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Filosofia Unisinos
7 (3):296-301, set/dez 2006
© 2006 by Unisinos
Resenha
MacINTYRE, Alasdair. 1999. Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need
the Virtues. Chicago, Open Court Publishing Company, 172 p.
MacINTYRE, Alasdair. 2001. Animales racionales y dependientes: por qué los seres
humanos necesitamos las virtudes. Trad. Beatriz Martínez de Murguía. Barcelona,
Paidós, 208 p.
1 – Projeto e ponto de partida. O autor pretende neste livro continuar e
também corrigir alguns aspectos de obras anteriores, já que nelas teria suposto
erroneamente que seria possível a ética independente da biologia; além de não ter
estado atento à vulnerabilidade e à incapacidade humanas decorrentes de sua natureza animal, em virtude do que teria deixado de considerar aspectos importantes
do papel das virtudes na vida humana. Além disso, teria subestimado as diferenças
entre Aristóteles e T. de Aquino acerca do reconhecimento da dependência (p. X1).
O ponto de partida adotado é duplo: 1 – A análise do que o homem, em sua
natureza animal, compartilha com membros de outras espécies inteligentes, a algumas das quais, embora carentes de linguagem, julga poder atribuir intenções e
razões para atuar. Em virtude da identidade animal, que é a do ser humano em seu
início e continua sendo depois, ele se encontra numa condição muito similar à dos
animais não-humanos. 2 – A ênfase dada à vulnerabilidade e à incapacidade que
dominam a vida humana, na primeira infância e na velhice, bem como durante o
tempo em que padece de alguma lesão ou enfermidade física ou mental, em conseqüência do que vem a depender dos outros (p. 155).
A partir disso, o autor procura explicitar o que significa florescer para o ser
humano enquanto animal racional vulnerável e dependente; e que qualidades de
caráter são necessárias para entabular relações de reciprocidade, que são relações
de dar e receber. A resposta esboçada é que se requerem as virtudes que o capacitem para emitir juízo prático independente e responsável, bem como reconhecer a
natureza e o grau de dependência em que se encontra com relação aos demais. Por
último, coloca a questão de quais são as formas políticas e sociais necessárias para
alcançar o bem comum dos que participam das pertinentes relações sociais de reciprocidade, necessárias para a aquisição e o exercício das virtudes, em grande parte
regidas e em parte definidas pelas regras da lei natural (p. 155-156).
2 – Identidade animal. 2.1 – Racionalidade humana animal. O autor acentua que a identidade humana é uma identidade animal (p. 99). “Nossos corpos são
corpos animais com identidade e continuidades de corpos animais... [aliás,] não só
temos, mas somos nossos corpos” (p. 6). Invoca T. de Aquino, para quem a alma não
é o ser humano inteiro, e Merleau-Ponty, que sustenta: “eu sou meu corpo” (p. 6).
Afirma que, muitas vezes, esquecemo-nos de nossos corpos e de como “nosso pensamento é o de uma espécie animal” (p. 5). Em verdade, acentua, “a racionalidade
específica dos seres humanos deve ser entendida como racionalidade animal” (p.
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Os algarismos entre parênteses remetem a páginas do original.
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Dependent rational animals: why human beings need the virtues, de Alasdair MacIntyre
11). Embora transcendamos algumas das limitações de outros animais inteligentes,
o que é de crucial importância, “nós nunca nos separamos inteiramente daquilo
que partilhamos com eles” (p. 8). Nosso inteiro comportamento corporal inicial para
com o mundo é originariamente animal. A segunda natureza que formamos culturalmente, com o uso da linguagem, inclui um conjunto de transformações só parciais de nossa primeira natureza animal. Nunca nos tornamos independentes de nossa natureza e herança animal, porém “permanecemos seres animais com identidades animais” (p. 49). Em verdade, há continuidade e semelhanças entre aspectos
das atividades inteligentes de animais não-humanos e a racionalidade prática dos
seres humanos dotados de linguagem (p. 50). O fato de os homens não só terem
linguagem, mas de fazerem dela uso reflexivo, não suprime deles o que compartilham com outras espécies animais, não só quanto à animalidade do corpo, mas
também quanto a formas de vida (p. 58).
