o cuidado e o acolhimento na escola cidadã

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XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
O CUIDADO E O ACOLHIMENTO NA ESCOLA CIDADÃ
Jose Clovis de Azevedo
Jonas Tarcísio Reis
Resumo
Este trabalho analisa os conceitos de cuidado e de acolhimento no âmbito de práticas
inclusivas, considerando o desafio da nova composição social dos educandos da escola
pública, à luz de reflexões teóricas que tratam da inclusão escolar e da democratização
do acesso à educação e ao conhecimento. A base empírica do texto advém de dados
coletados em uma pesquisa realizada na rede de ensino do município de Porto Alegre –
RS, que teve como objetivo a análise da relação entre os espaços e práticas
democráticas dentro da escola e sua contribuição para a democratização do acesso ao
conhecimento formal. Discutimos dados de uma das instituições pesquisadas, a Escola
Sul. Ao final, sinalizamos a constituição de um novo senso comum orientador da prática
docente inclusiva calcada em ações de acolhimento e cuidado com o aluno, em uma
perspectiva pedagógica dialógica e participativa.
Palavras chave: Cuidado e Acolhimento. Escola Cidadã. Inclusão. Democratização do
Acesso ao Conhecimento.
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Introdução
A realidade da escola pública brasileira mudou drasticamente ao longo das
últimas décadas, principalmente após a promulgação da Constituição de 1988
(BRASIL, 1988). Mudou para melhor, pois hoje pauta-se na busca da universalização
do acesso. Cerca de 98% das crianças e dos adolescentes brasileiros em idade escolar
estão matriculados no Ensino Fundamental, conforme o Censo da Educação Básica
2010 e o Censo Nacional Demográfico de 2010.
A nova composição social dos alunos da escola pública, resultante da
universalização do acesso, coloca um problema novo para a educação. É usual a escola
que trabalha dentro dos padrões tradicionais iniciar os conteúdos programáticos,
partindo do pressuposto que os educandos já estão prontos e motivados para as
aprendizagens. Entretanto, a origem social, econômica e cultural de grande parte dos
alunos da escola pública faz com que, na maioria das vezes, não estejam preparados
para as aprendizagens formais e para decodificar os rituais inerentes a instituição
escolar. Geralmente, esses alunos estão inseridos em um contexto caracterizado pela
fragilidade da instituição familiar, baixa renda, baixa escolaridade dos pais, limitada
expectativa sobre o papel da escola, e submissão à exploração e à violência, o que
constitui um quadro de vulnerabilidade social.
A situação social destes alunos exige uma fase preparatória para viabilizar as
aprendizagens formais da escolarização. O desenvolvimento cognitivo desses
educandos exige que os processos pedagógicos considerem os seus contextos sociais,
desenvolvendo práticas de cuidado e acolhimento, indispensáveis ao envolvimento com
os processos de ensino e de aprendizagem.
Esse novo desafio da escola pública, determinado pelo acesso dos empobrecidos,
que historicamente estiveram fora do sistema escolar, exige a superação da escola
tradicional, tecnicista, excludente e despreocupada com a diversidade social e cultural
do sujeito educando. O grande desafio da escola pública é constituir-se como espaço
democrático, inclusivo e que viabilize o acolhimento daqueles que têm na instituição
escolar a única possibilidade de mobilidade social.
Neste trabalho, trazemos elementos parciais de uma pesquisa qualitativa
realizada na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre – RS (RME-POA)i (AZEVEDO
e REIS, 2011). A pesquisa objetivou analisar a relação entre os espaços e as práticas
democráticas dentro da escola e sua contribuição para a democratização do acesso ao
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conhecimento
escolar.
Como
decorrência
do
aprofundamento
da
relação
democracia/aprendizagem, também investigamos o papel mediador na confrontação
senso comum e conhecimento escolar e as implicações no processo de
inclusão/exclusão no âmbito da escola. Neste texto, focamos a discussão sobre os
conceitos de cuidado e acolhimento, necessários a uma prática pedagógica democrática,
que é capaz de cuidar e acolher para a formação de cidadãos emancipados, de acordo
com as bases de um projeto de Escola Cidadã.
