O princípio da boa-fé objetiva no Código Civil

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doutrina » direito das obrigações e contratos » teoria dos contratos » princípios » boa-fé
objetiva
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O princípio da boa-fé objetiva no
Código Civil
Elaborado em 03.2004.
Lucinete Cardoso de Melo
advogada, especialista em direito empresarial pela Universidade Mackenzie e mestranda
em Direito das Relações Econômicas pela UNIFRAN
INTRODUÇÃO
O Código Civil aprovado, Lei n º 10.406 de 10/01/02, confirmou o "sentido
social" que presidiu a feitura do projeto. Optou-se por preservar, sempre
que possível, as disposições do código atual, mas é inegável que o Código
atual obedeceu ao espírito de sua época e as alterações se fizeram
necessárias.
Em contraste com o sentido individualista que condicionava o Código Civil
anterior, o "sentido social" é uma das características mais marcantes do
Código Civil ora em vigor.
No item 26 do Parecer Final do Relator ao Projeto do Código Civil, o
Senador Josaphat Marinho, ressaltou a necessidade de prudência no
prosseguimento dos trabalhos legislativos, cabendo proceder-se "com
espírito isento de dogmatismo, antes aberto a imprimir clareza, segurança
e flexibilidade ao sistema em construção, e portanto adequado a recolher e
regular mudanças e criações supervenientes" (1).
Há algum tempo, vem sendo sentido o crescente intervencionismo estatal
na atividade privada, acarretando a mitigação do princípio da autonomia da
vontade e por conseqüência enfraquecendo a idéia da obrigatoriedade das
convenções, com a crescente admissão de revisão dos contratos.
Com o fim do individualismo do Século XIX, o paradigma do dirigismo
contratual trouxe consigo alguns conceitos, como a ordem pública, a
função social, o interesse público e a boa fé.
Ao fim da 2a Guerra Mundial, e diante do amadurecimento do mundo, os
conceitos amadurecem e passam a possuir contornos mais definidos,
enquanto que a ordem pública perde seu caráter intervencionista e passa a
preservar a dignidade humana.
Anteriormente o texto baseava-se na segurança da lei, na idéia de que a lei
deveria ser universal geral, prever tudo (quanto o possível), onde o Juiz era
uma figura automata, o famoso "boca da lei", la bouche de la loi, na
linguagem de Montesquieu.
Já no início do Século XX esses conceitos foram alterados, substituídos por
aquilo que hoje chama-se de "sistema aberto". Nesse, o ponto central
deixou de ser o texto legal, passou a ser o juiz e deixamos de utilizar
conceitos determinados para utilizarmos cláusulas gerais.
No direito pós-moderno o Código Civil deixou de ser o principal
ordenamento jurídico para dar lugar à Constituição Federal e aos vários e
importantes microssistemas (como por exemplo o Estatuto da Criança e do
Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, entre outros).
Os textos constitucionais passaram a definir princípios relacionados a
temas antes exclusivamente do Código Civil. A função destes princípios é a
de integrar e conformar a legislação ordinária à Lei Fundamental. A adoção
destes conceitos jurídicos indeterminados, que trouxeram como vantagem
a possibilidade de adaptação das normas às novas necessidades da
coletividade, deixando de ser apenas mecanismos supletivos, para
adquirirem a função de fonte de direito.
É dentro desse contexto que surge o princípio da boa-fé objetiva.
I – CLÁUSULAS GERAIS
Constituem janelas abertas para a mobilidade da vida, e revolucionam a
tradicional teoria das fontes.
Como esclarece Judith Hofmeister Martins Costa, através do sintagma
"cláusula geral". "costuma-se também designar tanto determinada técnica
legislativa em si mesma não-homogênea, quanto certas normas jurídicas,
devendo, nessa segunda acepção, ser entendidas pela expressão
"cláusula geral" as normas que contêm uma cláusula geral.
É ainda possível aludir, mediante o mesmo sintagma, às normas
produzidas por uma cláusula geral" (2)
Como é próprio do sistema de codificação, o Código Civil atual não
abrangem materiais que envolvam questões que vão além dos lindes
jurídicos, albergando somente as questões que se revistam de certa
estabilidade, de certa perspectiva de duração, sendo incompatível com
novidades ainda pendentes de maiores estudos.
O Código anterior possuía excessivo rigorismo formal, ou seja, quase sem
referência à equidade, boa-fé, justa causa ou quaisquer critérios éticos. Já
o novo Código Civil conferiu ao Juiz não só o poder de suprir lacunas,
como também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com
valores éticos.
Os novos tipos de normas buscam formular hipóteses legais mediante o
emprego de conceitos cujos termos têm significados intencionalmente
vagos e abertos. As cláusulas gerais rejeitam a indicação de conceitos
perfeitos e acabados pois buscam a vantagem da mobilidade,
proporcionada pela intencional imprecisão, e por isso permite capturar, em
uma mesma hipótese, uma ampla variedade de casos resolvidos por via
jurisprudencial e não legal.
As cláusulas gerais podem ser de três tipos, e em outro trabalho Judith
Hofmeister Martins Costa (3) estruturam-na, a saber:
Multifacetárias e multifuncionais, as cláusulas gerais podem ser
basicamente de três tipos, a saber: a) disposições de tipo restritivo,
configurando cláusulas gerais que del 26 do Parecer Final do Relator ao
Projeto do Código Civil, o Senador Josaphat Marinho, ressaltou a
necessidade de prudência no prosseguimento dos trabalhos legislativos,
cabendo proceder-se "com espírito isento de dogmatismo, antes aberto a
imprimir claregais, que têm sua fonte no princípio da liberdade contratual;
b) de tipo regulativo, configurando cláusulas que servem para regular, com
base em um princípio, hipóteses de fato não casuisticamente previstas na
lei, como ocorre com a regulação da responsabilidade civil por culpa; e, por
fim, de tipo extensivo, caso em que servem para ampliar uma determinada
regulação jurídica mediante a expressa possibilidade de serem
introduzidos, na regulação em causa, princípios e regras próprios de outros
textos normativos. É exemplo o artigo 7o do Código do Consumidor e o
parágrafo 2o do artigo 5o da Constituição Federal, que reenviam o aplicador
da lei a outros conjuntos normativos, tais como acordos e tratados
internacionais e diversa legislação ordinária (4)
Os elementos que preenchem seu significado não são necessariamente,
elementos jurídicos, pois virão de conceitos sociais, econômicos ou moral.
A principal função das cláusulas gerais, é a de permitir que no sistema
jurídico de direito escrito, a criação da norma jurídica ficará ao alcance do
juiz, atribuindo à sua voz a dicção legislativa, pela reiteração dos casos e
pela reafirmação, no tempo, da ratio decidendi dos julgados e a exata
dimensão da sua normatividade.
Nas primeiras linhas do Parecer de aprovação do Relator do Projeto do
Código Civil no Senado Federal, Senador Josaphat Marinho, assim
expressa: "(...) o Projeto de Código Civil em elaboração no ocaso de um
para o nascer de outro século, deve traduzir-se em fórmulas genéricas e
flexíveis em condições de resistir ao embate de novas idéias (...) (5).
Clóvis do Couto e Silva, integrante da mesma comissão, escreveu em
trabalho acerca da proposta da nova lei civil:
"O pensamento que norteou a Comissão que elaborou o
projeto do Código Civil brasileirofoi o de realizar um
Código central, no sentido que lhe deu Arthur Steinwenter,
sem a pretensão de nele incluir a totalidade das lei em
vigor no País (...). O Código Civil, como Código Central,
é mais amplo que os código civis tradicionais. É que a
linguagem é outra, e nela se contém "clausulas gerais", um
convite para uma atividade judicial mais criadora,
destinada a complementar o corpus júris vigente com novos
princípios e normas" (6).
As cláusulas gerais não estão dispersas no Código Civil. É nos livros
concernentes ao Direito de Família e ao Direito das Obrigações que
encontramos a maior parte das cláusulas.
II – CONCEITO
A boa-fé objetiva constitui um princípio geral, aplicável ao direito.
Segundo Ruy Rosado de Aguiar (7) podemos definir boa-fé como "um
princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de
acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera deveres
secundários de conduta, que impõem às partes comportamentos
necessários, ainda que não previstos expressamente nos contratos, que
devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas
expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avenca".
Como se vê, a boa-fé objetiva diz respeito à norma de conduta, que
determina como as partes devem agir. Todos os códigos modernos trazem
as diretrizes do seu conceito, e procuram dar ao Juiz diretivas para decidir.
Mesmo na ausência da regra legal ou previsão contratual específica, da
boa-fé nascem os deveres, anexos, laterais ou instrumentais, dada a
relação de confiança que o contrato fundamenta.
Não se orientam diretamente ao cumprimento da prestação, mas sim ao
processamento da relação obrigacional, isto é, a satisfação dos interesses
globais que se encontram envolvidos. Pretendem a realização positiva do
fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os
riscos de danos concomitantes.
Na questão da boa-fé analisa-se as condições em que o contrato foi
firmado, o nível sociocultural dos contratantes, seu momento histórico e
econômico. Com isso, interpreta-se a vontade contratual.
Deve-se crer que, em princípio, nenhum contratante celebra contrato sem a
necessária boa-fé. Mas, a má-fé inicial ou interlocutória de ser punida. E
em cada caso o juiz deverá definir quando e onde foi o desvio dos
participes do contrato, e levará em conta a hermenêutica e interpretação.
As cláusulas gerais inserida no Novo Código Civil, não nos dão perfeita
idéia do conteúdo, pois tem tipificação aberta e com conteúdo dirigido aos
Juizes. Mas, constituem-se em mecanismo técnico-jurídico para aferição da
abusividade do negócio jurídico ou da interpretação da vontade.
O equilíbrio contratual pretendido não é apenas o econômico, pretende-se
preservar a função econômica para a qual o contrato foi concebido,
resguardando-se a parte que tiver seus interesses subjugados aos de
outra.
O primeiro jurista a mencionar, no Brasil, a aplicação do princípio da boa-fé
objetiva foi Emilio Betti, em 1958 (8). No entanto, o Código Comercial de
1850 previa a boa-fé objetiva como cláusula geral em seu artigo 131, I,
como elemento de interpretação dos negócios jurídicos, como segue:
Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do
contrato, a interpretação, além das regras sobreditas,
será regulada sobre as seguintes bases:
1. a inteligência simples e adequada, que for mais
conforme a boa-fé, e ao verdadeiro espírito e a natureza
do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e
restrita significação das palavras;...
Esse artigo não teve aplicação doutrinária ou jurisprudencial e somente
agora a boa-fé recebeu tratamento legislativo próprio.
Segundo Renata Domingues Barbosa Balbino (9), entre a boa-fé objetiva e a
subjetiva há um elemento comum – a confiança, mas somente na objetiva
há um segundo elemento – o dever de conduta de outrem. Ensina ainda:
"a boa-fé objetiva possui dois sentidos diferentes: um
sentido negativo e um positivo. O primeiro diz respeito à
obrigação de lealdade, isto é, de impedir a ocorrência de
comportamentos desleais: o segundo diz respeito à
obrigação de cooperação entre os contratantes, para que
seja cumprido o objeto do contrato de forma adequada, com
todas as informações necessárias ao seu bom desempenho e
conhecimento (como se exige, principalmente, nas relações
de consumo). (10)
III – UMA ABORDAGEM SOBRE PACTA SUNT SERVANTA E REBUS
SIC STANTIBUS
O presente estudo trata das causas e dos efeitos das relações jurídicas
entre as pessoas. Analisa-se a abrangência da manifestação das vontades,
que cria, muda ou encera direitos sem esbarrar no emaranhado de
interesses.
Mas, torna-se imprescindível analisarmos estes temas correlatos, que,
assim como a boa-fé objetiva, destinam-se à garantia de um fim
juridicamente protegido ou, pelo menos, almejado.
Primeiramente, o contrato só passa a ser obrigado entre as partes quando
atendidos todos os seus pressupostos de validade, os quais Maria Helena
Diniz (11) chama "elementos essenciais". E, estando perfeito, um contrato
existe para ser cumprido.
Uma vez firmado determina-se que os contratos devem ser cumpridos, sob
pena de sancionar o inadimplente, já que faz lei entre as partes.
Com a pacta sunt servanda preserva-se a autonomia da vontade, a
liberdade de contratar e a segurança jurídica do nosso ordenamento
jurídico. Esse principio da força obrigatória é uma regra, e uma vez
manifestada a vontade, as partes ficam vinculadas e geram os direitos e
obrigações, sujeitando-se a estes do mesmo modo que qualquer norma
legal.
São requisitos subjetivos para a validade do negócio jurídico:
- a livre manifestação de vontades;
- a capacidade genérica e específica dos contraentes;
- o consentimento.
São requisitos objetivos para a validade do negócio jurídico:
- a licitude do objeto;
- a possibilidade física e jurídica;
- a economicidade;
- o objeto determinado ou determinável.
Além disso, no caso dos negócios jurídicos formais, exige-se a forma legal
determinada, ou não vedada e a prova admissível (12).
Assim, atendidos estes pressupostos, o contrato obriga as partes de forma
quase absoluta. Quase absoluta por que deverão ser respeitados outros
princípios que coexistem. São eles:
- o da boa-fé;
- o da legalidade;
- o princípio do consensualismo;
- o princípio da comutatividade contratual;
- o princípio da relatividade dos efeitos dos contratos;
- outros princípios gerais de direito que integram o nosso sistema.
Orlando Gomes (13) ensina que "se ocorrem motivos que justificam a
intervenção judicial em lei permitida, há de realizar-se para decretação da
nulidade ou da resolução do contrato, nunca para modificação de seu
conteúdo."
Mas, o Professor faleceu em 1998 e nas últimas décadas a tendência
doutrinária e jurisprudencial vem se firmando no sentido de que é preciso
intervir e corrigir as distorções e o desequilíbrio nos contratos.
Hoje é imperiosa a defesa da ordem pública e o equilíbrio jurídico, contra
invocação do pretenso "direito adquirido" alegado pelo contratante, ora
credor.
No campo do direito das obrigações estão inseridas cláusulas que pugnam
pelo cumprimento integral do contrato, e outras que permitem a revisão do
contrato, quando ocorreram fatos imprevistos ou imprevisíveis, posteriores
a celebração do contrato.
Se permitirá a revisão de cláusulas contratuais sempre que houver
desequilíbrio entre as prestações e a contraprestações, e uma
conseqüente onerosidade excessiva suportada por uma parte em benefício
do enriquecimento fácil da outra parte contratante.
Na revisão contratual não se pretende a declaração de nulidade do
contrato, mas sim a garantia da execução eqüitativa do pacto. Como efeito
da cláusula rebus sic stantibus.
A expressão rebus sic stantibus (estando as coisas assim) é empregada
para designar a teoria da imprevisão. A ocorrência de um fato imprevisível
posterior à celebração do contrato, deverá permitir que esse se ajuste à
nova realidade.
Quando da execução da obrigação contratual, se houveram mudanças não
há como exigir-se seu cumprimento nas mesmas condições pactuadas. A
execução continua exigível, mas será necessário um ajuste contratual,
onde se adequem suas condições.
Arnaldo Medeiros da Fonseca aponta os principais requisitos necessários à
aplicação da teoria da imprevisão:
- o diferimento ou a sucessividade na execução do contrato;
- alteração nas condições circunstanciais objetivas em relação ao momento
da celebração do contrato;
- excessiva onerosidade para uma parte contratante e vantagem para a
outra;
- imprevisibilidade daquela alteração circunstancial. (14)
Nelson Zunino Neto acrescenta à estes outros três pressupostos, como
seguem:
- o nexo causal entre a onerosidade e vantagens excessivas e a alteração
circunstancial objetiva;
- a inimputabilidade às partes pela mudança circunstancial;
- a imprevisão da alteração circunstancial (15).
Em seu trabalho o autor considera que se deve acrescentar o requisito do
nexo da causalidade por que só desproporção demasiada entre o ônus e o
bônus das partes, ainda que tenha revisão contratual se tal contraste não
for decorrente da mudança (16).
Como a mudança circunstancial (seja externa, conjuntural, provocada pela
própria natureza, pelas autoridades, ou ainda pelo comportamento
macroeconômico) não poderá ser imputada a qualquer dos contratantes,
também não conferirá direito ao recebimento de perdas e danos, mas,
somente assim permitirá a revisão judicial.
