SOLIDARIEDADE COSMOLÓGICA: EDIFICANDO UMA NOVA RELAÇÃO HOMEMNATUREZA PELO EXERCÍCIO DAS VIRTUDES Rogério Santos Rammê1 Resumo: Na obra Depois da virtude, MacIntyre destaca o caráter inconclusivo dos debates morais contemporâneos, que atinge seu ápice com o emotivismo, o qual, negando a existência de justificativa racional válida sobre a existência de padrões morais objetivos e impessoais, reduz a moralidade à preferência pessoal. Em lugar da concepção emotivista do sujeito, a proposta de MacIntyre é a de que a tradição aristotélica seja reformulada com vistas a tornar inteligíveis e racionais nossas atitudes engajamentos morais e sociais. No campo particular da ética ambiental a obra de Macintyre assume papel determinante. Uma ética ambiental pautada pelas virtudes, à luz da reformulação do pensamento aristotélico proposta por MacIntyre, volta-se ao alcance dos bens internos inerentes a todas as práticas humanas que de algum modo afetem à natureza ou as demais formas de vida, impondo a necessidade de reconexão entre homem e natureza. Essa mudança na forma de interação entre homem e natureza, quando pautada pelas virtudes, permite a identificação das atitudes e disposições de caráter necessárias para o trato correto das questões ambientais. A solidariedade cosmológica, resgatando o exercício das virtudes, torna-se viável e lança-se como alternativa ética para humanidade. Palavras-Chave: Ética ambiental. Solidariedade. Virtudes. MacIntyre. 1. Introdução A sociedade contemporânea baseia-se em um modelo de desenvolvimento econômico que prima pela exploração dos recursos naturais. Tal modelo de desenvolvimento tem se mostrado gerador de comportamentos humanos predatórios, descompromissados com o futuro. Os recursos naturais, base da exploração econômica atual, são utilizados do modo irracional, sem prudência e sem consideração de seu valor intrínseco. 1 Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Não apenas a natureza é vítima da crise ecológica contemporânea, mas também o ser humano. Temas atuais como os da justiça ambiental e do racismo ambiental evidenciam que a atual crise ecológica é também uma crise que atinge as próprias relações humanas em sociedade. Com efeito, parte-se do pressuposto de que essa crise das relações homem-natureza está diretamente relacionada a um desacerto moral que proliferou no debate filosófico, sobretudo a partir do projeto iluminista. A hipótese de trabalho é a de que se faz necessário edificar as bases de uma nova ética ambiental, capaz de reconectar o homem à natureza, guiando-o no melhor caminho das práticas humanas que de qualquer modo afetem os recursos naturais e os demais seres vivos. Para tanto, o referencial teórico que aqui será utilizado é o de Asladair Macintyre, com especial ênfase na obra intitulada Depois da virtude: um estudo em teoria moral, a qual inegavelmente oferece um rico substrato a ser explorado no campo da ética ambiental. 2. Redescobrindo a ética das virtudes à luz do resgate histórico-filosófico de MacIntyre O filósofo Asladair MacIntyre é considerado um dos principais protagonistas do movimento de reabilitação da filosofia prática desencadeado nas últimas décadas do século passado. É também um crítico radical do projeto iluminista moderno e defensor da ética clássica das virtudes. Sua obra se caracteriza pelo acento no caráter sócio-histórico dos conceitos morais. Segundo MacIntyre, no mundo real que habitamos, a linguagem da moralidade está em crise, ou, como prefere o autor, em grave desordem. Isso porque a linguagem moral tornou-se uma coleção incoerente de fragmentos desordenados, partes às quais faltam os contextos de onde derivam seus significados. Na opinião de MacIntyre, a linguagem moral contemporânea, na verdade, reflete apenas “simulacros da moralidade”, porquanto a humanidade, ao longo dos séculos, perdeu a “compreensão tanto teórica quanto prática da moralidade”.2 MacIntyre ressalta o caráter inconcluso dos debates morais contemporâneos. Assinala que nossa cultura é marcada por discordâncias morais profundas que dão ensejo a debates intermináveis. A característica 2 MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. Bauru, SP: EDUSC, 2001, p. 15. mais