“Você tem fome de quê? Você tem sede de quê?”∗ Marcia Helena de Menezes Ribeiro “ A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda verdade, Porque a meia pessoa que entrava Só trazia o perfil de meia verdade E sua segunda metade Voltava igualmente com meio perfil E os meios perfis não coincidiam...” A verdade Carlos Drummond de Andrade, Você já foi ao Foro? Deve lembrar, então, daquele mal estar que acompanhou as horas de permanência nos corredores e salas onde desfila o sofrimento humano; a miséria social emaranhada muitas vezes à subjetiva. Quem sabe pode ter ido para finalmente receber a confirmação de um pagamento esperado há muitos anos, ou simplesmente buscar um comprovante de não dever nada à lei para poder ingressar num novo emprego. Bons motivos. Entretanto, corriqueiramente, alguém vai ao Foro porque há processo - no qual ficam registradas, inscritas, as literaturas ficcionais que construímos, as meias verdades que apelam por reconhecimento -, porque houve um litígio, um conflito, que se organizou entre os indivíduos, ou entre o indivíduo e o ordenamento social, e que não encontrou “resolução” de outra forma. Um processo, então, se constitui por um apelo de justiça; como sabemos, um substantivo abstrato, incapaz de abranger a subjetividade. Quando alguém se sente justiçado? O que poderia mesmo responder à falta que se supõe estar sofrendo por responsabilidade ou culpa do outro? Esses conflitos encontram encaminhamentos diferentes caso estejamos na esfera criminal, cível ou da infância e juventude (que conjuga as duas primeiras). Diferença que não interessa aqui neste espaço tratar. Da área da infância e da juventude, onde transito há alguns anos na função de psicóloga judiciária, há algumas questões que seria interessante compartilhar. Antes, porém, é importante lembrar que estamos em um terreno minado, porque a história da intersecção entre direito e a área psi foi inaugurada pela disponibilização do conhecimento sobre a subjetividade humana a serviço do controle e manutenção do ordenamento social, inspirado no modelo higienista, que prescrevia normas para regular o comportamento e as relações sociais. Está certo! Não estamos tão longe disto, e mesmo há ainda aqueles que trabalham para esse fim. Há, porém, uma caminhada, nada desprezível, desde aquele início, e que possibilitou outras leituras sobre o papel e lugar do psicólogo. Outras práticas que não se coadunam com aquela função inicial. Talvez, baseado nessa origem, nesse ranço histórico, o trabalho nessa área costuma provocar um ∗ A frase que dá título a esse trabalho é parte da música Comida, dos Titãs. imediato rechaço com ares de horror e incompreensão sobre como alguém se disporia a trabalhar aí, ou pior, de que trabalhar aí estaria irremediavelmente atrelado à função higienista. Ato contínuo, esse horror pode provocar um “não tenho nada a ver com isso”. Certamente não somos todos os que temos a ver com isso. E dessa forma, entramos no terreno da ética, da ética psicanalítica que reconhece ser ético aonde há escolhas, na medida em que elas são a expressão do desejo. Posição diversa da ética moral, que traz em seu bojo o julgamento moral. Naquele terreno, atravessados pela psicanálise, podemos trabalhar dispensando o lugar de mestre do bem comum. Direito e psicanálise, ou mesmo a psicologia, lidam com objetos diferentes. O primeiro no mundo dos fatos, dos atos - da coisa objetiva como expressão da verdade -, que poderiam alicerçar o julgamento justo. A psicanálise habita o terreno da realidade subjetiva, da construção ficcional oriunda da história que cada qual pôde escrever com os outros. Como conciliar o inconciliável? Oferecer respostas positivas que enfim colocariam “fim” ao litígio, dispensando a participação dos autores é a aposta de alguns, aposta que parece funcionar mais como ancoragem para angústia despertada ante o não saber, o não-todo. O que um juiz demanda então ao psicólogo quando determina uma avaliação, perícia, ou