61 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 OS DIREITOS HUMANOS COMO UMA NOVA ROUPAGEM PARA O JUSNATURALISMO MODERNO: UMA TENTATIVA DE SUPERAR A CRÍTICA DE JEREMY BENTHAM ATRAVÉS DO POSITIVISMO LEGAL. HUMAN RIGHTS AS A NEW LOOK JUSNATURALISM FOR MODERN: AN ATTEMPT TO OVERCOME CRITICS JEREMY BENTHAM THROUGH LEGAL POSITIVISM MACHADO, Beatriz Piffer1 RESUMO O presente artigo busca demonstrar que a atual concepção de direitos humanos se trata de um novo olhar sobre o jusnaturalismo moderno, de maneira que o conceito de direitos humanos, inaugurado na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, traduz uma nova roupagem para o vocabulário dos direitos naturais. Buscou-se, neste trabalho, enfatizar a crítica de J. Bentham como a principal refutação já elaborada frente aos chamados direitos naturais. Palavras-chave: direitos humanos; jusnaturalismo; positivismo ABSTRACT This article demonstrates that the current conception of human rights consists in a new view on the modern natural law, in which the concept of human rights, born with the Universal Declaration of Human Rights of 1948, amounts to a new attire for the natural rights vocabulary. We seek in this work to emphasize J. Bentham’s criticism as the main refutation that has been elaborated concerning the so-called natural rights. Keywords: human rights; natural law, positivism 1 Mestranda em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). Email: [email protected]. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 62 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Introdução A ideia de direitos humanos possui os seus fundamentos na concepção moderna de direitos naturais. A mudança do conceito de direitos naturais para direitos humanos foi resultado da necessidade de desfazer o embaraço que a concepção moderna ocasiona na medida em que possui os seus fundamentos em concepções atreladas à ideia de natureza humana, pressupondo-se assim um substrato metafísico para a postulada condição humana. A visão do jusnaturalismo prémoderno atrelava a vida moral e as leis à figura divina, representada concretamente pela autoridade do poder soberano, de maneira a observar a identidade entre a moral e a religião, e, consequentemente, entre a moral e o direito. A ideia de direito natural tal como concebida na modernidade foi resultado, especialmente, de um processo de secularização da ideia de lei natural em decorrência das mudanças axiológicas próprias desse momento. Caberá, então, a realização de uma breve análise do conceito de lei natural, tendo em vista o Tratado da Lei, contido entre as Q 90 - 96 da Primeira Parte da Segunda Parte da Suma Teológica, de Tomás de Aquino demonstrando-se a visão clássica do jusnaturalismo. No entanto, no final da Idade Média ocorreu uma mudança de paradigma, surgindo um novo modelo de compreensão de problemas e questões que antes eram examinados de maneira vinculada a concepções religiosas. Houve a recusa do pensamento comprometido com visões religiosas e metafísicas, especialmente entre os séculos XVI e XVII, com a Reforma e a chamada busca de novos critérios para fé, por influência do pensamento cético, redescoberto através dos textos de Sexto Empírico, das obras céticas de Cícero, Diógenes Laêrtios e Pirro, em especial (POPKIN,1997). Importa demonstrar que a Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 transformação da noção de lei natural para o conceito de direitos naturais deu-se em razão da recusa de pensamentos vinculados a concepções religiosas e ao despontar da razão como alicerce de todos os saberes, ou seja, em razão de mudança de paradigma histórico. Dessa maneira, é importante examinar alguns dos principais autores da época moderna expondo as principais características do jusnaturalismo moderno. Na contramão do jusnaturalismo moderno e à tese dos direitos naturais, importa observar o artigo Anarchical Fallacies (1795)2, considerado o primeiro ataque à tese jusnaturalista, escrito por Bentham em face da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), elaborada na França. Para Bentham, ‘(...) a declaração não é um argumento; é um manifesto de aspirações, cheia de imperativos e exortações direcionadas aos franceses3. (BEDAU, 2000, p.136). Para Bentham, o direito é produto da autoridade do Estado, de maneira que direitos naturais são entendidos por ele como puro nonsense. Não obstante Bentham aponte o Estado como única fonte legítima para criação de direitos, não deve ser entendido que este tenha poder ilimitado para criá-los e revogá-los, pois Bentham concebe um princípio limitador para o poder do Estado, o qual denominou princípio da utilidade. Conforme destaca Bobbio acerca dessa questão, [...] trata-se de uma feroz demolição dessa fantasiosa invenção de direitos que jamais existiram, já que o direito – segundo Bentham – é produto da autoridade do Estado. Mas a autoridade de que fala Bentham não é um poder arbitrário; existe um critério objetivo para limitar (e, portanto, 2 3 Segundo Hugo Adam Bedau in ‘Anarchical Fallacies’: Bentham´s Attack on Human Rights. Freedom, Power and Political morality. Essays for Felix Oppeheim, (org.) Ian Carter and Maio Ricciardi. Plagrave, 2001. Tradução livre de ‘(...) the declaration is not an argument; it is a manifesto of aspirations, full of imperatives and exhortations addressed to the people of France’. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 63 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 controlar) a autoridade, a saber, o princípio da utilidade, que já Beccaria, a quem Bentham apela, expressara na fórmula "a felicidade do maior número.