marcante da linguagem moral contemporânea é ser muito utilizada para expressar discordâncias. Nas palavras do autor, “parece que não existe meio racional de garantir acordo moral em nossa cultura.”3 Na obra Depois da virtude, o caráter inconclusivo dos debates morais contemporâneos é ilustrado por MacIntyre em exemplos específicos como: justiça das guerras, direito ao aborto e natureza da liberdade, temas que evidenciam as discordâncias morais contemporâneas.4 Para MacIntyre esse desacerto moral decorre da absoluta incomensurabilidade conceitual dos argumentos adversários, já que os debates morais contemporâneos partem de premissas tão distintas que inviabilizam uma equação racional. Ainda, as discussões morais da atualidade travestem-se de argumentações racionais impessoais, entretanto, na verdade, apenas refletem choques de vontades antagônicas, cada uma delas determinada por opções arbitrárias próprias. Mas a principal causa identificada por MacIntyre para o desacerto moral da atualidade decorre da grande diversidade de origens históricas dos argumentos que nutrem o debate moral contemporâneo.5 O resgate histórico-filosófico realizado por MacIntyre no campo da filosofia moral fornece substrato teórico que conduz à percepção de quão amplas e heterogêneas são as fontes morais das quais a humanidade é herdeira. Percebe-se que a desordem moral identificada pelo autor decorre do fato de que muitos conceitos que dão forma aos discursos morais contemporâneos se originaram em contextos diversos dos atuais. Portanto, da forma como o debate é realizado nos tempos atuais, praticamente inexiste uma possibilidade de se chegar a uma conclusão racional. É justamente tal constatação que conduz MacIntyre a resolver esse paradoxo por meio de um resgate histórico dos significados esquecidos dos conceitos que são utilizados no debate moral contemporâneo.6 Para comprovar sua percepção sobre o desacerto moral da atualidade MacIntyre direciona sua crítica ao emotivismo, doutrina segundo a qual “todos os juízos valorativos e, mais especificamente, todos os juízos morais não são mais que expressões de preferência, expressões de sentimento ou atitudes”.7 O emotivismo nega a existência de justificativa racional válida sobre a existência de padrões morais objetivos e impessoais; afirma que toda tentativa de oferecer justificativa racional para uma moralidade objetiva fracassou; enfim, reduz a moralidade à preferência pessoal. 3 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 21. 4 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 22-23. 5 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 26-28. 6 OLIVEIRA, Isabel Ribeiro de. Notas sobre dois livros de MacIntyre. In: Revista Luanova, nº 64, 2005, p. 119. 7 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 30. MacIntyre observa que o emotivismo encontrou forte resistência na filosofia moral analítica, para a qual o raciocínio moral existe. Contudo, como os próprios filósofos morais analíticos, que compartilham do mesmo método, não chegam a um acordo sobre os princípios sobre os quais os agentes morais racionais devem concordar a filosofia moral analítica não se mostra capaz de evitar o emotivismo.8 O emotivismo trata o outro como um meio para o próprio fim. O outro jamais é o fim. Daí a crítica feroz de MacIntyre para quem a leitura das relações sociais pelo emotivismo é a de uma arena para o embate entre vontades emocionadas, onde cada uma apresenta seu próprio conjunto de atitudes e preferências (uma arena para sua satisfação). O emotivismo, portanto, é descrito por MacIntyre como o reflexo da expressão de um universo moral decadente que reduz a moralidade à preferência individual, compromete o discurso ético pelas distintas emoções em jogo, fazendo com que todas as preferências possam ser consideradas igualmente válidas ou igualmente arbitrárias.9 Numa arena de emoções como a que se constrói pelo emotivismo, inviável cogitar de um acerto moral. Na era do emotivismo, qualquer pessoa se torna um agente moral e o agente emotivista moderno, não encontra limites para aquilo que possa julgar, porquanto tais limites só poderiam provir de critérios racionais de avaliação e lhe faltam tais