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Capítulo V • Fatos Jurídicos
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Capítulo V
Fatos Jurídicos
1. FATOS JURÍDICOS
A teoria dos fatos jurídicos é a mais importante para o estudo de todo o Direito Civil, quiçá
de todos os ramos do Direito. Com efeito, é através da ocorrência de fatos juridicamente relevantes que o Direito se realiza, transforma-se ou se extingue.
Mas nem todos os fatos da vida humana são tidos como juridicamente relevantes. Fatos
ocorrem que não importam para o Direito, porque não são capazes de influenciar em nada a esfera jurídica das pessoas ou das coisas. Um simples acontecimento do cotidiano, sem nenhuma
modificação relevante, não será qualificado como fato jurídico.
Serão jurídicos, portanto, todos os fatos que possam trazer consequências para o mundo
jurídico, quer seja criando, modificando, extinguindo, resguardando ou transmitindo direitos. Os
fatos da vida que não sirvam a esses efeitos não são classificados como jurídicos (o acordar diariamente, o escovar os dentes, uma brisa calma etc.), a não ser que, ainda indiretamente, possam
ser considerados causadores de efeitos como a criação, a modificação, a transmissão, a garantia
e a extinção de direitos.
Para melhor enquadramento dessa matéria entre os tópicos já vistos, relembremos as três
categorias distintas de fenômenos estudados na Teoria Geral do Direito Civil:
Sujeitos de direito
Objetos de direito
Relações jurídicas
são todas as pessoas capazes de adquirir direitos. Aqui tratamos de pessoas capazes ou incapazes, porque
estas podem adquirir direitos, mas,
para exercê-los, devem ser representadas ou assistidas, conforme o caso;
fala-se também, nesse ponto, de
pessoas naturais ou jurídicas, porque
todas são capazes de adquirir direitos
ou de transmiti-los a outrem;
são todos os bens suscetíveis de
apropriação e que podem ser objeto de interesse pelos sujeitos de
direito. Sua divisão e classificação
já foi elucidada nos tópicos anteriores;
a relação jurídica é o vínculo capaz
de unir dois ou mais sujeitos de direito ou esses sujeitos com um ou
mais objetos de direito. Para que surja a relação jurídica entre sujeitos ou
entre sujeito e objeto, é necessária a
ocorrência de um fato jurídico.
A relevância do estudo dos fatos jurídicos, portanto, surge nesse ponto. Sem a ocorrência de
um fato capaz de criar, modificar, resguardar, transferir ou extinguir um direito, não haverá relação jurídica a ser disciplinada pela norma legal. Toda a existência do direito, portanto, depende
da ocorrência dos fatos juridicamente relevantes.
Ainda que o fato seja caracterizado por um agir contrário ao direito (ato ilícito), será qualificado como fato jurídico porque do dano também surge um direito, qual seja, o de ressarcimento
em favor do prejudicado e em detrimento do ofensor.
Mesmo em outros ramos do Direito, a categoria do fato jurídico estará sempre presente. No
Direito Administrativo, por exemplo, os atos administrativos, tais como concebidos pela teoria
administrativista, nada mais são do que atos jurídicos especificamente praticados pela Adminis-
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Parte II • Parte Geral
tração Pública. No Direito Processual, os atos processuais são atos jurídicos capazes de influenciar na relação jurídica processual. Até no Direito Penal, a prática do ato delituoso se configura
como fato jurídico, porque vincula o criminoso a uma relação jurídica com o Estado, o qual passa
a ser titular do chamado jus puniendi (direito de punir) em seu desfavor.
A parte geral do Código Civil de 2002 adotou nova nomenclatura para os fatos jurídicos. A
legislação de 1916 utilizava, de forma genérica, a designação atos jurídicos para todos os atos
que visassem criar, conservar, modificar, transmitir ou extinguir direitos, fossem eles negociais
ou não.
Muito embora a teoria dos negócios jurídicos já fosse conhecida no início do Século XX,
máxime em face do Código alemão, nosso antigo Estatuto não trouxe em suas definições a diferenciação entre ato jurídico stricto sensu e o negócio jurídico.
2. EFEITOS DOS FATOS JURÍDICOS – A AUTONOMIA DA VONTADE E A MITIGAÇÃO DO VOLUNTARISMO JURÍDICO
Como vimos, os fatos jurídicos se constituem na mais importante categoria do direito enquanto dinâmica de regulação da sociedade. Se o nascimento, por exemplo, é um fato jurídico,
podemos concluir sem dificuldade que, sem os fatos, sequer se haveria de falar em sujeitos de
direito (pessoas naturais ou jurídicas), pois as pessoas naturais não nasceriam e as jurídicas não
seriam criadas pelas naturais.
Assim também os direitos: sem fatos jurídicos, não se criam direito objetivo (por (costumes
ou processo legislativo) nem subjetivo (por contratos ou atos ilícitos, dentre outros).
Igualmente se pode falar dos bens jurídicos, pois, sem os fatos jurídicos, não se falaria em
objeto de direito, já que não teríamos agentes para comporem as relações jurídicas em torno dos
bens.
Para o nascimento dos atos jurídicos (que são, como veremos, os fatos que derivam da ação
humana), é necessário que concorram certos elementos de existência, como o agente, a vontade,
a forma e o objeto. O segundo desses elementos citados (a vontade) tem sido alvo de numerosos
debates doutrinários, principalmente do ponto de vista do objetivo primordial dos atos e negócios
jurídicos, que é a geração de seus efeitos. Podemos classificar os efeitos dos fatos jurídicos em:
a) efeitos aquisitivos: os fatos, atos e negócios jurídicos assim se qualificam por gerarem
criação, aquisição, modificação, transmissão, conservação e extinção de direitos. O efeito
aquisitivo é aquele pelo qual, através do fato, decorre em seguida o acréscimo de um bem
ou direito ao patrimônio do agente, como na tradição, na transcrição do título aquisitivo no
registro de imóveis, na reunião dos requisitos para a usucapião, na abertura da sucessão etc.
Diz-se, para efeitos didáticos, que a aquisição de direitos pode ser:
a1) originária ou derivada: originária é a aquisição de bens ou direitos sem relação jurídica com algum eventual titular anterior. Assim, na caça e pesca, por exemplo, adquirem-se bens sem relação jurídica com titular anterior. Por aquisição originária podemos
falar, também, em criação de direitos, já que, determinados casos, como no do exemplo
citado, existiam os objetos (bens), mas sobre eles não existiam direitos, que foram
criados a partir do fato jurídico; a aquisição derivada, por sua vez, decorre de relação
jurídica com o titular anterior;
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a2) gratuita ou onerosa: gratuita é a aquisição de direito sem necessidade de sacrifício da
contra-parte para fazer jus à sua atribuição; onerosa, aquela em que se exige sacrifício
correspondente por quem adquire o direito;
a3) a título universal ou singular: aquisição a título universal é aquela em que o adquirente recebe um patrimônio, seja na integralidade ou uma cota-parte dele, como no caso
da sucessão causa mortis, por exemplo; singular é a aquisição de certos e determinados
bens ou direitos;
a4) simples ou complexa: a aquisição simples é a que depende de um único fato e a complexa é a que demanda vários fatos, sejam eles sucessivos ou simultâneos;
a5) imediata, eventual ou a termo: imediata é a aquisição de direitos que decorre imediatamente do fato para a qual se destina; a termo é a aquisição em que o agente passa a
ser titular do direito de forma imediata, no entanto só pode exercê-lo após o advento de
um termo ou data prefixada pelos agentes; por fim, a aquisição eventual se dá quando
os agentes condicionam a aquisição do bem ou direito a um evento futuro e incerto
(condição).
b) efeitos modificativos: os fatos jurídicos não servem apenas para criar e determinar a aquisição de direitos, mas também para que esses sejam modificados. Assim, por exemplo, em um
determinado contrato, podem as partes alterar o seu conteúdo através de um ato substitutivo,
como na transação e na dação em pagamento, por exemplo. Essa modificação pode ser subjetiva, se forem substituídos os sujeitos de direito componentes da relação jurídica (partes)
ou objetiva, caso sejam substituídos o objeto ou a qualidade da prestação.
c) efeitos translativos: os efeitos translativos são aqueles que derivam da potencialidade que
tem o fato jurídico de transmitir bens ou direitos de uma pessoa para outra. A tradição, por
exemplo, guarda o efeito de transmitir a propriedade do alienante para o adquirente.
d) efeitos conservativos: esses são os efeitos pelos quais a prática de determinados atos visa
resguardar o bem ou direito da ação deletéria do tempo ou de terceiros. Assim, por exemplo, são atos de conservação: (d1) os atos de defesa dos direitos, através do ajuizamento de
ações (de conhecimento e de execução), não só para evitar a prescrição e a decadência mas
para efetivar a tutela do interesse; (d2) as ações e medidas cautelares para que se garanta o
resultado prático efetivo do processo de conhecimento ou execução; (d3) atos de garantia
do direito, como as cláusulas acessórias que estabelecem as garantias reais ou pessoais da
satisfação do crédito, de que são exemplo a hipoteca, o penhor, as multas moratória e compensatória, as arras, a fiança, o aval etc; (d4) atos de autodefesa, que podem ser visualizados
nas exceções admitidas pela lei à proibição do exercício arbitrário das próprias razões, como
no desforço imediato para defesa da posse e na autorização legal para que o credor de obrigação de não fazer desfaça o ato praticado pelo devedor, em caso de urgência (CC, art. 251,
parágrafo único), evitando, assim, o perecimento do objeto ou do próprio direito.
e) efeitos extintivos: estes são o fim da relação jurídica. Determinados fatos têm por finalidade
extinguir o direito ou a obrigação do agente, como a transferência da propriedade (em que
se extingue o domínio do transferente), o abandono, o pagamento (que extingue o direito do
credor), a condição resolutiva, a prescrição, a decadência, o perecimento do objeto e qualquer outro fato que acarrete o falecimento do direito.
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Parte II • Parte Geral
Elucidados os efeitos dos fatos jurídicos, podemos observar, de pronto, que alguns deles
(nem todos, é bom alertar desde logo) exigem, em maior ou menor extensão, o concurso da vontade.
Veja-se que, na vontade reside um dos pontos de maior destaque do direito no mundo moderno. Vale lembrar, ainda que de forma bastante sintética, que somente a partir da Revolução
Francesa é que a história do mundo ocidental passou a conceber a liberdade e a vontade como
predicados de todos os cidadãos, sem exceção.