(BOBBIO, 2004, p.135). Bentham cunhou o princípio da utilidade como o princípio máximo sobre o qual a ética deve se fundamentar, ou seja, deverá ser o parâmetro máximo para que os indivíduos regulem suas ações. A maior felicidade para o maior número de indivíduos é a pedra de toque do princípio da utilidade. O presente trabalho, no entanto, se restringirá aos argumentos de Bentham em face do jusnaturalismo e da concepção de direito natural, presentes no artigo Anarchical Fallacies, de maneira a reconstruir sua argumentação – entendida, até os dias de hoje, como a principal crítica ao jusnaturalismo. Entendemos que a argumentação de Bentham em face dos ideais jusnaturalistas constitui a principal fonte de todas as críticas posteriores, tanto ao jusnaturalismo quanto aos próprios direitos humanos. A reflexão acerca dos ataques de Bentham ao jusnaturalismo constitui uma reflexão acerca da própria crítica aos direitos humanos, razão pela qual utilizaremos o artigo Anarchical Fallacies como paradigma destas críticas. É necessário também se fazer uma breve introdução a uma possível resposta para o problema apresentado por Bentham. Pretende-se, dessa maneira, demonstrar como a crítica ao jusnaturalismo moderno foi responsável pela reformulação de seus fundamentos e desembocou na passagem da ideia de direitos naturais para a noção de direitos humanos. O que se pretende estudar é a fundação dos direitos humanos com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, logo após o final da II Guerra Mundial, dando fim à noção abstrata dos direitos naturais e iniciando uma nova roupagem para a ideia de direitos naturais, Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 a fim de demonstrar que a noção de direitos humanos é uma adaptação da ideia moderna de direitos naturais – fruto ainda da principal crítica ao jusnaturalismo, presente em Jeremy Bentham. O conceito de lei natural no final da Idade Média e o jusnaturalismo clássico No Tratado da Lei, presente na Primeira Parte da Segunda Parte da Suma Teológica, cuja redação foi iniciada em 1265, Tomás de Aquino realiza, a partir de nonagésima questão, uma análise acerca das espécies de leis. O conceito mais geral de lei, conforme concebido por Tomás de Aquino é ‘uma ordenação da razão para o bem comum promulgada por alguém que está no controle de uma comunidade’. Na hierarquia proposta por ele, figura na mais alta posição a ''lei eterna'', sendo sucedida pela ''lei natural'' – participação das criaturas racionais na lei eterna. A Lei Natural (Questão 94) é uma construção da razão, sendo norteada por alguns preceitos deduzidos de um primeiro, cujo entendimento se dá de maneira direta, i.e, é o primeiro preceito que cai diretamente na apreensão da razão prática. É o princípio que se funda sobre a razão do Bem - que é a finalidade humana-, de onde pode ser entendido que todas as coisas para as quais o homem tem inclinação natural são consideradas bens e deverão ser buscadas. Todos os seres dotados de razão participam da lei eterna por meio, especialmente, da ‘'inclinação natural para as devidas finalidades’’, do que se pode depreender que a razão é capaz de perceber o que é bom para os seres humanos, ou seja, a razão percebe o que é bom para os seres humanos seguindo o que Tomás de Aquino chamou de inclinações naturais. Há que se observar a necessidade de que exista a Vontade Divina – que posicionará o homem de acordo com seu fim – paralelamente à realização do próprio Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 64 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 homem do percurso apontado pela Divindade. A moral para Tomás de Aquino é uma maneira de interação de Deus com os homens, i.e, uma relação que somente poderá ser estabelecida por meio da lei – que exercerá a função de educar o homem, para que o mesmo possa adequar seus atos e decisões à sua realização final – aproximação de Deus. A adaptação das atitudes dos homens ao plano divino é realizada somente por intermédio da lei, a qual todo ser racional poderá acessar por meio da própria razão. A consciência humana não guiada pela lei fatalmente recairá na ilusão será enganada, desviando-se de seu caminho. A lei funcionará como instrumento regulador e orientação para atitudes e decisões dos homens (TOMAS DE AQUINO, 2005, p.532) A vontade divina, segundo Tomás de Aquino, é a fonte da lei natural, que funciona como instrumento pedagógico da vontade divina para orientar a razão humana. De acordo a ideia segundo a qual toda lei poderá estar presente tanto no que regula quanto no que é regulado, na medida em que ambos participam de algum modo da lei eterna, o homem, criatura racional, está sujeito à razão divina de maneira mais efetiva, relacionando-se de maneira específica com a lei eterna. Ao contrário dos demais entes da natureza, que estabelecem tal relação com a mesma – por conta da ausência da faculdade racional – guiados por instintos ou inclinações, o homem, de maneira especial, não se posiciona de acordo com direções estabelecidas ou impressões recebidas, de maneira passiva. A lei eterna não é dada ou simplesmente revelada ao homem de maneira sólida ou acabada, mas é também construída através da faculdade racional. O ser dotado de razão figura como receptor na mesma medida em que é autor da lei. A razão humana é uma espécie de participação da luz Divina, por meio da qual o homem poderá decidir seguir, de maneira correta, caminhos de acordo com a Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 idéia de bem. O jusnaturalismo pré-moderno sustenta que a validade de uma lei está condicionada ao fato de envolver o conceito de justiça: '‘Toda lei humanamente imposta tem tanto de razão de lei quanto deriva da lei da natureza. Se, contudo, em algo discorda da lei natural, já não será lei, mas corrupção de lei’' (TOMÁS DE AQUINO, 2005,p.576). A idéia de lei natural, que para Tomás de Aquino, é a que torna legítima todas as demais leis – bem como a própria lei humana – funcionou como principal argumento até mesmo para o ideal jusnaturalista moderno ou contemporâneo. Se para Tomás de Aquino a lei justa (a única que possui validade) é a lei que emana de Deus, tal noção, posteriormente, apenas se modificou no que tange à fonte de sua legitimidade, passando da lei que emana da ‘vontade de Deus’ para a de direito natural do homem. O início do declínio das fundamentações religiosas dos direitos dos homens A apreensão da noção de lei natural não seria possível desvinculada de uma concepção religiosa. Assim como todas as coisas, a lei natural é derivada da Sabedoria divina – por meio da lei eterna. Dessa maneira, no final da Idade Média, quando surge uma nova maneira de se compreender os problemas que eram examinados, até então, pelo apelo a concepções religiosas, ocorre uma mudança de paradigma no tocante à ideia de lei natural, surgindo um novo vocabulário na filosofia política. A recusa do pensamento comprometido com visões religiosas, ganha força, segundo Richard Popkin (1997), especialmente, entre os séculos XVI e XVII, quando o Cristianismo se deparou com as questões trazidas pela redescoberta dos escritos de Sexto Empírico sobre Pirro de Elis e das obras céticas de Cícero e Diógenes Laêrtios. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 65 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 O ceticismo moderno surgiu no século XVI com o renascimento do conhecimento e do interesse pelo antigo ceticismo pirrônico grego, como apresentado nos escritos de Sexto Empírico e do ceticismo Acadêmico, como apresentado em De Academica, de Cícero. O termo ‘cético’ não foi utilizado na idade média e foi inicialmente apenas transliterado do grego. Obras de Sexto Empírico foram publicadas em latim em 1562 e 1569, e em grego em 1621. Edições do texto de Cícero apareceram no século XVI. A nova publicação dessas obras aconteceu numa época em que uma questão fundamental a respeito do conhecimento religioso tinha sido levantada pela Reforma e ContraReforma – Como distinguir o verdadeiro conhecimento religioso do falso ou de opiniões 4 duvidosas? (POPKIN, 1997, p.462) O redescobrimento dos textos céticos desempenhou papel fundamental na medida em que no fim da Idade Média e início da Renascença, forneceu o principal instrumento que abalaria toda a tradição filosófica vigente, e abriria espaço para um problema especial no contexto da época moderna: o problema do critério da verdade - e a dúvida. A Reforma Protestante5 (1534) também desempenhou função essencial no rompimento da hegemonia do pensamento Católico. Na argumentação de Lutero, por exemplo, está inserida a ideia de que a consciência – uma espécie de ''luz interior'' – deveria ser o elemento que decidiria sobre o significado das Escrituras, uma noção que remete, diretamente, à soberania da razão sobre os dogmas religiosos. Todo o questionamento trazido pela Reforma contagiou, imbuído das questões céticas 4 Grifo nosso. Movimento histórico do século XVI que pretendia a reforma da doutrina cristã, empreendida por Martinho Lutero que no documento denominado como as 95 teses, questionava os dogmas cristãos, dando origem ao Protestantismo. 5 Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 acerca dos fundamentos do conhecimento, todas as áreas do saber, abrindo assim espaço para o problema da ausência de certezas. No final da Idade Média e ao longo da chamada Era Moderna (século XV ao século XVIII) a razão, despontando como o grande alicerce de todos os saberes, transformou antigas aspirações humanas, em atributo, em qualidade própria do homem. Se Deus, anteriormente, era o fundamento da lei natural, aparece, na época moderna, por consequência do novo paradigma racional, na forma de um novo vocabulário: os direitos naturais. O conceito de direito natural no início da época moderna A ideia de um direito natural, como um conjunto de princípios eternos e imutáveis e necessários como fundamento para toda ação e leis humanas somente poderia ser sustentada, no contexto das transformações do século XVII, através da desvinculação de questões jurídicas e morais de questões religiosas e teológicas. A obra Dos direitos da Guerra e da Paz (1625), do holandês Hugo Grotius, marcou o início do chamado jusnaturalismo moderno, cujo processo de secularização seria a principal característica. O deslocamento do significado do termo ius de direito de modo geral para a noção específica de ‘direito subjetivo’ inicia a construção do direito natural moderno. Ius não mais deve ser entendido, estritamente, como justiça ou como a instituição de direito como um todo, mas como um atributo, qualidade, uma propriedade do indivíduo. O direito, que diz respeito a todos os homens, agora, é uma qualidade natural, passível de cobrança para seu alcance. Como entende Borges de Macedo (2006, p. 46), Grotius é uma figura de transição entre o pensamento tradicional e a modernidade, trazendo a influência Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 66 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 escolástica – e Aristotélica -, apesar de iniciar um pensamento tendente ao distanciamento dos preceitos tratados pela teologia. O direito passa, na concepção do filósofo, a fundamentar-se em argumento diverso do religioso. É geralmente atribuído a Grotius o título de primeiro filósofo político moderno, especialmente, em razão da proposta de secularização que permeia seus principais textos. Importa observar que se trata de uma filosofia laica, propriamente, na medida em que não questiona ou nega a existência de deus, mas apenas não se utiliza de uma concepção divina como fundamento de sua filosofia. Pode-se dizer, então, que o direito para Grotius independe da própria existência de deus. Conforme ele afirma: O direito natural é tão imutável que não pode ser mudado nem pelo próprio Deus. Por mais imenso que seja o poder de Deus, podemos dizer que há coisas que ele não abrange. (GROTIUS, 2004, p. 81) O direito subjetivo, faculdade própria do homem, é a principal característica moderna inaugurada por Grotius. O fundamento dos direitos naturais Partindo das características peculiares ao homem, que o diferenciam dos demais animais, como por exemplo, a compaixão, a faculdade de conhecer e de agir segundo princípios gerais que Grotius classifica como a essência humana, está a razão como atributo de destaque, pois é da razão que deriva o que ele chamou de pendor para a socialização (GROTIUS, 2004, p. 39). Da noção da necessidade de um elemento viabilizador do convívio entre os homens (o direito), surge o juízo natural dos homens de observar e, valendo-se do uso da razão, conseguir prever que eventos ou ações podem ser prejudiciais ou benéficas para o próprio convívio humano. Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 O que estiver contrário a tal juízo, ou habilidade de julgar, deve ser considerado como contrário à própria natureza humana (GROTIUS, 2004, p.40). A razão, dessa forma, é a fonte do direito natural. Grotius constrói a noção de direito natural como conjunto de regras passíveis de apreensão para todo agente racional. A imutabilidade do direito natural decorre, segundo Grotius, da imutabilidade de sua fonte: a razão. Com efeito, a razão não difere de um homem para o outro, sendo possível por meio do senso comum estabelecer quais sejam os direitos naturais. Embora a razão seja oriunda da própria vontade divina, i.e, de uma faculdade dada aos homens por deus, importa ressaltar que os direitos naturais, frutos da razão, não possuem laço direto com a vontade divina, bem como prescindiriam da própria existência de deus. Do mesmo modo, portanto, que Deus não poderia fazer com que dois mais dois não fossem quatro, de igual modo ele não pode impedir que aquilo que é essencialmente mau não seja mau. [...] Como a essência das coisas, desde que existam e da maneira que existem, não depende de mais nada, assim também as qualidades que são a consequência necessária dessa essência.’ (GROTIUS, 2004,p.81) Os direitos naturais segundo Thomas Hobbes A importância da filosofia de Hobbes para a investigação proposta no início do capítulo está na elaboração e desenvolvimento de algumas das principais ideias, presentes na obra Leviathan (1651), que marcaram o pensamento moderno: a noção de representação política, e importância do Estado Civil. No tocante à presente investigação, deverá ser observado, especialmente, o papel do Estado Civil como assegurador de direitos e a questão da existência de direitos Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 67 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 anteriormente à formação do mesmo. O pensamento hobbesiano volta-se para a tentativa de construção de uma teoria de legitimação do Estado - mais especificamente, a legitimação do poder coercitivo do soberano. Dessa maneira, Hobbes inicia sua argumentação a partir da construção de uma espécie de antropologia filosófica que se caracterizou pela tentativa de unir o racionalismo e o empirismo, descrevendo a estrutura basilar humana e fazendo uso das leis do movimento da física (Parte I da obra, Do Homem) O movimento seria a causa de tudo o que se passa nos corpos, de maneira que se pode afirmar que há uma cadeia de movimentos que se sucedem, levando ao infinito, sempre a um movimento mais anterior - noção que Hobbes utiliza para explicar a própria natureza humana. A especulação sobre um hipotético retorno a um estado anterior à instituição do Estado civil caracterizou a mais conhecida construção de Hobbes para justificação de um poder soberano. O estado de natureza é um estado hipotético, proposto pelo filósofo, para imaginar de que maneira poder-se-ia pensar o homem sem a intervenção de um poder maior ou leis às quais estivesse subjugado. A principal característica do estado de natureza seria a vigência de conflitos entre os homens. Por gozarem todos da mesma capacidade de corpo e espírito, os homens são iguais, e será exatamente esse tipo de igualdade umas das primeiras causas das guerras no estado de natureza. E dado que na condição de homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 (HOBBES, 1983, p.78) O estado de pleonexia, característico da natureza humana, é o chamado estado da cobiça constante, em que os desejos nunca podem ser satisfeitos ou finalizados, pois o estado de satisfação não perdura por longo tempo, de maneira que novos desejos nascem e promovem o eterno movimento de busca. Os conflitos de vida e morte serão causados, especialmente, por esta característica da natureza humana. A condição de guerra de todos contra todos é a única condição por meio da qual o homem pode ser entendido no estado de natureza. O instinto de preservação, além de representar o mais básico instinto humano, é causa primeira de qualquer conflito. Mesmo quando as guerras são causadas pela competição, desconfiança ou busca pela glória – a tríplice apontada por Hobbes como as mais comuns causas das guerras o que está, de fato, norteando todo o caos é o desejo de assegurar com chances máximas de sucesso a sobrevivência. É importante que seja observado que o poder seria um elemento benéfico e facilitador em relação à própria sobrevivência se for observado que, dispondo do mesmo, tudo quanto fosse necessário para a mesma poderia ser obtido de maneira menos esforçosa e com maior chance de sucesso, já que se poderia contar também com a força de outros. Uma análise do estado de natureza hobbesiano se faz necessária para que se possa compreender de que maneira o filósofo, apontado muitas vezes como jusnaturalista, entendeu os direitos dos homens independentemente da institucionalização dos mesmos por um soberano. Hobbes estabelece, no início do Capítulo XIII do Leviathan, a distinção entre jus e lex – direito e lei - entendendo o direito como a liberdade de fazer ou omitir, e a lei como o que obriga a uma das duas. O direito de natureza é a liberdade que cada Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 68 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria vida, sendo a lei natural aquilo que proíbe qualquer ação que possa destruir a vida, ou privar os homens dos meios para alcançá-la. Antes mesmo da instituição de um Estado é possível falarmos em obrigações – não originadas por instituição contratual ou pela vontade humana – que podem ser denominadas naturais por serem ''preceitos'' imutáveis da razão. A primeira lei natural diz respeito à obrigação de todo homem a esforçar-se pela paz, preceito que será o fundamento de todas as outras leis que a sucedem. Tal obrigação, no entanto, exige que nos comportemos de maneira a demonstrar aos demais uma vontade de paz, o que não necessariamente pode corresponder às paixões internas. No estado de natureza o que marca as relações entre os homens é o poder. A garantia das condições de sobrevivência será, sempre que necessário, o poder que cada indivíduo possui em confronto com os demais. Em tais relações o homem somente encontrará limitação ao se deparar com o poder de outros indivíduos. Hobbes deixa bem delineada a distinção entre direito e poder, embora afirme inexistência de tal distinção em um estado de guerra. O instinto de preservação é a principal justificativa para a instituição do ''estado civil'. i.e, de uma comunidade política. Sendo a sobrevivência o principal objetivo humano, o estado de natureza não é capaz de fornecer as condições ideais para que os homens possam gozar de segurança e a certeza de preservação. Hobbes inicia sua fundamentação da necessidade do estado civil apontando para a formação de um contrato voluntário entre todos os homens. Na ausência de um poder soberano (ou ''poder comum''), todos os homens são iguais, o que os coloca em uma situação de conflito, uma vez que todos podem dispor de tudo quanto puderem conseguir. Tendo Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 em vista a situação de total insegurança, no estado de natureza, pode-se dizer que seria do interesse de todos os indivíduos o estabelecimento de um ‘pacto’ por meio do qual pudessem assegurar sua sobrevivência e segurança. A instituição do Estado e surgimento de direitos O pacto social somente poderia estabelecer-se mediante a submissão de todos os homens a um indivíduo, que sozinho deverá estabelecer regras que assegurarão a paz. O contrato, segundo Hobbes, seria o único modo de gerar confiança entre os indivíduos. As obrigações, de fato, somente surgem mediante a instauração de um Estado civil, i.e, do contrato, de ver-se que no estado de natureza, em razão de certa igualdade entre os homens não possibilidade de coerção por parte de uns sobre os outros. Embora seja a vontade de todos os homens o que tenha tornado