a parceria universidade-escola possibilitando novas

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XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
A PARCERIA UNIVERSIDADE-ESCOLA POSSIBILITANDO NOVAS
PRÁTICAS NA FORMAÇÃO MATEMÁTICA DAS PROFESSORAS DOS
ANOS INICIAIS
Kelly Cristina Betereli
Adair Mendes Nacarato
Universidade São Francisco
Resumo: Esta pesquisa, de abordagem qualitativa, visa analisar, num trabalho de
parceria universidade-escola, como professoras que atuam nos anos iniciais do Ensino
Fundamental (re)significam suas concepções e as práticas de letramento matemático.
Ela está inserida numa pesquisa mais ampla dentro do Programa Observatório da
Educação, desenvolvido em parceria com uma escola pública municipal. A equipe se
reúne semanalmente para estudos e pesquisas, tendo as práticas de letramento como
foco. Na parceria, o grupo elabora situações de sala de aula e analisa,
colaborativamente, os resultados obtidos em sala de aula. Os dados apresentados neste
texto foram produzidos a partir da escrita de autobiografias por duas professoras
(Regina e Paula), complementadas por entrevistas individuais. Regina, formada em
Pedagogia, atuava, na época da documentação da pesquisa no 2º ano; Paula, formada
em magistério e Letras, atuava no 3º ano. Na autobiografia, ambas destacaram que a
formação inicial deixou lacunas no que diz respeito à matemática e vêm buscando em
projetos de formação continuada a superação das dificuldades. Como ocorre com todo
professor em início de carreira, elas também reproduziam as práticas vivenciadas
durante a escolarização, o que contribuiu para a constituição de um sistema de crenças,
nem sempre favorável em relação à matemática e seu ensino. Acredita-se que um
trabalho que envolva a parceria da escola com a universidade poderá contribuir para a
construção de novas crenças quanto à Matemática e o seu ensino, promovendo novas
aprendizagens e o desenvolvimento profissional. Evidências dessas transformações já se
fizeram presentes nas entrevistas individuais, realizadas após um ano de trabalho em
cooperação.
Palavras-chave: Formação docente; professor dos anos iniciais; letramento
matemático.
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Introdução
Este trabalho insere-se numa pesquisa mais ampla no âmbito do Observatório da
Educação (OBEDUC), num projeto de parceria universidade-escola, com foco no
letramento e letramento matemático – por nós denominados simplesmente práticas de
letramento – e que tomou como ponto de partida as avaliações externas (Prova Brasil e
Provinha Brasil de Matemática).
A pesquisa está sendo desenvolvida numa escola pública do município de
Itatiba/SP, com duas professoras e dois gestores. Nosso propósito é analisar como as
professoras que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental (re)significam suas
concepções e as práticas de letramento. Partimos da hipótese de que essas concepções
emergirão no momento em que as professores analisarem as questões presentes nessas
provas externas. Assim, nosso objetivo mais amplo de pesquisa é analisar as
transformações nas práticas dos professores decorrentes da análise e interpretação
desses documentos e provas relativos às avaliações do INEP.
Para que possamos identificar as transformações ocorridas nas práticas dos
professores, utilizamos dois instrumentos de coleta de dados: a escrita de autobiografias
e uma entrevista individual – esta com o objetivo de complementar informações
contidas nas autobiografias. Assim, para o presente texto trazemos como recorte as
relações que as duas professoras estabelecem com a matemática, tanto durante a
escolarização básica quanto na prática docente. Nosso objetivo é identificar quais as
crenças que sustentam as práticas dessas professoras.
O texto está organizado em quatro seções: inicialmente trazemos alguns
elementos teóricos relativos ao ensino de matemática e a formação do professor
polivalente – aquele que atua nos anos iniciais; em seguida, apresentamos o contexto da
pesquisa e as duas professoras colaboradoras; e, na terceira seção, alguns dados
produzidos a partir dos dois instrumentos citados anteriormente, destacando a relação
das professoras com a matemática. Finalmente, trazemos nossas reflexões sobre os
achados da pesquisa.