A vontade, no entanto, levada às últimas consequências nas primeiras legislações liberais,
de que é exemplo máximo o Código Civil francês de 1804 (Código de Napoleão), pode encaminhar o ordenamento jurídico a uma realidade de distorções e falhas na missão máxima do direito,
que é a da pacificação da sociedade.
Com efeito, muito se discutiu, inclusive, se a vontade era, de fato, elemento verdadeiramente
criador de efeitos jurídicos, já que, de qualquer forma, a vontade não seria capaz de agregar a
nenhum fato o efeito jurídico se este não fosse previsto ou não proibido pela lei.
Caio Mário da Silva Pereira proclama, com acerto, a fragilidade dessa discussão, já que,
por outro lado, a lei, também, sem o concurso da vontade, não seria elemento suficiente para a
geração de efeitos, máxime no estado democrático de direitos, em que, embora se conviva com o
mandamento constitucional da legalidade (CF, art. 5º, II), segundo o qual ninguém será obrigado
a fazer deixar de fazer nada senão em virtude de lei, tem-se, por outro lado, como fundamento da
República (CF, art. 1º, IV), o postulado da livre iniciativa.
Como se vê, o voluntarismo jurídico é mola propulsora do direito da qual não se pode
afastar, e cuja presença, nos estados democráticos, é inegável.
Daí se fala, portanto, em autonomia da vontade, pela qual é a vontade do agente que determina a sua prerrogativa de vincular-se ou não a um direito ou dever; fala-se também em autonomia privada, pela qual, além de o cidadão escolher livremente se se obriga ou não, poderá ele
determinar o conteúdo da obrigação.
É a vontade, portanto (embora esquecida como elemento essencial do negócio jurídico no
art. 104 do Código Civil), o motor do chamado comércio jurídico, é a condição sine qua non para
que o cidadão saia da ampla e irrestrita liberdade para se vincular a uma obrigação, perdendo,
com isso, parcela dessa natureza livre, pois a partir daí, assumirá o compromisso de cumprir bem
e fielmente aquilo a que contratou.
Esse preceito, na verdade, já está presente desde o Direito Romano, quando se formulou a
máxima pacta sunt servanda, pela qual o indivíduo, uma vez obrigado, deve dar cumprimento
à sua obrigação. Repetindo, no entanto, o que já se disse, se levada às últimas consequências,
sem um sistema de freios e contrapesos, a autonomia da vontade pode desaguar em um sistema
jurídico recheado de falhas e injustiças.
Basta imaginar a situação imediatamente decorrente da chamada Revolução Industrial, em
que se noticia que na Rússia czarista (ou pré-bolchevista) a liberdade de contratar acarretava
verdadeiros absurdos, como a contratação de operários para jornadas de trabalho desumanas, de
doze, quatorze ou até mesmo dezesseis ou dezoito horas diárias, já que, sem um sistema de freios
e contrapesos, o trabalhador ficava à mercê daqueles que disponibilizavam as ofertas de trabalho,
sob pena de, sem emprego, não obter condições de subsistência.
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Por isso, as legislações modernas contêm vários instrumentos de mitigação da autonomia
da vontade e da autonomia privada, de forma que, embora a vontade continue a ser (em regra)
elemento primordial para a prática dos atos jurídicos (sobretudo dos negócios jurídicos), existem
limites legais e sociais para a sua manifestação ou declaração na vida prática, como a boa-fé objetiva, a função social do contrato, a proteção dos hipossuficientes (consumidores, inquilinos etc)
e outros tantos exemplos que servem para refrear a ambição do ser humano em conseguir lucro
desmedido à custa, muitas vezes, da dignidade do próximo.
Pode-se dizer, portanto, que o voluntarismo jurídico, ainda hoje uma regra, encontra-se mitigado, de forma que as partes podem livremente contratar e determinar o conteúdo do negócio,
no entanto, devem respeito aos limites impostos, em última análise, pelo princípio da dignidade
da pessoa humana (CF, art. 1º, III), que orienta, fundamentalmente, institutos como a boa-fé, a
função social (da propriedade e do contrato), a proteção dos hipossuficientes, e, porque não dizer,
a própria isonomia material, consubstanciada na máxima “tratar igualmente aos iguais e desigualmente aos desiguais na medida das suas desigualdades”.
Feitos esses esclarecimentos – absolutamente necessários – podemos averiguar as diversas
espécies de fatos jurídicos.
3. ESPÉCIES DE FATOS JURÍDICOS
O novo Código passou a utilizar, em seu Título I do Livro III da Parte Geral, especialmente
no art. 104, a expressão negócio jurídico.
Para entender as diferenças existentes entre o negócio jurídico e o ato jurídico stricto sensu,
devemos relembrar as diversas categorias de fatos jurídicos.
3.1. Fatos jurídicos naturais ou em sentido estrito
São fatos jurídicos em sentido estrito ou naturais aqueles capazes de gerar efeitos jurídicos
como criar, modificar, resguardar, transferir ou extinguir direitos sem o concurso da ação humana.
Fatos como a morte natural de uma pessoa, uma tempestade que arrasa uma plantação empenhada, o ataque de um animal selvagem, o estouro de um rebanho vendido e ainda não entregue, por exemplo, são capazes de criar ou alterar direitos, influenciando diretamente em relações
jurídicas estabelecidas, entretanto, não demandam a necessidade de atividade humana para que
ocorram.
É importante conhecer a noção de fato jurídico natural e sua diferenciação para os atos jurídicos, porque, a depender da situação, estaremos diante de hipótese de caso fortuito ou de força
maior, que excluem a responsabilidade civil pelo ato danoso.
3.2. Atos jurídicos
O ato jurídico, por sua vez, é o fato jurídico lato sensu que, para ocorrer, depende da ação
humana para gerar os efeitos de criar, extinguir, conservar, transmitir ou modificar direitos.
Diferentemente do fato jurídico natural, que ocorre sem a interferência da ação humana, o
ato jurídico lato sensu demanda a ação voluntária do homem para se materializar.
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Parte II • Parte Geral
Importante elucidar, neste ponto, que ações não humanas (de animais ou de seres inanimados
encontrados na natureza), em regra, não serão considerados atos jurídicos, a não ser que derivem
de ato humano anterior, que a ele se liga por nexo de causalidade e sem o qual não teria ocorrido.
Como exemplos podemos citar: o ataque de um cão bravio será mero fato jurídico natural
quando derive de atitude espontânea do animal, mas será ato jurídico quando decorrer de ordem
de seu dono. A distinção é importante porque, de qualquer forma, o dono ou detentor do animal
responde pelos prejuízos que ele causar (art. 936), no entanto, em se tratando de ato jurídico,
tem-se caso não de responsabilidade pelo fato da coisa (ato do animal), mas sim de ato ilícito
direto causado pela pessoa, o que pode agravar a sua situação no momento da fixação do dano,
sobretudo do dano moral. O mesmo se diga do exemplo do estouro de uma represa, por força
natural (fato jurídico natural) e de seu transbordamento por ato humano (ato jurídico).
O ato jurídico lato sensu, por sua vez, comporta classificações. Dentre elas, a que mais
importa para o direito é a sua partição em atos jurídicos não negociais e atos jurídicos negociais.
3.2.1. Atos jurídicos stricto sensu ou não negociais
São atos que, embora decorrentes da ação e da vontade humanas, não são cometidos, precipuamente, com a finalidade de realizar o efeito previsto na norma para o respectivo ato. Equivale
a dizer que a pessoa tem a vontade dirigida somente à prática do ato, mas não ao seu efeito,
que decorre, automaticamente, dos ditames da lei. Não exige a lei, na prática de atos jurídicos
stricto sensu, a declaração de vontade para a geração de seus efeitos.
Podemos exemplificar os atos jurídicos stricto sensu em vários atos da vida comum, como:
aceitação de herança, fixação e transferência de domicílio, recebimento de citação, ocupação,
achado de tesouro, especificação, pagamento indevido, reconhecimento de filho fora do casamento etc.
Para aceitar uma herança, por exemplo, basta a vontade de querer praticar esse ato, entretanto, uma vez aceita a herança, os efeitos jurídicos dela decorrentes (assunção dos ônus deixados
pelo falecido) independem da vontade declarada pelo herdeiro, no momento da aceitação.
O mesmo ocorre, por exemplo, com o reconhecimento de filho fora do casamento: não
existe margem de negociação para a ocorrência dos efeitos jurídicos do ato. Uma vez assumida
a paternidade, decorrem, automaticamente, todos os efeitos previstos pela lei, como a obrigação
alimentar, o direito à legítima etc.
Os atos jurídicos stricto sensu estão previstos no novo Código Civil, sob a rubrica de atos
jurídicos lícitos, no art. 185, que prevê, in verbis, que aos atos jurídicos lícitos, que não sejam
negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior.
Observe-se, portanto, que, ao disciplinar que os atos jurídicos não negociais submeter-se-ão
às regras dos negócios jurídicos no que couber, o legislador impõe importante norma de integração, pois admite que, para certos efeitos jurídicos, não é possível aplicar-se determinadas normas
destinadas exclusivamente aos negócios.
Isto se deve justamente ao fato de que, nos atos jurídicos não negociais, a vontade é dirigida
somente à sua prática, surgindo os efeitos independentemente do querer do agente. Assim, por
exemplo, é incompatível com a natureza dos atos não negociais a imposição de elementos de
eficácia, como no caso dos termos e condições.
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Capítulo V • Fatos Jurídicos
Figure-se, então, a aceitação ou renúncia da herança: não pode o herdeiro dizer que aceita
ou renuncia à herança em parte, ou somente a partir de determinado dia. Veja-se, a respeito, o
conteúdo do art. 1.808, caput do Código Civil: “Não se pode aceitar ou renunciar a herança em
parte, sob condição ou a termo”.
Imagine-se, também, o caso do reconhecimento de filho: não pode o pai, que o reconhece,
impor a eficácia do ato a um termo inicial (ex: Nestor passa a ser meu filho – de Castor – a partir
do dia 15 de maio) ou condição (ex: Reconheço Nestor como meu filho somente se eu não tiver
mais filhos), pois tal disposição ofende frontalmente a natureza jurídica do ato. A respeito, são
claros os termos dos arts. 1.610 e 1.613 do Código Civil:
Art. 1.610
Art. 1.613
“O reconhecimento não pode ser revogado, nem mesmo quando feito em testamento”.
“São ineficazes a condição e o termo apostos ao ato de
reconhecimento do filho”.