Cuidar e acolher para ensinar
Novas ações pedagógicas que levam em consideração a necessidade de a escola
compatibilizar a sua prática pedagógica com a diversidade social e cultural dos sujeitos
que a frequentam, constituem-se em referências inovadoras para uma escola de
qualidade que é capaz de promover a aprendizagem, permanência e inclusão. Na escola
da RME-POA que investigamos, encontramos preocupações e práticas educativas que
revelam uma postura pedagógica que procura dialogar com os sujeitos reais que a
frequentam. A primeira problemática que nos chamou atenção foi a preocupação da
escola através de sua direção em buscar elementos de proteção à criança e ao
adolescente nos serviços sociais públicos, acolhendo e cuidando como parte do processo
formativo.
Não tinha mais nada aqui a não ser a escola e a comunidade, depois
veio o módulo de saúde básica, veio o núcleo, a brigada militar, aí nós
começamos a achar o caminho do outro bairro para encaminhar os
alunos para atendimento. Aí as redes começaram a se constituir, era a
escola e esta comunidade (DIRETORA DE ESCOLA SULii).
Percebemos que a escola desenvolveu um aprendizado, apropriando-se dos
canais de conexão com os demais serviços públicos. Essa iniciativa da escola,
inserindo-se na rede social, faz com que se constitua como uma instituição referência na
comunidade para além do papel educativo tradicional. Nesse caso, amplia o seu papel
pedagógico, desenvolvendo um conhecimento sobre outros serviços públicos de
atendimento à criança e ao adolescente, compreendendo que o papel educativo é uma
parte do cuidado com o educando e com as suas necessidades.
A manifestação da diretora expressa a visão de integração e articulação da escola
com as instituições que constituem a rede de atendimento. Essa compreensão é, sem
dúvida, um aspecto importante para o êxito das escolas públicas que atendem as classes
populares. É uma forma de superar a contradição da escola do tipo tradicionaliii com as
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exigências da universalização do atendimento, que demandam uma educação
democrática e inclusiva.
A escola faz movimentos para construir uma rede, para assistir as necessidades
no âmbito da saúde, do transporte, da segurança e do lazer. O cidadão estudante é
acolhido em todas as dimensões que configuram as suas necessidades básicas. A escola
exerce o papel de articuladora, criando canais de integração entre esses serviços. Essas
ações são necessárias para que a escola democrática possa superar a visão da escola
tradicional, da qual não era exigido ou esperado esse tipo de movimentações, pois
atendia um público que já possuía estas necessidades resolvidas em função de suas
condições sociais privilegiadas.
A fala da escola explicita as novas ações que a educação democrática busca
produzir. Percebe-se a sua inserção na rede de cooperação respondendo às demandas do
sujeito aluno, com impacto na permanência, na aprendizagem e, portanto, na inclusão.
Os parâmetros necessários para a adequação às demandas sociais atuais são os
de uma escola pública reflexiva, amparadora, democrática, que fomenta inclusão e
impulsiona a participação comunitária. Trata-se de pensar a escola não mais
estritamente como difusora do conhecimento formal presente nos livros, mas como uma
instituição reinventada, com gestão democrática, participativa, capaz de transformar
elementos dos contextos culturais em matéria-prima curricular, dando significado aos
processos de aprendizagem. Implica possibilitar aos alunos procedentes das camadas
populares o acesso ao conhecimento sistematizado, construído a partir da sua própria
história. A escola democrática está inserida no cotidiano discente, não só tentando
compreendê-lo, mas buscando fundamentalmente interferir no sentido de colaborar
positivamente para que os estudantes venham a assumir papéis ativos nos contextos
onde atuam, compreendendo as relações na vida social, para que possam determinar
suas escolhas por meio de processos reflexivos, que lhes proporcionem vivências
sociais ativas e conscientes. Esse modo de agir configura uma escola emancipadora e
cidadã.