possível o pacto, após a instituição do mesmo, não é mais permitido ao indivíduo agir simplesmente de acordo com suas paixões e vontade. É importante ressaltar que, no estado de natureza, a obrigatoriedade somente se impõe na medida em que seja a vontade humana, i.e, o homem só deve obedecer à lei natural caso a mesma dite sua vontade. No jusnaturalismo hobbesiano, então, parece não haver o entendimento tradicional do conceito de ‘direito natural’, i.e, como fato gerador necessário da obrigação dos demais de respeitá-lo sob pena de cometer injustiça ou sofrer retaliações. Hobbes afirma não haver injustiça no estado de natureza, posto que justo significa apenas obedecer a lei (instituída no estado civil), divergindo, dessa forma, da grande máxima jusnaturalista. Como explica Bobbio (2001, p.146), a corrente do direito natural costuma Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 69 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 reduzir a validade à justiça, i.e, o direito se faz na medida em que é justo. A justiça como princípio auto-evidente naturalmente é o principal fundamento jusnaturalista. Evidentemente, entre os diversos teóricos do direito natural, houve divergências quanto a quais direitos seriam, de fato, naturais aos homens. A principal peculiaridade hobbesiana está no fato de entender que, no estado de natureza, os homens possuem apenas o direito fundamental de decidir, cada um conforme suas próprias vontades. O fato de não haver a possibilidade de um justo por natureza, nas palavras de Bobbio, representa uma antítese da doutrina jusnaturalista. [...] enquanto perdura o estado de natureza, não existe nenhum critério para distinguir o justo do injusto, exceto o arbítrio e o poder do indivíduo. Na passagem do estado de natureza para o Estado civil, os indivíduos transmitem todos os seus direitos naturais ao soberano, lhe transmitindo também o direito de decidir o que é justo ou injusto. (BOBBIO, 2001, p.60) A principal questão acerca do jusnaturalismo hobbesiano diz respeito à validade que atribui à lei natural, i.e, a mesma apenas pode ser utilizada como guia ou princípio norteador, nunca como garantia. Justamente pelo fato da não garantia de reciprocidade no estado de natureza é que somente no Estado civil poder-se-ia falar de garantias, em sentido forte, de direitos, na medida em que há a figura de um soberano poderoso o bastante para o controle e a punição. Direitos naturais e o Estado Civil na filosofia de Locke Uma concepção de estado de natureza, presente na obra Segundo Tratado sobre Governo, de 1689, também é o ponto de partida da filosofia de John Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 Locke na construção da noção de direitos naturais. Ao contrário da noção hobbesiana da guerra permanente de todos contra todos (HOBBES, Leviatã, Parte I, Cap. XIII), o estado de natureza segundo Locke não será necessariamente um estado de guerra, mas apenas apresentará tal potencialidade, de maneira que um dos maiores problemas do estado de natureza seria a recondução ao estado de paz no caso de início de situações de caos. O estado de natureza não é essencialmente mau, mas apresenta inconveniente, que suplantando as vantagens naturais, torna necessária sua superação. Em primeiro lugar, Locke entende que os homens naturalmente dispõem de uma situação de liberdade e igualdade. A liberdade significa, nesse contexto, que cada homem pode regular suas ações e dispor de sua propriedade e de sua pessoa da maneira que quiser, mas sempre respeitando os limites da lei natural (LOCKE, 1994, p.83). Como pode ser observada, a liberdade pensada por Locke difere muito da noção hobbesiana de liberdade, pois mesmo no estado de natureza, a liberdade já possui limitações. A igualdade repousa sobre a ideia de que todo direito é recíproco, não podendo um indivíduo ter mais poderes em detrimento de outros. Apesar da presença da liberdade e igualdade no estado natural, Locke afirma que a vida no estado de natureza tem algumas desvantagens ou inconvenientes. O principal problema do estado de natureza está na impossibilidade de controle dos indivíduos que, por ventura, vierem a violar a lei natural, pois não há organização do direito de punir. Na medida em que todos são iguais, não há um soberano – não há tipo algum de subordinação- e, dessa forma, não há punição. Tal situação forçará cada indivíduo que se sentir lesado em seu direito, a agir para garantir seus direitos. Da ocorrência desta natureza de Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 70 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 conflitos de maneira frequente pode surgir um estado desarmônico, em que haja guerra e nenhuma instituição ou indivíduo que possa controlá-la. Segundo Locke, quem faz justiça por si dificilmente gozará de imparcialidade, podendo defender-se em excesso, com ofensa maior que a sofrida. Na ausência de um homem ou conjunto de homens investidos do poder de julgar controvérsias e resolver conflitos, sendo os próprios ofendidos os responsáveis pela restituição de seus direitos, a desmedida poderá ser a tônica do estado de natureza. Para Locke, o principal inconveniente anterior ao estado civil é a falta de um juiz imparcial, que zele pela aplicação inequívoca da lei natural. O estado de guerra, na concepção de Locke, não ocorre pela ausência de leis, mas pela falta de quem a assegure de maneira justa e imparcial. O reconhecimento do direito à propriedade privada como um direito natural dos homens é um dos pontos principais do pensamento de Locke. A ideia de propriedade privada como direito natural do homem merece atenção na medida em que se trata de ideia originária da filosofia de Locke, elaborada no capítulo V do Segundo tratado sobre o governo. Locke considera a aquisição original da propriedade individual como um processo de individuação, i.e, através da aplicação da energia despendida sobre a propriedade; a posse é adquirida por meio do esforço dispensado. Na medida em que a posse originária de qualquer coisa pertença à comunidade, somente o valor que um homem agregue à propriedade é que pode superar tal status de ‘’bem comum’’ – individuá-la. Para que as desvantagens do estado de natureza possam ser superadas será necessário um contrato, fruto do consenso entre os homens, no qual deverá ser instituída a sociedade civil. A condição natural de ausência de hierarquia é quebrada com a instituição de uma autoridade, de maneira que cada indivíduo Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 abre mão da liberdade tal qual dispunha no estado