O ensino de matemática nos anos iniciais e a formação do professor polivalente
As aulas de Matemática mantêm uma certa tradição, ou seja, são aulas
expositivas nas quais o professor 'passa o ponto' (definições/propriedades) na lousa, e
em seguida, uma lista de exercícios para serem resolvidos e, em seguida, corrigidos.
Tudo isso ocorre de forma muito mecanizada, com ausência de comunicação entre
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professor e aluno e isso faz com que perguntas fiquem sem respostas; respostas fiquem
sem perguntas – acontece, muitas vezes, um desencontro. Esse desencontro nas aulas de
matemática normalmente vem acontecendo desde os anos iniciais e isso faz com que os
alunos “criem” certas resistências à disciplina.
Esse modelo de aula de Matemática é denominado por Alro e Skovsmose (2006,
p. 51) de "Educação Matemática tradicional", e nele, "os padrões de comunicação entre
professor e alunos se tornam repetitivos". Muitas vezes, essa comunicação se limita às
perguntas do professor e às respostas dos alunos.
Ainda, segundo esses autores, essa Educação Matemática tradicional é regida
pelo "paradigma do exercício", ou seja:
Esse paradigma tem grande influência na Educação Matemática no
que diz respeito à organização das aulas, aos padrões de comunicação
entre professor e alunos, bem como ao papel que a Matemática
desempenha na sociedade como um todo, por exemplo, com uma
função
fiscalizadora
(exercícios
matemáticos
encaixam-se
perfeitamente em processos de seleção). Geralmente, exercícios de
Matemática são preparados por uma autoridade externa à sala de aula.
Nem o professor, nem o aluno participam da elaboração dos
exercícios. Eles são estabelecidos pelo autor de um livro-texto.
(Ibidem, p. 52)
No entanto, percebe-se no contexto mundial da Educação Matemática, um
movimento de desafio a esse paradigma, buscando-se novas formas de comunicação em
sala de aula.
Essa maneira de se ensinar matemática, pautada no “paradigma do exercício”,
carrega crenças culturais de que a matemática não é para todos, que a matemática é
muito difícil e esses traumas que aparecem na infância perpassa geração e quando
jovens optavam pelo antigo magistério ou pela graduação em pedagogia pensando em se
livrar da matemática, com isso acabam por deixar muitas lacunas durante o exercício da
profissão.
Segundo Chacón (2003, p.20):
As crenças matemáticas são um dos componentes do conhecimento
subjetivo implícito do indivíduo sobre a matemática, seu ensino e sua
aprendizagem. Tal conhecimento está baseado na experiência. As
concepções entendidas como crenças conscientes são diferentes das
crenças básicas, que muitas vezes são inconscientes e têm o
comportamento afetivo mais enfatizado.
Mas como se livrar de uma disciplina que terá que ser ensinada desde a educação
infantil? Já dizia Roldão (2007) que na função de ensinar existe uma estreitíssima
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ligação entre a natureza da função e o tipo de conhecimento específico que se reconhece
como necessário para a exercer.
Há décadas atrás, a matemática ensinada era aquela de passar o conhecimento, e
pelo método da repetição, da memorização de vários exercícios iguais, se aprendia. A
função do professor hoje exige que ele consiga articular saberes do conteúdo a ser
ensinado e saberes de como deve ensinar este conteúdo transformando-os de forma a
possibilitar a aprendizagem do aluno, porém não podemos deixar de lado como afirmam
Vicentini e Lugli (2009, p. 13)
...que é preciso considerar os saberes, práticas e valores próprios da
escola, produzidos em meio a embates que procuraram imprimir a
essa
instituição
uma
determinada
configuração
sujeita
permanentemente tanto a estratégias desenvolvidas para mantê-la
quanto a tentativas de transforma-la.
A prática docente pode proporcionar aos sujeitos mudanças sociais, culturais,
diminuir diferenças sociais e econômicas, permitindo à sociedade ascensão econômica e
progresso, porém concordamos e destacamos que,
é importante observar que a história da formação docente não
corresponde a uma superação contínua de modos inadequados de
estudo por outros melhores, na direção do aperfeiçoamento do ensino.