Quando cuidado e acolhimento abrem caminho para o “Aprender”
Uma parcela significativa dos estudantes oriundos das classes subalternas não
consegue decodificar a escola e as suas possibilidades. A escola que não acolhe, que não
propicia condições para a sua decodificação é uma escola que exclui, que corrobora
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funcionando como extensão do processo maior de exclusão social, de propagação da
desigualdade, não contribuindo para a formação de sujeitos emancipados e cidadãos.
Muitos dos alunos dos segmentos populares vêem a escola com indiferença e até
desconfiam da sua utilidade. Por isso, os professores, muitas vezes, encontram grandes
dificuldades no manejo das turmas, pois o seu modelo pedagógico pressupõe um corpo
discente disciplinado e motivado para aprender. No entanto, esses alunos necessitam
muito mais do que um programa de conteúdos convencionais, sua inserção na vida da
escola necessita de uma educação para a convivência no contexto escolar, despertando
sua motivação e convencendo-os que a escola pode ser um caminho de possibilidades
para uma vida melhor.
Para integrar esse aluno ao convívio escolar e iniciá-lo na aprendizagem é
necessário uma ação pedagógica alicerçada no cuidado e no acolhimento. Isto exige
uma nova sensibilidade à instituição e ao educador, como percebemos na fala da escola:
“Nós começamos a trabalhar aqui na escola há sete anos (...) com todas as dificuldades.
Esta comunidade (...) muito instável ainda, se formando. Nós precisávamos dar conta
das relações de convivência” (DIRETORA DA ESCOLA SUL, grifos nossos).
O primeiro passo necessário é compreender essa nova composição social dos
alunos da escola pública. O segundo é preparar esse aluno para as experiências de
aprendizagem, integrá-lo na convivência do cotidiano da escola, ensiná-lo a decodificar
a instituição escolar.
Não bastam práticas pedagógicas tecnicamente competentes. É preciso
sensibilidade e comprometimento social com uma educação de qualidade, tendo
consciência de que se não houver acolhimento, não haverá prontidão para aprender.
Faz-se necessário uma ação pedagógica que construa uma identidade do
educando com a escola, sensibilizando e despertando nele o desejo de aprender. Uma
sala de aula onde impere o desrespeito às individualidades de um conjunto de sujeitos e
também à sua intersubjetividade que se compõe no contexto de onde se originam, não
exercerá com qualidade e efetivamente o papel que lhe é incumbido. O instrumental
pedagógico, que pode ser moderno, com recursos materiais de última geração não
servirá se o aluno não estiver mobilizado para aprender. É nesse sentido que destacamos
a importância do estudo do cuidado e do acolhimento na formação docente, para que se
avance pedagogicamente para além do tecnicismo. Que a formação do sujeito professor
seja a mais humana possível, e que o compromisso com o educando esteja na pauta das
discussões acadêmicas das licenciaturas, principalmente. Ao professor cabe o papel de
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ser otimista sempre, sem deixar de ser realista, o que é indispensável na profissão de
docente. Um professor equilibrado e reflexivo, que consiga conduzir a sua formação
continuada com eficiência e dedicação, e trabalhar pela emancipação do aluno será o
principal aliado para a melhoria da qualidade da educação pública.
Nessa mesma direção, é interessante observar o conteúdo da seguinte fala da
Diretora da Escola Sul:
A aprendizagem dos conteúdos tradicionais estava em segundo plano,
sim, porque as relações de convivência impediam: as dificuldades de
relacionamento que existiam na comunidade, e que eram trazidas para
dentro da escola, impediam qualquer tipo de aprendizagem. Ou a
gente dava conta disso ou a gente não saía do lugar (DIRETORA DA
ESCOLA SUL).
As atitudes e ações da escola revelam que, antes mesmo da aprendizagem dos
conteúdos da grade curricular tradicional, é preciso propiciar o desenvolvimento de
conhecimentos básicos para o convívio escolar adequado, como os de: ter o hábito
higiênico; aprender a viver sem violentar o outro física ou psicologicamente e aprender
a dialogar para resolver os problemas. Para isso, a escola desenvolveu projetos com
ênfase na construção desses conhecimentos básicos.