critérios. MacIntyre refere que o agente emotivista ao alcançar a soberia em seu próprio domínio, perdeu os limites tradicionais proporcionados por uma identidade social e uma visão humana como ordenada a um determinado fim. O eu emotivista descrito por MacIntyre transita entre o “domínio do organizacional”, em um mundo no qual os fins são encarados como fatos consumados que não estão disponíveis de qualquer análise racional, e o “domínio do pessoal” em que se opera o debate de valores sem solução racional interiorizada pela relação do eu individual com os papeis e personagens sociais. O eu emotivista, portanto, se consolida num mundo regido por um “acordo cultural” no qual só existem duas formas de vida social possíveis: aquela na qual as opções livres e arbitrárias dos indivíduos são soberanas e aquela na qual a burocracia é soberana, limitando as opções livres e arbitrárias dos indivíduos.10 A tese de MacIntyre é, portanto, delimitada: a moralidade não é mais o que era; o emotivismo incorporou-se a nossa cultura; o que antes era a moralidade praticamente desapareceu e isso marca uma degeneração cultural grave; e o deslocamento da moralidade tem raízes na história da filosofia. 8 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 47. 9 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 55. 10 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 48. O resgate histórico-filosófico contido na obra de MacIntyre comprova sua tese, e a resposta principal encontrada pelo autor é a de que a principal causa para o surgimento do emotivismo contemporâneo foi o abandono da tradição aristotélica das virtudes pelos filósofos, sobretudo àqueles ligados à tradição do projeto iluminista.11 Desta forma, MacIntyre retrata que o projeto iluminista de justificar a moralidade estava fadado ao fracasso, devido a uma discrepância inerradicável entre o seu conceito comum de normas e preceitos morais, por um lado, e o que tinham em comum em seu conceito de natureza humana, por outro lado. Embora todos integrantes do projeto concordassem quanto ao caráter da moralidade e quanto à necessidade de uma justificativa racional da moralidade, não concordavam no conceito de natureza humana.12 Com efeito, MacIntyre busca explicação dessa discordância na história da filosofia, a partir de Aristóteles. Segundo o autor, a modernidade herdou, sobretudo da obra aristotélica, os fragmentos de um esquema conceitual que originalmente consistia em três elementos: a natureza humana tal como é, em estado bruto, movida por desejos e paixões ainda não instruídos; a natureza humana tal como poderia ser, se o indivíduo humano realizasse sua essência ou seu verdadeiro fim; e um conjunto de preceitos éticos que possibilitam a passagem de um estado a outro da natureza humana.13 MacIntyre destaca que para Aristóteles, a vida boa é a vida de acordo com a virtude, esta entendida a partir de uma concepção teleológica do homem, ou seja, uma natureza específica que determina seus fins e metas apropriados (conceito funcional de homem). Na ótica de Aristóteles, virtudes são excelências do caráter que permitem aos indivíduos visarem seu fim, sendo elas também uma parte essencial na realização desse fim visado. Desta forma MacIntyre ressalta que dentro da tradição aristotélica pode-se dizer que as declarações morais são factuais, pois ligadas ao fim visado. E justamente por serem factuais que as afirmações morais, segundo a filosofia aristotélica, podem ser reputadas como verdadeiras ou falsas.14 11 Como Diderot, Hume, Kant e Kirkegaard. MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 96. 12 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 96. 13 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 100. 