O conforto e a falta de ansiedade vinham da sensação de que

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COMO FOI O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO LIVRO?
Eu queria fazer um livro que perturbasse. Arte, para mim, é deslocamento. O artista precisa deslocar o leitor,
tirá-lo de sua zona de conforto. Concordo com o Artaud (Antonin, poeta),
que diz que a arte precisa fazer gritar.
Quando fechei com a editora Record,
tinha clara essa intenção e queria
fazer um romance com altas doses de
erotismo mesmo, do tipo que eu gosto, como Bataille, Henry Miller, sem
eufemismos. Meu processo é fragmentado. Fiquei meses anotando coisas
desconexas que, aos poucos, foram
tomando forma. Viajei para escrever
longe do caos de São Paulo e, em um
ano, tinha o romance pronto. Foi um
processo denso, afetou minha vida de
forma intensa, me vi até vivendo coisas que as personagens (C., que é meu
alter ego, e Princess) viveriam só para
entrar mais na psicologia delas. Como
Princess, misturo muito vida e arte.
questões. Esses dias, participei de
um debate sobre sexo e, de novo, a
coisa foi tomando esse rumo. Parei
e disse: “Quem sabe a gente fala de
prazer, do que nos excita, de como
podemos gozar melhor?”. Entende?
Falta isso. Falta a mulher se conhecer mais, colocar seu prazer em
primeiro plano e falar disso. Acho
essencial que as mulheres entrem
mais no mercado erótico como consumidoras, que leiam mais literatura
erótica, que assistam a mais vídeos
eróticos, que se masturbem mais,
que falem mais sobre o prazer.
PRINCESS É CRIADA EM UMA FAMÍLIA COM MÃE E AVÓ, MULHERES FORTES. COMO VOCÊ ENXERGA ESSA INFLUÊNCIA NA TRAJETÓRIA DA PERSONAGEM?
Eu também fui criada numa família de mulheres fortes, meu pai
morreu muito cedo, então cresci
nesse ambiente matriarcal fortíssimo
liderado pela minha mãe, a mulher
mais forte que conheço. Demorei
BITCH FALA MUITO SOBRE SEXO
E TAMBÉM SOBRE MULHERES IN- para entender o feminismo porque,
DEPENDENTES E FORTES. QUE RE- para mim, sempre foi evidente a
força feminina e o respeito que eu
LAÇÕES VOCÊ ESTABELECE AÍ?
Vejo uma relação intensa. Ao lon- via em relação às mulheres ao meu
redor. Eu vivia nessa redoma mago da história, tentaram nos tirar
triarcal. Isso influencia totalmente
isso o tempo todo, a posse da nossa
sexualidade. A sexualidade feminina minha escrita, e o fato de a Princess
é poderosa. As sociedades vivem ba- ter também essa família feminina
tendo cabeça para lidar com ela, com pauta completamente a relação que
ela trava com o mundo. No caso
frequência caem em extremos exdela, acho que a influência se dá de
pondo demais as mulheres – como
em nossa sociedade hipersexualiza- forma mais extrema. Fica bem claro
isso quando se percebe que a busda – ou, como em outros lugares,
ca de Princess exclui totalmente o
cobrindo com burcas, mutilando.
Tudo isso tem a ver com poder, com Henrique (namorado da protagonisa tentativa de domar esse poder ar- ta). E os homens que são envolvidos
também são coadjuvantes.
quetípico que é nossa sexualidade
em sua essência plena, selvagem.
COM QUE CARACTERÍSTICAS DA
Por isso digo que não adianta uma
PRINCESS VOCÊ SE IDENTIFICA?
mulher se dizer feminista, ser indeEu me identifico com essa questão
pendente e pagar suas contas se ela
familiar que citei e também com essa
ainda se dobra para preconceitos
machistas ou se é complacente com ânsia pelo novo, pelo que perturba os
sentidos que é o que a move o temdicotomias do tipo “ou sensual ou
inteligente” – como se isso fosse al- po todo na trama. E vejo a Princess
como uma apocalíptica dentro dos ingo que diminuísse seu valor.
tegrados: ela não é uma outsider, ela
está ali, no meio da ordem, causando
AINDA EXISTEM MUITOS TABUS
EM RELAÇÃO A FALAR SOBRE SE- ali dentro, sendo um agente provoXO OU SEXO CASUAL, PRINCIPAL- cador. Também sou um pouco assim,
MENTE NO CASO DAS MULHERES. sempre fui. E sempre gostei de achar
o “ponto de demência” das pessoas.
QUAL A IMPORTÂNCIA DE SER
ABERTA SOBRE O ASSUNTO?
