INFECÇÕES DO TRATO URINÁRIO SÍNDROMES CLÍNICAS E PRINCÍPIOS DO TRATAMENTO Cássio Luíz Zanettini Riccetto. Professor Doutor da Disciplina de Urologia. administração de antimicrobianos. Os exames de urina (urinálise e urocultura) podem não ser necessários antes do tratamento em pacientes com sintomas típicos. O regime antimicrobiano mais empregado atualmente é o de curta duração (dose única ou regimes de até 3 dias, dependendo da farmacocinética do antimicrobiano) em detrimento do tratament convencional (7 a 10 dias). O regime de curta duração favorece a aderência ao tratamento, tem menor incidência de efeitos colaterais, menor custo e induz menor alteração da flora vaginal e retal, sem comprometimento da eficácia, segundo vários ensaios clínicos. A falha na erradicação da bacteriúria após três dias de antibioticoterapia sugere invasão tecidual mais profunda ou infecção complicada, impondo uma investigação urológica mais detalhada. INTRODUÇÃO O presente texto representa uma coletânea das conclusões do Consenso Brasileiro sobre Infecções do Trato Urinário promovido pela Sociedade Brasileira de Urologia em 2004. As informações foram coletadas e organizadas de forma a se obter um texto representativo das melhores evidências disponíveis sobre o tema. Os textos que serviram de base para essa compilação encontram-se disponíveis na seção referências recomendadas. SINDROMES CLINICAS E PRINCÍPIOS DO TRATAMENTO Cistite Corresponde ao processo inflamatório ou infeccioso vesical. As cistites de causa nãobacteriana são aquelas causadas por vírus, fungos, protozoários, ou ainda relacionadas às doenças não-infecciosas, como a cistite intersticial, secundária a agentes químicos e antiblásticos ou actínicos. Na cistite aguda bacteriana, a resposta inflamatória ocorre pela penetração da bactéria na mucosa vesical e é a origem dos sintomas. Clinicamente, se manifesta por um quadro miccional irritativo, caracterizado por disúria, polaciúria, urgência miccional ou mesmo incontinência de urgência. A hematúria terminal, assim como dor suprapúbica, podem ocorrer em alguns casos. O exame ginecológico é de fundamental importância, pois pode detectar alterações uretrais e vulvovaginais, que podem ser responsáveis pela instalação e/ou manutenção da ITU. O tratamento da cistite bacteriana aguda nãocomplicada baseia-se em medidas gerais e específicas. Entre as medidas gerais, o uso de analgésicos, antiespasmódicos e antiinflamatórios não-hormonais pode ajudar a melhorar o desconforto das pacientes. As medidas específicas consistem na Cistite Recorrente Define-se cistite recorrente como aquela que acomete as mulheres numa freqüência de, pelo menos, duas vezes no semestre ou três vezes ao ano. Geralmente, sua incidência está relacionada a diferentes fatores, que favorecem uma maior adesividade das bactérias às células do intróito vaginal. A presença de um defeito biológico a nível celular, inadequada resposta imunológica local, diminuição da atividade anti-aderencial da camada de mucopolissacarídeos, além de uso de diafragma e espermaticidas, são fatores que podem estar associados à cistite recorrente. Cerca de 90% dos casos de infecções recorrentes são devidos a uma reinfecção, que é determinada por um germe ou cepa diferente daquela detectado inicialmente, que surge duas ou mais semanas após o término do tratamento. A antibioticoterapia deve ser realizada da mesma forma e com os mesmos antimicrobianos empregados no tratamento 1 das infecções isoladas. Nos casos de difícil controle, a quimioprofilaxia de baixa dosagem por 3 a 6 meses é uma das condutas mais aceitas. Doses subterapêuticas de antibióticos podem alterar a habilidade das bactérias em aderirem às células do hospedeiro, impedindo a formação de fímbrias, ou então, quando estas são sintetizadas, se apresentarem de forma aberrante. Esta forma de tratamento diminui as recorrências em 95% dos casos, quando comparadas com placebo. A profilaxia póscoito está indicada naqueles casos em que os episódios de cistite estão relacionados à atividade sexual. Esta estratégia prevê o uso de dose única de antibiótico pós-coito, sendo recomendado, também, o esvaziamento vesical nessa ocasião. A automedicação orientada é indicada em pacientes orientadas que não aceitem o tratamento prolongado, desde que o trato urinário for completamente normal. Nesses casos o tratamento por três dias ou com dose única deve ser iniciado a partir do início dos sintomas. A reposição hormonal em mulheres pós-menopausa, com evidências de alterações causadas pelo hipoestrogenismo, está