14 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 111. Com o iluminismo, porém, se deu o rompimento com a tradição clássica. Houve assim, a partir de então, uma total negação da existência de uma função ou finalidade humana essencial (telos) que transcendesse a escolha individual. O homem passou a ser visto como indivíduo e deixou de ser um conceito funcional.15 Desaparecendo da moralidade a idéia de funções ou finalidades humanas essenciais, não mais foi possível tratar os juízos morais como declarações factuais. Segundo MacIntyre, o fracasso do projeto iluminista, portanto, reside no fato de que sem o telos, os juízos morais se tornaram meros imperativos, não suscetíveis a verdade ou falsidade. Eis a razão do desacerto moral da modernidade. Segundo MacIntyre é fácil perceber as consequências do projeto iluminista e desse rompimento com a ética aristotélica: liberto da teleologia, o agente moral individual passou a se ver e ser visto pelos filósofos morais como soberano em sua autoridade moral; surgiu então a necessidade de criar um novo status categórico que tornasse racional as regras morais assumidas. Diante dessa nova visão no campo da moralidade, novos projetos morais floresceram, como o utilitarismo de Adam Smith e Jeremy Bentham do final do século XIX, e a filosofia analítica de Gerwirth do século XX. Contudo, MacIntyre ressalta que ambos os projetos fracassaram na sua tentativa de resgatar o agente moral autônomo da situação difícil em que o deixou o projeto iluminista de proporcionar justificativa racional para seus vínculos morais. Inobstante, muitos filósofos morais continuam a falar como se algum desses projetos tivesse tido êxito. Daí a principal característica do discurso moral contemporâneo: a lacuna entre os significados das expressões morais e o modo como são colocadas em uso. A conclusão de que a filosofia moral moderna fracassou na sua proposta de fornecer uma teoria racional secular capaz de substituir de modo convincente as morais tradicionais, coloca-nos, segundo MacIntyre, diante de uma dualidade: Nietzsche ou Aristóteles? A teoria de Nietzsche é colocada como alternativa em razão de sua percepção clara de que todas as tentativas empreendidas pelo pensamento iluminista de justificar racionalmente a moral malograram e que os pretensos apelos à objetividade não eram senão expressões da vontade coletiva. Nietzsche zomba da idéia de fundamentar a moralidade em sentimentos morais íntimos (desejos ou paixões), no imperativo categórico 15 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 110. kantiano e na possibilidade de universalização do discurso moral, descartando o projeto iluminista de descobrir fundamentos racionais para a moralidade. Nitezsche, assim, substitui a razão pela vontade. MacIntyre aponta Nietzsche como o principal filósofo da modernidade, o teórico precursor do emotivismo contemporâneo, e o resultado lógico do fracassso do projeto iluminista. Para MacIntyre: A questão não é a filosofia moral de Nietzsche ser falsa se a de Aristóteles for verdadeira e vice-versa. [...] a filosofia moral de Nietzsche se contrapõe especificamente à de Aristóteles devido ao papel histórico de cada um dos dois.16 A rejeição da tradição moral aristotélica durante os séc. XV e XVII que originou o projeto iluminista de descobrir novos fundamentos racionais seculares para a moralidade. E a falha desse projeto é que fez com que Nietzsche e seus sucesssores existencialistas e emotivistas conseguissem elaborar uma crítica bem sucedida da moralidade anterior.17 MacIntyre, a partir de tais conclusões, indaga: estava certo rejeitar Aristóteles? Reconhecer que não implica no esvaziamento da teoria de Nietzsche, e a torna apenas mais um momento representativo na evolução do pensamento moral. Assim, para MacIntyre o que a conjunção dos argumentos históricofilosóficos revela é que ou se deve dar continuidade às aspirações e ao colapso das diversas versões do projeto iluminista até que só reste o diagnóstico nietzscheano; ou se deve reconhecer que o projeto iluminista não só estava equivocado, mas que jamais deveria ter iniciado. Entretanto, MacIntyre não se omite de uma posição. Na sua concepção, a tradição aristotélica deve ser retomada, porquanto traduz a melhor perspectiva para a compreensão dos erros contidos na posição nietzscheana. Contudo a proposta de MacIntyre é a de que a tradição aristotélica seja reformulada com vistas a tornar inteligíveis e racionais nossas atitudes e engajamentos morais e sociais. Retraçando a história da noção de virtude desde a antiguidade grega, o filósofo escocês destaca que o critério de avaliação moral é constituído pela forma de vida na qual a ação individual está inserida e pelo caráter de seu autor, o qual se forma e se desenvolve num contexto social através da participação em práticas que possuem bens internos, intrínsecos a ela. Diferentemente dos bens externos, que quando conquistados são 16 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 202. 