Devemos lembrar que a imutabilidade é a regra geral, mas a adoção da
teoria da imprevisibilidade é a exceção, sendo aceitável como limitadora da
força obrigatória, que interfere no contrato para harmonizar o fim
pretendido pelas partes a efetiva execução das obrigações. Não interfere
na autonomia da vontade, por que não se muda a manifestação do objetivo
pretendido, só o que não está adstrito à essa vontade, e era imprevisível.
Mas, falta conceituar imprevisibilidade.
Um acontecimento é imprevisto quando não há a possibilidade de
conhecimento sobre a ocorrência de um acontecimento. É a possibilidade
de conhecer o que pode vir a acontecer. Dos contratantes exige-se a
previsibilidade, ou seja, conhecer o que pode acontecer, ao menos aquilo
que for razoavelmente previsível.
Diante disso, infere-se que, o liberalismo econômico necessita que se
reprima a desigualdade entre as partes, o proveito injustificado, a
onerosidade excessiva, criando mecanismos que permitem uma
relatividade dogmática ao princípio da obrigatoriedade dos contratos.
O Novo Código Civil, em seu texto legal, reconhece o valor social do
contrato, como meio de protecionismo social ao economicamente mais
fraco nas relações contratuais, introduzindo institutos como o do estado de
perigo (artigo 156), da lesão (artigo 157) e da cláusula rebus sic stantibus
(artigo 478 – 480).
Com isso o Direito Civil Brasileiro pretende alcançar, da melhor maneira
possível, harmonia entre os interesses coletivos, permitindo a revisão
contratual mediante fundadas alterações eqüitativas. E, pela compreensão
do caso concreto, conservar a eficácia do contrato e reequilibrar o negócio
jurídico e sua utilidade.
IV – A FUNÇÃO SOCIAL E O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NOS
CONTRATOS
O artigo 421 do novo Código Civil determina que "a liberdade de contratar
será exercida em razão e nos limites da função social do contrato",
enquanto que o artigo 422 dispõe que "os contratantes são obrigados a
guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios da probidade e boa-fé".
Verifica-se ter havido uma mudança na mens legem na concepção da
finalidade da relação jurídica contratual, em relação ao Código Civil
anterior. O modelo liberal, que tinha na vontade das partes a fonte criadora
de direito e obrigações (desde que livremente formalizados e em
observância à ordem pública), teve como resposta uma regra de conduta
fundada na certeza de que todas as pessoas da sociedade serão
protegidas pela lei, antes mesmo de contratarem.
Este modelo liberal trazia uma concepção clássica do contrato, onde as
cláusulas eram estipuladas pelos contratantes, utilizando-se da livre
manifestação da vontade como sustentáculo. A vontade expressa no
contrato faria lei entre as partes. E nem mesmo o Juiz (no julgamento da
causa) poderia violar a manifestação de vontade firmada.
A teoria conhecida como pacta sunt servanda encontrou ressalvas a esse
absolutismo quando do surgimento da teoria da imprevisão. Mas, mesmo
com fundamento nesta teoria, a sentença jamais modificaria a vontade das
partes, a não ser que o pedido decorresse de situações imprevisíveis ou de
onerosidade excessiva, devidamente comprovada.
Após a vontade emitida e assinada em contrato, ao direito caberia impor às
partes a responsabilidade pelo cumprimento do compromisso, ou estaria
em risco toda a segurança conferida ao negócio jurídico.
Mas, o contrato deveria estar sempre embasado na autonomia de vontade
das partes, e o tempo demonstrou que, na realidade, não há liberdade para
contratar quando este ato é realizado em momento de necessidade e
pressão. Quando a realização do ato garante ao contratante a subsistência
no meio social, e este não consegue exprimir a sua real vontade.
O artigo 422 enaltece os deveres éticos, exigidos nas relações jurídicas,
quais sejam: a veracidade, integridade, honradez e lealdade. São regras de
condutas exigíveis inseridas no reconhecimento da cláusula gerais de boafé objetiva. Mas, mesmo que o contrato venha a ser celebrado sob a tutela
da boa-fé objetiva, deve-se ter garantido o integro equilíbrio entre os
interesses privados e coletivos, sempre acentuando as diretrizes da
sociabilidade do direito.