De fato, trata-se de uma sucessão de conflitos entre professores,
políticos e intelectuais ligados à educação que discutiam metodologias
e currículos mais adequados em cada época. (VICENTINI; LUGLI
2005, p.29).
Estamos vivendo na sociedade do conhecimento, na era da informatização, em
que as informações veiculam e se modificam em velocidade muito rápida e em
diferentes mídias, e a educação é o foco principal para o desenvolvimento, como afirma
Hargreaves (2001, p 7):
O conhecimento não é apenas um suporte para o trabalho e a
produção, mas a maneira principal de trabalho e autoprodução, como
mais e mais pessoas trabalham no campo das ideias, comunicação,
venda, marketing, aconselhamento, consultoria, turismo, organização
de eventos e assim por diante. Esse novos caminhos de gerar,
processar e circular conhecimento são absolutamente centrais os quais
muitos especialistas agora chamam aprendizagem ou a sociedade do
conhecimento. O papel da educação e do ensino em tal sociedade é
crescentemente reconhecido como sendo absolutamente vital.
Assim, o trabalho docente passa de transmitir informação, pois além da
transformação dessas informações em conhecimentos, o professor também se torna
responsável pela formação humana mais ampla dos estudantes. Além disso, o professor
também precisa buscar pelo seu desenvolvimento profissional, refletir sobre suas
experiências profissionais e pessoais, ampliar sua formação acadêmica e tomar
consciência de que a formação é um processo contínuo.
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Nesse sentido, acreditamos que um trabalho que envolva a parceria da escola com
a universidade poderá, de um lado, contribuir para a construção de novas crenças quanto
à Matemática e o seu ensino, e, de outro, desenvolver nos professores essa consciência
da inconclusão do ser humano, como dizia Paulo Freire.
Não há como discutir ensino de matemática dos anos iniciais sem nos reportarmos
à formação do professor que atua nesse nível de ensino – os chamados professores
polivalentes.
Saviani (2009, p. 149-150) identifica dois modelos de formação que marcaram
as últimas décadas: um modelo centrado nos conteúdos culturais-cognitivos e outro
centrado na formação pedagógico-didático.
a) modelo dos conteúdos culturais-cognitivos: para este modelo, a
formação do professor se esgota na cultura geral e no domínio
específico dos conteúdos da área de conhecimento correspondente à
disciplina que irá lecionar.
b) modelo pedagógico-didático: contrapondo-se ao anterior, este
modelo considera que a formação do professor propriamente dita só se
completa com o efetivo preparo pedagógico-didático.
Esses modelos tornam-se mais complexos quando estamos nos referindo à
formação do professor que atua nos anos iniciais. Essa formação vem sofrendo
transformações – tanto na sua concepção quanto no espaço em que deverá ocorrer.
Antes da década de 1970 essa formação ocorria nas chamadas Escolas Normais, com
equivalência de ensino médio. A partir da década de 1970, essa formação passa a ser
uma das habilitações do antigo ensino de 2º grau: Habilitação Específica ao Magistério,
também em nível médio. Com a última LDB (Lei 9394/96) essa formação passa a ser no
ensino superior, em cursos de Pedagogia.
Esses deslocamentos no espaço de formação têm trazido consequências para a
constituição de um repertório de saberes necessário ao exercício profissional. Muito se
tem discutido sobre esses saberes que o professor precisa deter: saberes do conteúdo,
saberes pedagógicos do conteúdo, saberes curriculares, saberes das ciências da educação
e saberes da experiência. Além desses saberes, Roldão (2007) defende que o docente
precisa ser um gerador de especificidades como:
-Conhecimento formalizado fazendo dar sentido àquilo que se está ensinando.
-Interrogatividade fazendo com que o aluno pense, reflita, faça questionamentos e
comparações.
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- Identidade profissional que é a forma como os professores definem a si mesmos.
É a construção de sua identidade e seu desenvolvimento profissional – compromisso
pessoal sobre sua própria prática e sua aprendizagem docente.
- comunicação e circulação: comunicar-se com os alunos e com outros docentes,
trocando experiências, não achar que é o detentor do conhecimento e ter humildade de
saber que sempre temos mais a aprender.