17 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 203. sempre de posse de alguém, gerando vencedores e derrotados, os bens internos são consequência da competição pela excelência. Sua conquista é boa para toda a coletividade que participa de uma certa prática.18 Para alcançar os bens internos é necessária a obediência às regras próprias à prática, que são submetidas a padrões de excelência. Toda prática requer um certo tipo de relacionamento entre os que dela participam. As virtudes são esses bens que servem de referência, gostemos ou não, para definir nosso relacionamento com aquelas pessoas com quem compartilhamos os propósitos e padrões que configuram as práticas. Rejeitar as virtudes impede-nos de alcançar os bens internos às práticas, tornando-as sem sentido, a não ser como um recurso para alcançar bens externos. Para MacIntyre, o amadurecimento moral de uma pessoa se dá pela reflexão sobre o tipo de vida que leva e pela construção de uma narrativa própria em função da qual os atos podem ser julgados como virtudes ou vícios. Em lugar da concepção emotivista do sujeito, MacIntyre antepõe uma concepção narrativa do sujeito em busca do pleno florescimento e uma ética baseada em virtudes que capacitam à realização de um plano de vida, acompanhadas de uma ênfase contínua na importância da tradição.19 Para ser admitido a uma prática social é necessário entrar em relação não apenas com os que dela participam, mas também com sua tradição. É nessa conceituação da atividade humana que MacIntyre introduz a virtude como qualidade adquirível, cuja posse e o exercício tendem a possibilitar a obtenção dos bens internos às práticas. MacIntyre propõe uma reformulação do conceito de indivíduo, capaz de sepultar a idéia liberal de um indivíduo que, independente dos demais, estabelece seus próprios fins e valores, substituindo-o por outro que exerce uma prática que possui bens internos. Entra em cena a importância da narrativa, pois a ação humana deixa de ser vista como um fato isolado, uma história individual, mas como parte de um conjunto de narrativas conectadas. A narrativa da autoria passa a ser a da coautoria. Com esses apontamentos MacIntyre tece uma forte crítica à modernidade liberal e seu foco privilegiado no indivíduo. Para MacIntyre, a idéia central de que cada indivíduo é livre para escolher o bem que lhe agrada perseguir está diretamente vinculada à instituição do Estado moderno e ao desenvolvimento da economia de 18 MACINTYRE. Depois da Virtude, p. 320. 19 Para MacIntyre tradição é o conjunto de práticas formadas e transmitidas através de gerações e que definem o contexto no qual se desenrola a busca individual do bem-viver. mercado, que paulatinamente destruíram as estruturas comunitárias de outrora, portadoras de uma concepção teleológica do ser humano. Com tal crítica, MacIntyre pretende demonstrar que as virtudes não podem ser tratadas separadamente da institucionalidade da vida social. MacIntyre coloca em cheque uma premissa central do pluralismo, qual seja a de que a esfera pública não tem outra razão de ser que não a de preservar as liberdades da esfera privada, só podendo essa liberdade ser limitada quando infringir o direito de todos de exercer essa mesma liberdade. O questionamento de MacIntyre é que numa ordem assim articulada não se consegue estabelecer o princípio de obrigação política. Na opinião do autor: Em qualquer sociedade em que o governo não expresse ou represente a comunidade moral dos cidadãos, mas, alternativamente, um conjunto de arranjos institucionais para impor uma unidade burocrática em uma sociedade que carece de um consenso moral genuíno, a natureza da obrigação política torna-se sistematicamente obscura.20 Pela perspectiva de MacIntyre não apenas as práticas individuais e sociais, mas as práticas políticas passam a ser vistas como práticas que contém bens internos. Percebe-se, pois, que perspectiva de MacIntyre pode contribuir para uma reformulação do discurso moral contemporâneo e das práticas e relações sociais da atualidade, nelas incluída a reconecção homem-natureza, por meio de relações mais justas e solidárias. 