de natureza, pois quando da instituição de uma autoridade pública, não mais será possível que um indivíduo puna outro indivíduo por conta própria, sendo tal tarefa atribuição do poder público – cuja principal função será zelar pela lei natural, punindo seus infratores. Um dos principais alicerces da teoria dos direitos naturais de Locke está na necessidade da razão como único instrumento através do qual o conhecimento das leis naturais é possível. Todo homem dotado de razão é, necessariamente, capaz de reconhecer as leis da natureza. O pensamento jusnaturalista alcançou seu apogeu na época moderna tendo sido a pedra de toque das revoluções Francesa (1789) e Americana (1776) do século XVIII. Somente em meados do século XIX, a crítica aos fundamentos do jusnaturalismo começou a ganhar vulto, tendo tido como um dos seus principais críticos Jeremy Bentham. O positivismo legal e a crítica ao Jusnaturalismo A crítica de Bentham ao jusnaturalismo, presente no texto Anarchical Fallacies, diz respeito a dois problemas distintos. Por um lado ele aponta para os que podem decorrer da implementação dos ideais jusnaturalistas. Por outro lado, Bentham aponta para a ausência de fundamentação dos próprios princípios jusnaturalistas. O título do texto escrito por Bentham se refere à crítica do filósofo acerca da teoria jusnaturalista e o potencial destrutivo e desestabilizador desses ideais quando colocados em face do Estado e do direito positivo. Bentham denomina anarquistas os que admitem haver leis naturais, uma vez que toda a argumentação contida no texto Anarchical Fallacies segue em direção à tese de que pensar haver leis anteriores à instituição do Estado envolve, não apenas Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 71 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 uma falácia, mas tem como consequência o enfraquecimento de governos e da própria estrutura Estatal. A defesa da existência de uma lei natural pode contribuir para a não execução e desobediência em relação às leis civis, uma vez que, segundo a tese jusnaturalista, não é legítima a lei civil que contrariar a lei natural. Ora, para os jusnaturalistas, basta que a lei civil pareça contrariar princípio natural para que esta possa ser desobedecida de maneira legítima. Bentham aponta para esta concepção jusnaturalista como um problema, apontando para o caráter anárquico da tese jusnaturalista, chamando atenção para o fato de que esta poderia funcionar como pretexto, ou seja, como argumento conveniente – uma espécie de álibi- para a destruição de governos e desobediência de leis. Dessa maneira, toda a argumentação e tentativa de fundamentação da tese jusnaturalista seria, na verdade, fonte do que Bentham chama de anarquia, ou seja, de uma atmosfera de insegurança, posto que a qualquer momento, em nome dos ideais jusnaturalistas, pudessem eclodir revoltas, desobediências às leis do Estado e revoluções – muitas vezes por interesses de minorias. Bentham enxerga nos ideais jusnaturalistas o estopim para o caos e revoluções despropositadas: Mas tal expressão (direitos naturais) é meramente figurativa; e usada no momento em que se pretende dar um sentido literal conduz ao erro, e um tipo de erro que leva ao engano – a um erro extremo. Sabemos o que significa para os homens viver sem Governo - e viver sem governo, viver sem direitos (...) (BENTHAM, 1987, p.53) Embora aponte para as principais consequências práticas decorrentes da tese jusnaturalista, Bentham procurou refutar os próprios fundamentos e princípios jusnaturalistas, usando como objeto de sua crítica a Declaração dos Direitos do Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 Homem e do Cidadão publicada na França em 1789. Se a finalidade do Estado fosse a preservação dos ''direitos naturais'', i.e, se a única razão para a criação do estado civil fosse garantir os direitos inalienáveis dos homens, então somente poderia ser legítimo o Estado concebido exatamente da maneira proposta pelos jusnaturalistas, qual seja, a de associação de indivíduos, no estado de natureza, com o propósito de instituir um governo com o objetivo de assegurar supostos ''direitos naturais''. Para Bentham, novamente, estaríamos em face de um problema, uma vez que se somente seriam legítimos os governos instituídos dessa forma, então, estar-se-ia legitimando, também, a resistência a todos os governos que não fossem instituídos dessa maneira, contribuindo para uma situação de caos e insegurança. Poder-se-ia refutar esta crítica de Bentham, dizendo que a associação de indivíduos com o objetivo de garantir supostos direitos, que tal associação seria meramente figurativa, um artifício argumentativo que, de fato, não há que se localizar faticamente ou historicamente a reunião de pessoas com o objetivo de criar o Estado para garantir direitos naturais. Ora, é exatamente para este fato que chama atenção Bentham, para o caráter meramente figurativo do argumento contratualista, bem como de todo o ideal jusnaturalista, i.e, que quando postos em prática ou quando aplicados, de fato, mostram-se sem sentido e potencialmente originadores do caos, só funcionam, por assim dizer, como teoria fantasiosa – não resistem quando submetidas aos fatos e à prática. A existência de direitos independentemente da instituição de governo é, segundo Bentham, uma ideia insustentável. A vida em comunidade, sem um governo instituído, equivale à ausência, igualmente, de direitos. Bentham procurou argumentar formulando a seguinte questão: como se poderia falar de direito à Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 72 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 propriedade ou à liberdade, por exemplo, sem que houvesse uma instância que os afirmasse ou, especialmente, assegurasse? Não há sentido, pois, em afirmar a existência de direitos se estes, simplesmente, não podem ser cobrados e não há garantia alguma de que seriam assegurados. Mas a crítica de Bentham aprofunda-se diante do questionamento que diz respeito à origem dos chamados direitos naturais. Não há, para ele, sustentação para a tese de que os homens nascem com direitos - de que haja uma natureza humana constituída de direitos. Para Bentham a criação da ideia de existência de direitos naturais é fruto do desejo pela felicidade, i.e, imagina-se que são direitos o que, de fato, são necessidades ou desejos humanos para uma vida satisfatória. Para Bentham, são chamados de direitos naturais o que os homens imaginam ser fundamental para a felicidade. A necessidade ou desejo ganha o estatuto de direito natural por ocasião