Segundo Roldão (2007, p. 100):
Nas práticas de qualidade, verificamos que não basta que se integrem
os conhecimentos de várias naturezas, mas que eles se transformem,
passando a constituir-se como parte integrante uns dos outros. Por
exemplo, o conhecimento didático de conteúdo incluirá, modificandoo, o conhecimento de conteúdo.
No entanto, pesquisas como as Gatti e Barreto (2009) apontam que as grades
curriculares da maioria dos cursos de Pedagogia no Brasil não são suficientes para
garantir esse repertório de saberes necessários para o ensino das disciplinas específicas.
Segundo elas:
os poucos cursos que as oferecem propiciam um panorama sobre os
conteúdos específicos sem o aprofundamento necessário para a
contextualização de formas de construção de determinado conceito no
campo disciplinar, bem como da problematização dos significados
passíveis de serem construídos pelos alunos. E, ainda, não oferecem
oportunidade de aprofundamento para que os professores proponham
desafios capazes de favorecer o estabelecimento de relações entre os
saberes escolares e a experiência cotidiana dos discentes. (p. 128)
Acrescente-se a isso o fato de que a maioria das instituições tem uma carga
horária destinada à disciplina de conteúdos e metodologia de ensino muito reduzida – a
maioria, quando tem esta disciplina, mantém uma carga de 60 horas. Dessa forma,
questiona-se como é possível com carga tão reduzida trabalhar com os fundamentos e a
metodologia de ensino de matemática. Pesquisas como as de Nacarato (2010)
evidenciam como os alunos no curso de Pedagogia trazem sérios comprometimentos
com a aprendizagem matemática, mantendo relações bastante negativas com essa
disciplina. Segundo a autora, se não houver um trabalho que rompa com as crenças dos
futuros professores do que seja ensinar e aprender matemática, esses futuros professores
continuarão perpetuando práticas de ensino de matemática pautas no “paradigma do
exercício”.
Nessa perspectiva, competem aos projetos de formação continuada as tentativas
de mudanças dessas crenças dos professores, possibilitando outros contextos nos quais
possam compreender as bases epistemológicas da matemática e serem capazes de
introduzir metodologias em sala de aula que garantam aprendizagens dos alunos.
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Dentre os múltiplos caminhos para essa formação, defendemos que o trabalho em
parceria universidade e escola pode se constituir em experiências positivas para os
professores e, consequentemente, para os seus alunos.
O contexto da pesquisa
A pesquisa está sendo desenvolvida com quatro professores de uma escola
pública municipal de Itatiba/SP: duas professoras polivalentes, uma coordenadora
pedagógica e o diretor da escola. A equipe se reúne semanalmente para estudos e
pesquisas, tendo as práticas de letramento como foco. Além das reuniões, há parcerias
entre pesquisadores e professores visando atingir objetivos específicos do projeto mais
amplo.
Com o objetivo de conhecermos as práticas de letramento que marcaram a
trajetória estudantil e profissional desses professores, solicitamos a escrita de
autobiografia por parte de cada um deles. Em seguida, tomando essas autobiografias
como ponto de partida, realizamos uma entrevista individual com cada um deles,
visando complementar informações, por nós consideradas como importantes para o
âmbito do projeto.
Para o recorte aqui apresentado, trazemos os dados produzidos pelas duas
professoras – uma atuando no 2º ano (professora Regina) e outra, no 3º ano do ensino
fundamental (professora Paula). As entrevistas foram audiogravadas e devolvidas às
entrevistadas para as correções que julgassem necessárias.
A professora Paula tem 15 anos de carreira docente. Formada pelo curso do
magistério e posteriormente, quando a Lei exigiu que os professores dos anos iniciais
tivessem curso superior, está optou pelo curso de Letras. Sempre trabalhou com os anos
iniciais e em alguns projetos do ensino fundamental II. Ela se efetivou na rede
municipal da cidade de Itatiba em 1995.