3. Uma solidariedade cosmológica a partir do exercício das virtudes? Segundo o filósofo e jurista belga François Ost, a crise ecológica contemporânea trata-se de uma crise de vínculo e de limite. Crise de vínculo porquanto já não conseguimos discernir o que nos liga ao animal, ao que tem vida, à natureza; crise do limite porque igualmente não conseguimos discernir o que deles nos distingue.21 A crise ecológica contemporânea é, pois, fruto da complexidade do mundo atual. É crise de valores, crise ética. Segundo Enrique Leff, “a degradação ambiental se manifesta como sintoma de uma crise de 20 21 MACINTYRE, Asladair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Edições Loyola, 1991, p. 254. OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Tradução de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 9. civilização, marcada pelo modelo de modernidade regido pelo predomínio do desenvolvimento da razão tecnológica sobre a organização da natureza.” 22 Tais constatações confirmam o pressuposto inicial de que a crise ecológica que a humanidade se impôs é fruto de uma crise ética, decorrente do desacerto moral ressaltado por MacIntyre, bem como confirmam a hipótese sugerida acerca da necessidade edificar novas bases de uma ética ambiental capaz de pautar as práticas humanas no cenário social. Nesse particular, a obra de MacIntyre assume um papel determinante. Uma ética ambiental pautada pelas virtudes, à luz da reformulação do pensamento aristotélico proposta por MacIntyre, volta-se, pois, justamente ao alcance dos bens internos inerentes às práticas humanas que digam respeito à natureza e aos demais seres vivos. Com efeito, a proposta de MacIntyre ao ser aplicada no campo da ética ambiental, acarreta a necessidade de uma reconexão entre homem e natureza. Acarreta a busca da justa medida, da harmonia, do equilíbrio e da solidariedade nas práticas humanas porquanto só assim é possível ao homem identificar tais bens internos referidos por MacIntyre. Essa reconexão necessária entre o homem e a natureza perpassa pela mudança da forma como a humanidade interage com a natureza. Essa mudança na forma de interação entre homem e natureza, quando pautada pelas virtudes, permite a identificação das atitudes e disposições de caráter necessárias para o trato correto das questões ambientais.23 Para tanto, Ronald Sandler refere ser necessário extrair do rol das virtudes previstas para as relações inter-humanas, àquelas que sejam aplicáveis ao que não é humano. Assim, virtudes como a compaixão e gratidão, por exemplo, poderiam ser extendidas às relações humanas com animais ou mesmo com a natureza em si. Sendo uma virtude sentir compaixão pelos que sofrem, também se pode tomar por virtude sentir compaixão pelos animais, porquanto eles também podem sofrer. Do mesmo modo, considera-se uma virtude humana agir com gratidão em relação àqueles que de algum modo o beneficiam, logo a gratidão é uma virtude que pode ser extendida à relação homem-natureza, por tudo que a natureza proporciona ao homem.24 22 LEFF, Enrrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: RJ: Vozes, 2009, p. 17. 23 ALMEIDA, Maria Carmen Cavalcanti de. A ética das virtudes e o meio ambiente. In: Revista de Direito Ambiental, vol. 44, 2006, p. 73. 24 SANDLER, Ronald. Introduction: Environmental <www.environmentalphilosophy.org/Sandler.pdf>. Acesso em: 20.06.2011. Virtue Ethics. Disponível em: Também a virtude do cuidado é essencial para que o homem alcance essa reconexão com a natureza e passe a ser capaz de identificar os bens internos que devem ser realizados nas práticas socioambientais contemporâneas. Com efeito, o paradigma da conquista e da exploração da natureza deve ser alterado para o paradigma do cuidado: ao invés de apenas conquistar a Terra, cuidar da Terra. O cuidado acarreta que as práticas ambientais sejam pautadas pela prudência, pela precaução, pela prevenção. Agir com cuidado nas práticas relacionadas com a natureza torna o