Daí surgiu os projetos em turno inverso, porque a gente precisava que
estes alunos estivessem mais dentro da escola e não na rua, porque a
gente precisava trabalhar estas questões de relacionamento (...).
Naquela época havia um monte de máquinas dentro da escola, um
pátio mínimo, os alunos apertados na sala de aula, uns fugindo e a
gente tinha que ir atrás (...), a gente tinha que fazer escola para cuidar
do recreio, para não deixar as crianças irem para os canteiros de obra
pular os tapumes, poderiam se machucar. Então tudo isso começou,
eles passavam os recreios literalmente se matando, se batiam o tempo
inteiro, e as mães invadindo a escola para bater nos seus filhos e nos
filhos dos outros de varinha, de pau! Ou a gente trabalhava isso
[relações de convivência] ou a gente não saía do lugar (DIRETORA
DA ESCOLA SUL, grifos nossos).
Nos projetos de roda de capoeira e de outros esportes, da horta discente, do
“show de Talentos”, fomentados pela Escola Sul, e na participação da comunidade na
escola, ocorrem atividades que buscam construir conhecimentos para o convívio
escolar. Nesses projetos são desenvolvidos conceitos de relacionamento social, de
convivência pacífica, de cooperação, de reciprocidade, de reconhecimento do papel e da
importância do outro, construindo-se como ser social em um processo dialógico de
participação na escola. Essas ações tinham como objetivo superar situações de conflito,
tais como relata a Diretora da Escola Sul. Vejamos o relato de uma mãe que atua na
escola, e que está inserida na rede de colaboração que promove as ações dessa linha:
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Olha. Eu sou mãe voluntária na escola. Eu fico tanto no intervalo do
primeiro recreio e no segundo também [da tarde]. Venho de manhã –
também no recreio – e, ainda por cima, eu ganhei no Conselho Escolar
da escola. Eu faço parte [dele] agora, e no que eu puder ajudar na
escola eu ajudo, no que tiver ao meu alcance (ZURAIDA, MÃE DE
ALUNO DA ESCOLA SUL).
Observa-se que uma parcela significativa dos alunos das classes populares vem
reproduzir dentro da escola um contexto e um modo de convívio social a que estão
acostumados, por estarem submetidos, forçosamente, a múltiplas formas de violência,
privações e punições de vários tipos e intensidades. Uma escola para a formação cidadã
estará atenta a estas problemáticas e buscará criar novos espaços para nossas crianças.
Estes espaços de construção criadora das potencialidades infantis
concretizam-se em um processo participativo, conscientizador, até
reeducador do comportamento dos adultos em relação às crianças. A
articulação da família com a escola, com a criação de mecanismos de
participação, é fundamental para que familiares e educadores
construam o diálogo necessário à produção de conhecimento e valores
geradores de processos emancipadores do mundo da infância
(AZEVEDO, 2007, p. 235, grifos nossos).
Assim, percebe-se que as ações da escola investigada se alinham à proposta da
Escola Cidadã. Nas falas da diretora observa-se que a escola busca trazer a família para
o seu interior. Pensar coletivamente a educação e desenvolver um conceito de convívio
pacífico para resolver os conflitos existentes na comunidade decorrentes das relações de
violência que aconteciam nos recreios é uma das dimensões de atuação desta escola que
pode potencializar a sua ação pedagógica.
O saber informal e a voz do aluno na escola
O cuidado e o acolhimento com o educando e com a comunidade dentro da
escola ocorrem por diversas frentes. Pode ser através da abertura de um espaço para
ouvir os anseios da comunidade e cuidar das suas necessidades amplas, como também
por meio de uma pedagogia que parte do saber do educando, dos conhecimentos que ele
tem do mundo. Esta prática é revelada pela Escola Sul: “a gente tenta resgatar muito as
histórias. Na EJAiv, a gente faz muito isso. Certa vez até tentamos fazer uma
cooperativa de Economia Popular e Solidária (EPS). Se tenta fazer algumas coisas. Nem
sempre dá certo. Mas tentamos sempre” (SECRETÁRIA DA ESCOLA SUL).