de arbítrio e convenção. Mas razões para que se deseje que haja tais coisas como direitos naturais, não são direitos; uma razão para que se deseje que um determinado direito seja estabelecido, não é um direito – demanda não é oferta – fome não é alimento. (BENTHAM, 1987, p.53) Observando-se, mais cuidadosamente, são os ''direitos naturais'', para Bentham, fruto não somente de desejos ou necessidades humanas, mas do interesse, na criação de um ideal de enfraquecimento do Estado e das leis civis. Qual é a fonte real desses direitos imprescritíveis – estas leis irrevogáveis? O poder tornado cego por olhar da sua própria altura: prepotência e tirania exaltadas em sanidade (BENTHAM, 1987, p.54) A principal questão de Bentham repousa sobre a seguinte pergunta: qual Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 seria o propósito destes direitos naturais ilimitados se não, exclusivamente, a oposição aos próprios direitos civis? Cria-se uma espécie de proteção incondicional que reveste os homens e enfraquece o Estado e a lei civil. Vejamos o direito à propriedade, por exemplo. Bentham constrói seu argumento segundo a ideia de que afirmar que todos os homens têm direito à propriedade é o mesmo que afirmar que nenhum homem possui direito à propriedade, pois um direito de todos os homens acaba por não ser o direito de homem algum. No caso específico do direito à propriedade, Bentham procura chamar atenção para o perigo dessa ideia, posto que acarretaria na extinção da própria noção de propriedade. Poderíamos falar em direito à propriedade, liberdade ou do direito a resistir à opressão, mas o cerne da crítica de Bentham repousa sobre algo que independe do direito que se aponte como ‘um direito inato’, i.e, a grande questão é que quaisquer direitos que fossem ‘eleitos’ como inalienáveis poderiam se tornar perigosos, na visão de Bentham, para o Estado e desestabilizadores da ordem social. Ora, além de possuírem o estatuto da irrevogabilidade, são superiores a qualquer ordem jurídica ou Governo, o que, para Bentham, já faz com que se tornem perigosos nonsense. O principal argumento de Bentham está na tese de que os direitos naturais na verdade são somente um reflexo do desejo de assegurar certos interesses na forma de direitos. A tese jusnaturalista eleva, segundo o filósofo, ao patamar de direitos naturais necessidades ou interesses humanos. O movimento, então, seria oposto ao que pretenderia o jusnaturalismo, ou seja, os direitos não teriam um fundamento a priori, mas seria o fruto de arbítrio, um resultado racional da eleição entre quais interesses ou necessidades humanas precisam ser garantidas ou asseguradas. É forçoso perceber que no argumento de Bentham, que aponta para direitos Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 73 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 criados, i.e, em que são os direitos frutos das necessidades ou interesses humanos, ocorre a fragilização do principal alicerce que diz respeito à razão pela qual direitos devem ser respeitados. A crítica no que tange ao que Bentham chama de caráter anárquico dos direitos naturais parece realizar o caminho inverso, ou seja, Bentham procurou pensar em como tais direitos ‘inventados’ podem ser nocivos ao Estado, quando na verdade, os direitos naturais, se pensarmos de maneira histórica, foram pensados para proteger o homem em face, especificamente, do Estado. Ora, ainda que direitos naturais não sejam, por assim dizer, descobertos pela razão ou que não sejam evidentes, uma importante questão a ser analisada diz respeito à razão da concepção da ideia. Supondo, então, que a ideia da existência de direitos inalienáveis seja uma construção fantasiosa, importa refletir nas motivações que levaram a tal construção. De certo, há que se falar em necessidade, mas não no sentido de Bentham, i.e, as motivações para a concepção da ideia de direito natural são, por assim dizer, um próprio argumento para sua sustentação. Poder-se-ia dizer que os direitos naturais nasceram em razão da própria necessidade de proteger o indivíduo em face do Estado. Bentham entendeu os direitos naturais como um problema para a segurança do ordenamento jurídico, à lei positiva e ao próprio governo. Ora, ao criar a oposição direito natural versus leis positivas por pensar que os direitos naturais enfraquecem o estado civil, Bentham se preocupa apenas com a manutenção do Estado em detrimento da defesa dos próprios indivíduos. Direitos humanos: um novo vocabulário A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, adotada pela ONU em resposta direta às consequências da Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 Segunda Guerra Mundial, introduziu um novo vocabulário, cunhando a noção contemporânea de direitos humanos. Para fundamentar a tese aqui defendida de que os chamados direitos humanos apresentamse uma nova roupagem para o que já clamava o jusnaturalismo moderno, devemos ressaltar que não se poderia negar que não se trata apenas de uma mudança simplista de vocabulário, mas sim de uma busca de se adequar uma ideia à uma nova realidade histórica. Como salientou Bobbio (2004), há três modos de fundar valores. A primeira forma seria deduzi-los de um dado objetivo, como a natureza humana, como fez Hobbes, por exemplo, considerando-se que há uma verdade evidente e que ninguém poderia ser capaz de negar, formando-se, por fim um consenso acerca de que valores devam ser preservados. As objeções à ideia de direitos inerentes aos homens ganharam forçaespecialmente relacionada a uma suposta natureza humana- com o argumento de Bentham, que os chamou de ‘falácias anarquistas’ ou ‘puro nonsense’, não conseguiriam se sustentar sem uma nova roupagem, uma inovação em sua justificação. O próprio Bobbio (2004) enfrenta a questão de que o jusnaturalismo moderno interpretou a natureza humana de diversas maneiras, de forma que o apelo à natureza humana para fundar valores não parece ser eficiente para justificar um sistema de valores que pudesse ser aceito por todos. A segunda forma de fundar valores, segundo Bobbio (2004), seria por meio da verificação histórica, ou seja, observando que valores que foram proclamados como evidentes em dado período histórico perderam tal estatuto em outro momento. A terceira maneira de fundamentação de valores apontada é o consenso, que significa que um valor é tanto mais fundado quanto mais é aceito (BOBBIO, 2004). Esta fundamentação baseada no consenso geral interessa-nos na medida em que a atual Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 74 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 