indicada como medida adjuvante, utilizando-se creme vaginal à base de estriol ou promestriene, desde que não haja contra-indicação ginecológica. O emprego de exames de imagem deve ser considerado sobretudo quando a evolução clínica for insatisfatória. A tomografia computadorizada com contraste é o exame que apresenta maior sensibilidade e especificidade. Apesar disso, considerandose as limitações do acesso a esse exame em nosso meio, a avaliação inicial através de ultra-sonografia se justifica, quando algum estudo de imagem for indicado. A terapia exclusiva por via oral deve ser considerada em pacientes com sintomas leves ou moderados que apresentem perspectiva de boa aderência ao tratamento ambulatorial e que não apresentem co-morbidades que reconhecidamente possam determinar o surgimento de complicações. A opção por tratamento ambulatorial implica manutenção do paciente sob estrita supervisão médica e dos familiares. A manutenção do paciente em unidades de observação por períodos de até 12 horas, para controle inicial da dor e início da antibioticoterapia por via intravenosa, poderá ser recomendada. A internação hospitalar deverá ser considerada, particularmente, quando houver impossibilidade de hidratação ou de ingestão dos medicamentos por via oral; quando houver dúvida da equipe médica quanto à aderência do paciente ao tratamento e ao seguimento; quando houver dúvida diagnóstica; quando houver sinais evidentes de comprometimento sistêmico; quando houver doenças coexistentes que aumentem o risco de complicações e quando houver falha da terapia ambulatorial. A duração total do tratamento é de 10 a 14 dias habitualmente. Pacientes com sintomas persistentes após três dias do início da antibioticoterapia devem ser reavaliados com base no antibiograma, devendo-se realizar exames de imagem para pesquisa de fatores de complicação. Recorrência precoce do processo infeccioso pode ocorrer em até um terço dos pacientes, após um ciclo de tratamento de duas semanas. Nessa situação, um novo ciclo com duração de seis semanas deve ser considerado. Pielonefrite aguda É uma infecção piogênica focal do parênquima renal, que geralmente afeta um ou mais segmentos cuneiformes do rim. O quadro clínico caracteriza-se principalmente por dor lombar, febre com calafrios e eventualmente sintomas urinários irritativos (disúria, urgência e polaciúria). Freqüentemente verifica-se dor durante a punho percussão lombar. Outros sintomas como náusea, vômitos, dor abdominal e diarréia podem ocorrem. Os casos graves podem evoluir com sepse. O diagnóstico da pielonefrite aguda é prinicipalmente clínico, embora a propedêutica mínima obrigatória constitua-se de urocultura e antibiograma. 2 Nas pielonefrites agudas a urocultura de controle deve ser realizada rotineiramente, dez dias após o final do tratamento. Caso tenha sido empregado algum exame de imagem, a indicação de sua repetição bem como seu momento ideal dependerão da análise do médico assistente. Em casos selecionados pode estar indicada a cintilografia renal com DMSA, que permite analisar a captação renal dos radioisótopos e aferir as repercussões sobre a função renal. Figura 1 - Aspecto tomográfico de uma piuonefrose associada a obstrução da pelve renal por calculo hiperdenso impactado na junção pieloureteral (seta). Pielonefrite Enfisematosa É uma infecção necrotizante renal e perirrenal causada por bactérias produtoras de gás. Ocorre mais freqüentemente em diabéticos, e a patogênese não é inteiramente compreendida, mas admite-se que, nesses casos, o paciente apresenta algum grau de deficiência imunológica local ou sistêmica. O quadro clínico se superpõe ao da pielonefrite aguda grave. A tomografia computadorizada é o exame diagnóstico mais sensível. Uropatia obstrutiva é demonstrada em 25% dos casos. A pielonefrite enfisematosa constitui condição de internação obrigatória. Se o rim for funcionante, a terapia clínica pode ser considerada inicialmente, dependendo das condições do paciente. A nefrectomia deve ser indicada caso o quadro clínico seja ruim, pois a mortalidade potencial dessa condição é de até 75%. Figura 2 - Aspecto pos-operatório de uma nefrostomia percutânea, na qual um cateter é introduzido no sistema coletor renal através de uma punção lombar. Abscesso renal É a presença de coleção purulenta no parênquima renal. Na era pré-antibióticos a causa mais comum de abscessos renais era infecção causada por Staphylococco sp, decorrente de bacteremias, enquanto atualmente a maioria dos abscessos está relacionada a patologias