2.2 – Animais não-humanos inteligentes. Segundo MacIntyre, têm sido
traçadas linhas obscurantistas entre os animais não-humanos e os humanos (p. 43).
Sustenta que há espécies não-humanas inteligentes às quais se justifica adscrever
crenças, pensamentos, sentimentos, razões para agir, aquisição e posse de conceito
(p. 18). Entre eles os golfinhos, que perseguem bens no seu modo específico. Como
o bem tem a ratio de fim, adscrever-lhes bens leva também a lhes adscrever razões
para fazerem muitas coisas do que fazem. O mesmo vale para outras espécies nãohumanas inteligentes (p. 24-25).
Nesse contexto, MacIntyre critica quem nega aos animais não-humanos vida
mental e pensamentos, como Descartes (p. 32), e os que se posicionam nessa linha,
como Norman Malcon (p. 32) e Donald Davidson (p. 34). A censura mais áspera é
contra Heidegger, segundo o qual a pedra é weltlos; o animal, weltarm; e o ser
humano, weltbildend (Sein und Zeit, § p. 49-50). O animal só poderia comportar-se
(sich benehmen), nunca apreender (vernehmen) algo como algo. Por não ter percepção em sentido fundamental, seria incapaz de atenção (p. 44). Preso ao meio
ambiente, teria experiência empobrecida, sendo incapaz de lógos ou de discurso
(p. 45). O que lhe falta seria a própria capacidade conceitual que torna a linguagem
possível, ou seja, a estrutura “enquanto”, a as-structure, razão por que é incapaz
de captar o mundo como um todo (p. 46). Essa concepção também é recepcionada
por Gadamer (p. 60). Segundo MacIntyre, a interpretação de Heidegger é errônea
(p. 47). Atribui condição única a todos os animais não-humanos. A partir de exemplos de certas espécies, tira conclusões acerca de todas (p. 44). Em conseqüência
disso também omite aspectos cruciais do Dasein, ou da existência humana – o que
é sua segunda falha (p. 48).
Para MacIntyre, há tipos de animais sem as-structure. Outros, porém, são
diferentes: têm percepções que são em parte o resultado de investigação atenta e
finalística. Têm inteligência e intenções, capacidade predicativa e, pois, razões para
formar uma intenção antes que outra. A mudança em suas ações segue de algum
modo a pista da verdade e da falsidade (p. 57-58). Em relação a eles a tese de
Heidegger é problemática.
2.3 – Aristóteles e T. de Aquino e os animais. Aristóteles, o filósofo que
levou mais a sério a animalidade humana, chega a atribuir phrónesis a certos animais não-humanos, em virtude de sua previsão (1141a, p. 26-28). Também para T. de
Aquino, os animais não-humanos são capazes de “julgamento natural”, como o
que exibem “semelhanças com a razão”, partilham uma “prudência natural”. Para
MacIntyre, a predicação por analogia com o julgamento reflexivo humano está
justificada, porque podemos adscrever certas capacidades conceptuais, como habilidades para reconhecer semelhanças e diferenças de espécie, a determinados tipos
de animais não-humanos que ocasionalmente, em algum sentido, têm razões para
agir como fazem (p. 55-56).
3 – Vulnerabilidade e dependência. A vida humana é extremamente vulnerável. Muitas vezes devemos nossa própria sobrevivência aos outros (p. 1). A dependência de outras pessoas resulta evidente desde a primeira infância até a velhice. A
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incapacidade física e mental tem graus, é matéria de mais ou menos; em algum de
seus graus todos nós nos encontramos (p. 73). Dependemos dos demais membros
da comunidade para a consecução, não só do bem comum, mas também de grande
parte dos bens individuais (p. 160). O reconhecimento dessa dependência é “a chave para a independência” (p. 85). Contudo, nem sempre ocorreu na história da
filosofia moral.
3.2 – Crítica à filosofia ocidental. 3.2.1 – De Platão a Moore. A história da
filosofia moral ocidental, de Platão a Moore, e desde então com raras exceções, só
tem feito referências esporádicas à vulnerabilidade e às aflições humanas, bem como
às relações de nossa dependência de outros (p. 1). Desde os gregos, marcadamente
desde Aristóteles, a filosofia foi a do animal racional e político. Pouca importância
se deu ao homem enquanto dependente, exteriorizando pouco ou nada mais que
um corpo biológico. Essa postura equivocada acabou permitindo que o homem se
esquecesse de que sua racionalidade não é independente da animalidade, de que
sua maneira de pensar também corresponde à de uma espécie de animal vulnerável
e dependente.
3.2.2 – Aristóteles e a dependência. Para Aristóteles, os que têm experiência
são mais efetivos do que os dotados de razão, mas são sem experiência. Todavia, nem
na ética nem na política deu peso à experiência daqueles para os quais os fatos da
aflição e da dependência eram mais inegáveis: mulheres, escravos, criados. A falta
desse reconhecimento se deve, ao menos em parte, à mencionada exclusão política
(p. 7). Para o estagirita, os homens varonis diferem das mulheres, não querendo
entristecer os outros, compartilhando com eles seus sofrimentos e perdas. Homem
que age como mulher se inferioriza em sua virtude masculina. O megalopsychos – o
magnânimo, modelo de virtude, não gosta de reconhecer sua necessidade de ajuda
e consolação por parte de outros. Envergonha-se de receber benefícios, pois é sinal
de superioridade outorgar benefícios; e de inferioridade, recebê-los. Por isso, o magnânimo esquece o que recebeu; desagrada-lhe ser lembrado disso, ao passo que
recorda o que deu e lhe agrada que lho lembrem (p. 7 e 127).
MacIntyre tem o magnânimo, segundo essa descrição, em conta de mau caráter, incapaz de reconhecer sua maldade (p. 127). De fato, representa o homem
preso à ilusão da auto-suficiência e da superioridade.
3.2.3 – Adam Smith. Para MacIntyre, Aristóteles antecipou Adam Smith e
muitos outros que introduziram na filosofia moral o ponto de vista dos que se
tomam como superiores em sua auto-suficiência e que, em vista disso, tornam-se
incapazes de reconhecer devidamente a aflição e a dependência (p. 7). Smith observa que durante a prostração da enfermidade e da fadiga da velhice o fascínio da
riqueza e da grandeza, antes enaltecidas pela imaginação como algo de magnífico,
deixa de ser tão impressionante, já que a gente acaba se dando conta de que a
obtenção dessas coisas não exime quem as possui de ansiedade, medo, tristeza,
enfermidade, perigo e morte. Porém, para Smith, indagar mais acerca disso seria
um erro, equivaleria a adotar uma filosofia pessimista, no que fala pela filosofia
moral em geral. Observa ainda que essas ilusões tentadoras são benéficas sob o
ponto de vista econômico, pois despertam e mantêm em movimento a indústria da
humanidade (p. 2).
3.2.4 – Tomás de Aquino e a dependência. T. de Aquino reconheceu francamente a dependência humana, o que aparece numa oração composta por ele, em
que se expressa assim: “Peço a Deus que me conceda a possibilidade de compartilhar, com alegria, o que tenho com aqueles que necessitam; e a de pedir, humildemente, aquilo de que preciso a quem me puder ajudar”. Salta aos olhos que essa
prece contraria as atitudes do magnânimo de Aristóteles (XI). Para o aquinate, o
ato de pedir auxílio quando dele se necessita é tão virtuoso quanto o de prestá-lo.
Desaparece, assim, a relação de superioridade e inferioridade, para dar lugar à
virtude do reconhecimento da dependência. Só a partir disso, aliás, é possível pensar uma moral das virtudes que estenda proteção a uma pessoa com o corpo horrivelmente desfigurado, inflamado, cheio de cicatrizes e purulento, de aspecto horrí-
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vel e repugnante, cuja imagem se apresente como obstáculo para dirigir-se ao outro como ser humano (p. 136).
4 – Florescimento do ser humano. 4.1 – Conceito. Florescimento é conceito
aplicável a membros de diferentes espécies de animais e plantas. Florescer, que
traduz o eu zen, bene vivere, acontece em virtude da posse de determinadas características (p. 64-65). O florescimento do ser humano enquanto animal racional vulnerável e dependente requer qualidades de caráter, ou virtudes, “indispensáveis
para o florescimento humano” (p. 97): as que lhe permitem tornar-se um julgador
(reasoner) prático independente e responsável; e as que lhe possibilitam reconhecer a natureza e o grau de dependência em que se encontra com relação aos
demais (p. 156). Tanto os indivíduos quanto as comunidades só podem florescer de
modo especificamente humano pela aquisição e o exercício das virtudes, o que só
pode acontecer mediante a participação de relações sociais de reciprocidade, que
são relações de dar e de receber, em grande parte regidas e em parte definidas
pelas regras da lei natural (p. 112).
4.2 – Raciocínio prático independente. Um elemento essencial do pleno
florescimento é o exercício do raciocínio prático independente, capaz de avaliar as
razões para agir oferecidas pelos outros (p. 105). Para o adquirir, é preciso fazer da
linguagem amplo leque de usos (p. 77) e contar com a contribuição essencial dos
outros (p. 82). Aliás, o ser humano só é capaz de se tornar e continuar sendo um
julgador prático independente através de suas relações com os demais (156). Aliás,
“não há ponto de partida sem pressuposições” (p. 77). Essa já foi a lição de Aristóteles,
em cuja perspectiva o raciocínio prático é realizado junto com outros, em geral num
conjunto de relações sociais. Em primeiro lugar estão as relações familiares e domésticas, depois as da escola e da aprendizagem, e em seguida as que correspondem à
diversidade de práticas em que participam adultos de cada sociedade e cultura.
Pelo visto, não é possível alcançar o bem de cada um sem buscar o de todos os que
participam dessas relações (p. 108).
4.3 – Relações de reciprocidade. Na vida do homem, como na do golfinho,
há padrões de reciprocidade (p. 82). Estamos localizados em algum ponto particular
de alguma rede dessas relações, desde a concepção até a morte; nela, aquilo que
somos capazes de dar, e o quanto, dependem em parte do que e do quanto recebemos (p. 99). Às vezes, as pessoas que ajudamos são aquelas das quais anteriormente recebemos. Outras vezes, recebemos de um conjunto de pessoas e devemos
dar a outro conjunto. Vê-se que a prestação do devido não é assunto de estrita
reciprocidade. Muita vez, o que recebemos e o que damos sequer são comensuráveis,
como o que os pais nos deram e o que retribuímos a eles (p. 100).
Pelo visto, estamos em débito desde o princípio. Devemos em virtude do que
recebemos (p. 101). O cuidado necessário para fazer de nós julgadores práticos
independentes, para ser eficaz, foi sem condições, independente do resultado, incondicional, para com o ser humano como tal (p. 100, 108). Esse é o tipo de cuidado
que devemos aos outros, v. g., aos que padecem de lesão cerebral grave, aos que
sofreram grave incapacidade de movimento ou são autistas. Devemos fazer do bem
dos outros nosso próprio bem, mas não por cálculo, como se os outros só nos
ajudassem se nós os ajudamos (intercâmbio de ajuda) (p. 108). Temos que dizer:
nessas condições poderíamos estar nós; a desgraça deles poderia ter sido nossa; e a
nossa boa sorte, a deles (p. 100-101). Isso faz com que nossa relação com tais pessoas seja muito diversa da que estabelecemos com animais de outras espécies gravemente incapacitados (p. 101).
4.4 – Virtudes. Segundo MacIntyre, as virtudes ou excelências é que permitem ao ser humano tornar-se um julgador prático independente e participar das
relações de reciprocidade. Uma boa educação deve assinalar o lugar de uma série
de virtudes do reconhecimento da dependência, como equivalente necessário das
virtudes da independência (p. 120). Por isso, às virtudes do dar, temos de acrescentar as do receber, as do reconhecimento da dependência, como a gratidão, inclusive para com aqueles que sofrem alguma incapacidade (p. 162); a cortesia, para com
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aqueles que dão com pouca elegância; a paciência, para com quem não dá o suficiente (p. 127); a justa generosidade (p. 131), sem a qual ninguém alcança seu
próprio bem, pois, ao atuar para aliviar a necessidade do outro, a pessoa contribui
para alcançar seu próprio bem (p. 159); enfim, a veracidade (p. 150).
Para as virtudes do reconhecimento da dependência se requerem as amizades
em que cada um socorre o outro. Necessita-se mais do que aporta Aristóteles, devido
à sua relutância em aceitar o grau em que a amizade pode vincular-se à necessidade
que o ser humano tem de partilhar ao amigo sua dor e vulnerabilidade. Para ele, só
os homens pouco viris, que se comportam como as mulheres, estão dispostos a aceitar que outros se entristeçam por sua dor (p. 164). Para MacIntyre, as virtudes do
reconhecimento da dependência devem ter-nos ensinado que este é um aspecto em
que os homens necessitam parecer-se mais com as mulheres (p. 164).
4.5 – Crítica a Nietzsche. Na interpretação de MacIntyre, Nietzsche inverte a
perspectiva suposta pela prática das virtudes do reconhecimento da dependência
(p. 162). Para ele, o animal humano é propenso à enfermidade, mas a compaixão, a
resposta do animal de rebanho humano, é em si mesma uma forma de enfermidade
mais debilitante (p. 163). Ela “conserva o que está maduro para perecer; defende os
deserdados e condenados da vida; através da abundância dos mal-formados de
todas as classes que retém na vida, confere à vida mesma um aspecto sombrio e
duvidoso”. Para MacIntyre, Nietzsche vai além de Aristóteles, que reluta em aceitar
a amizade baseada na necessidade mútua, ao proclamar que “no amigo se deve ter
o melhor inimigo... [Aliás,] a mulher é incapaz de sentir amizade” (p. 164).
5 – Formas políticas e sociais. Segundo MacIntyre, hierarquias de poder,
como instrumentos de dominação e espoliação, muitas vezes têm frustrado o ser
humano na busca de seus verdadeiros bens. Em seu modo de ver, tanto o Estado
moderno quanto a família são incapazes de criar o tipo de associação política e
social para conservar e transmitir todas as virtudes indispensáveis ao íntegro
florescimento humano. O Estado não é capaz de oferecer um marco político moldado pela generosidade, necessária para alcançar os bens comuns das redes de
reciprocidade (p. 133). A família, que em muitos aspectos da vida familiar exige o
exercício das virtudes do reconhecimento da dependência, não sendo auto-suficiente, só pode florescer se o ambiente social também floresce (p. 134-135). Os
bens públicos que o Estado moderno proporciona são importantes, mas não coincidem com o bem comum para o qual se requer uma identificação comunitária
segundo as virtudes do reconhecimento da dependência a par das virtudes da
independência. A prática dessas virtudes requer uma classe bem distinta de busca
compartilhada do bem comum (p. 132-133). Para a definição correta do bem comum, que satisfaça o de que as comunidades necessitam, requer-se práticas comunitárias (p. 142).
A política dos estados modernos, que é de interesses em conflito (p. 144),
sofre a influência do dinheiro no processo decisório. As elites se dirigem aos eleitores de modo que lhes revelam tanto quanto lhes ocultam (p. 142).
O autor imagina uma sociedade política, distinta do Estado moderno e da
família de hoje em dia, que parta do fato de que a incapacidade e a dependência
representam algo que todos os indivíduos experimentam em algum momento de
sua vida, e de maneira imprevisível. Nela o interesse para que as necessidades das
pessoas incapacitadas sejam expressas e atendidas de modo adequado deve ser da
sociedade política inteira, por ser essencial para o bem comum, aspecto que nem a
filosofia política nem a filosofia social dos últimos anos contribuíram para elucidar
(p. 130-131).
Do ponto de vista econômico, não deve haver grande diferença de renda e
riqueza, pois a desigualdade tende a produzir conflitos de interesses (p. 144). As
considerações econômicas devem subordinar-se às considerações sociais e morais
(p. 145). Talvez tenha que haver limitação voluntária da mobilidade laboral, a fim de
proteger a continuidade e a estabilidade das famílias e outras instituições. É necessário investimento especial na educação das crianças, que não são economicamente
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produtivas. Todos os membros da comunidade deveriam revezar-se nos trabalhos
mais tediosos e arriscados (p. 145).
O autor reconhece que essas normas são mais próprias da utopia. Porém,
entende que procurar viver com normas próprias da utopia não é utópico, mas
supõe rechaçar os objetivos do capitalismo avançado. Sociedade que as aceitasse
seria hostil à sociedade de consumo. Semelhantes normas, contudo, já são aceitas
em diferentes âmbitos, como em setores do trabalho, escolas, paróquias, grupos
que mantêm relações sociais de reciprocidade (p. 145).
7 – Conclusão. A obra aqui relatada em traços marcantes é original e atraente. Alasdair Chalmers MacIntyre (nasc. 1929) não só corrige certos filósofos precedentes e contemporâneos, mas também investe contra preconceitos, ao mesmo
tempo em que ressalta semelhanças e traços comuns entre os seres humanos e
membros de outras espécies de animais inteligentes. É generoso em atribuir a esses
animais capacidade de pensamento, de crença, tendo como duvidosa a tese
heideggeriana de que não sejam portadores de as-structure. Nesse ponto, seu discurso é similar ao de outras vozes importantes da ética ambiental, como Ton Regan
e Peter Singer, e outros, o que não ilide profundas diferenças.
MacIntyre tem sido crítico contundente da modernidade liberal. Alguns de
seus alvos preferidos são, entre outros, John Rawls e Ronald Dworkin. Sua crítica
comunitarista teve inclusive impacto no pensamento liberal de Rawls, que se viu
forçado a lhe fazer concessões. No presente livro, menos compacto do que obras
anteriores, retoma e amplifica alguns pontos já antes tangenciados e explora com
afinco a questão da fragilidade do ser humano, de natureza animal, e sua dependência. Nisso também se evidencia sua contraposição a Rawls, que descreve a essência do homem como ser autônomo, livre e igual, que deve preservar sua autonomia, dentro do espírito predominante da filosofia moral do Ocidente, nesse aspecto, alvo da crítica de MacIntyre, cuja afirmação forte é de que o reconhecimento da
dependência é a chave da independência. Com base nessa perspectiva, propõe
relações sociais de reciprocidade, consistentes em relações de dar e receber, pautadas nas virtudes da independência do filão aristotélico, corrigido e completado
pelas do reconhecimento da dependência, no espírito de T. de Aquino. Obra
elucidativa de leitura altamente recomendável.
José Nedel
PPG Filosofia/UNISINOS
[email protected]
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