concepção de direitos humanos, baseada na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, é pautada no consenso e aceitação da maioria dos homens, representada por seus respectivos Estados ou governantes. Mas agora esse documento existe: foi aprovado por 48 Estados, em 10 de dezembro de 1948, na Assembléia Geral das Nações Unidas; e, a partir de então, foi acolhido como inspiração e orientação no processo de crescimento de toda a comunidade internacional no sentido de uma comunidade não só de Estados, mas de indivíduos livres e iguais (BOBBIO, 2004, p.47). De acordo com a tese defendida neste estudo, poderíamos dizer que o que Bobbio (2004), chamou de fundamentação dos direitos humanos baseada no consenso geral significa exatamente tratar, de maneira diferenciada, a antiga questão dos direitos naturais dos homens. O embaraço das fundamentações modernas e a necessidade de uma reformulação do jusnaturalismo Poder-se-ia dizer que a positivação dos direitos dos homens retirou o que poderíamos chamar de ‘desconforto metafísico’ que a ideia de direitos naturais causaria na contemporaneidade. Interessante observar, contudo, que ainda é pautada na crítica de Bentham, tal como apresentamos, que se fez necessário superar o ideal moderno de diretos. Reunir um conjunto de princípios e valores na Declaração Universal dos Direitos do Homem significaria dizer que os homens possuem direitos inatos, mas que sua fundamentação não estaria mais na natureza humana ou em uma justificativa divina, mas sim no fato de estar positivada em um código que declara e elenca direitos, deixando de lado qualquer justificativa que Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 pudesse causar desconforto. Chegar-se a um acordo sobre quais princípios e valores humanos não se poderia abrir concessões em nenhuma hipótese significa um enorme avanço na discussão ética contemporânea, e a nova denominação – direitos humanos- e sua positivação na Declaração de 1948 desfez o embaraço que as fundamentações modernas poderiam trazer sobre o tema. A positivação oriunda de um consenso foi a pedra de toque para que a ideia de direitos humanos pudesse emergir na contemporaneidade. A Declaração Universal dos Direitos do Homem pode ser acolhida como a maior prova histórica até hoje dada do consensus omnium gentium sobre um determinado sistema de valores. Os velhos jusnaturalistas desconfiavam – e não estavam inteiramente errados – do consenso geral como fundamento do direito, já que esse consenso era difícil de comprovar (BOBBIO, 2004, p.47) A pretensão de universalidade dos direitos dos homens é a grande característica que a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 herdou do jusnaturalismo moderno. Frisando-se que este conceito foi ampliado, ou seja, nasce a ideia de que se há direitos humanos, estes deverão ser protegidos não somente dentro do âmbito de um Estado, pois ganham interesse internacional, de maneira que nasce a ideia de que deverá ocorrer, inclusive, intervenção de outros Estados no caso de desrespeito aos elencados direitos humanos. Embora defendamos que os chamados direitos humanos sejam apenas uma nova roupagem do jusnaturalismo moderno, há que se observar que há modificações em sua estrutura, não se trata apenas de um novo vocabulário. Há a novidade no entendimento de que direitos humanos são indivisíveis, ou seja, se entre os chamados filósofos jusnaturalistas modernos havia a primazia ou eleição de quais direitos seriam Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 13, p. 61-76, jul/2011. 75 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 levados em consideração em detrimentos de outros, a noção de direitos humanos consagra a ideia de que a liberdade e a igualdade não deverão ser tomadas como noções distintas, i.e, são interdependentes. Bobbio (2004) entende que ocorreu com os direitos humanos o mesmo processo ocorrido com o conceito de liberdade ao longo da história, o que chamou de especificação, que pode ser observado por meio do surgimento de diversos documentos internacionais para proteção de grupos específicos, como por exemplo, Declaração de Direitos da Criança (1959) ou a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971). Conclusão A proposta de demonstrar que a atual concepção de direitos humanos se trata de um novo olhar sobre o jusnaturalismo não pretende reduzir os direitos humanos apenas a um ‘novo vocabulário’ para o que os modernos chamariam de direitos naturais. Trata-se, especialmente, de observar que uma idéia tal qual a de direitos inerentes a todos os homens precisou ser repensada em razão de novos cenários históricos, em especial da crítica presente em Anarchical Fallacies, de Jeremy Bentham. Inicialmente, observamos a ruptura da fundamentação dos direitos inerentes ao homem com a ideia de Deus ou fundamentos religiosos, originando a secularização e o vocabulário dos direitos naturais, baseados no despontar da razão humana. No mesmo diapasão, pudemos demonstrar a crítica, especificamente de J. Bentham, à ideia de direitos naturais, à qual elegemos como o principal argumento não somente contra os ideais jusnaturalistas, mas como o principal contraponto da ideia de direitos humanos. Observemos que a crítica de J. Vol. 6, Edição 13, Ano 2011 Bentham foi fundamental para a atual reflexão acerca dos direitos humanos, pois, segundo entendimento aqui defendido, foi J. Bentham o filósofo a apresentar a crítica mais importante ao argumento dos direitos inerentes aos homens. Por fim, quando tratamos, brevemente, do conceito de direitos humanos, inaugurado na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, pretendemos salientar que a positivação de direitos oriunda de um consenso geral desfez o embaraço, como assim o denominamos, que as fundamentações metafísicas, religiosas e baseadas em uma natureza humana causaram ao longo da história. É imperioso que se observe que não se pretendeu exaurir as razões pelas quais o novo vocabulário dos direitos humanos surgiu, de maneira que privilegiamos no presente trabalho, o fator que chamamos de embaraço metafísico, não nos atendo às questões acerca da própria racionalidade humana surgidas no pós-guerra. Ao afirmar que o chamado embaraço metafísico causado pelas antigas fundamentações foi um dos fatores determinantes das mudanças de vocabulário e de concepção acerca dos direitos humanos, apenas procuramos privilegiar tal fator neste trabalho a fim restringirmos o objeto de estudo. Referências AQUINO, Tomás de. 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