homem responsável e, sobretudo, solidário. A solidariedade resgata a noção de todo, reintegra o homem ao meio ambiente, como um elemento da cadeia natural. Nesse sentido, merece destaque a lição de Wambert Gomes Di Lorenzo: Etimologicamente, solidariedade vem de solidus, adjetivo que denota a ideia de algo compacto, internamente integrado, coeso e não fluido nem gasoso, bem como aquilo que é sólido, estável e seguro. Ideia complementada pelo substantivo abstrato in solidus que exprime o sentido de participação ou a totalidade, o todo, na expressão de Cícero.25 Di Lorenzo destaca ainda que a solidariedade implica em uma atitude de interesse no sofrimento alheio, bem como um tipo de relação em que a pessoa só se realize na medida em que se empenhe na realização do outro.26 Percebe-se, pois, o quanto o exercício das virtudes tem a contribuir para a reconexão entre homemnatureza. O exercício das virtudes torna o homem solidário para com a natureza. A natureza deixa de ser algo distante ou desconectado do homem. A solidariedade é atitude que provoca, portanto, a reconexão necessária entre homem e natureza e é o exercício das virtudes humanas que conduz a essa atitude humana solidária com o meio natural. Uma ética ambiental pautada pelas virtudes e por uma atitude solidária permite ao homem enxergarse não mais como um ser autônomo e independente da natureza. Como ressalta Luc Ferry, o homem assume 25 DI LORENZO. Wambert Gomes. Teoria do estado de solidariedade: da dignidade da pessoa humana aos seus princípios corolários. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 133. 26 DI LORENZO. Teoria do estado de solidariedade: da dignidade da pessoa humana aos seus princípios corolários, p. 133. o papel daquele que, por ser o produto mais elevado da natureza, decifra, protege e se torna responsável pelas normas e leis que regem sua relação com o meio natural.27 A prática das virtudes nas relações socioambientais faz com que próprio sentido da existência e da vida humana seja redimensionado. A esse respeito a filósofa Teresa Vicente Giménez assevera: Em definitiva, la ampliación de la ética a la naturaleza como síntoma del avance del conocimiento humano, es uma concepción revolucionaria: la ética há ampliado la definición de “vida”, extendiéndola hasta los límites del medio mismo. Em este sentido, la vida es uma existencia continua de la que forma parte toda la naturaleza, por lo que vivir em solidaridad com el mundo natural es alcanzar el bien y el bienestar de la especie humana.28 Com efeito, uma ética ambiental pautada pelas virtudes conduzirá ao surgimento de uma nova dimensão da solidariedade, seja enquanto virtude moral ou mesmo enquanto princípio regulador das relações socioambientais. Uma solidariedade não apenas entre humanos, nem tão somente entre homens e natureza em razão desta ser fonte da sobrevivência humana no planeta, mas sim uma solidariedade pautada pelo reconhecimento da natureza como algo digno de conservação e proteção per se. Semelhante lição é dada por Olinto A. Pegoraro, quando refere existir uma “relação ontológica que exprime a íntima convivência do ser humano com as demais formas de vida e com o mundo circundante”:29 Existe entre todos os seres uma relação estrutural, de órdem ontológica, de tal modo que é impossível a existência de uns sem os demais. A realidade humana é existência-com seus semelhantes humanos, vegetais, animais e com toda a natureza.30 A solidariedade, como ensina Di Lorenzo, “pressupõe desigualdade”, agindo “no espaço da diferença”.31 Cabe ao homem racional, portanto, identificar na exata proporção aquilo que o liga e aquilo que 27 FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Tradução de Rejane Janowitzer. Rio de janeiro: Difel, 2009, p. 160. 28 GIMÉNEZ, Teresa Vicente. El objeto de la ecología y sus implicaciones en el orden ético. In: GIMÉNEZ, Teresa Vicente (Coord.) Justicia ecológica y protección del medio ambiente. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 36. 29 PEGORARO, Olinto A. Ética é Justiça. Petrópolis-RJ: Vozes, 1995, p. 126. 30 PEGORARO. Ética é Justiça, p. 126. 