A professora Regina tem 09 anos de carreira docente. Formada também pelo
curso de magistério em 1998, lecionou aulas de reforço na própria rede municipal de
Itatiba e em escolas de Kumon até 2006, ano em que se efetivou na rede municipal da
cidade citada e ano também que ingressou no curso de pedagogia oferecido na época
pela Unicamp – PROESP (Programa Especial para Formação de Professores em
Exercício da RMC).
A matemática na vida escolar e profissional das duas professoras.
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Nossa preocupação inicial foi conhecer a relação que Paula e Regina
estabeleceram com a matemática na fase estudantil. Como afirmam Villa e Callejo
(2006, p. 52): “As crenças influem na forma como se aprende, se ensina e se aplica a
matemática; por sua vez, a forma de aprender e utilizar a matemática configura as
crenças”.
A professora Paula, por exemplo, relata em sua autobiografia:
Sempre gostei de estudar, meu único problema era a matemática, até
hoje me recordo das tristes aulas de matemática, na 4ª série havia um
professor excelente na área, ele andava pela sala com uma varinha na
mão e costumava bater em nossas mesas como forma de chamar
atenção... para acertar nas lições de casa pagava uns docinhos para
uma colega e ela me passava as respostas... (texto autobiográfico).
Ao longo das reuniões do projeto, Paula sempre destaca seu desconforto em
relação à matemática. Fica visível sua preferência por outras áreas do conhecimento –
até por conta de sua formação específica na área de Letras. Um dado nos chamou a
atenção nessa autobiografia, quando ela relata:
Em 1996, numa escola rural, foi que tive meu momento crítico
enquanto professora, tive que reprovar um aluno que não tinha boas
notas em matemática, foi uma tortura, até hoje a imagem dele ficou
gravada na memória, [...] para mim a avaliação era apenas uma
seleção dos que eram bons para o próximo ano, [...] justamente na
disciplina da qual eu também havia sofrido tanto. (texto
autobiográfico).
Como ela não trouxe mais detalhes sobre esse acontecimento, na entrevista
individual retomamos essa questão com ela, solicitando que nos explicasse porque havia
sofrido tanto. Ela nos relata que os constantes fracassos na matemática foram lhe
deixando insegura e muitos fracassos eram decorrentes da forma como a professora
trabalhava:
A metodologia da professora... ou você fazia do jeito que ela queria,
ou...era do jeito que ela queria. Se o aluno tivesse um raciocínio
diferente ou uma estratégia diferente não era válida. Por exemplo, no
cálculo mental eu nunca fui boa. Na verdade eu tinha temor nas aulas
de matemática. (Entrevista com professora Paula em 20/10/2011)
Quando indagada, na entrevista, como foi para ela ensinar matemática, ela
respondeu: “os meus primeiros anos como professora eu apenas reproduzia o jeito que
eu tinha aprendido”.
A literatura aponta que o professor no início de carreira tende a reproduzir os
modelos de aula que vivenciou quando estudante. É nessa perspectiva que Nacarato
(2010) destaca a importância das escritas autobiográficas como possibilidades de
conhecimento dos futuros professores e a sinalização para o formador de como atuar
com o grupo de graduandos da Pedagogia de forma a romper com as crenças que
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trazem, para que não continuem reproduzindo práticas destituídas de sentidos para os
seus alunos.
Paula, apesar das lembranças negativas que trazia de sua professora, reproduzia
suas práticas: “a questão não era nem dar ou não chance. Eu não saberia atuar caso o
aluno mostrasse uma outra estratégia de cálculo, outra forma de pensar, explicar
diferente...” (Entrevista com professora Paula em 20/10/2011).
Ela só começa a perceber que existiam outras possibilidades para ensinar
matemática quando começa a participar dos projetos de formação da rede municipal: “A
partir do momento em que a prefeitura começou com a formação continuada, em pouco
tempo que nós estávamos participando das formações de matemática já foi abrindo um
pouco mais a mente, porém mesmo assim...” (Entrevista com professora Paula em
20/10/2011).
Em sua entrevista, ela destaca que a ênfase das formações dadas pela rede
municipal era posta em alfabetização e letramento; pouco havia de matemática. Mesmo
no caso do letramento ela ressente que os cursos pouco têm avançado, pois a cada ano
parte da base, como se não tivesse acontecido nada antes.
Mas, mesmo com as
formações oferecidas, ela ainda se sente insegura.
Agora, por exemplo, eu vou trabalhar com espaço e forma, mas de
que forma eu vou levar isso para os alunos? Como que eu vou fazer
para selecionar isso para os alunos, mesmo no livro do Positivo, é
perfeito, mas surgem coisas na sala de aula que você muitas vezes
não consegue contornar. Falta a questão de conceito...
Vê-se, assim, que Paula tem predisposição para ensinar matemática, mas faltamlhe saberes específicos do conteúdo. Se o professor não dispõe dos saberes específicos,
os pedagógicos também ficam prejudicados, uma vez que a insegurança não possibilita
boas intervenções no momento do trabalho em sala de aula e a abordagem fica reduzida
muitas vezes a procedimentos algorítmicos.
Já a professora Regina traz o seguinte relato em sua autobiografia:
Lembro que usávamos muito caderno de caligrafia para melhorar a
coordenação motora. Fui alfabetizada, no ano seguinte, pela velha e
muito usada na época cartilha “caminho Suave”, ou seja, pelo modelo
tradicional, que por muito tempo acompanhou nossa história
educacional; modelo esse que apresentava como ponto de partida o
período preparatório, o aluno era submetido à memorização. O
professor era o dono do saber e o aluno um mero aprendiz, a
alfabetização era feito a partir de textos descontextualizados (Eu vi a
uva do vovô...) e explorando as sílabas. Também se reforçava o erro,
os trabalhos eram individuais e era desconsiderado qualquer
conhecimento do aluno.
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Enquanto a professora Paula sofria com as aulas de matemática, a professora
Regina narra em sua autobiografia que o que mais foi difícil em seu trajeto escolar foi a
passagem de ensino fundamental I para o fundamental II:
Precisei muito da família ao meu lado, me orientando naquela
transição, pois não conseguia me organizar. Tantas matérias, apenas
cinquenta minutos com cada professor; a escola parecia ter se
transformado em uma pedra de gelo, mas aos poucos tudo foi voltando
ao normal e me adaptei.
Em sua autobiografia a professora Regina não menciona como foi sua
alfabetização matemática, mas em entrevista (27/10/2011) ela nos conta:
o que eu mais lembro é da segunda série, a gente fazia continhas,
muitas continhas, não me lembro de situações problemas, mas eram
muitas continhas e quando a gente acertava todas as continhas
ganhávamos uma estrelinha que era colada no caderno. E eu era boa
nisso, eu não sabia por que o 1 subia, mas eu subia o 1.
Ela se refere às aulas tradicionais de matemática que acontecem sem a
participação dos alunos, nas quais estes são meros coadjuvantes do processo de
aprendizagem; ela está se referindo ao paradigma do exercício que ensina pela técnica e
pela memorização.
Durante sua autobiografia a professora Regina vai deixando claro que sua
formação foi falha e que ainda busca melhorar sua prática a cada dia, descreve suas
dificuldades e medos no início da carreira e o que fez como que ela melhorasse sua
prática ao longo dos anos.
Lecionei algumas aulas de reforço na rede municipal, um trabalho
direcionado a alunos com dificuldades de aprendizagem. Nesse
momento vieram novamente os questionamentos vivenciados no curso
de magistério. “Será que consigo dar conta do recado?” Eu era tão
inexperiente! O meu corpo sofria, sentia dores de cabeça, não dormia
mais a noite inteira e sentia dores horríveis no estômago. No primeiro
contato com a sala de aula alunos com baixa autoestima, carência
afetiva e pouco interesse, as aulas eram lecionadas na sala dos
professores no horário contrário das aulas com a professora da sala.
[...] os conteúdos que aprendi no magistério ajudaram bem pouco,
então parti em busca de aprendizagem e conhecimento com os colegas
mais experientes[...].Porém, a falta de experiência prejudicou muito o
andamento das aulas, hoje posso afirmar que apesar dos esforços,
dedicação, pouco pude ajudar esses alunos.
A falta de experiência somada com a falta de saberes específicos faz com que o
professor se sinta inseguro e não consiga estabelecer relações para uma aprendizagem
significativa.