A EJA, por meio de sua prática pedagógica, possibilita que os educandos
possam construir conhecimento a partir de suas estruturas cognitivas forjadas na sua
prática social e cultural. A EJA se constituiu na perspectiva freireana: a da construção
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de conhecimento a partir do “saber de experiência feito” dos educandos (Cf. FREIRE,
1994; 2005).
Por meio da ideia de resgate de histórias, de aproveitamento das experiências
dos educandos da EJA, a Escola Sul almeja produzir a teorização da prática, daquilo que
constitui o produto das ações dos educandos.
Um processo educativo que resgata a bagagem cultural do educando pauta-se na
construção de uma identidade cultural para além do senso comum, não no sentido de
atribuir inferioridade a esse, mas no sentido de ampliar a visão de mundo do educando.
Essa postura educacional tira-o da restrição da vida prática, inserindo-o na dimensão da
reflexão sobre a ação (GRAMSCI, 2001). Dimensão do pensar sobre o feito, sobre o
que se faz, projetar o que se pode fazer, de que modo se pode fazer, de entender as bases
sobre as quais se assentam suas ações e tomar consciência das concepções e ideais a que
estão comprometidas.
A conexão entre o fazer e o compreender, a compreensão dos fenômenos e a sua
nominação científica, aliada à aplicabilidade prática do saber formal nas realizações
diárias sociais, é um trabalho fomentado por meio da alternativa de resgate das histórias
dos educandos e também na tentativa de busca de práticas alternativas de vida, como
pedagogicamente informa o projeto da cooperativa de Economia Popular e Solidária
(EPS) desenvolvido na escola. Existe uma relação direta entre a proposta de construção
da cooperativa e a construção de conhecimento que deve haver dentro do espaço
escolar. A Supervisora e Orientadora da Escola Sul, reforça a afirmação anteriormente
exposta, ao dizer: “faz-se um movimento de resgate. Se avançou na inclusão, a gente
consegue mantê-los na escola, e isso é importante. Por isso, acho que temos muitos
ganhos. Se fez grandes avanços”.
Nesse movimento de resgate, a inclusão também é promovida pelo respeito ao
saber do educando. Em tal construção, o aluno é visto como quem tem história, que
detém um conhecimento importante derivado da sua singularidade. Isso se configura
como relevante dentro da escola, onde a sala de aula como um espaço de troca de
informações, de construção de conhecimento, de sistematização do saber prático emerge
na condição de prática inovadora.
As atividades que levam em consideração o saber do educando antes de
trabalhar os novos conteúdos, modificando o modo como estes são didatizados no
espaço escolar, são produtos de uma visão de educação para a emancipação do
estudante. A visão de conhecimento como construção, como produto arquitetado pelo
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indivíduo (BECKER, 2010; PIAGET, 1978; VYGOTSKY, 1984), e não como
imposição, também é um pensamento norteador da prática educativa democrática que
toma como base as experiências dos educandos, o conhecimento informal. A agregação
de valor ao conhecimento prático, que em si mesmo já é autossuficiente para
determinados fins, representa um avanço para a aprendizagem dos educandos, ao
conferir um status maior ao seu saber fazer.
Deste modo, por meio do movimento de resgate, a entrevistada considera o
processo de inclusão como um avanço. Nesse desenrolar político pedagógico inclusivo,
a manutenção dos educandos na escola acontece por meio do acolhimento, do respeito e
cuidado da instituição com a diversidade inerente ao corpo discente. A iniciativa da
escola em considerar o espaço da EJA de modo diferenciado mostra esta modalidade de
ensino, fundamentalmente, como um local de discussão, de compartilhamento, de
teorização da experiência. Outros espaços escolares também podem ser potencialmente
considerados em uma concepção semelhante. Nessa linha reflexiva, Brandão (2002) traz
uma importante contribuição:
As integrações de conhecimentos de cuja construção partilhamos de
maneira ativa, criam e recriam as próprias ordens interativas e
culturais de nossos relacionamentos e dos mundos de sentidos e de
significados que construímos juntos quando aprendemos em um
contexto dialógico e solidário de partilhado saber. Somos não o que
sabemos. Somos o conhecimento que aprendemos a criar e a integrar
continuamente em nós e entre nós (idem, p. 306).