31 DI LORENZO. Teoria do estado de solidariedade: da dignidade da pessoa humana aos seus princípios corolários, p. 132. o distingue da natureza, e, uma vez identificada a diferença, adotar a virtude moral da solidariedade nas práticas sociais que possam acarretar danos à natureza. Desta forma, além de alcançar os bens internos às práticas relativas à natureza, gerando benefícios para a coletividade humana, o homem racional estará caminhando rumo a uma solidariedade cosmológica, pautada pela plena a reconexão homem-natureza e pela certeza de que todas as formas de vida planetárias coexistem no mesmo cosmos e na mesma natureza com uma origem e um destino comuns. 4. Considerações finais A humanidade atravessa um momento histórico em que se acentua um grave desacerto moral. O rompimento com a tradição aristotélica de uma ética pautada pelas virtudes é apontado por MacIntyre como a principal causa desse desacerto moral contemporâneo. O desacerto moral identificado por MacIntyre é percebido muito claramente no âmbito das relações homem-natureza. Muito embora as bases morais que justificam a adoção de modelos jurídicos de proteção ambiental sejam rotineiramente pactuadas em acordos e tratados internacionais sobre proteção do meio ambiente, é inegável que o desacerto moral contemporâneo acaba impedindo que os compromissos assumidos por políticos e governantes sejam efetivamente respeitados, cumpridos e levados a sério, sobretudo quando conflitantes com interesses econômicos. A ética ambiental da grande maioria da humanidade reflete a fragilidade ética que caracteriza o emotivismo, e faz com que todo discurso voltado para uma ética ambiental sucumba ao poder soberano dos mercados, à globalização neoliberal e à exploração predatória da natureza a serviço do capital. Daí o brilhantismo da proposta de MacIntyre, ao demonstrar que o exercício ético das virtudes conduz o homem ao alcance de bens internos às práticas em sociedade, os quais uma vez alcançados contribuem para a coletividade como um todo. Tal conclusão de MacIntyre, fruto de um resgate e de uma reinterpretação da ética aristotélica das virtudes, tem muito a contribuir para o surgimento de uma nova ética ambiental. Isso porque ao pautar às práticas humanas que de qualquer modo afetem à natureza pelo exercício das virtudes, além de alcançar os bens internos de tais práticas, beneficiando o todo coletivo humano, o homem será capaz de perceber o quanto depende da natureza para viver e o quanto deve respeitá-la como algo que ostenta um valor instrínsico, que não pode ser utilizado sem critérios éticos. A solidariedade cosmológica, portanto, resgatando o exercício das virtudes, torna-se viável e lançase como alternativa ética para humanidade. Um rompimento com o desacerto moral contemporâneo, a partir de uma reiterpretação do esquema ético de Aristóteles, objetivando reconectar homem e natureza, por meio do respeito humano à ordem cósmica, ao seu semelhante e à natureza em si. 5. Referências bibliográficas ALMEIDA, Maria Carmen Cavalcanti de. A ética das virtudes e o meio ambiente. In: Revista de Direito Ambiental, vol. 44, 2006. DI LORENZO. Wambert Gomes. Teoria do estado de solidariedade: da dignidade da pessoa humana aos seus princípios corolários. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Tradução de Rejane Janowitzer. Rio de janeiro: Difel, 2009. GIMÉNEZ, Teresa Vicente. El objeto de la ecología y sus implicaciones en el orden ético. In: GIMÉNEZ, Teresa Vicente (Coord.) Justicia ecológica y protección del medio ambiente. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 36. LEFF, Enrrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: RJ: Vozes, 2009. MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. Bauru, SP: EDUSC, 2001. MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual Racionalidade? São Paulo: Edições Loyola, 2ª Ed. 2001. OLIVEIRA, Isabel Ribeiro de. Notas sobre dois livros de MacIntyre. In: Revista Luanova, nº 64, 2005. OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Tradução de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. PEGORARO, Olinto A. Ética é Justiça. Petrópolis-RJ: Vozes, 1995. SANDLER, Ronald. Introduction: Environmental Virtue <www.environmentalphilosophy.org/Sandler.pdf>. Acesso em: 20.06.2011. Ethics. Disponível em: