ARTIGO ORIGINAL COLANGITE PIOGÊNICA RECORRENTE EM MULHER NÃO ASIÁTICA: RELATO DE CASO RECURRENT PYOGENIC CHOLANGITIS IN NOT ASIAN WOMAM: CASE REPORT Angelo Flavio Adami1 Thalita Amaral Amaro2 Gustavo Mauro Mohallem3 José Flávio Coelho4 Paulo de Tarso Peres Irulegui5 1. Médico. Especialista em Gastroenterologia. Professor titular e chefe do Serviço de Gastroenterologia, Endoscopia e Hepatologia do Hospital Escola da Faculdade de Medicina de Itajubá. 2. Médica. Residente de Gastroenterologia do Serviço de Gastroenterologia, Endoscopia e Hepatologia do Hospital Escola da Faculdade de Medicina de Itajubá 3. Médico. Residente de Clínica Médica do Hospital Escola de Itajubá. 4. Médico. Doutor em Gastroenterologia. Professor da disciplina de Gastroenterologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 5. Médico. Especialista em Gastroenterologia. Médico do Serviço de Gastroenterologia, Endoscopia e Hepatologia do Hospital Escola da Faculdade de Medicina de Itajubá Trabalho realizado no Hospital Escola da Faculdade de Medicina de Itajubá. Correspondência: Angelo Flavio Adami Faculdade de Medicina de Itajubá Avenida BPS, 361 – Bairro BPS. CEP: 37500-000, Itajubá, MG, Brasil. Tel: (35) 3629-7600 E-mail: [email protected] RESUMO Introdução: Colangite piogênica recorrente (CPR) é uma patologia de etiologia desconhecida, caracterizada por ataques recorrentes de dor abdominal, febre e icterícia, secundários a dilatações e estenoses dos ductos intra-hepáticos e subsequente formação de cálculos. É prevalente no leste asiático, chegando a ser endêmica em algumas regiões, no entanto, o acometimento de pacientes de origem não asiática é raro. O diagnóstico é baseado em manifestações clínicas e exames de imagem. Se não tratada, está associada a progressão para cirrose biliar e falência hepática. Casuística: Foi relatado o caso de uma paciente do sexo feminino, 38 anos, não asiática, com história de inúmeras internações nos últimos 10 anos por colangite, sem resolução efetiva do caso. Nesta internação submeteu-se a ultrassonografia, tomografia e colangiorressonância magnética de abdome que sugeriram dilatação da árvore biliar intra e extrahepáticas, com múltiplos cálculos em vias biliares e vesícula biliar preservada. A Colangeopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) evidenciou dilatação de vias biliares intra e extrahepáticas, múltiplos cálculos, abrupto afilamento e arborização diminuída de ductos biliares intrahepáticos, confirmando o diagnóstico de CPR. Procedeu-se a papilotomia e retirada dos cálculos, com melhora total dos sintomas. Discussão: O relato torna-se relevante para advertência da maior necessidade de suspeição diagnóstica de CPR em pacientes com ataque recorrente de dor abdominal, icterícia e febre, principalmente quando acompanhados de dilatação de vias biliares e presença de cálculos intrahepáticos, em função da raridade da patologia em acometer não orientais e a sua alta morbi-mortalidade quando não tratada. Palavras-chaves: colangite piogênica recorrente, doença de Hong Kong, Colangiohepatite oriental. ABSTRACT: Introduction: Recurrent pyogenic cholangitis is a disease of unknown etiology, characterized by recurrent bouts of abdominal pain, jaundice and fever secondary to intrahepatic ductal dilatation and strictures, and subsequent intrahepatic stone formation. It is prevalent in eastern Asia, being endemic in some regions, but, the occurrence in non Asian patients is rare. The diagnosis is based in clinical manifestations and examinations of image. If not treated the recurrent pyogenic cholangitis is associated with high morbi-mortality with progression for biliary cirrhosis and liver failure. Casuistic: This paper reports a case of a non Asian 38-year-old female with a history of some internments in the last 10 years due to cholangitis that was submitted to endoscopic retrograde cholangiopancreatography which suggested dilatation of the intra and extrahepatic biliary tree with multiple stones in the biliary tract and preserved gallbladder .Retrograded Endoscopic Cholangiopancreatography (REC) showed dilatation of the biliary tract, multiple gallstones confirming the diagnosis of RPC (recurrent pyogenic cholangitis). The removal of the gallstones by papilotomy brought the total removal of the symptoms. Discussion: The report is relevant to the greater need for warning diagnostic suspicion of cholangitis in patients with recurrent attacks of abdominal pain, jaundice and fever, especially when accompanied by dilatation of bile ducts and presence of intrahepatic stones, due to the rarity of the pathology in non Westerners and its high morbidity and mortality when left untreated. Key words: recurrent pyogenic cholangitis; Hong-Kong disease; oriental cholangiohepatitis. Revista Ciências em Saúde v1, n 1 abr 2011 INTRODUÇÃO O termo colangite piogênica recorrente (CPR) foi proposto por Cook em 1954. 