A Supervisora e Orientadora da Escola Sul ainda completa a sua fala da seguinte
forma: “quando a gente olha para a escola, percebemos o cuidado que se tem com o
aluno”. Essa reflexão mostra que a instituição escolar investigada atua no cuidado com
o aluno. Esse cuidado se expressa muito no fato de trazer os pais para a escola e discutir
a aprendizagem dos filhos dentro das individualidades que lhes são próprias e justas. Na
prática político-educacional desta escola, o cuidado é entendido como uma das
dimensões do educativo. Não é tido como um empecilho, uma nova função a mais
(indesejada) na prática social da escola. Ele é visto como parte integrante do processo
de ensino e aprendizagem que desafia o universo educacional em nossos dias.
Nesse sentido, quando a equipe diretiva é questionada sobre as ações concretas
que produziam alguns resultados e traziam à tona os princípios da “Escola Cidadã”
(BRANDÃO, 2002; AZEVEDO, 2007) a Diretora da Escola Sul faz a seguinte
afirmação: “a gente atende as pessoas o dia inteiro, todos nós, equipe e professores. E
isso é ter o cuidado com as pessoas, não só com os alunos, mas com os pais também,
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com a comunidade, dar atenção. Temos a tentativa de sempre ouvir a comunidade”.
Nesta verbalização, o atendimento à comunidade é tomado como ação de cuidar e
acolher as pessoas que circulam na escola. Com isso, as relações se aprofundam e a
instituição escolar pode usufruir destas por intermédio de uma participação mais efetiva
nos processos educativos.
Considerações finais
Neste texto, objetivamos refletir sobre a situação atual dos processos geradores
de inclusão escolar, com base na leitura da realidade da educação pública da Rede
Municipal de Ensino de Porto Alegre – RS (RME-POA) que se fundamenta nos
pressupostos de uma “educação cidadã” (BRANDÃO, 2002; AZEVEDO, 2007), tendo
como ideia subjacente a nova composição social dos alunos da escola pública. Vimos
que na tarefa de estruturar as ações pedagógicas da escola que busca inclusão para a
construção de conhecimento, considerar o contexto sociocultural da comunidade escolar
e as experiências dos sujeitos históricos que passam a frequentar a escola é prática
cotidiana.
A escola que se preocupa em conhecer os elementos antropológicos inerentes à
sua comunidade está apta a desempenhar o seu papel social, atuando com mais
eficiência, eficácia e excelência qualitativa, formando cidadãos críticos e emancipados.
Entender o contexto social onde a instituição escolar está inserida, levando em conta
estas informações na composição da sua empreitada pedagógica cotidiana, é respeitar as
individualidades e trabalhar na consolidação da identidade cultural de seus alunos, em
uma dinâmica de atuação avessa a da escola tradicional.
Nesse contexto, cuidar e acolher corresponde a produzir mecanismos que
conduzam os alunos a compor uma ideia positiva da escola que frequentam, que tenham
dela um conceito que expressa um lugar onde momentos significativos para as suas
vidas podem ocorrer. A postura de acolhimento de uma instituição educacional é
demonstrada não só por um ambiente bonito, bem estruturado esteticamente, acessível
fisicamente a todas as pessoas, mas principalmente pela qualidade das relações humanas
que são forjadas em seus espaços de construção de conhecimento e de transmissão e
apreensão de informações. Quer dizer que as relações verticalizadas, hierarquizadas da
pedagogia diretivista tradicional (BECKER, 2010; LIBÂNEO, 1996), não servem para a
construção de uma escola acolhedora, que se prepara para receber e fazer seus alunos se
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sentirem bem dentro dela, visto que é na punição, na repetição, na memorização,
cobrança exaustiva, e classificação que se pautam as práticas pedagógicas, e nestas as
relações professor-aluno, aluno-aluno e aluno-saber.