VOCÊ SE DESCREVE COMO
O principal tabu é o prazer femiPÓS-FEMINISTA. PODE EXPLICAR
nino. Acho que todos já lidam meMAIS O QUE ISSO SIGNIFICA?
lhor com o sexo casual, a questão
Todos os tipos de feminismo conagora é o prazer: ela faz sexo cacordam nas questões básicas. Se
sual, ok, mas ela sente prazer, conformos considerar a definição da
segue dizer para o cara do que ela
Chimamanda Ngozi, por exemplo,
gosta ou ainda reproduz esse com(“Feminista: alguém que acredita na
portamento que nos ensinaram, de
igualdade social, política e econômisó agradar o homem, fingir orgasca entre os sexos”), somos todas femo etc? O prazer feminino sempre
ministas. O pós-feminismo questiona
esteve em segundo plano, está na
algumas coisas do feminismo apenas,
hora de colocar em primeiro. Sinto
que hoje se fala muito de sexo, mas se você for comparar a visão da socióloga Camille Paglia, que é bem póstoda discussão acaba enveredan-feminista, com a de uma feminista
do para uma problematização das
ZERO HORA
radical vai ver diferenças, claro, mas
a base é a mesma. Acho que toda
forma de feminismo é válida e fico
feliz de viver em um mundo em que
o feminismo seja tão presente nas
redes sociais, nas ruas. Adoro ver que
ser machista virou algo cafona, que
o cara vai ser considerado um loser
se ousar fazer piadinha machista no
bar. Tenho minha própria maneira de
ser feminista, e ela se dá menos com
discursos e mais com ações. Escrevo
sobre sexo, me exponho, fujo dos
conceitos e estereótipos e tento encorajar as mulheres a terem a mesma
coragem, independentemente de em
que área elas atuem.
AINDA EXISTE CERTA RESISTÊNCIA DE ALGUMAS MULHERES
COM A PALAVRA “FEMINISMO”,
MESMO QUE ELAS SE INTERESSEM PELOS ASSUNTOS TRATADOS. COMO É POSSÍVEL SER
PÓS-FEMINISTA QUANDO EXISTEM MULHERES QUE NÃO SE DIZEM FEMINISTAS?
Para ser pós-feminista não precisa ter sido feminista. É mais uma
visão um pouco diferente, mas no
fim o objetivo é o mesmo. Acho que
a mulher que tem dificuldade com
o feminismo talvez não entenda a
abrangência desse termo. Se parar
para pensar, ela vai ver que está de
acordo com a luta do feminismo,
sim: ou ela quer ainda ganhar menos do que o homem? Ela acha ok
ter que aguentar homens incomodando-a na rua com cantadas sem
respeito? Ela acha tranquilo uma
mulher que tem uma vida sexual
livre ser chamada de puta enquanto
o homem que transa com várias é
considerado garanhão? Ela acha
normal uma mulher que foi estuprada ser frequentemente culpada
ou questionada sobre a sua responsabilidade? Duvido que ela esteja
de acordo com tudo isso. Ela não
precisa estar de acordo com as rad-fems (feministas radicais) para se
considerar feminista. Existem várias
formas de viver o feminismo, vide
Beyoncé e Madonna.
DE QUE FORMAS VOCÊ ACREDITA
QUE BITCH POSSA FAZER AS PESSOAS REFLETIREM SOBRE SEXUALIDADE E EMPODERAMENTO?
Duas coisas que tenho ouvido das
mulheres que já o leram: a primeira
é sobre a excitação que o livro causa. A segunda é sobre a sensação
de poder que o romance provoca.
Uma amiga me disse: “Acabei o livro achando que eu podia ser tudo,
fazer tudo”. Acho que, por o livro
ser muito erótico e ter mulheres
tão livres em relação ao erotismo e
com buscas que não têm o amor e
o romantismo como centro, acaba
provocando uma sensação nova em
quem lê. É essa perturbação positiva
que eu falei que queria causar.
O conforto e a
falta de ansiedade
vinham da
sensação de que,
embora ela não
o tivesse beijado
ainda, era como
se o beijo já tivesse
acontecido. Não
só o beijo, o sexo
também. Aquilo
não parecia
preâmbulo
para nada.
(...) Aliás, o melhor
sexo é aquele
que vem como
consequência de
algo que já existe
num plano não
denso. Estava tudo
ali, tão vivo em
potência que era
como se tivesse
acontecido.
TRECHO DO LIVRO
BITCH
De Carol
Teixeira
Editora Record
128 páginas
R$ 29,90
9 E 10 DE JULHO DE 2016 DONNA ZH
7
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