o nome que queiramos dar a esse trabalho? É sempre uma verdade? É certo que do lado do Direito, que concebe o homem como sujeito cartesiano, há um pedido de que o técnico se pronuncie sobre “a verdade”; que contribua com o seu saber para uma decisão. Que o pedido venha desse lado, dessa forma, parece compreensível, representativo do trabalho da justiça, pois não há função judicante sem fatos. A cada qual seu objeto de investigação. A problemática se instaura do lado do psicólogo, especialmente quando crê poder responder anunciando a verdade sobre o sujeito, quando acredita poder responder a essa demanda na literalidade, ancorando-se no lugar do mestre, algumas vezes ao preço de, no mínimo, sair de sua seara e adentrar a do policial. A perseguição implacável dos fatos ensurdece. Há outras possibilidades? Algumas vezes, as entrevistas de avaliação constituem o momento privilegiado no qual se constrói um espaço de escuta para além dos fatos; deles o processo está recheado. Espaço que não existe, dentro do âmbito judicial, em nenhum outro momento. No âmbito de uma avaliação é possível fazer deslocamentos, giros, favorecer que a demanda possa se tornar audível ao outro, contribuindo para deixar ao judiciário somente aquilo que lhe compete em termos formais. Nesse trabalho as pessoas são encaminhadas ao psicólogo por uma determinação judicial, não há, a priori, uma demanda, não há um pedido para aplacar um sofrimento. Essa forma de chegada opera, algumas vezes obstaculiza a fala e a escuta. Nesse sentido, uma das versões imaginárias que transitam pelo trabalho é a de que “o juiz fica sabendo tudo”. Afinal, o psicólogo trabalha para quê, para quem? Tenho como prática ler somente o mínimo essencial de um processo antes de receber uma pessoa para avaliação. Esse estilo provoca as mais variadas manifestações de mal estar, espanto, e algumas vezes fúria nas pessoas que recebo, pois supõem que estando com o processo em mãos, como não saberia “tudo”. Considero, no mínimo, interessante, pois elas me advertem do lugar que se espera da justiça e no qual me identificam quando chegam às entrevistas. Essa maneira de trabalhar busca marcar um outro lugar, um lugar no qual o não sabido pode emergir, em que a palavra opera, constrói. Isso serve para o processo? A priori diria que não, porém, entendo que o processo é o meio, ele não é o fim. Que ele acabe ou não é algo por construir a partir das condições de cada um, no caso a caso. Ao Juizado da Infância e da Juventude escoam situações dramáticas - que de maneira geral não se resolveram em outro lugar - nas quais a ferida exposta sangra incontinenti. Algumas vezes conseguimos fazer um curativo, se há disponibilidade para isso e dependendo das condições de cada qual. Nessa área o psicólogo pode operar, entre outras funções, como interlocutor do juiz, construindo em conjunto com as pessoas envolvidas, alternativas que busquem um consenso mínimo entre a lei e a singularidade. Essa é a árdua tarefa a que nos propomos ao abrir um espaço de escuta onde a singularidade possa ser reconhecida e, ao ser, permitir abandonar o lugar de objeto para ser sujeito do processo, assinando a autoria das escolhas. Assim, podemos sair do senso comum não confundindo, por exemplo, função materna com deficiência real, quando uma mulher sofre um processo para perda da guarda dos filhos porque ficou cega; relativizar quando um jovem de dezessete anos se vê compelido a voltar à escola naquela mesma classe onde só encontrará colegas de dez anos; questionar e manifestar oposição a um pedido de adoção movido por caridade; escutar a violência que não deixa marcas no corpo e apontar que ela existe, permitindo que algo se opere para romper um circuito sado –masoquista no qual uma criança fica submetida ao gozo do outro. Enfim, múltiplas são as chamadas para o trabalho. De que lugar as recebemos e respondemos determinará nossas intervenções. Afinal, podemos também questionar a demanda. Ou não?