EXPLORANDO O ANARCA-FEMINISMO: MULHERES E A LUTA DE CLASSES Property is Theft Há alguns meses atrás, Carrie Hamilton disse ao The Guardian: “não há uma única feminista nesse planeta que não se sinta ultrajada pela violência doméstica e sexual, e também pela absoluta cumplicidade de governos, forças policiais e sistemas de justiça em perpetuar essa violência.” Mas, ela acrescentou logo em seguida: “esse problema seríssimo não pode ser entendido ou combatido se isolado de outras formas de violência e opressão, tais quais o racismo, a precarização do trabalho, leis migratórias e pobreza. Infelizmente, os “tópicos preferidos” de muitos grupos feministas hoje em dia têm sido clubes de strip-tease, pornografia, revistas femininas e a indústria sexual de forma geral, como parte de uma tendência crescente de um feminismo branco de classe média. Mas essas não são as questões mais importantes para a maioria das mulheres. Por que deveria uma trabalhadora sexual ser um símbolo do sexismo mais do que uma mulher, profissional competente, cuja promoção foi negada para que fosse aprovada para um colega homem mais jovem? Ou uma garota adolescente que não consegue a educação que ela merece porque sua família é pobre demais para pagar o correio ou sua mensalidade? Ou uma mulher migrante cujas crianças estão presas num centro de detenção? Hamilton cita a observação de Libby Broks de que as “feministas modernas são predominantemente brancas, de classe média e universitárias” e o clamor de Lindsey German e Nina Power por uma “libertação feminina que esteja conectada a um movimento mais amplo pela emancipação humana, que lute pelo controle da produção nas mãos d@s trabalhador@s”. Os três artigos dessas autoras são tentativas de mostrar a estagnação do feminismo nos anos recentes, e todos voltam à questão da classe. Uma perspectiva de classe dentro do feminismo Está mais do que claro que solucionar a questão da desigualdade de gênero não resolve a desigualdade de classes. Outras desigualdades se tornam mais agudas, mais corrosivas quando vistas sob o prisma da classe. Por exemplo, o “Ato Governamental de 1894” deu às mulheres proprietárias de terras o direito ao voto 24 anos antes que o “Ato Representativo Público de 1918” desse o mesmo direto para todas as mulheres acima de trinta anos, e 34 anos antes que todas as mulheres pudessem votar a partir dos 21, assim como os homens. Em um artigo para a North Eastern Federation of Anarchist Communists (NEFAC), bell hooks faz esse apontamento: A Mística Feminista de Betty Friedan identifica como “problema sem nome” a insatisfação que mulheres sentem ao serem confinadas e subordinadas como donasde-casa. Enquanto esse problema é apresentado como a crise das mulheres da época, na verdade só representa um pequeno grupo de mulheres brancas e bem educadas. Enquanto elas reclamavam dos perigos do confinamento ao ambiente doméstico, a maior parte das mulheres da nação integrava a força trabalhadora. E muitas dessas mulheres trabalhadoras, que se esforçavam por horas em troca de salários baixíssimos e ainda tinham os deveres de casa, teriam visto a possibilidade de ficar em casa como uma “liberdade”. Não foi a discriminação de gênero ou a opressão sexista que manteve as mulheres privilegiadas livres do trabalho fora de casa, e sim o fato de que os postos disponíveis eram os mesmos mal remunerados e precarizados abertos a todas as trabalhadoras. Grupos de mulheres ricas e bem educadas preferiram ficar em casa ao invés de fazer o tipo de trabalho a que milhares de mulheres de classe médiabaixa e trabalhadoras estavam se submetendo. Ocasionalmente, algumas dessas mulheres desafiaram as convenções e trabalharam fora, sujeitas a tarefas muito inferiores às suas qualificações e enfrentando a resistência de familiares e maridos. Foi essa resistência que tornou o trabalho fora de casa uma questão de discriminação de gênero, fazendo a com que a busca por direitos iguais aos dos homens da mesma classe se tornasse a plataforma política que privilegiou o feminismo em detrimento da luta de classes. Assim, apenas as mulheres privilegiadas podiam se dar ao luxo de imaginar que trabalhar fora lhes daria renda suficiente para que pudessem ser economicamente autossuficientes. As mulheres da classe trabalhadora já sabiam que os salários que recebiam não as libertariam. É por isso que a visão de uma irmandade feminista política onde todas as mulheres se uniriam para lutar contra o patriarcado não pode surgir se a questão de classe não for confrontada. Mas, no feminismo mainstream, ela não foi. A “colisão com as estruturas sociais existentes eram o preço da libertação feminina”. Isso significava que “o poder de classe se mostrou mais importante do que o feminismo, assim as mulheres de classe média e média-baixa foram repentinamente compelidas pelo etos do feminismo a se unirem à força trabalhadora, mas não se sentiram liberadas porque que enfrentaram a dura realidade de que trabalhar fora de casa não incluía a divisão de tarefas com os homens no trabalho doméstico.” O fato é que não há esperança para a emancipação genuína das mulheres em uma sociedade de classes. Mas isso não significa que simplesmente se possa garantir a igualdade de gênero como resultado da luta de classes. É falacioso pensar que outras desigualdades (raça, gênero, sexualidade, religião, idade, etc.) são subcategorias da desigualdade de classes. Ainda que a classe torne outras discriminações mais proeminentes, isso não implica que o preconceito e a desigualdade não existam além dos limites de classe. Inclusive, assim como a perspectiva branca, de classe média e universitária domina o movimento