3.2.1.1. Atos-fatos jurídicos
Parcela considerável da doutrina indica a categoria dos atos-fatos jurídicos como espécies
autônomas de fatos jurídicos. Em verdade, é tão tênue a sua distinção com os atos jurídicos stricto
sensu que preferimos aborda-los como sub-espécies destes.
Como pudemos observar, no ato jurídico não negocial, o agente o realiza sempre pela ação
humana e em decorrência de sua vontade, entretanto, os efeitos jurídicos daí decorrentes não
dependem dessa vontade, já que derivam diretamente da lei. Já no ato-fato jurídico, temos ato jurídico no sentido de que a sua ocorrência depende de ação humana, no entanto, não é necessária
a vontade para a sua prática ou esse elemento volitivo é irrelevante.
Dessa forma, se um indivíduo absolutamente incapaz, por exemplo, praticar sozinho algum
ato-fato jurídico, este será, em regra, válido, e produzirá todos os efeitos que deveria produzir.
Classificam-se os atos-fatos jurídicos em:
a) atos reais, pelos quais se adquirem bens pela ação de agente incapaz. O exemplo típico é o
da compra de doce pela criança, no qual não se nega a criação de efeitos como a translação
da propriedade decorrente da tradição subsequente, no entanto, se desconsidera a vontade do
agente, já que, no caso, essa vontade não é reconhecida pelo direito.
Alguns dos exemplos utilizados anteriormente como atos jurídicos stricto sensu também
poderiam figurar nesta categoria. Assim, se um menor de 10 anos pesca um peixe (res nullius) em
um rio, torna-se dono do peixe (efeito jurídico produzido pelo ato); da mesma forma se encontra um tesouro. Pessoa enferma, sem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida
civil, já interditada, que se encontra internada em instituição própria para seus cuidados, vem a
utilizar tela, tinta e pincéis e pinta um quadro (especificação), ao menos em tese se tornará dona
do quadro.
b) atos indenizativos, categoria na qual o agente pratica ato lícito, mas, mesmo assim, sofre
o efeito de se ver obrigado a indenizar terceiro ofendido, como se observa do estado de
necessidade (art. 929) e, por que não dizer, da responsabilidade objetiva própria ou pura, na
qual o cidadão, ainda que não pratique ato ilícito, é obrigado a indenizar. Veja-se o caso do
poluidor: ainda que a sua atividade econômica seja lícita e autorizada pelo poder público,
ficará responsável pela indenização dos danos causados ao meio ambiente pela poluição (Lei
6.938/81, art. 14, § 1º);
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Parte II • Parte Geral
c) atos caducificantes, que são aqueles em que, independentemente da vontade do agente,
opera-se efeito extintivo de direito, como na prescrição e decadência (no âmbito material)
e na preclusão (no âmbito processual). Também aqui podemos identificar fatos como o da
perda da preferência na compra e venda, se o titular do direito de preempção não pagar o
mesmo preço oferecido por terceiro (CC, art. 515).
Além dos exemplos acima citados, como a ocupação (apropriação de coisa sem dono) e a
pintura de um quadro por pessoa demente (operando a especificação em seu favor), costuma-se
citar também o do desforço incontinenti para a defesa da posse: em todos esses casos, o ato é
humano e produz efeitos jurídicos, no entanto, não dependem da vontade para serem praticados,
muito embora esta possa estar presente no caso concreto.
Como se vê, tratam-se de casos que, de fato, traduzem a hipótese de atos jurídicos lícitos
(CC, art. 185, acima referido), no entanto, podem ser vistos como subespécies dos atos jurídicos
stricto sensu.
Resumindo, os atos jurídicos stricto sensu são aqueles em que se exige ação humana e
vontade, no entanto, os efeitos jurídicos da sua prática não derivam da vontade, mas da lei; os
atos-fatos jurídicos, por sua vez, são subespécies de atos jurídicos em sentido estrito na qual a
vontade pode estar presente, mas não é exigida ou é irrelevante.
Por isso, repisamos nossa posição de que se trata, aqui, de subespécie de ato jurídico stricto
sensu. Em contrário senso, citamos as posições de Stolze e Gagliano e Farias e Rosenvald. Venosa, por sua vez, relega a categoria a segundo plano, enquanto Orlando Gomes e Caio Mário da
Silva Pereira não a abordam.
3.2.2. Atos jurídicos negociais ou negócios jurídicos
Negócio jurídico, portanto, é o ato cuja prática e efeitos são derivados da vontade humana.
Quer dizer que, para que determinada pessoa possa alienar uma coisa, por exemplo, ela deve ter
a vontade livre e consciente não só de praticar a venda, mas, também, de gerar os seus efeitos, ou
seja, a transmissão da propriedade.
Nos negócios, então, os efeitos jurídicos do ato dependem da vontade declarada do agente
(declaração de vontade). Ainda que vários desses efeitos estejam previstos na própria lei, eles não
decorrerão caso não exista declaração de vontade nesse sentido. Além disso, a manifestação da
vontade humana alcança a produção de efeitos, modulando-os, a vontade não fica adstrita – como
no caso dos atos jurídicos stricto sensu – à simples escolha quanto a prática do ato ou não.
Caio Mário da Silva Pereira resumiu com brilhantismo a diferenciação básica entre ato jurídico negocial (negócio jurídico) e não negocial (ato jurídico stricto sensu). Veja-se:
Observa-se, então, que se distinguem o ‘negócio jurídico’ e o ‘ato jurídico’. Aquele é a declaração
de vontade em que o agente persegue o efeito jurídico (Rechtsgeschäft), no ato jurídico stricto sensu
ocorre manifestação volitiva também, mas os efeitos jurídicos são gerados independentemente de serem perseguidos diretamente pelo agente. Sobre essa distinção, lembram-se Santoro-Passarelli, Serpa
Lopes, Sílvio Rodrigues, Vicente Ráo, Torquato Castro, Soriano Neto, Paulo Barbosa de Campos Filho, Alberto Muniz da Rocha Barros, Fábio de Mattia. Todos eles são fatos humanos voluntários. Os
‘negócios jurídicos’ são, portanto, declarações de vontade destinadas à produção de efeitos jurídicos
queridos pelo agente; os ‘atos jurídicos stricto sensu’ são manifestações de vontade obedientes à lei,
porém geradoras de efeitos que nascem da própria lei. Dentre os atos lícitos estão os atos que não são
negócios jurídicos, bem como os negócios jurídicos. Todos, porém, compreendidos na categoria mais
ampla de ‘atos lícitos’, que se distinguem na sua etiologia e nos seus efeitos, dos ‘atos ilícitos’. (2005,
p. 475-476)
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Em suma, em ambas as categorias (atos não negociais e negociais), existe vontade do agente.
Entretanto, podemos dizer que, no negócio jurídico, o agente exerce sua vontade no sentido de
praticar o ato e produzir o efeito, na maneira, intensidade e forma que deseja; no ato jurídico
stricto sensu, o agente exerce a vontade apenas no sentido de praticar o ato, pois, independentemente de sua vontade, os efeitos serão atingidos.
Tome-se um exemplo simples do alcance da vontade na prática dos negócios jurídicos com
o contrato de compra e venda, a manifestação de vontade define se haverá a compra e venda a
vista ou a prazo, com ou sem reserva de domínio, com alguma cláusula especial (retrovenda,
preferência, etc.), alterando a garantia contra a evicção (que pode ser reforçada, diminuída ou
excluída – art. 448 CC), com garantia por defeitos do objeto (afeta o prazo para reclamar vícios
redibitórios – art. 446 CC), com objetos cujo risco de virem a existir uma das partes tome para si
(contratos aleatórios – emptio spei e emptio rei speratae, arts. 458 e 459 CC), com a fixação do
preço em razão de índices futuros, etc.
São exemplos típicos de negócios jurídicos, portanto, os contratos, o casamento, o testamento, enfim, todos aqueles atos em que a vontade do agente se volta tanto para a prática do ato
quanto para os seus efeitos, que são gerados e dirigidos diretamente pelo elemento volitivo.
4. CLASSIFICAÇÕES DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
Existem inúmeras classificações para os negócios jurídicos. Com efeito, os negócios podem
se subdividir por diversos fatores, desde as partes, o objeto e até por seus efeitos. As mais relevantes são as seguintes:
4.1. Pelo número de partes
a) Unilateral: é o negócio cuja prática e efeitos derivam da declaração de vontade de uma só
das partes, sem necessidade da aceitação ou do concurso da vontade da outra. Pode ser:
a1)receptício: é o negócio unilateral cujos efeitos, embora não dependam da vontade de
outra parte, dependem, pelo menos, de que ela seja notificada. Exemplos práticos podem ser visualizados na denúncia de contratos e na cessão de crédito (art. 290). A
denúncia é ato pelo qual se permite que uma das partes rompa um contrato sem necessidade de concordância da outra, que deve, no entanto, ser cientificada da ruptura; na
cessão de crédito, o credor de uma dívida cede seu crédito a outrem, sem necessidade
de concordância do devedor, que tem direito, todavia, de ser notificado;
a2) não receptício: é o negócio unilateral cujos efeitos dependem somente da prática do
ato, sem necessidade de notificação à outra parte, como o testamento e a emissão de
títulos de crédito, por exemplo. No testamento, a validade de suas disposições não
depende de anuência nem ciência por ninguém que não seja o próprio testador; já na
emissão de títulos de crédito, como a nota promissória, por exemplo, o emitente cria
a obrigação pelo simples preenchimento da cártula, sem necessidade de concordância
ou conhecimento por outrem; de igual natureza é a promessa de recompensa, já que a
criação da obrigação para a promitente depende apenas da publicação do anúncio da
sua promessa (CC, art. 854);
b)bilateral: é o negócio cuja celebração e efeitos dependem do concurso da vontade de pelo
menos dois agentes, que atuam em polos distintos, cada um com suas obrigações próprias. O
contrato é o negócio jurídico bilateral, por excelência. O casamento também pode ser usado
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Parte II • Parte Geral
como referência. Deve-se entender que os efeitos do negócio jurídico bilateral são desejados
por ambas as partes e, com ele, cria-se uma relação jurídica obrigacional, de forma que cada
parte deve cumprir com a prestação a que se obrigou. Aqui não se deve confundir com a
classificação dos contratos em unilaterais e bilaterais. Todo contrato é negócio jurídico bilateral, pois depende da declaração de vontade de ambas as partes, ainda que de uma delas seja
tácita. O contrato unilateral, no entanto, cria obrigação apenas para uma das partes, como
nos casos do depósito, do comodato, etc. O contrato bilateral cria obrigações para ambas as
partes, como na compra e venda, na locação, etc.;
c)plurilateral: é o negócio em que não se encontram dois polos distintos, mas sim um conjunto de pessoas que atuam com o mesmo interesse, como na sociedade.