O "sentido social" é uma das características mais marcantes do novo
Código Civil, ficando em claro contraste com o sentido individualista do
dispositivo anterior. E em todo o Direito Privado percebe-se a intenção de
compatibilizar o principio da liberdade com o da igualdade. E, em especial,
no direito das obrigações, o legislador diminuiu a liberdade individual em
busca do desenvolvimento de toda a coletividade, preocupado com a
realidade social dos envolvidos na relação contratual.
Então, quando o texto legal dispõe sobre a função social do contrato, devese lembrar que "função social" é um conceito que inspira todo o nosso
ordenamento jurídico, na tentativa de fundar as bases de uma justiça de
natureza mais distributiva, promovendo a inclusão social dos excluídos.
Com conceito indefinido, mas de claro alcance, pretende-se que a função
social apregoada no artigo 421 signifique a prevalência do interesse público
sobre o privado. É preciso que cada negócio jurídico alcance os fins
pactuados, impedindo-se que o contrato seja meio de destruição do bem
comum, ao invés de construção deste bem pretendido.
Por exemplo, quando um homem mediano encontra-se economicamente
debilitado e contrata com uma parte economicamente auto-suficiente e
bem provida de informações, há probabilidades de submissão de vontade,
já que a parte "frágil" jamais contestaria as condições pactuadas, diante de
sua necessidade imediata de atingir o seu fim.
A instituição da função social dos contratos pretende o controle e proteção
deste equilíbrio quando, objetivamente, age levando em conta as
circunstancias alheias que incidam negativamente sobre o pacto. Como
ensina Claudia Lima Marques:
" À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de
consumo moderna, o direito destacará o papel da lei como
limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da
vontade. A lei passará a proteger determinados interesses
sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as
expectativas e a boa-fé das partes contratantes.
Conceitos tradicionais como os do negócio jurídico e da
autonomia da vontade permanecerão, mas o espaço reservado
para que os particulares auto-regulem suas relações será
reduzido por normas imperativas, como as do próprio Código
de Defesa do Consumidor. É uma nova concepção de contrato
no Estado Social, em que a vontade perde a condição de
elemento nuclear, surgindo em seu lugar elemento estranho
às partes, mas básico para a sociedade como um todo: o
interesse social. Haverá um intervencionismo cada vez
maior no Estado nas relações contratuais, no intuito de
relativizar o antigo dogma da autonomia da vontade com as
novas preocupações de ordem social, com a imposição de um
novo paradigma, o princípio da boa-fé objetiva. É o
contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na
sociedade de consumo, mas assim como o direito de
propriedade, agora limitado e eficazmente regulado para
que alcance a sua função social." (17)
A liberdade de contratar, fundada na autonomia de vontade, deixou de
existir diante do ideal consumerista a que fomos educados, que nos obriga
a assumirmos compromissos como meio de busca de vida melhor e
sucesso social. E, em resposta às modificações pelas quais a sociedade
passou no curso da história, o legislador pátrio exige o respeito à função
social e ao principio da boa-fé objetiva. Mas, o que muda na prática? Como
serão sentidos os efeitos destes na relação jurídica praticada?
Bem, na sociedade capitalista o contrato passou a ser uma forma de
batalha, onde os competidores deverão agir com boa-fé objetiva, tendo
sempre em foco os ideais do Estado Social. Não serão aceitos, nesta
arena, os competidores que busquem uma postura desleal ou
aproveitadora. A disputa deverá evoluir de forma uniforme entre as partes,
impondo aos contratantes deveres anexos as disposições contratuais.
Esse dispositivo altera também a função real dos Magistrados, que agora
serão convocados quando um dos contratantes julgar-se lesado ou
inferiorizado na relação obrigacional. E na analise do caso lidará com
conceitos abstratos como retidão de caráter, honradez e probidade,
obrigações que todos deverão arcar no trato de seus negócios.
Ao Juiz caberá delinear o "mínimo ético", e participará da construção da
nova concepção de direito contratual. Por ser um sistema aberto estes
conceitos poderão evoluir e modificar-se com o tempo, e de acordo com os
casos concretos.
Quando da vigência da legislação anterior, o Magistrado deveria analisar o
contrato levando em conta o disposto textualmente. Só caberia
interpretação das clausulas obscuras, levando-se em conta a boa-fé. Com
o novo dispositivo legal, a boa-fé deixou de ser forma interpretativa e foi
alçada a forma de comportamento das partes. O julgador poderá corrigir a
postura de qualquer dos contratantes, sempre que observar desvio de
conduta ou de finalidade. Sua visão deverá esta além da letra do negócio
jurídico, e alcançar as atitudes dos contratantes.