feminista, da mesma forma a perspectiva branca e masculina é central na luta de classes. Em ambos os casos, o monopólio precisa ser quebrado. Como disse Voltairine de Clayre, “você não pode ter uma sociedade livre, justa ou igualitária, nem nada parecido com isso, enquanto as mulheres forem compradas, vendidas, aprisionadas, vestidas, alimentadas e protegidas como propriedades.” Lutando por igualdade, não presumindo-a O problema não é que a classe trabalhadora seja ativamente discriminatória. Não somos. A ideia de que sexismo e racismo surgem nas favelas é produto do esnobismo, particularmente evidente nas formas liberais de antifascismo , sem fundamento algum (OBS: a crítica ao movimento antifascista é a de que é dominado por pessoas brancas de classe média. A perspectiva liberal e reformista oferecida pelo movimento aliena os mais afetados pela atividade fascista - grupos étnicos minoritários e trabalhador@s.). Porém, isso não significa que esse problema não exista. Por exemplo, a classe pode ser uma barreira financeira para mulheres que precisam escapar do abuso doméstico. Como o abrigo de mulheres de Leeway coloca: “qualquer mulher pode experimentar o abuso doméstico independentemente de raça, etnia ou grupo religioso, classe, deficiência ou estilo de vida. Ainda assim, as barreiras que uma mulher enfrenta para escapar da situação de violência diferem de acordo com seu grupo social.” Assim, homens trabalhadores não estão mais propensos a serem abusivos do que aqueles nas classes privilegiadas ou em postos mais altos, mas o fator de classe impactará diretamente as condições das mulheres vítimas. Isso parece defender a ideia de que uma sociedade sem classes resolveria a maior parte dos problemas de discriminação. Mas não contempla a questão aqui e agora. Como disse várias vezes, não estamos lutando apenas por um amanhã distante e utópico, o bem-estar das pessoas atualmente é primordial quando pensamos em impulsionar um futuro melhor. Para isso, combater outras formas de discriminação e desigualdade deve andar de mãos dadas com a luta contra o sistema de classes e o capitalismo. Nas palavras do grupo anarca-feminista No Pretence, “somos todxs oprimidxs pelo sistema de classes, mas não há ninguém lá fora que não seja oprimidx também pela supremacia branca, imperialismo, heterossexismo, patriarcado, ableísmo, etarismo... e fingir que esses sistemas podem ser embutidos na opressão capitalista apenas silencia as pessoas mais oprimidas, e permite que a dominação desses sistemas seja perpetuada contra nossas vidas.” Isso é particularmente importante para determinar quais organizações usamos para lutar pela igualdade. Muitos sindicatos hoje possuem projetos de igualdade porque, mesmo em indústrias e empresas dominadas por mulheres ou minorias étnicas, elxs são drasticamente subrepresentadxs nas lideranças. Voltando um pouco no tempo, encontramos uma época em que sindicatos impediam esses grupos até mesmo de serem membros, abandonando uma parcela significativa da força trabalhadora. Claramente, não podemos esperar que a igualdade venha naturalmente quando é um produto de muita luta até mesmo dentro das organizações de trabalhadorxs. E não foi apenas nas organizações mainstream, é claro. As Mujeres Libres da Espanha surgiram como a proposta de “empoderar mulheres para fazer delas indivíduas capazes de contribuir para a estruturação da futura sociedade, indivíduas que aprendam a ser autossuficientes e que não sigam cegamente as diretrizes de nenhuma organização”. Elas reconheceram que embora seja necessário “trabalhar em conjunto, juntxs, porque de outra forma não haverá revolução social”, elas também sabiam que “precisavam de sua própria organização para lutar por si mesmas”. Enfrentando a dupla opressão do sexismo e da rústica sociedade espanhola, elas organizaram programas educacionais, aulas técnicas, aulas de estudos sociais, assim como hospitais próprios com maternidade e pós-natal compleo para mulheres, e também aulas para crianças, controle reprodutivo e sexualidade. Elas ajudaram a estabelecer coletivos rurais com os anarquistas da CNT e da FAI. Mas sua luta contra o sexismo e o patriarcado ocorreu juntamente com o movimento revolucionário e lado a lado com este. Para ganhar suporte mútuo, elas criaram redes de mulheres anarquistas. Em suas reuniões, verificavam denúncias de comportamento sexista e planejavam como lidar com isso. Centros de cuidado itinerantes eram criados para ajudar a envolver mais mulheres nas atividades sindicais. Isso demonstrou a importância de reconhecer e combater proativamente a discriminação, seja direta ou indireta , que pode destruir até mesmo uma grande luta para reorganizar a sociedade. Se queremos combater o problema descrito acima, a falta de perspectiva de classe no feminismo e falta da perspectiva feminista na luta de classes, é disso que precisamos. Redes de mulheres anarquistas já existem, assim como mulheres nas organizações de trabalhadorxs. A questão é como demonstramos que elas são necessárias para a luta por um mundo melhor ao invés de apenas mais uma cota do tokenismo barato em nome da “tolerância” que vemos na “diversidade” do capitalismo. A resposta para essa questão só pode ser descoberta através da tentativa, erro e experiência. Não há receita, ainda que as Mujeres Libres ofereçam um modelo inspirador. Mas algo que precisamos é a reflexão, talvez até mesmo aceitação ,do fato de que a igualdade só existe em uma sociedade genuinamente livre. Antes disso, e mesmo dentro das estruturas dos grupos que estão lutando por essa sociedade, é algo que só será alcançado com muita luta. " pdf: juno – incandescencia.org