A professora Regina durante seu trajeto sempre procurou melhorar sua prática e
sempre percebeu sua inconclusão como profissional docente. Constatamos isso em sua
autobiografia quando relata ter encontrado sua professora da 3ª série, mas agora como
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colega de trabalho e que esta lhe ensinava como era “árduo o caminho da profissão
escolhida, lhe ajudando com palavras amiga e com trocas de experiências”.
Em sua entrevista (27/10/2012), quando indagada como ensinava matemática no
início de sua carreira, Regina respondeu:
na verdade eu ensinava matemática da maneira que eu aprendi.
Sinceramente não consigo lembrar o que aprendi no magistério. Foi
mudando a minha visão com a minha própria experiência. Eu sinto
que isso ainda faz falta na minha formação eu ainda deixo a desejar
nessa área, então eu fui correndo atrás, fui procurando atividades
diferentes, porque vi que aquilo não funcionava. Eu achava que a
aluno chegando na 4ª série sabendo as quatro operações estava
ótimo. Foi assim que eu aprendi, sabendo as quatro operações, dá pra
fazer qualquer coisa, e isso não é verdade. Comecei a mudar meu
modo de pensar há uns dois anos atrás, quando começou a me
incomodar a maneira como eu trabalhava matemática e aí eu comecei
a procurar em livros, algumas experiências diferentes.
Percebemos que, durante esses anos de prática docente, essa professora procurou
sempre melhorar sua prática e relata como a vê hoje:
realizo meu trabalho partindo de um diagnóstico aplicado no início do
ano, fazendo agrupamentos produtivos, através das hipóteses de
alfabetização, permitindo que os alunos se ajudem e assim juntos
avancem no processo de ensino aprendizagem, porém é indispensável
a intervenção do professor com questionamentos coerentes para que
todos aprendam, com minha experiência acredito que os alunos com
dificuldades só avançam com a intervenção do professor...” (Texto
autobiográfico).
Diante das falas das duas professoras percebemos que a formação para o
magistério é falha, que o curso de graduação é, sim, de muita importância, porém a
formação continuada é imprescindível para o processo de aperfeiçoamento da prática.
A tendência do docente é reproduzir a maneira pela qual aprendeu e para
“quebrar” com essas concepções e crenças não é um processo fácil, muito pelo
contrário, às vezes é muito doloroso e depende da disposição, da vontade e do
comprometimento de cada um com sua própria prática.
À guisa de encerramento: algumas reflexões
O acesso à escola é garantido a todos igualmente, deixando de lado as diferenças
culturais, as diferentes comunidades e as diferentes necessidades que existem dentro de
um país tão grande como o Brasil. Para Bontempi (2005, p. 54):
o ensino vem baseado numa função social eminentemente
conservadora: as inovações necessárias à evolução das sociedades,
quer sejam provenientes dos campos econômicos, tecnológico ou do
conhecimento, enfrentam sempre a benéfica resistência do “poder
coercitivo” da “tradição”, que as absorve, de modo que o seu impacto
não provoque o desequilíbrio do organismo social.
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Com todas essas mudanças, o docente não pode agir de acordo com o que
aprendeu quando foi aluno, conforme afirma Hargreaves (2001, p. 9): “existe a
necessidade hoje de professores serem comprometidos com e continuamente engajados
em iniciativas geradas em perseguir, melhorar, auto monitorar e revisar sua própria
aprendizagem profissional”. Para que isso aconteça, os professores precisariam
conscientizar-se que, para seu desempenho pessoal e profissional acontecer, seu
aprendizado profissional deve ser contínuo, participando de grupos de estudo/formação,
onde possam discutir trocar experiências, desabafar as angústias e, além disso, não
perder o desejo pelo saber e ter consciência de que somos seres inacabados que estamos
sempre em formação. Nesse sentido, consideramos que a parceria universidade-escola
se constitui numa instância interessante de formação docente. Não apenas os professores
da escola básica aprendem, os acadêmicos também passam a conhecer as reais
necessidades formativas dos professores e as dinâmicas dos cotidianos escolares nos
quais estão inseridos.
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