V – BOA-FÉ SUBJETIVA E BOA-FÉ OBJETIVA
Como já mencionado anteriormente, na legislação civil anterior os contratos
com cláusulas obscuras eram analisados sob o prisma da boa-fé subjetiva.
Já o Novo Código Civil trata a boa-fé em sua acepção objetiva.
Boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva possuem conceitos e aplicações
diferentes, e neste capítulo trataremos destas conceituações e de suas
aplicações.
A boa-fé objetiva teve seu conceito advindo do Código Civil Alemão, que
em seu parágrafo 242 já determinava um modelo de conduta. Cada pessoa
deve agir como homem reto: com honestidade, lealdade e probidade. Levase em conta os fatores concretos do caso, não sendo preponderante a
intenção das partes, a consciência individual da lesão ao direito alheio ou
da regra jurídica. O importante é o padrão objetivo de conduta.
A boa-fé subjetiva, por outro lado, denota estado de consciência, a
intenção do sujeito da relação jurídica, seu estado psicológico ou intima
convicção. Para sua aplicação analisa-se a existência de uma situação
regular ou errônea aparência, ignorância escusável ou convencimento do
próprio direito.
Antes do Código Alemão, o Código Civil Napoleônico e o Código Civil
Italiano também faziam referencia à boa-fé objetiva. Mas, somente após a
Segunda Guerra Mundial a jurisprudência alemã construiu a teoria da boafé objetiva, que veio a ser guinada à condição de princípio geral.
O parágrafo 242 do Código Civil Alemão, o mais célebre exemplo de
clausula geral, é assim redigido:
"# 242 : O devedor deve (está adstrito a) cumprir a
prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração
pelos costumes do trafego jurídico".
No primeiro projeto do Código Civil alemão as disposições do atual
parágrafo 242, bem como as do parágrafo 157, incluíam-se no texto do
parágrafo 359, que era assim redigido:
"através dele (o parágrafo 359) não são apenas dados
certos pontos de referencia para a averiguação das
vinculações que nascem de contratos concretos; exprime-se
antes, sobretudo, o princípio prático e importante de que
o trafego negocial hoje é dominado pela consideração da
boa-fé e, de que, quando esteja em causa a determinação do
conteúdo de um contrato ou das vinculações dele
resultantes para as partes, deve tornar-se essa
consideração, em primeira linha, como fio condutor". (18)
O Código Civil Holandês também trata da cláusula geral da boa-fé, em seu
artigo 248 do Livro das Obrigações, que prevê:
"... que as partes devem respeitar não só aquilo que
convencionaram como também tudo que resulta da natureza do
contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da
equidade."
No texto legal, os autores holandeses não utilizaram a palavra "boa-fé",
evitando confusões com a chamada "boa-fé subjetiva".
Como já foi dito, a boa-fé subjetiva tem o sentido de conhecimento ou de
desconhecimento de uma situação. E a cláusula geral acima tratada, que é
um princípio objetivo, no sentido de comportamento.
Assim, a boa-fé objetiva constitui um preceito de conduta a ser observado
nas relações obrigacionais e portanto, ajusta-se à idéia de que o contrato é
uma forma pela qual as partes buscam a consecução de fins previamente
estabelecidos.
Ensina Orlando Gomes, que: "nos contratos, há sempre interesses opostos
das partes contratantes, mas sua harmonização constitui o objetivo mesmo
da relação jurídica contratual. Assim, há uma imposição ética que domina a
matéria contratual, vedando o emprego da astúcia e da deslealdade e
impondo a observância da boa-fé e lealdade, tanto na manifestação da
vontade (criação do negócio jurídico) como, principalmente, na
interpretação e execução do contrato". (19)
VI – O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NO CÓDIGO CIVIL
O Código Civil anterior não possuía tratamento legislativo próprio. Mas, o
Código Comercial de 1850 já previa a boa-fé objetiva em seu artigo 131, 1,
como elemento para interpretação dos negócios jurídicos, como segue:
Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do
contrato, a interpretação, além das regras sobreditas,
será regulada sobre as seguintes bases:
1.a inteligência simples e adequada, que for mais conforme
à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato,
deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita
significação das palavras;... (grifo nosso)
Apesar de literalmente tratado, o princípio transformou-se em letra morta,
por falta de
Aplicação doutrinaria ou jurisprudencial.