4.2. Pela tipicidade
a)típicos: Os negócios típicos são figuras negociais ou contratuais previstas expressamente
pela lei, de que são exemplos a compra e venda, a permuta, a locação, o empréstimo, o seguro, a corretagem, o mandato etc.;
b)atípicos: Estes são figuras negociais cujos conteúdos e efeitos não têm previsão legal, entretanto, em função do princípio da autonomia da vontade, devem ser aceitos, desde que
preencham os elementos de existência e os requisitos de validade previstos pelo art. 104 do
Código Civil.
Aqui se deve observar que os negócios jurídicos que criam efeitos meramente obrigacionais
(pessoais) é que podem ser livremente criados pelas partes, independentemente de previsão legal.
A observação é relevante pois, quanto aos direitos reais, somente a lei pode criar novas modalidades de relação jurídica entre sujeitos e objetos de direito. A isto se dá o nome de princípio da
tipicidade dos direitos reais.
4.3. Pelos efeitos
a)translativos: visam à transmissão de um direito. No sistema brasileiro, inspirado no alemão, e diverso do francês, o contrato, simplesmente, não transmite a propriedade, que, em
verdade, somente se transfere pela tradição, em caso de bens móveis, ou pela transcrição no
Registro de Imóveis, em caso de imóveis. É o que atestam os textos dos arts. 1.245 e 1.267
do Código Civil, verbis: “Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. Art. 1.267. A propriedade das coisas não
se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”;
b) modificativos: São negócios que visam a modificar o conteúdo de uma relação jurídica já
existente, como a novação ou a transação, por exemplo. Pode ocorrer que o conteúdo original do negócio tenha se tornado indesejado ou penoso para as partes. Sendo assim, podem
elas, através de novo negócio, chamado de modificativo, alterar o conteúdo que primitivamente contrataram. Sobre o tema, o Código Civil de 2002 inovou, no campo do direito de
família, ao possibilitar a modificação do regime de bens durante a constância do casamento,
em seu art. 1.639, cuja transcrição se segue:
Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que
lhes aprouver. § 1º. O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento.
§ 2º. É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de
ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.
Capítulo V • Fatos Jurídicos
295
c)extintivos: têm por fim a extinção de um direito ou de uma relação jurídica, como o distrato, o pagamento, etc. Com efeito, para extinguir uma relação jurídica negocial, necessária
é a prática de negócio que visa esse efeito extintivo. Fatos ou atos não negociais, como a
prescrição e a decadência, também extinguem o direito, mas não se enquadram, como se vê,
como negócios jurídicos. Além do pagamento ou cumprimento da prestação (forma ordinária de extinção das obrigações), os negócios extintivos podem ser:
c1)resolutivos: quando são determinados por causas posteriores à contratação, como a
inadimplência ou descumprimento contratual. A respeito, reza o art. 475 que “a parte
lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e
danos”.
c2)resilitivos: quando decorrem da simples vontade das partes de cancelar os efeitos do
negócio, de que são exemplos o distrato e as resilições unilateraias, como o arrependimento, a denúncia, a revogação e a renúncia;
c3)rescisórios: a rescisão não é propriamente um negócio, mas um ato jurídico que extingue um negócio jurídico por causas contemporâneas à celebração do contrato, como
ocorre com as causas de nulidade e anulabilidade e nos vícios redibitórios. Registre-se,
aqui, importante controvérsia doutrinária acerca do significado da palavra rescisão, preferindo grande parte da doutrina conceituá-la como a hipótese de extinção dos contratos
advinda de atitude contrária, por uma das partes, às cláusulas contratuais, demandando,
então, para o seu desfazimento, o concurso da atividade judicial. Conquanto, a nosso
ver, não seja a tese mais científica, é a que tem prevalecido. Sobre o tema, colhe-se
da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, que, para a reintegração de posse, em favor do promitente vendedor, de imóvel sujeito a compromisso de
compra e venda, por inadimplemento do promissário comprador, é necessária a prévia
rescisão judicial do contrato. Veja-se:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535 DO CPC.
NÃO-OCORRÊNCIA. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE AJUIZADA EM VIRTUDE DE
INADIMPLEMENTO DE CONTRATO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. IMPOSSIBILIDADE DE DEFERIMENTO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA SEM QUE TENHA HAVIDO
MANIFESTAÇÃO JUDICIAL ACERCA DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO, AINDA QUE ESTE
CONTE COM CLÁUSULA RESOLUTÓRIA EXPRESSA. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.
1. Não há violação ao artigo 535 do CPC quando a Corte de origem aprecia a questão de maneira
fundamentada, apenas não adotando a tese do recorrente. 2. É imprescindível a prévia manifestação
judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada
a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa, diante da necessidade de
observância do princípio da boa-fé objetiva a nortear os contratos. 3. Por conseguinte, não há falar-se
em antecipação de tutela reintegratória de posse antes de resolvido o contrato de compromisso de
compra e venda, pois somente após a resolução é que poderá haver posse injusta e será avaliado o
alegado esbulho possessório. 4. Recurso provido em parte, para afastar a antecipação de tutela. (REsp
620.787/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/04/2009,
DJe 27/04/2009, REPDJe 11/05/2009, REPDJe 15/06/2009)
d)obrigacionais: sua finalidade é criar, entre as partes, obrigações de dar, fazer ou deixar de
fazer alguma coisa. Orlando Gomes (op. cit., p. 388) esclarece que
o negócio translativo do direito de propriedade é frequentemente precedido de negócio obrigacional,
como, por exemplo, o contrato de compra e venda. Todas as obrigações de dar têm de ser cumpridas
por meio de ato de disposição da coisa objeto da prestação, se deve ser transmitida ao credor.
296
Parte II • Parte Geral
Importante repetir, portanto, que, no sistema brasileiro o contrato, somente, não transmite a
propriedade, o que ocorre apenas pela tradição ou pela transcrição no Registro de Imóveis.
Muito embora não haja translação da propriedade com o mero contrato, o compromisso de
compra e venda, no ordenamento atual, cria, ao promitente comprador, um direito que se chama de direito real de aquisição. Ainda que o art. 1.417 do Código Civil condicione o direito ao
registro em cartório, assiste ao comprador o direito à adjudicação compulsória (art. 1.418) e a
embargos de terceiro em caso de penhora do imóvel. O registro em cartório somente se exige para
a finalidade de se poder conferir ao referido direito a oponibilidade erga omnes (contra todos). É
o que se dessume das Súmulas 84 e 219 do STJ, verbis:
Súmula 84
Súmula 239
“É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso
de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido de
registro”.
“O direito à adjudicação compulsória não se condiciona
ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis”.
Não só a compra e venda é negócio obrigacional. A maioria dos negócios jurídicos é de
conteúdo obrigacional, pois ocorre a criação de obrigações para uma ou ambas as partes, como
na locação, no seguro, no empréstimo etc.
e) de garantia: são os negócios que têm por finalidade resguardar o cumprimento de um outro
negócio contra os riscos da insolvência de uma das partes. Dependem, portanto, da vinculação do patrimônio de uma das partes ao adimplemento de sua prestação. São os casos do
penhor, da hipoteca e da anticrese. O Código Civil de 2002 trouxe a figura da propriedade
fiduciária (arts. 1.361 a 1.368), instituto já conhecido antes em virtude das leis 4.728/65 e
9.514/97. Não se trata, no entanto, de negócio puramente de garantia, pois, por essa modalidade de negócio, cria-se verdadeira propriedade em favor do credor, propriedade esta,
entretanto, resolúvel, pois deixa de existir quando do adimplemento total da dívida.
Observa-se, portanto, nessa classificação, o conceito de negócio jurídico: negócio capaz
de criar (negócios obrigacionais), modificar (modificativos), resguardar (de garantia), transferir
(translativos) ou extinguir (extintivos) direitos.
4.4. Pelo tempo em que devam produzir efeitos
Quanto ao tempo em que devam produzir efeitos, os negócios podem ser inter vivos, quando
se destinam a produzir eficácia imediatamente ou durante a vida das partes, ou causa mortis,
quando se destinam a produzir efeitos após a morte de quem pratica o ato, como no testamento ou
nas disposições de última vontade em geral, de que são exemplos o reconhecimento de filho ou a
instituição de patrimônio para fundação.
4.5. Pela causa do negócio
Os negócios jurídicos podem também se classificar pela causa da sua celebração. Com efeito, o motivo comum que leva os agentes à declaração de vontade pode ser de diversas naturezas,
daí porque podemos falar em:
a) negócios de troca, quando uma das partes dá uma coisa com valor econômico a fim de receber outra ou até sem interesse em receber nada. São exemplos a compra e venda, a permuta,
a doação etc.
Capítulo V • Fatos Jurídicos
297
b) negócios associativos, quando ambas as partes têm interesses comuns, sem que uma queira
adquirir algum bem ou outro elemento do patrimônio da outra. Exemplo típico é o contrato
de sociedade, mas, nesse sentido, o casamento e a parceria rural podem ser tomados, também, como exemplos, pois, apesar de não serem plurilaterais, não existe criação de interesses particulares de cada parte;
c) negócios para prevenção de riscos: são entabulados com a finalidade de garantir a integridade de pessoas, coisas ou até de relações jurídicas. Seu exemplo típico é o seguro. O
seguro pode ter por objeto cobrir a subsistência de pessoas dependentes do segurado, como
no seguro de vida, ou o próprio segurado, como no caso dos planos de saúde, mas pode visar
à garantia de recebimento de indenização em caso de perda ou deterioração de uma coisa,
como no caso de seguro automotivo ou de imóveis. Existem seguros, no entanto, que buscam prevenir riscos contra acontecimentos que possam influenciar relações jurídicas, como
no caso de seguros contratados com empresas de crédito contra o desemprego de mutuários,
por exemplo;
d) negócios de crédito: são aqueles em que uma das partes outorga a outra um valor econômico com o objetivo de auferir vantagem a partir daí, como é o caso do mútuo feneratício, no
qual o mutuante empresta ao mutuário certa quantia, que deverá ser restituída com acréscimo de juros;
e) negócios de atividade, quando a prestação de uma das partes consiste em fazer alguma coisa em favor da outra, como no contrato de trabalho, na prestação de serviços na empreitada,
mandato, agência e distribuição, corretagem, comissão e no transporte.