obstrutivas, cálculos renais ou diabetes mellitus, e é causada predominantemente por bacilos gramnegativos. O quadro clínico se confunde com o da pielonefrite, porém o início dos sintomas pode ser mais insidioso, precedendo o diagnóstico em aproximadamente duas semanas. A falta de resposta inicial à terapia antibiótica para uma pielonefrite é um sinal de alerta para seu diagnóstico. A confirmação diagnóstica requer métodos de imagem Pionefrose O termo pionefrose se refere a uma infecção do parênquima renal associada à destruição supurativa completa do rim, decorrente de um processo obstrutivo ureteral, com coleção purulenta no sistema coletor (Figura 1). O tratamento consiste na drenagem da coleção purulenta através de uma nefrostomia (Figura 2) e antibioticoterapia. Na maioria das vezes se segue a realização de nefrectomia pois o parênquima renal encontra-se completamente destruído. 3 sendo a tomografia o exame de eleição. O exame de urina encontra-se alterado em 70% dos pacientes, podendo ser normal em abscessos corticais. Os abscessos renais com mais de 4 cm de diâmetro devem ser tratados através de drenagem percutânea, dirigida por ultra-sonografia ou tomografia. Os agentes antimicrobianos com boa penetração em cavidades fechadas e com boa atuação contra bacilos gram negativos são boa opção inicial. O tratamento clínico, sem drenagem, pode ser utilizado em abscesso pequeno com menos de 4 cm. O tratamento é prolongado, com duração em torno de quatro semanas. A cirurgia é indicada quando a drenagem percutânea tem contra-indicação ou não atingiu seus objetivos ou em abscessos multicavitários (Figura 3). computadorizada. O tratamento é a drenagem, que pode ser percutânea ou aberta. Recomenda-se, antes da drenagem, o início da antibioticoterapia (Figura 4). Figura 4 - Abscesso perirrenal com envolvimento extenso da gordura perirrenal e da musculatura paravertebral, extendendo-se até o tecido subcutâneo da região lombar esquerda. Pielonefrite crônica Não representa uma síndrome clínica típica, sendo essa designação empregada empregada para caracterizar a achados histopatológicos (fibrose cortical e lesão túbulointersticial) ou radiológicos (deformidade calicial e retração parenquimatosa). A pielonefrite crônica pode evoluir com quadro clínico de infecções recorrentes, piúria, anemia e emagrecimento. O diagnóstico pode ser retardado pela inespecificidade do quadro clínico. Figura 3 - Abscesso renal a direita visibilizado na tomografia computadorizada. Observe captação heterogênea do contraste e áreas hipodensas, resultantes da necrose tecidual. Abscesso Perirrenal Resulta da invasão bacteriana do espaço perirrenal em pacientes com abscesso renal ou pionefrose. É mais freqüente com pacientes diabéticos ou com litíase. Embora o quadro clínico se confunda com o da pielonefrite aguda, o início dos sintomas é tipicamente insidioso. A cultura de urina na maioria dos casos é negativa. Comumente as hemoculturas revelam múltiplos agentes patogênicos. A Escherichia coli, Proteus sp e o Staphylococcus aureus respondem pela maioria dos casos. O diagnóstico é realizado pela ultra-sonografia ou tomografia Pielonefrite Xantogranulomatosa A pielonefrite xantogranulomatosa é uma forma anatomopatológica da pielonefrite crônica, caracterizada pela presença de macrófagos, contendo gordura em seu interior (xantomas). Embora sua origem seja desconhecida, ela se apresenta freqüentemente associada a litíase renal ou processos obstrutivos. A doença pode envolver todo o rim e comprometer o espaço perirrenal ou pode ser segmentar. O diagnóstico clínico da doença é difícil por se assemelhar ao tumor renal. Anorexia, perda 4 geralmente o quadro clínico é de orquiepididimite. A epididimite pode ser aguda ou crônica. Ela pode ser bacteriana inespecífica, específica (tuberculosa) e nãobacteriana. Dor e sinais flogísticos no epidídimo acometido correspondem ao quadro clinico. No adulto jovem geralmente é secundária a uretrite por DST e, no idoso, por germes gram-negativos devido ao refluxo da urina contaminada pelo canal deferente. O tratamento é realizado com base nas informações clínicas, uma vez que a identificação do patógeno não é possível na maioria das vezes. A infecção pode evoluir com abscesso escrotal, que implicará em drenagem cirúrgica e, eventualmente, epididimectomia. de peso, massa abdominal palpável e dor lombar são observados também em tumores renais. Febre, leucocitose, leucocitúria, cultura de urina positiva e antecedentes de ITU sugerem a possibilidade de pielonefrite