racionalização universal tornam-se ainda mais agudas no âmbito do direito internacional, pois, mesmo se fosse possível um acordo sobre um conteúdo ético definido, isso não bastaria a uma efetiva constituição do direito internacional. Como já afirmava Kant (também em Zum ewigen Frieden, de 1795), uma coercitividade internacional, certamente via um tribunal soberano, seria indispensável, pois, como ele coerentemente diz, “Das Recht ist mit der Befugnis zu zwingen verbunden (o direito está ligado à autorização para coagir)7. O direito internacional tem chegado, na melhor das hipóteses, ao princípio de Hugo Grotius pacta sunt servanda, regra máxima esta também meramente formal, pois nada diz sobre o conteúdo ético desse pacto, não diz o que deve e o que não deve ocorrer. Sim, pois a adesão dos Estados nacionais, por definição os sujeitos do direito internacional, é autônoma, enquanto que a adesão dos cidadãos ao direito dogmático nacional é heterônoma. Parece haver uma diferença fundamental de conceitos. Pode-se tomar como ponto de argumentação a tese do “respeito mínimo aos direitos humanos”. Verifica-se que a idéia de direitos humanos fundamentais e inalienáveis, válidos por si mesmos, independentemente e acima do pacto político constituinte da ordem jurídica, que parecia caminhar para uma universalização definitiva nessa“constelação pósnacional”, após a queda do muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, e da União Soviética, em 25 de dezembro de 1991, parece também agora ter sido apressadamente saudada pelos partidários mais otimistas do Estado democrático de direito. O que se vê, como sempre, é que a aplicação extraterritorial das leis penais, por exemplo, só tem ocorrido sobre Estados fracos. Mesmo assim, uma justiça nacional internacionalizada é muito diferente de uma justiça supranacional. Com efeito, após os atentados terroristas nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, o mundo vê estupefato a “lei patriótica”, aprovada naquele país supostamente líder na efetivação dos ideais democráticos, transformar em direito positivo uma série de normas violentadoras dos direitos humanos: mediante meras suspeitas são eliminados direitos à privacidade em todos os níveis, prisões sumárias são permitidas, tribunais de exceção podem ser conduzidos em segredo e até em bases militares e navios de guerra, dentre outras medidas na mesma direção. Não apenas contrário a normas internacionais de proteção ambiental, o governo dos Estados Unidos também é contra o Tribunal Penal Internacional e coerentemente defende aquela lei de proteção a funcionários norteamericanos no exterior (o American Servicemembers Protection Act – ASPA), a qual permite até a invasão militar de qualquer país para recuperar cidadão norte-americano ameaçado de ser trazido perante uma corte internacional. Quem ousará? Mais ainda, outros governos supostamente democráticos, novamente capitaneados pelos Estados Unidos, não apenas apóiam a guerra contra o Iraque, mas também consentem em estabelecer alianças com exemplares adversários dos direitos humanos como, por exemplo, o ditador do Uzbequistão Islam Karimov ou o general golpista paquistanês Pervez Moucharraf. Apenas repetindo a história recente, incluindo a América do Sul. Em suma: na pós-modernidade, na contemporaneidade, o direito dogmático e a democracia positivista tradicionais não têm mais a mesma consistência teórica nem o mesmo grau de eficiência. A crise se manifesta em diversos sentidos, tais como o alto índice de abstinência no voto e a possibilidade de partidos não-democráticos chegarem ao poder e acabarem com os procedimentos democráticos. Daí porque a tese da separação autopoiética entre direito e moral, entre direito e conteúdos éticos, oriunda do positivismo e outrora hegemônica, passa a ser contestada. Os juristas contemporâneos não-positivistas, assim, passam a apelar à necessidade de normas de conteúdo ético definido, que não se refiram apenas a regras procedimentais, ou pelo menos, defendendo regras procedimentais com conteúdo ético, como “todos têm direito de participar” (por serem iguais)10. Na busca por esse conteúdo, pregam a necessidade de valores universais, direitos que teriam caráter intrinsecamente humano, daí estarem acima de qualquer posição de maioria ou regra formal de procedimento, tais como a igualdade irrestrita entre todos os seres humanos, a proibição da discriminação racial ou sexual, o banimento da tortura, a injustiça da pena de morte. Regram diretamente contrárias a essas sempre fizeram e fazem até hoje parte do direito positivo, sempre discriminatório. A teoria universalista contemporânea tenta assim, muito logicamente, reerguer o ideal do direito internacional, até hoje mero ideal.