1 No entanto, foi Digby quem, em 1930, fez a primeira descrição da doença.2 Também conhecida como doença de Hong-Kong e colangiohepatite oriental, a CPR é caracterizada por ataques recorrentes de dor abdominal, febre e icterícia secundários a dilatações e estenoses dos ductos intrahepáticos e subsequente formação de cálculos.3,4 A CPR é prevalente no leste asiático, chegando a ser endêmica em algumas regiões, e é mais comum na zona rural, associada ao baixo nível sócio-econômico. Ambos os sexos são igualmente afetados, com pico de incidência na terceira e quarta décadas de vida.5 O acometimento de pacientes de origem não asiática é raro, sendo os casos relatados no ocidente geralmente de imigrantes asiáticos.6,7 Até 2007, haviam apenas 9 casos de CPR relatados em não asiáticos.4 A etiologia permanece desconhecida, mas a associação com clonorquíase, ascaridíase, infecção bacteriana, estase biliar e deficiência nutricional foi notada.3,8,9 O diagnóstico é baseado em manifestações clínicas e exames de imagem. Os achados ecográficos e de tomografia de abdome incluem dilatação de vias biliares extra-hepáticas e grandes ductos biliares intrahepáticos, com suave ou nenhuma dilatação dos pequenos ductos biliares intra-hepáticos; dilatação localizada de ductos biliares lobares e segmentares, cálculos biliares, atrofia hepática segmentar e fibrose pericolangite e periportal. 3,10 Atualmente, a colangioressonância tem sido considerada superior aos outros métodos diagnósticos citados para avaliação topográfica exata da CPR, uma vez que descreve toda a árvore biliar, apesar das obstruções e estenoses.11 Se não tratada, a colangite piogênica recorrente está associada a alta morbi-mortalidade, com progressão para cirrose biliar e falência hepática. O objetivo deste trabalho é relatar um caso raro de colangite piogênica recorrente em paciente do sexo feminino de origem não asiática. CASUÍSTICA O presente trabalho só teve início após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Itajubá (CEP/FMIt). Paciente do sexo feminino, 38 anos, parda, natural e procedente de uma cidade do sul de Minas Gerais. Referia dor abdominal em epigástrio há 1 dia, tipo cólica, de forte intensidade, irradiando para hipocôndrio direito e região lombar direita, acompanhada de vômitos de conteúdo alimentar ou mucóide. A dor era de início súbito, piorando gradativamente, sem fatores desencadeantes, com melhora discreta ao uso de antiespasmódicos e posição antálgica de flexão do abdome. Perda ponderal de 6 Kg em 4 meses. Referia sintomas semelhantes nos últimos 10 anos, sendo motivo de diversas internações em outros serviços, com diagnóstico de pancreatite aguda e/ou colangite, além de várias visitas ao Pronto Socorro para alívio da dor com medicação endovenosa. Há 7 meses, devido a quadro semelhante, foi submetida a laparotomia exploradora, na qual não se evidenciou a vesícula biliar, mas identificou-se fígado cirrótico. Ao exame físico, apresentava-se ictérica +/+4, abdome doloroso à palpação de flanco e hipocôndrio direitos, fígado palpável a 10cm do RCD, com borda romba e consistência endurecida. Ultrassonografia abdominal, tomografia de abdome (Figura 1) e colangirressonância magnética evidenciaram dilatação da árvore biliar intra e extrahepáticas, com múltiplos cálculos em vias biliares e vesícula biliar ectópica e preservada. Figura 1: Tomografia de abdome Revista Ciências em Saúde V1, N 1, abr 2011 Apresentava hiperbilirrubinemia discreta, aumento das transaminases em até 7 vezes o valor normal e da fosfatase alcalina em 1 vez o valor normal, sem outras alterações laboratoriais. Diante do quadro clínico, associado aos resultados dos exames complementares, sugeriu-se a hipótese de Colangite Piogênica Recorrente (CPR), sendo a paciente encaminhada para realização de Colangeopancreatografia retrógrada endoscópica diagnóstica e terapêutica. A CPRE evidenciou dilatação de vias biliares intra e extrahepáticas, múltiplos cálculos, abrupto afilamento e arborização diminuída de ductos biliares intrahepáticos, confirmando o diagnóstico de CPR. Foi realizado papilotomia e retirada dos cálculos. (Figuras 2 a 