A escola que não acolhe se baseia diretamente nos mecanismos de controle que
são empregados na economia do capital (MÉSZÁROS, 2005). Esta escola busca
controlar os corpos que nela transitam, quer ordenar os pensamentos sob uma lógica,
extrema e única, de conformação e obediência ao poder que emana das instâncias
superiores sob o argumento da formação de cidadãos que conhecem e respeitam a
código moral da sociedade dita democrática.
O direito à educação não é garantido simplesmente pela existência de vagas
suficientes para a totalidade de indivíduos em idade escolar que há na sociedade.
Concomitante à oferta suficiente de vagas é fundamental que a filosofia educacional da
pedagogia aplicada pela escola esteja sintonizada à realidade discente, desenvolvendose calcada no objetivo de garantir que os educandos possam obter processos
educacionais qualificados e condizentes com as suas necessidades formativas, tanto
culturais e sociais como técnico-profissionais. Uma escola que acolhe os saberes tácitos,
que valorize as experiências de vida, a história de seus alunos, resgatando a sua
autoestima e viabilizando a aliança dos saberes da vida com o saber escolar necessário,
possibilitará às crianças e aos adolescentes das classes populares a apropriação dos
conhecimentos indispensáveis ao exercício da cidadania.
A investigação que realizamos na RME-POA revelou a identidade de grande
parte dos educadores da Escola Sul com as concepções acima descritas. Esta pesquisa
revela a formação de um novo senso comum entre os educadores, onde prevalece o
compromisso com a aprendizagem de todos os alunos, a ideia da participação, da gestão
democrática, da necessidade de formação permanente dos educadores, do cuidado, do
acolhimento e da inclusão.
Referências bibliográficas
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Porto Alegre: Editora Sulina e Editora Universitária Metodista IPA, 2007.
AZEVEDO, J. C.; REIS, J. T. Democratização na Escola: Construção de
Conhecimento e Inclusão. 183f. Relatório Técnico-Científico de Pesquisa – Pró-Reitoria
de Pesquisa e Pós-Graduação, Centro Universitário Metodista – IPA, Porto Alegre,
2011.
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BECKER, F. O caminho da Aprendizagem em Jean Piaget e Paulo Freire: da ação à
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Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
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_________. Pedagogia da Esperança: um reencontro coma pedagogia do oprimido. 3.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
LIBÂNEO, J. C. Democratização da Escola Pública: a pedagogia crítico-social dos
conteúdos. 14. ed. São Paulo: Loyola, 1996.
MÉSZÁROS, I. A Educação Para Além do Capital. Trad. de Isa Tavares. São Paulo:
Boitempo, 2005.
PIAGET, J. et al. Fazer e Compreender. Trad. de Christina Larroudé de Paula Leite.
São Paulo: Melhoramentos, 1978.
VYGOTSKY, L. S. A formação Social da Mente: o desenvolvimento dos processos
psicológicos superiores. Trad. de José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto e
Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
i
As escolas da RME-POA contam com: eleição de diretores; estruturação e eleição de Conselhos
Escolares com representação de todos os segmentos da escola (pais, alunos, professores e funcionários);
organização do Orçamento Participativo (OP) das escolas; democratização da estrutura burocrática da
Secretaria Municipal de Educação (SMED) e uma política de formação permanente dos educadores,
continuada e em serviço (AZEVEDO, 2007). Estas conquistas são produtos dos 16 anos de política de
formação permanente dos professores da RME-POA, principalmente na ocasião das Administrações
Populares, lideradas pelo partido dos trabalhadores (PT), no período de 1989-2004.
ii
Optamos por identificar as falas de acordo com o pseudônimo que demos à escola participante da
pesquisa.
iii
Entende-se por escola tradicional aquela pautada em práticas pedagógicas cuja preocupação principal é
a transmissão dos conteúdos. Sua organização curricular é positivista, fragmentada, onde os saberes não
têm espaço para dialogar. Busca cumprir um programa, reproduzir o conteúdo do livro didático,
preocupada com a repetição e não com a criatividade. Essa escola trabalha na busca da homogeneidade,
desconsiderando as diferenças entre os estudantes e os contextos de que advêm.
iv
No turno da noite a escola oferece Educação de Jovens e Adultos (EJA).
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