4.6. Pela causa da atribuição patrimonial
Forte em Orlando Gomes (op. cit., p. 333-430), podemos falar também que os negócios jurídicos se diferenciam pela atribuição patrimonial que cada agente pretende, podendo ser:
a)onerosos: serão onerosos os negócios quando ambas as partes têm a intenção de auferir
proveito econômico com o negócio, como na compra e venda: o alienante aufere o proveito
decorrente do recebimento do preço, todavia, exige-se-lhe o sacrifício correspondente à vantagem atribuída ao adquirente, que é a aquisição da propriedade da coisa;
b)gratuitos: diz-se gratuito o contrato quando não existe, de uma das partes, essa intenção
econômica, como no caso da doação pura: enquanto o donatário aufere proveito econômico
com a aquisição da coisa, o doador não exige dele nenhum sacrifício para isso. Verifica-se,
ainda, na doutrina, ao lado do contrato gratuito, o contrato desinteressado. Seria gratuito ou
benéfico aquele em que, além da gratuidade, há redução do patrimônio de quem comete a liberalidade, como na doação. Já no contrato desinteressado não existe a redução no patrimônio, como, por exemplo, no comodato, em que a coisa emprestada voltará para o comodante
ao final do contrato.
c)neutros: são neutros os negócios em que não se destina uma atribuição patrimonial específica, de tal forma a reduzir o patrimônio (negócios gratuitos) ou estabelecer troca de patrimônios (onerosos). São atos, portanto, que não se enquadram em nenhuma das hipóteses acima,
como a instituição voluntária do bem de família ou a imposição de ônus de inalienabilidade,
incomunicabilidade ou impenhorabilidade sobre bens. Nesses exemplos, não se vislumbra
a instituição de causa patrimonial, seja para onerar os agentes ou estabelecer percepção gratuita de vantagens.
298
Parte II • Parte Geral
d)bifrontes: consideram-se bifrontes certos negócios que podem ser contratados tanto a título
oneroso quanto gratuito. Bom exemplo é o contrato de mútuo, que é o empréstimo de coisas fungíveis. Pode se dar de forma gratuita, hipótese em que o mutuário deverá devolver
coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade. Mas também pode ser contratado de forma
onerosa ou econômica (mútuo feneratício), hipótese em que, segundo o art. 591 do Código
Civil, presumem-se devidos os juros.
4.7. Pela forma
Pode-se classificar o negócio jurídico, também, pela forma, sendo: negócios escritos ou
verbais; negócios tácitos ou expressos; negócios solenes (formais) ou não solenes (informais); e
negócios reais ou consensuais.
Nesse particular, remetemos o leitor às classificações da própria forma como elemento de
existência do negócio jurídico, tema a ser tratado mais à frente.
4.8. Outras classificações
Os negócios jurídicos podem ser classificados, ainda:
a) segundo a relação de interdependência: aqui, os negócios podem ser principais ou acessórios. Principal é o negócio que existe sobre si mesmo, como a compra e venda, por exemplo; acessório é aquele que depende da existência do principal, como os negócios de garantia
(fiança para a locação, hipoteca para a compra e venda, penhor para o empréstimo etc);
b) segundo a flexibilidade da prestação: nesse ponto os negócios podem ser impessoais,
quando a figura do devedor pode ser substituída, já que a prestação pode ser desempenhada
livremente por qualquer pessoa, como se vê no exemplo do pintor de paredes; ou personalíssimo, hipótese em que a prestação só pode ser desempenhada pelo próprio devedor, como
no caso de um famoso pintor contratado para pintar uma obra de arte.
c) segundo a causa: No sistema jurídico brasileiro, em que o contrato não gera translação de
propriedade (que só se transmite com a tradição ou transcrição), os contratos obrigacionais,
que são aqueles que geram a obrigação de transferir a propriedade, são conhecidos como
negócios causais, porque geram a causa da transferência; já o negócio formal ou real que, de
fato, transfere a propriedade (ou algum outro direito real), como a tradição ou o registro do
título (transcrição) é denominado de negócio abstrato.
d) segundo o início da geração dos efeitos: diz-se também que os negócios podem produzir
efeitos ex nunc, ou seja, a partir da sua celebração, como no caso da compra e venda, por
exemplo, hipótese em que são chamados de negócios constitutivos; por outro lado, alguns
negócios têm a característica de retroagir seus efeitos a um momento anterior, conferindo
efeitos ex tunc, quando então são chamados de negócios declarativos. Alguns exemplos de
negócios declarativos: 1. Partilha de bens, porque seus efeitos retroagem à data da morte
do autor da herança, dado que, segundo o princípio da saisine, a propriedade se transfere a
partir da abertura da sucessão; 2. Ratificação de poderes para o terceiro sem mandato que
adquire a posse em nome do possuidor (CC, art. 1.205, II): nesse caso, é importante que haja
a retroação dos efeitos, para que o adquirente da posse obtenha contagem de prazos (para
ações possessórias e para usucapião) desde o momento em que o terceiro sem mandato obteve a coisa; 3. Aquisição a posteriori à tradição a non domino: aqui, segundo o art. 1.268, §
1º do Código Civil, se o adquirente recebe a coisa por negócio e tradição realizados em seu
Capítulo V • Fatos Jurídicos
299
favor por quem não era dono, por regra legal (art. 1.268, caput), não adquire a propriedade.
Porém, se esse adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, esse
negócio (aquisição posterior da propriedade pelo alienante) faz com que a transferência ao
adquirente de boa-fé seja considerada desde o momento em que lhe foi feita a tradição.
5. INTERPRETAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
A parte geral do Código Civil adota três importantes regras para a interpretação dos negócios
jurídicos. São elas:
a) Princípio da prevalência da intenção dos agentes: Nas declarações de vontade se atenderá
mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem (art. 112). Isto
quer dizer que, quando as circunstâncias reais do negócio jurídico divergirem do conteúdo
escrito do contrato, dever-se-á respeitar mais a intenção consubstanciada na declaração de
vontade do que o sentido literal da linguagem.
Figure-se, por exemplo, que duas pessoas celebrem contrato de locação de uma residência,
com a real intenção de que o locatário utilize o imóvel para nele residir, o que ele o faz efetivamente. Todavia, inseriram no instrumento do negócio que se tratava de locação comercial.
Depois de algum tempo, o locador, buscando se prevalecer das normas da locação comercial,
mais favoráveis ao proprietário do que aquelas destinadas à locação residencial (Lei 8.245/1991),
intenta rescindir o contrato consoante as normas destinadas aos locadores de imóvel não residencial.
Nesse caso, a interpretação do negócio consoante a intenção das partes deve prevalecer
sobre o sentido literal da linguagem, em ordem a se fazer aplicarem as regras atinentes à locação
residencial, conforme se pode observar da jurisprudência:
Imóvel locado e utilizado para fins residenciais. Irrelevância de cláusula contratual conferindo finalidade comercial à locação. Intenção deliberada de fraudar a lei demonstrada. Irrelevante a existência de
cláusula contratual conferindo finalidade comercial à locação se o real intento das partes sempre foi de
dar destinação residencial ao imóvel e assim se procedeu. A intenção dos contratantes prevalece sobre
o sentido literal do texto, conforme preceitua o CC/1916, 85 [CC 112], mormente restando demonstrado que o objetivo deste era, deliberadamente, fraudar a lei em cuja vigência se deu a contratação (2º
TACivSP – RT 686/136, apud NERY JR., 3a ed., p. 231.)
Outro caso importante, que decorre da jurisprudência, é o da interpretação da vontade real
dos agentes para considerar que, mesmo diante da ausência de declaração de vontade expressa,
seja considerada a intenção de celebrar o negócio, como no julgado a seguir, em que o tribunal
paulista reconheceu que, no caso da aplicação de valores em investimentos de risco, sem anuência expressa do cliente, considerar a conduta do correntista que, embora não consultado previamente quanto à aplicação, silenciou-se enquanto a operação lhe era vantajosa, vindo a reclamar
somente quando se verificou o prejuízo. Veja-se:
Aplicação no mercado financeiro de ações não autorizada por correntistas que experimentaram perda
com o desvio de seus ativos que estavam no Itaú-FIC, investimento de renda fixa, 'para o fundo de
ações Itaú Carteira Livre – Correntistas que querem indenização porque não autorizaram o investimento e não ficaram cientes do seu elevado grau de risco, como determinavam as normas da CVM
– Ação julgada parcialmente procedente – Condenação do banco ao pagamento de danos materiais
(RS 42.697,60) desviados indevidamente do fundo de renda fixa para o de ações – Dano moral não
pronunciado – Correntistas inconformados porque, os revezes sofridos com a malsinada aplicação lhe
atingiram o mais fundo de suas almas – Inconformismo do banco porque os correntistas sabiam dos
riscos da troca dos ativos do fundo de renda fixa para o de ações – Acolhimento do recurso do banco
– Não acolhimento do recurso dos correntistas – Aplicador-varão advogado – Ainda que ao tempo da
300
Parte II • Parte Geral
transferência do numerário de um fundo para o outro vigorasse a Instrução Normativa CVM 177/92,
que exigia a ciência do cotista sobre o alto índice de risco da aplicação em fundo de ações, o certo
é que o aplicador-varão não pode desconhecer que ele consentiu a transferência enquanto os ganhos
estavam polpudos – Quem cala consente quando tem o dever de se pronunciar – Não estivessem felizes
com a transferência, deveriam ter ordenado o retorno do capital para o fundo de renda fixa – Silêncio
só quebrado quando o fundo de ações experimentou perdas sensíveis (9 meses após a transferência) –
Silêncio absoluto com a transferência que importa aquiescência – Art. 85, do CC/16 que se confronta
com o art. 112, do CC/02 – A melhor forma de se aferir a vontade contratual das partes é observar o
comportamento delas – Inviabilidade do aplicador-varão desconhecer que permitiu – a execução de um
contrato aleatório equiparado a uma emptio spei – Recurso do banco provido para, julgar improcedente
a ação, invertidos os ônus da sucumbência. (TJSP. Julgado referido na decisão monocrática proferida
no Ag 1312778. Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI. Data da Publicação: 03/09/2010)
b) Princípio da boa-fé: Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os
usos do lugar de sua celebração (art. 113). Fala-se, aqui, em primeiro plano, da boa-fé objetiva,
cláusula geral de interpretação para todos os negócios, ou seja, regra de procedimento segundo
a qual as partes contratantes devem se isentar de intenções maliciosas em detrimento da outra.