xantogranulomatosa. Exames de imagem como ultra-som, a tomografia e a ressonância oferecem dados que sugerem o diagnóstico, porém não são específicos. O tratamento da pielonefrite xantogranulomatosa é cirúrgico. Nefrectomia total quando a doença compromete todo o rim ou nefrectomia parcial na doença segmentar. Prostatite A prostatite é a condição inflamatória da próstata. Pode ser classificada em aguda ou crônica e ter origem infecciosa ou nãoinfecciosa. A síndrome dolorosa pélvica, antes denominada prostatodinia, é uma entidade distinta na qual a dor perineal crônica não tem origem comprovadamente prostática. A prostatite bacteriana aguda caracteriza-se por dor perineal, febre, calafrios, sintomas miccionais irritativos (urgência miccional, polaciúria, disúria) e até retenção urinária aguda. Necessita de pronto tratamento, pois pode evoluir para sepse e abscesso prostático e se disseminar para órgãos adjacentes como o epidídimo e testículo. Ao exame físico, o toque digital mostra a próstata aumentada de volume, amolecida e dolorosa. A prostatite bacteriana crônica, geralmente tem sintomas brandos e graus variados de disfunção miccional, e caracteriza-se por infecções urinárias recorrentes, causadas pela persistência do patógeno no sistema secretor prostático. O tratamento das prostatites deve ser realizado com antimicrobianos que apresentem elevada biodisponibilidade no tecido prostático e, geralmente, deve ser prescrito por tempo prolongado. M E D I D A S A D J U V A N T E S PERSPECTIVAS FUTURAS E Probióticos São microorganismos que promovem a saúde do hospedeiro através da microflora. Dentro deste conceito, tem sido demonstrado o fator protetor do Lactobacillus casei em infecções urinárias por E. coli. Assim, a suplementação dietética com preparados lácteos enriquecidos com esses microorganismos tem sido proposto como adjuvante, embora ainda sem forte evidência científica da sua eficácia. Interferência Bacteriana Consiste na utilização de bactéria nãopatogênica para ativar a imunidade local prevenindo a colonização por bactérias patogênicas. Trata-se de um conceito ainda experimental. Vacinas Experimentalmente já foram testadas vacinas contendo cepas de E. coli, Proteus mirabillis, Proteus morganii, Enterococcus faecalis e Klebsiella pneumonia inativadas pelo calor, que foram inoculadas na forma de supositórios vaginais. Uma nova geração de vacinas, fruto da engenharia genética, foram testadas in vitro e modelos animais com sucesso, visando interferir com a aderência Epididimite É a infecção ou inflamação do epidídimo. Como este órgão se comunica com a uretra prostática, a infecção, em muitos casos, pode ser secundária a uma uretrite ou prostatite. Como o epidídimo é contíguo ao testículo, 5 bacteriana ao urotélio. Também relevante foi a identificação, no genoma da E. coli, de um gene caracterizado como responsável pela codificação de uma proteína específica uropatogênica, determinante da virulência deste microorganismo na infecção urinária e prostatite, podendo essa descoberta resultar em novas estratégias para a confecção de vacinas. REFERÊNCIAS RECOMENDADAS 1)Araújo MAT, Rocha MAFo., Imbroisi MA. Infecção do Trato Urinário em Mulheres. Consenso Brasileiro sobre Infecções Urinárias - Sociedade Brasileira de Urologia. International Braz J Urol 2004; 29 (Suppl. 3):25-29. 2)Martins ACP, Tigre AS, Riccetto CLZ. Pielonefrite Aguda. Consenso Brasileiro sobre Infecções Urinárias - Sociedade Brasileira de Urologia. International Braz J Urol 2004; 29 (Suppl. 3):30-34. Alimentos Ingestão constante de suco de cranberry, uma fruta da família Vaccinium sp que corresponde à nossa uva-domonte ou oxicoco, tem sido proposta na prevenção de infecção urinária devido à sua capacidade de inibição das fímbrias tipo P da E. Coli. 3)Rodrigues PRM, Irony O, Ortiz V. Infecção do Trato Urinário Complicada - Causas Urológicas. Consenso Brasileiro sobre Infecções Urinárias - Sociedade Brasileira de Urologia. International Braz J Urol 2004; 29 (Suppl. 3):40-44. Imunoterapia 4)Lucon AM, Almeida JC, Forjaz NGMJr. Novas Perspectivas no Tratamento da Infecção do Trato Urinário. Consenso Brasileiro sobre Infecções Urinárias - Sociedade Brasileira de Urologia. International Braz J Urol 2004; 29 (Suppl. 3):63-64. Extrato de bactérias constituído de imunoestimulantes oriundos de 18 cepas de E. coli foi usado via oral para tratamento de ITU recorrente em ratos. Observou-se resposta celular mediada por células Th1 e aumento dos níveis de interferon gama, demonstrando o potencial benefício desta terapia em ITU . 6