filosofia com crianças e experiência sensível na escola

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FILOSOFIA COM CRIANÇAS E EXPERIÊNCIA SENSÍVEL NA ESCOLA
Silmara Lídia Marton
Dagmar De Mello E Silva
Resumo: Numa perspectiva de infância que educa o pensar e como exercício contínuo
de possibilidades e formas de viver a complexidade da condição humana, apresentamos
um projeto de ensino e extensão em “Filosofia com Crianças” que vem sendo realizado
numa escola pública de Angra dos Reis desde 2011 com vistas à produção de sentidos
para suas vidas através do estímulo da experiência sensível. O referido projeto tem
ocorrido na forma de encontros semanais com as crianças nos quais utilizamos
dispositivos que desencadeiam a experiência filosófica e sensível como filmes, músicas,
paisagens sonoras, pinturas, histórias, contos, entre outros. Ganha ênfase no percurso
argumentativo desse texto uma educação afirmativa do devir pelo acontecimento e pela
autoformação. Ao final, destacamos alguns de nossos encontros de “Filosofia com
Crianças” e apontamos brevemente os seus desdobramentos na forma de pesquisa.
Palavras-chave: Infância - Experiência Sensível – Filosofia com Crianças –
Complexidade - Escola
Infância-dever e Infância-ser
A escola tem sido em nossa sociedade o lugar privilegiado da sistematização de
conhecimentos e saberes que se inserem socialmente como “bens simbólicos que
representam a existência concomitante da “cultura-valor” – cultura como meio de
distinção dos sujeitos e acumulação de cultura erudita” (GUATTARI e ROLNIK,
1993). Portanto, saberes reconhecidos e valorizados por um entendimento de cultura
que hierarquiza e desqualifica outros modos singulares de entendimento do mundo que
não aqueles característicos de um grupo socialmente privilegiado. É nesse sentido que
se observa como a escola vem operando “modos únicos” de cognição, por intermédio da
disseminação de “encodificações preestabelecidas” (idem) realizadas de forma
permanente e rigorosa entre os alunos, sob a argumentação de que pretende prepará-los
para a vida. No tocante às pedagogias que objetivam produzir formas de se fazer da
criança certo tipo de sujeito, podemos encontrar desde as mais tradicionais até as menos
conservadoras que são aplicadas no espaço escolar. De modo geral, nosso pensamento
educacional é parasitado por uma imagem de infância pautada na ideia do que se espera
das crianças e do que delas virá. Tudo parece decisivo nesse período da vida.
Em “Infância. Entre Educação e Filosofia” (2003), com o intuito de
compreender a prática educacional e, em particular, as relações intrincadas entre
infância, filosofia e educação, Kohan identifica que a própria concepção de infância foi
forjada miticamente no decorrer da nossa história, cuja fundação teve seu início com os
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gregos e, em especial Platão. Mesmo na ausência de uma definição específica de
infância, Platão teria pensado sobre ela, com o intuito de preservar o que nos mais
jovens haveria de melhor a fim de servir à pólis. Em “A República”, vemos traçado todo
um projeto educacional para a politização dos novos, assim como a ação política, por si,
teria sempre metas educativas a alcançar com vistas à cidade idealizada.
Para tanto, na interpretação de Kohan, teria Platão dado um tratamento à
infância sob quatro aspectos: como possibilidade; como algo inferior frente aos
cidadãos de outros grupos sociais; como aquela que não teria lugar na pólis, mas que,
conforme indica o último aspecto, seria o “material de sonhos políticos”. No primeiro
caso, as crianças seriam maleáveis, sem forma, disponíveis então à possibilidade, mas
de uma educação específica que lhes assegurasse um modo de ser virtuoso. No segundo,
inferiores porque carentes de certa ordem, harmonia e proporção. No terceiro caso, sem
um lugar a ocupar ainda na cidade porque não teriam as crianças domínio e controle
sobre si mesmas; mas, como indica o último aspecto, teria a infância associada à
educação uma significação política e, para tanto, fazia-se necessário educar moral e
normativamente os jovens na mais tenra idade (“o que é para um dever ser”), a fim de
que, quando adultos, governassem a cidade sonhada.