Mas não se pode deixar de compreender que o art. 113, embora seja norma de interpretação,
dá vazão ao irrestrito reconhecimento, também, da boa-fé subjetiva, como norma geral de eficácia vertical sobre as demais regras contidas no próprio sistema, devendo prevalecer, portanto,
a boa-fé subjetiva de terceiro quando em confronto com normas que acarretem a invalidade de
negócios por ele entabulados.
Bom exemplo disso é a opção que o STJ tem feito pela proteção do terceiro adquirente de
boa-fé de unidade autônoma de edifício de apartamentos em detrimento de garantia real oferecida
pela construtora, antes ou depois do compromisso com o adquirente (Súmula 308), à instituição
financeira que lhe concedera empréstimo para financiar a obra. Veja-se, a título de exemplo, o
seguinte julgado:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. SFH. CONTRATO DE FINANCIAMENTO. UNIDADE
DE APARTAMENTOS. HIPOTECA CONSTITUÍDA SOBRE IMÓVEL JÁ PROMETIDO À VENDA E QUITADO. INVALIDADE. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. OFENSA. CARACTERIZAÇÃO. ENCOL. NEGLIGÊNCIA DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. I – É nula a cláusula que prevê a instituição de ônus real sobre o imóvel, sem o consentimento
do promitente-comprador, por ofensa ao princípio da boa-fé objetiva, previsto no Código de Defesa
do Consumidor. II – Não prevalece diante do terceiro adquirente de boa-fé a hipoteca constituída
pela incorporadora junto ao agente financeiro, em garantia de empréstimo regido pelo Sistema
Financeiro da Habitação. Destarte, o adquirente da unidade habitacional responde, tão – somente, pelo pagamento do seu débito. III – Consoante já decidiu esta Corte: "é negligente a instituição
financeira que não observa a situação do empreendimento ao conceder financiamento hipotecário para
edificar um prédio de apartamentos". Da mesma forma, "ao celebrar o contrato de financiamento, facilmente poderia o banco inteirar-se das condições dos imóveis, necessariamente destinados à venda,
já oferecidos ao público e, no caso, com preço total ou parcialmente pago pelos terceiros adquirentes de boa-fé". (Precedentes: REsp n° 239.968/DF, DJ de 04.02.2002 e REsp n° 287.774/DF, DJ de
02.04.2001 e EDResp. nº 415.667/SP, de 21.06.04). Recurso especial não conhecido. (REsp 617.045/
GO, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/10/2004, DJ 17/12/2004,
p. 539)
Importante ressaltar, por fim, que voltaremos ao tema da boa-fé na oportunidade da análise
das obrigações e dos contratos.
c) Interpretação restritiva dos negócios benéficos: Já desde o Direito Romano se dizia: "Lei
nº 28 de Ulpiano: qui ex liberalitate conveniuntur, in id, quod facere possunt, condemnandos: aqueles que são demandados em virtude de liberalidade só serão condenados ao que
corresponda às suas possibilidades".
Capítulo V • Fatos Jurídicos
301
Isto se dá porque as liberalidades implicam, geralmente, em redução permanente ou temporária do patrimônio de seus autores. Assim, não se pode interpretar de maneira extensiva o
conteúdo da intenção de beneficiar, sob pena de injusto empobrecimento daquele que fez o bem
ao terceiro.
Por isso, reza o art. 114 do Código Civil que, nos negócios jurídicos benéficos (fiança, doação, comodato etc) e na renúncia, a interpretação deve ser restritiva (art. 114). Essa norma importa em relevantes reflexos na parte especial do Código Civil, a exemplo dos seguintes dispositivos:
Art. 552. O doador não é obrigado a pagar juros moratórios, nem é sujeito às conseqüências da evicção
ou do vício redibitório. Nas doações para casamento com certa e determinada pessoa, o doador ficará
sujeito à evicção, salvo convenção em contrário. […] Art. 584. O comodatário não poderá jamais recobrar do comodante as despesas feitas com o uso e gozo da coisa emprestada. […] Art. 819. A fiança
dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.
6. REPRESENTAÇÃO
6.1. Noções introdutórias
O Código Civil de 2002 disciplina, na parte geral, as regras da representação.
Diferentemente do antigo código, que tratava da representação apenas na parte especial, nos
tópicos respectivos, o atual legislador entendeu necessária a sua regulamentação geral, porque os
diversos casos de representação existentes na parte especial se espalham por diversas matérias,
como no Direito de Família (pais, tutores, curadores), nas obrigações (mandato, agência etc.) e
nas sucessões (inventariança), por exemplo. Por isso, exige-se uma sistematização geral do tema
para aplicação supletiva às normas especiais.
A representação pode ser legal ou voluntária (art. 115). É legal quando decorre da lei; voluntária quando decorre da vontade das partes.
6.2. Limites ao exercício da representação e a teoria da aparência
O exercício da manifestação de vontade, pelo representante, deve se limitar aos poderes a
ele conferidos (pela lei ou pelo negócio de representação), segundo o art. 116, sob pena de anulabilidade, conferida pelo art. 119. Esta anulabilidade, no entanto, fica subordinada à circunstância
de que o excesso de representação deve ser do conhecimento do outro contratante, ou que, pelo
menos, este deva ter conhecimento deste excesso. Essa proteção da boa-fé do terceiro contratante
advém da adoção da teoria da aparência.
A ação para anular o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o
representado está sujeita ao prazo decadencial de 180 dias (CC, art. 119, par. único), a contar da
conclusão do negócio ou, em se tratando de representado incapaz, da cessação da incapacidade.
Adotada a teoria da aparência, o resguardo da boa-fé do terceiro faz com que o negócio
possa ser exigível em desfavor do representado.
O reconhecimento da teoria da aparência no direito brasileiro tem resultado em consequências como, por exemplo, a validade da citação da pessoa jurídica, mesmo que feita na pessoa
de funcionário sem poderes para tanto, o qual, no entanto, recebe o ato citatório sem mencionar
qualquer ressalva a esse respeito. Trata-se de entendimento já consolidado no STJ, como se vê
adiante:
302
Parte II • Parte Geral
PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO Art. 535 DO CPC INOCORRENTE. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. ENTIDADE FILANTRÓPICA. PRESUNÇÃO
DE HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA. INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE NULIDADE DE CITAÇÃO. TEORIA DA APARÊNCIA. APLICAÇÃO. […] 4. "Aplicação do entendimento prevalente
da Corte Especial no sentido de adotar-se a Teoria da Aparência, reputando-se válida a citação da
pessoa jurídica quando esta é recebida por quem se apresenta como representante legal da empresa
e recebe a citação sem ressalva quanto à inexistência de poderes de representação em juízo" (AgRgEREsp 205.275/PR, Relatora Min. Eliana Calmon, DJ 28.10.02). 5. Recurso especial não provido.
(REsp 1195605/RJ, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/09/2010,
DJe 22/09/2010)
Na mesma trilha de entendimento, o Superior Tribunal de Justiça tem aplicado a teoria da aparência para se autorizar a responsabilização da pessoa jurídica por atos de gerentes que, mesmo sem
poderes expressos, contratam com terceiros em circunstâncias tais que não era razoável exigir-se
deles (terceiros) o conhecimento sobre a inexistência de poderes para a pactuação. Veja-se:
DIREITO EMPRESARIAL. NEGÓCIO JURÍDICO CELEBRADO POR GERENTE DE SOCIEDADE
ANÔNIMA. AUSÊNCIA DE PODERES. ATO CONEXO COM A ESPECIALIZAÇÃO ESTATUTÁRIA DA EMPRESA. LIMITAÇÃO ESTATUTÁRIA. MATÉRIA, EM PRINCÍPIO, INTERNA CORPORIS. TERCEIRO DE BOA-FÉ. TEORIA DA APARÊNCIA. APLICABILIDADE. 1. No caso em
exame, debatem as partes em torno de aditivo que apenas estabeleceu nova forma de reajuste do contrato
original – em relação ao qual não se discute a validade –, circunstância a revelar que o negócio jurídico
levado a efeito pelo então Gerente de Suprimentos, que é acessório, possui a mesma natureza do principal
– prestação de serviços –, o qual, a toda evidência, poderia ser celebrado pela sociedade recorrente por se
tratar de ato que se conforma com seu objeto social. 2. Na verdade, se a pessoa jurídica é constituída em
razão de uma finalidade específica (objeto social), em princípio, os atos consentâneos a essa finalidade,
não sendo estranho ao seu objeto, praticados em nome e por conta da sociedade, por seus representantes
legais, devem ser a ela imputados. 3. As limitações estatutárias ao exercício de atos por parte da Diretoria
da Sociedade Anônima, em princípio, são, de fato, matéria interna corporis, inoponíveis a terceiros de
boa fé que com a sociedade venham a contratar. 4. Por outro lado, a adequada representação da pessoa
jurídica e a boa-fé do terceiro contratante devem ser somadas ao fato de ter ou não a sociedade praticado
o ato nos limites do seu objeto social, por intermédio de pessoa que ostentava ao menos aparência de
poder. 5. A moldura fática delineada pelo acórdão não indica a ocorrência de qualquer ato de ma-fé por
parte da autora, ora recorrida, além de deixar estampado o fato de que o subscritor do negócio jurídico
ora impugnado – Gerente de Suprimento – assinou o apontado "aditivo contratual" na sede da empresa e
no exercício ordinário de suas atribuições, as quais, aliás, faziam ostentar a nítida aparência a terceiros de
que era, deveras, representante da empresa. 6. Com efeito, não obstante o fato de o subscritor do negócio
jurídico não possuir poderes estatutários para tanto, a circunstância de este comportar-se, no exercício
de suas atribuições – e somente porque assim o permitiu a companhia –, como legítimo representante
da sociedade atrai a responsabilidade da pessoa jurídica por negócios celebrados pelo seu representante
putativo com terceiros de boa-fé. Aplicação da teoria da aparência. 7. Recurso especial improvido. (REsp
887277. Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO. QUARTA TURMA. Informativo/STJ nº 0454).
No mesmo sentido:
Direito comercial. Recurso especial. Ação de embargos do devedor à execução. Acórdão. Omissão.
Inexistência. Título de crédito (nota promissória) emitido em nome da pessoa jurídica. Administrador.