4) Figura 2: Colangeopancreatografia retrógrada endoscópica Figura 3: Colangeopancreatografia retrógrada endoscópica Revista Ciências em Saúde V1, N 1, abr 2011 Figura 4: Colangeopancreatografia retrógrada endoscópica Paciente recebeu alta hospitalar em boas condições e mantém-se assintomática desde então. DISCUSSÃO Colangite piogênica recorrente (CPR) é uma doença rara, em especial em não asiáticos, caracterizada por episódios recorrentes de colangite, ductos biliares dilatados e múltiplos cálculos pigmentares.3,10 A patologia da doença decorre em razão de anormalidades de base, tal qual a estase ou desintegração epitelial ductal, favorecendo a proliferação bacteriana. Esse relato expõe um caso de CPR acometendo paciente do sexo feminino de origem ocidental. A baixa prevalência em nosso meio e sua predileção por pacientes asiáticos provavelmente retardam o diagnóstico e consequentemente o tratamento desses pacientes. No presente caso, a despeito das manifestações clínicas serem compatíveis com o diagnóstico de CPR e de os exames de imagem realizados também apontarem para tal hipótese, o diagnóstico foi firmado apenas 10 anos após o início da sintomatologia. O tratamento do quadro agudo consiste na instituição de antibioticoterapia de amplo espectro e descompressão das vias biliares por papiloesfincterotomia através da colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE). Episódios futuros podem ser evitados com a exploração eletiva do ducto colédoco com coledocoscopia para retirada de cálculos, irrigação da árvore biliar e tratamento das estenoses. Derivação biliodigestiva é requerida para estenose extra-hepática distal, mas está associado ao desenvolvimento de colangite e abscesso intra-hepático em 30% dos pacientes. Ressecção hepática é reservada para pacientes com significante atrofia e fibrose hepática, múltiplos abscessos intra-hepáticos ou colangiocarcinoma intra-hepático concorrente, que pode ocorrer em 3 a 5% dos pacientes tratados conservadoramente.4,12 Nas internações prévias, a paciente submetiase a tratamento medicamentoso com antibioticoterapia de amplo espectro; entretanto, devido a falta de diagnóstico preciso, não era submetida a medidas para evitar a recorrência do quadro clínico, o que é preconizado pela literatura médica. Com o diagnóstico de CPR, a paciente foi submetida à CPRE com papilotomia descompressiva, retirada de cálculos e exploração do ducto colédoco. Não houve necessidade de ressecção ou transplante hepático devido ao comprometimento hepático da paciente não justificar os riscos de tais procedimentos. Com o tratamento realizado, a paciente não apresentou novos episódios de agudização, não mais procurando auxílio médico. REFERÊNCIAS 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. Cook J, Hou PC, Ho HC, McFadzean AJ. Recurrent pyogenic cholangitis. Br J Surg. 1954;42:188-203. Digby KH. Common-duct stones of liver origin. Br J Surg. 1930;17:578-91. Lim JH. Oriental cholangiohepatitis: pathologic, clinical and radiologic features. AJR Am J Roentgenol. 1991;157:1-8. Bergman S, Carlo AD, Chaudhury P, Blum C, Nahal A, Metrakos P. Recurrent pyogenic cholangitis in a white woman. Can J Surg. 2007;50:9-10. Lo CM, Fan ST, Wong J. The changing epidemiology of recurrent pyogenic cholangitis. HKMJ 1997;3:302-4. Mage S, Morel AS. Surgical experience with cholangiohepatitis in canton chinese. Ann Surg. 1965;162(2):187-90. Turner WW, Cramer CR. Recurrent oriental cholangiohepatitis. Surgery 1983;93(3):397-401. Kim MH, Sekijima J, Lee SP. Primary intrahepatic stones. Am J Gastroenterol. 1995;90:540-8. Khuroo MS, Zargar SA, Yattoo GN, Allai MS, Khan BA, Dar MY, et al. Oddi’s sphincter motor Revista Ciências em Saúde V1, N 1, abr 2011 activity in patients with recurrent pyogenic cholangitis. Hepatology 1993;17:53-8. 10. Kusano S, Okada Y, Endo T. Oriental cholangiohepatitis: correlation between portal vein occlusion and hepatic atrófica. AJR. 1992;158:1011-4. 11. Park MS, Yu JS, Kim KW, Kim MJ, Chung JP, Yoon SW,et al. Recurrent pyogenic cholangitis: comparison between MR cholangiography and direct cholangiography. Radiology 2001;220:677682. 12. Kusano T, Isa T, Muto Y. Long-term results of hepaticojejunostomy for hepatolithiasis. Am Surg. 2001;67:442-6. Trabalho realizado no Hospital Escola da Faculdade de Medicina de Itajubá. Correspondência: Angelo Flavio Adami - Avenida BPS, 361 – Bairro BPS. CEP: 37500-000, Itajubá, MG, Brasil. Tel: (35) 3629-7600 E-mail: [email protected] Revista Ciências em Saúde V1, N 1, abr 2011