O Código Civil de 1916 não previa o princípio da boa-fé objetiva como
regra geral, mas previa-o com aplicação específica nos contratos de
seguro, em seu artigo 1.443:
Art. 1.443. O segurado e o segurador são obrigados a
guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade,
assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e
declarações a ele concernentes.
E foi tratada para aplicação na forma de boa-fé subjetiva (analisando-se o
estado de consciência, com o conhecimento ou desconhecimento de uma
situação) em inúmeros artigos, como seguem:
Artigo 221. Embora anulável, ou mesmo nulo se contraído de
boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a
estes como aos filhos, produz todos os efeitos civis até
ao dia da sentença anulatória.
Artigo 490. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o
vício, ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa,
ou do direito possuído.
Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a
presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a
lei expressamente não admite esta presunção.
Artigo 551. Adquire também o domínio do imóvel aquele que,
por dez anos entre presentes, ou quinze entre ausentes, o
possuir como seu, contínua e incontestadamente, com justo
título e boa-fé.
Artigo 968. Se, aquele, que indevidamente recebeu um
imóvel, o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso,
responde somente pelo preço recebido; mas, se obrou de máfé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos.
(grifos nossos)
Posteriormente, o Código de Defesa do Consumidor previu a boa-fé
objetiva, como forma de harmonizar os interesses das relações de
consumo, em seus artigos 4o, III e 51, IV, respectivamente:
Artigo 4o. A Política Nacional das Relações de Consumo tem
por objetivo o atendimento das necessidades dos
consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e
segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a
melhoria de sua qualidade de vida, bem como a
transparência e harmonia das relações de consumo,
atendidos os seguintes princípios:
.... . . . .
III. harmonização dos interesses dos participantes das
relações de consumo e compatibilização da proteção do
consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico
e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos
quais se funda a ordem econômica (art. 170, da
Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e
equilíbrio nas relações entre consumidores e
fornecedores;....
Artigo 1. São nulas de pleno direito, entre outras, as
cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de
produtos e serviços que:
......
IV- estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas,
que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou
seja, incompatíveis com a boa-fé ou a equidade....
Mesmo antes do CDC já haviam jurisprudências dos Tribunais, que já
adotavam a boa-fé nas relações contratuais.
Como importante princípio geral de direito, deve ser aplicado pela
jurisprudência como intermediário entre a lei e o caso concreto.
Desde a elaboração do Novo Código Civil os doutrinadores propunham a
adoção deste princípio, que é essencial no Direito das Obrigações, e com
isso suprir-se as lacunas existentes.
Para frisar a importância da inserção deste princípio geral ao nosso
ordenamento jurídico, devemos lembrar que este vem sendo aplicado a
todo direito civil obrigacional.
O Código Civil Germânico (BGB, de 1896) deu início à concepção objetiva
da boa-fé (conforme exposto no capítulo VI do presente trabalho) em seu
parágrafo 242, apresenta uma cláusula geral capaz de dar flexibilidade ao
sistema fechado.
Em 1996 o Código Civil Português também incluiu o princípio no direito
obrigacional em vários artigos, mas em especial no artigo 762, 2a alínea,
que dispõe:
"No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do
direito correspondente, devem as partes proceder de boafé".
O Código Civil Italiano trata a boa-fé como cláusula geral, como se vê:
Artigo 1.374. Execução de boa-fé – o contrato deve ser
executado segundo a boa-fé.
O Direito Civil Americano tem legislação própria que trata de toda a matéria
comercial e de parte do direito contratual. Nesse Código Comercial
Uniforme (UCC) há um artigo qe trata da boa-fé:
"Cada contrato ou obrigação no quadro da presente lei
impõe uma obrigação de boa-fé no adimplemento ou execução
do contrato".
Como mencionado anteriormente, o Código Civil anterior fazia menção
expressa à boa-fé objetiva, apenas em seu artigo 1.443, e com fins
específicos.
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objetiva
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