Excesso de mandato caracterizado. Oposição a terceiro de boa-fé. Impossibilidade. Ausência de excesso de mandato. Ônus da prova. Prequestionamento. – […] – O excesso de mandato praticado pelo
administrador da pessoa jurídica poderá ser oposto ao terceiro beneficiário apenas se ficar afastada
a boa-fé deste, o que ocorre quando: (i) a limitação de poderes dos administradores estiver inscrita
no registro próprio, (ii) o terceiro conhecia do excesso de mandato, e (iii) a operação realizada for
evidentemente estranha ao objeto social da pessoa jurídica. – Verificada a boa-fé do terceiro, restará
à pessoa jurídica exigir a reparação pelos danos sofridos em ação regressiva a ser proposta contra o
administrador que agiu em excesso de mandato. – É inadmissível o recurso especial na parte em que
não restou prequestionado o direito tido por violado. – Recurso especial a que não se conhece. (REsp
448.471/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/03/2003, DJ
14/04/2003, p. 221)
Capítulo V • Fatos Jurídicos
303
Contudo, o art. 118 impõe ao representante que excede seus poderes, sem o conhecimento
do terceiro, a responsabilidade pelos atos que excederem os termos da representação. Isso não
implica, como vimos, em desoneração do representado para com os terceiros de boa-fé, por aplicação da teoria da aparência. A responsabilidade do representante decorre, portanto, do direito de
regresso que se confere ao representado.
6.3. Negócio consigo mesmo
Diz o art. 117 do Código Civil que salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o
negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo
mesmo.
Consagra-se, assim, a regra de que, não existindo autorização legal ou convencional (fornecida pelo representado), não pode o representante utilizar seus poderes para celebrar negócio em
que o destinatário da declaração de vontade do representado seja o próprio representante.
Tome-se como exemplo o do representante de uma empresa que transfira para seu nome os
bens de propriedade da sociedade, em detrimento da pessoa jurídica e de seus sócios. Nos termos
do art. 117, tal negócio é anulável.
Também podemos verificar a aplicação da norma no caso em que um procurador com poderes de alienação de uma coisa de propriedade do mandante (mas sem os poderes previstos no art.
685 do CC – conferir abaixo), outorga substabelecimento a outrem, vindo a praticar o negócio
de aquisição da coisa com o substabelecido, em clara distorção do regramento acima referido.
Registre-se ainda o exemplo da nulidade da cláusula-mandato, talhada pela jurisprudência
do STJ. Trata-se de expediente utilizado, geralmente, por instituições financeiras para garantir o
pagamento de empréstimos a juros por parte do mutuário: no momento da assinatura do contrato
de mútuo, o mutuário dá poderes ao mutuante para que este emita, em seu próprio favor, título de
crédito representativo do valor atualizado da dívida, o que foi repelido, com justiça, pela Súmula
60 do STJ, que reza que "é nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário,
vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste".
Observe-se que a outorga desses poderes abusivos em favor de instituições financeiras, na
prática, dá-se muito comumente, também, através da exigência, pelo credor, de emissão, pelo
devedor, no momento da assinatura do contrato de empréstimo, de títulos de crédito (geralmente
notas promissórias) em branco em favor do credor, para posterior preenchimento ao alvedrio
deste, o que também foi sabiamente repugnado pelo Superior Tribunal de Justiça, como se pode
ver da seguinte ementa:
PROCESSO CIVIL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – NEGATIVA DE PROVIMENTO – AGRAVO REGIMENTAL – CONTRATO BANCÁRIO – NOTA PROMISSÓRIA – EMISSÃO EM BRANCO – VIOLAÇÃO AO Art. 51, IV, CDC – SÚMULA 60/STJ – LETRA DE CÂMBIO – SAQUE
– NULIDADE – DESPROVIMENTO. 1 – No que diz respeito à validade da nota promissória emitida
em branco, a orientação desta Corte é no sentido de que a cláusula contratual que permite a emissão
da nota promissória em favor do banco/embargado, caracteriza-se como abusiva, porque violadora do
princípio da boa-fé, consagrado no art. 51, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor. Precedente
(REsp 511.450/RS). 2 – Igualmente, é nula a cláusula contratual em que o devedor autoriza o credor
a sacar, para cobrança, título de crédito representativo de qualquer quantia em atraso. Isto porque tal
cláusula não se coaduna com o contrato de mandato, que pressupõe a inexistência de conflitos entre
mandante e mandatário. Precedentes (REsp 504.036/RS e AgRg Ag 562.705/RS). 3 – Agravo regimental desprovido. (AgRg no Ag 511.675/DF, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA,
julgado em 23/08/2005, DJ 17/10/2005, p. 297)
304
Parte II • Parte Geral
Mais sobre a cláusula-mandato poderá ser lido no capítulo próprio a respeito do contrato de
mandato (item 1.3.2 do Capítulo X da Parte V).
Ainda sobre o tema do negócio consigo mesmo, devemos lembrar que existia discussão, no
regime jurídico anterior, sobre a validade do uso da procuração (instrumento do mandato) para
compra e venda de imóveis, hipótese em que o mandante dava ao mandatário poderes para alienar
a coisa para quem quisesse, inclusive para si mesmo, pois o antigo Código, embora previsse o
mandato em causa própria, proibia expressamente essa hipótese. Veja-se:
CC, 1916, Art. 1.317, I
Art. 1.133
É irrevogável o mandato: I – quando se tiver convencionado que o mandante não possa revogá-lo, ou for em
causa própria a procuração dada.
Não podem ser comprados, ainda em hasta pública: […]
II – pelos mandatários, os bens, de cuja administração
ou alienação estejam encarregados.
Em que pese a antiga vedação legal, ainda mesmo na vigência do CC-1916 se arraigou a praxe
de, em lugar da lavratura de escritura pública de compra e venda, os agentes do negócio em torno da
propriedade de bens imóveis emitirem procuração, em favor do adquirente, para que este transfira para
si ou para terceiros o bem objeto do mandato. A prática se tornou tão comum que passou a se considerar inconveniente, do ponto de vista da política judiciária, invalidar esses pactos, já que isso, não
raro, dava margem a especulações e prevalência de má-fé por parte de alienantes mal-intencionados.
Por isso, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula nº 165, segundo a qual: "A venda
realizada diretamente pelo mandante ao mandatário não é atingida pela nulidade do art. 1.133,
II, do Código Civil".
O art. 685 do atual Código extingue qualquer polêmica em torno do assunto, ao dispor que
“conferido o mandato com a cláusula “em causa própria”, a sua revogação não terá eficácia,
nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais”.
Trata-se, portanto, de expressa autorização legal para a prática do chamado negócio consigo
mesmo.
7. QUADRO SINÓTICO
CAPÍTULO V – FATOS JURÍDICOS
Fatos
Jurídicos
É através da ocorrência de fatos juridicamente relevantes que o Direito se realiza,
transforma-se ou se extingue. Mas nem todos os fatos da vida humana são tidos
como juridicamente relevantes. Serão jurídicos, portanto, todos os fatos que possam trazer consequências para o mundo jurídico, quer seja criando, modificando,
extinguindo, resguardando ou transmitindo direitos.
1
– efeitos aquisitivos: são aqueles pelos quais, através do fato, decorre em seguida o acréscimo de um bem ou direito ao patrimônio do agente, como na tradição, na transcrição do título aquisitivo no registro de imóveis, na reunião dos
requisitos para a usucapião, na abertura da sucessão etc.
Efeitos dos Fatos
Jurídicos
– efeitos modificativos: os fatos jurídicos podem modificar os direitos já adquiridos,
por exemplo, em um determinado contrato, podem as partes alterar o seu conteúdo através de um ato substitutivo, como na transação e na dação em pagamento;
– efeitos translativos: os efeitos translativos são aqueles que derivam da potencialidade que tem o fato jurídico de transmitir bens ou direitos de uma pessoa
para outra. A tradição, por exemplo;
2
305
Capítulo V • Fatos Jurídicos
Efeitos dos Fatos
Jurídicos
– efeitos conservativos: esses são os efeitos pelos quais a prática de determinados atos visa resguardar o bem ou direito da ação deletéria do tempo ou de
terceiros;
– efeitos extintivos: extinguem o direito ou a obrigação do agente, como o
abandono, o pagamento (que extingue o direito do credor), a condição resolutiva, a prescrição, a decadência, o perecimento do objeto e qualquer outro
fato que acarrete o falecimento do direito;
2
Espécies de Fatos Jurídicos
Fatos jurídicos
naturais ou em
sentido estrito
São aqueles capazes de gerar efeitos jurídicos como criar, modificar, resguardar,
transferir ou extinguir direitos sem o concurso da ação humana, como uma tempestade ou a morte natural de alguém
3.1
Atos jurídicos
Demandam a ação voluntária do homem para se materializar. O ato jurídico lato
sensu, por sua vez, comporta classificações. Dentre elas, a que mais importa para o
direito é a sua partição em atos jurídicos não negociais e atos jurídicos negociais.
3.2
Atos jurídicos
stricto sensu ou
não negociais
São atos que decorrem da vontade humana, contudo, a vontade é dirigida somente à prática do ato, mas não ao seu efeito, que decorre, automaticamente,
dos ditames da lei.
3.2.1
Atos-fatos
jurídicos
A sua ocorrência depende de ação humana, no entanto, não é necessária a vontade para a sua prática ou esse elemento volitivo é irrelevante. Dessa forma, se
um indivíduo absolutamente incapaz, por exemplo, praticar sozinho algum ato-fato jurídico, este será, em regra, válido, e produzirá todos os efeitos que deveria
produzir. A ocupação (art. 1.263 CC) e o achado de tesouro (art. 1.264 CC) seriam
exemplos.
3.2.1.1
Atos jurídicos
negociais ou
negócios jurídicos
É o ato cuja prática e efeitos são derivados da vontade humana. Nos negócios os
efeitos jurídicos do ato dependem da vontade declarada do agente, a manifestação da vontade humana alcança a produção de efeitos, modulando-os, a vontade
não fica adstrita – como no caso dos atos jurídicos stricto sensu – à simples escolha
quanto a prática do ato ou não. Os contratos são exemplos típicos de negócios
jurídicos.
3.2.2
Classificações dos negócios jurídicos
– Unilateral: derivam da declaração de vontade de uma só das partes, sem necessidade da aceitação ou do concurso da vontade da outra. Pode ser:
 receptício: depende, pelo menos, de que a outra parte seja notifi­cada;
Pelo número de
partes
 não receptício: sem necessidade de notificação à outra parte;
– bilateral: dependem do concurso da vontade de pelo menos dois agentes;
4.1
– plurilateral: é o negócio em que não se encontram dois polos distintos, mas
sim um conjunto de pessoas que atuam com o mesmo interesse, como na
sociedade.
– típicos: são figuras previstas expressamente pela lei;
Pela
tipicidade
– atípicos: não têm previsão legal, entretanto, em função do princípio da autonomia da vontade, devem ser aceitos, desde que preencham os requisitos de
existência e os elementos de validade previstos pelo art. 104 do Código Civil.
4.2
– translativos: visam à transmissão de um direito;
Pelos
efeitos
– modificativos: visam modificar o conteúdo de uma relação jurídica já existente, como a novação ou a transação, por exemplo;
– extintivos: têm por fim a extinção de um direito ou de uma relação jurídica,
como o distrato, o pagamento, etc;
– obrigacionais: sua finalidade é criar, entre as partes, obrigações de dar, fazer
ou deixar de fazer alguma coisa;
4.3
306
Parte II • Parte Geral
Pelos
efeitos
Pelo tempo
em que devam
produzir efeitos
Pela causa do
negócio
– de garantia: têm por finalidade resguardar o cumprimento de um outro negócio contra os riscos da insolvência de uma das partes. São os casos do penhor,
da hipoteca e da anticrese;
– inter vivos, quando se destinam a produzir eficácia imediatamente ou durante
a vida das partes;
– causa mortis, quando se destinam a produzir efeitos após a morte de quem
pratica o ato, como no testamento.
– negócios de troca, quando uma das partes dá uma coisa com valor econômico
a fim de receber outra ou até sem interesse em receber nada;
4.3
4.4
4.5
– negócios associativos, quando ambas as partes têm interesses comuns, sem
que uma queira adquirir algum bem ou outro elemento do patrimônio da outra. Exemplo típico é o contrato de sociedade;
Pela causa do
negócio
– negócios para prevenção de riscos: entabulados para garantir a integridade de
pessoas, coisas ou até de relações jurídicas. Exemplo típico é o seguro;
– negócios de crédito: uma das partes outorga a outra um valor econômico com
o objetivo de auferir vantagem a partir daí, como é o caso do mútuo feneratício;
4.5
– negócios de atividade, quando a prestação de uma das partes consiste em fazer
alguma coisa em favor da outra, como no contrato de trabalho, na prestação de
serviços.
–onerosos: ambas as partes têm a intenção de auferir proveito econômico com
o negócio, como na compra e venda;
– gratuitos: quando não existe, de uma das partes, intenção econômica, como
no caso da doação pura;
Pela causa
da atribuição
patrimonial
– neutros: não se destina uma atribuição patrimonial específica, de tal forma a
reduzir o patrimônio (negócios gratuitos) ou estabelecer troca de patrimônios
(onerosos). São atos, portanto, que não se enquadram em nenhuma das hipóteses acima, como a instituição voluntária do bem de família ou a imposição
de ônus de inalienabilidade, incomunicabilidade ou impenhorabilidade sobre
bens;
4.6
– bifrontes: podem ser contratados tanto a título oneroso quanto gratuito. Bom
exemplo é o contrato de mútuo.
Interpretação dos negócios jurídicos
A parte geral do Código Civil adota três importantes regras para a interpretação dos negócios jurídicos.
São elas:
– Princípio da prevalência da intenção dos agentes: Nas declarações de vontade se atenderá mais à
intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem (art. 112);
– Princípio da boa-fé: Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do
lugar de sua celebração (art. 113);
5
– Interpretação restritiva dos negócios benéficos. Reza o art. 114 do Código Civil que, nos negócios
jurídicos benéficos (fiança, doação, comodato etc) e na renúncia, a interpretação deve ser restritiva.
Representação
O Código Civil de 2002 disciplina, na parte geral, regulamentação geral das regras da representação, a
qual se espalha por diversas matérias, como no Direito de Família (pais, tutores, curadores), nas Obrigações (mandato, agência etc.) e nas Sucessões (inventariança), por exemplo.
Limites ao
exercício da
representação
e a teoria da
aparência
O exercício da representação deve se limitar aos poderes conferidos ao representante (pela lei ou pelo negócio de representação), segundo o art. 116, sob pena de
anulabilidade, conferida pelo art. 119, desde que o excesso de representação seja
conhecido do outro contratante. Essa proteção da boa-fé do terceiro contratante
advém da adoção da teoria da aparência.
6
6.2
307
Capítulo V • Fatos Jurídicos
Negócio
consigo mesmo
Diz o art. 117 do Código Civil que salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem,
celebrar consigo mesmo. Portanto, não existindo autorização legal ou convencional (fornecida pelo representado), não pode o representante utilizar seus poderes
para celebrar negócio em que o destinatário da declaração de vontade do representado seja o próprio representante.
8. SÚMULAS E ENUNCIADOS
8.1. Enunciados das Jornadas do
CJF
409. Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados não só conforme a boa-fé e os usos do lugar de
sua celebração, mas também de acordo com as práticas
habitualmente adotadas entre as partes.
420. Arts. 112 e 113. Os contratos coligados devem ser
interpretados segundo os critérios hermenêuticos do
Código Civil, em especial os dos arts. 112 e 113, considerada a sua conexão funcional.
9. QUESTÕES
1.(Imprensa.Of/SP/Advogado/2010) Sobre os fatos
jurídicos, é correto afirmar que
(A) nas declarações de vontade se atenderá mais o sentido literal da linguagem do que a intenção nelas
consubstanciada.
(B) o silêncio importará em anuência quando as circunstâncias ou os usos assim autorizarem, e sempre
que a declaração de vontade expressa não for necessária.
(C) é nulo o negócio jurídico concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado,
se tal fato era ou deveria ser de conhecimento de
quem com ele tratou.
(D) o protesto cambial e qualquer ato judicial que constituam o devedor em mora são causas de suspensão
de prescrição.
(E) são atos ilícitos aqueles que importem na deterioração ou destruição da coisa alheia ou a lesão à pessoa, a fim de remover o perigo iminente.
2. (Sefin/São José do Rio Preto/Auditor/2008) Leia
os itens. Está correto, apenas, o contido em:
I.
Em regra, a validade da declaração de vontade depende de forma especial, a não ser quando a lei expressamente a dispensar.
II. Para subsistir a manifestação de vontade do autor
que haja feito reserva mental de não querer o que
manifestou, é necessário que o destinatário tenha
conhecimento dela.
6.3
III. Quando não for necessária a declaração de vontade
expressa, as circunstâncias ou os usos podem autorizar presumir que o silêncio tenha significado de
anuência.
IV. Nas declarações de vontade, mais importante que o
sentido literal da linguagem, é a intenção nelas consubstanciada.
V. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se extensivamente.
(A) I e III.
(B) I e IV.
(C) III e IV.
(D) II, III e IV.
(E) I, IV e V.
3.(PGM/Natal/Procurador/2008) Paulo, proprietário
de um imóvel, constituiu Henrique como seu procurador para a venda do bem. Henrique, por falta de
tempo disponível para tratar com os interessados
em comprar o imóvel em questão, substabeleceu
seus poderes para Mônica, que passou a negociar
esse imóvel. Passado um mês, Henrique foi beneficiado por uma herança e procurou Mônica para
adquirir o imóvel de Paulo. Considerando a situação hipotética apresentada acima e as disposições
do Código Civil acerca do assunto, é correto afirmar
que a venda do imóvel a Henrique
(A) seria nula de pleno direito, por tratar-se de negócio
jurídico celebrado consigo mesmo.
(B) seria plenamente válida, porque, diante do silêncio
de Paulo, presume-se que este tenha permitido o
autocontrato por Henrique.
(C) poderia ser anulada por Paulo, por tratar-se de negócio jurídico celebrado por Henrique consigo mesmo, por intermédio de substabelecimento.
(D) seria perfeitamente válida, porque os poderes de
representação constituídos a Henrique foram substabelecidos a Mônica.
4.(TJ/PA/Analista/2009) No que tange aos negócios
jurídicos pode-se afirmar que
(A) os negócios neutros podem ser enquadrados entre
os onerosos ou os gratuitos.
(B) nos negócios jurídicos onerosos nem sempre ambos os contratantes auferem vantagens.
308
(C) não há nenhum negócio que não possa ser incluído
na categoria dos onerosos ou dos gratuitos.
(D) nos negócios jurídicos gratuitos só uma das partes
aufere vantagens ou benefícios.
Parte II • Parte Geral
(E) anulável, sendo de dois anos, a contar do conhecimento da nulidade, o prazo decadencial para pleitear-se a anulação.
(E) os negócios celebrados inter vivos não se destinam
obrigatoriamente a produzir efeitos desde logo, ainda que estando vivas as partes.
6. (MPE-SC – Promotor de Justiça – SC/2013) Nas declarações de vontade nunca se atenderá à intenção
nelas consubstanciadas pelo agente, mas sim, unicamente, ao sentido literal da linguagem .
5.(TRE/AL/Analista/2010) O negócio jurídico concluído pelo representante em conflito de interesses
com o representado, quando tal fato devia ser do
conhecimento de quem o contratou, é
7. (FCC – Analista Judiciário – Área Judiciária – TRT
9/2013) Em relação à interpretação do negócio jurídico, é correto afirmar que
(A) nulo, sendo de 180 dias, a contar da conclusão do
negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo
decadencial para pleitear-se a anulação.
(B) anulável, sendo de 180 dias, a contar da conclusão
do negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo
decadencial para pleitear-se a anulação.
(C) anulável, sendo de um ano, a contar da conclusão
do negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo
decadencial para pleitear-se a anulação.
(D) nulo, sendo de um ano, a contar da conclusão do
negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo
decadencial para pleitear-se a anulação.
(A) quaisquer negócios jurídicos onerosos interpretam-se estritamente.
(B) na vontade declarada atender-se-á mais à intenção
das partes do que à literalidade da linguagem.
(C) a renúncia interpreta-se ampliativamente.
(D) o silêncio da parte importa sempre anuência ao que
foi requerido pela outra parte.
(E) como regra geral, não subsiste a manifestação da
vontade se o seu autor houver feito a reserva mental
de não querer o que manifestou.
10. GABARITOS
Questão
Resposta
Comentário
Onde encontro no livro?
1
B
CC, art. 111
Parte II, Capítulo VI, item 2.2.3
2
C
CC, arts. 111 e 112
Parte II, Capítulo VI, item 2.2.3 e
Capítulo V, item 5
3
C
CC, art. 117
Parte II, Capítulo V, item 6.3
4
D
É gratuito o negócio quando uma das partes não aufere vantagem
Parte II, Capítulo V, item 4.6
5
B
CC, art. 119, parágrafo único
Parte II, Capítulo V, item 6.3
6
ERRADO
CC, art. 112
Parte II, Capítulo V, item 5
7
B
CC, art. 112
Parte II, Capítulo V, item 5
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