O que nos parece ficar enfatizado nessa concepção de infância é uma dimensão
política que destitui do outro, desde sua origem, “modos de sensibilidade, modos de
relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam uma
subjetividade singular (GUATTARI e ROLNIK, 1993, p. 16). Essa visão de infância,
ainda nos dias atuais, tem permanecido nas práticas pedagógicas da escola moderna.
Instituindo uma cultura escolar que se outorga ao direito de determinar um ideal de ser.
Trata-se, como nos aponta Guattari, ao tratar do conceito de cultura, de uma “maneira
de separar atividades semióticas (atividades de orientação no mundo social e cósmico)
em esferas às quais os homens (desde pequenos – inclusão nossa) são remetidos.”
(ibidem, p. 16)
Assim, essa visão concebida por Platão ainda na antiguidade, no mundo
contemporâneo assume uma função política e econômica na vida de nossos estudantes,
posto que, na educação e em particular na Escola, tomam a forma de “atividades (...)
padronizadas, instituídas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de
semiotização dominante – ou seja, elas são cortadas de suas realidades políticas”.
(ibidem, p. 16)
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De outra parte, procuramos pensar a infância e sua imagem sob outra perspectiva
que, como antecipa Kohan, não é educada pela filosofia, mas a educa.
Não nos preocupemos com o que a infância pode ser, mas com o
que ela é. Asseveraremos a infância como símbolo da afirmação,
figura do novo, espaço de liberdade. A infância será uma
metáfora da criação no pensamento; uma imagem de ruptura, de
descontinuidade, de quebra do normal e do estabelecido. A
infância que educa a filosofia será, então, a instauração da
possibilidade de um novo pensar filosófico nascido na própria
filosofia. (KOHAN, 2003, p. 116)
Invertendo a relação entre infância e filosofia, e também entre infância e
educação, na medida em que a primeira já não é mais o objeto da segunda, mas seu
impulso, esse entendimento oferece-nos, como Kohan mesmo diz, “possibilidades”
carregadas de uma infância como experiência original presentes na tradição filosófica,
em Heráclito, Sócrates, Rancière e Deleuze. Em Heráclito e Sócrates, no seu aspecto
afirmativo e emancipatório. O primeiro, através da concepção de um tempo que rompe
com a linha demarcatória entre o início e o fim, como algo descontínuo e da afirmação
de uma lógica que admite o que pode e não pode ser ao mesmo tempo, que pensa o
impensável. Em Sócrates, pela força propulsora presente na pergunta, e não na resposta.
Nos contemporâneos Rancière e Deleuze, como emancipação praticada no gesto, na
atitude e, permanente criação inconformada com a fixidez, respectivamente.
Longe de fazer aqui uma resenha dessa obra de Kohan, interessou-nos apenas,
de maneira introdutória, apresentar suas contribuições para fazer compreender de onde
partimos quando nos referirmos à infância em nossa experiência educativa numa escola
pública, nas próximas linhas.
Na mesma direção de Kohan, interessa-nos pensar retrospectivamente não
acerca dos paradigmas pedagógicos que devam pautar os métodos e práticas de ensino
com vistas à modelação de determinados tipos de indivíduos, senão prospectivamente
criando e recriando no território incerto das experiências com as crianças formas de ser
e estar no mundo mais potentes, não esperando delas um compromisso com alguma
forma previamente definida de “ser humano” ou “ser sujeito” ou “ser alguém”, mas a
partir de nossas trocas e partilhas mútuas que nos ensinem a viver nossa complexa
condição de humanos no devir. Pensa-se numa dimensão política na medida em que a
relação que cada um experimenta consigo mesmo muda na mesma proporção em que as
relações com e no contexto com os outros acontece. Como pulsações que irrompam
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desejos, micropolíticas que resistam ao que está dado, fazendo brotar, tal como rizomas,
novas possibilidades de territorializações, desterritorializando lugares apropriados que
instituem normas para ser e estar no mundo.
Apresentamos nesse texto uma experiência específica de filosofia com as
crianças realizada junto a uma escola municipal de Angra dos Reis, que habita o mesmo
prédio da universidade federal onde lecionamos. Nosso intento é socializar isso a que
temos chamado de uma experiência sensível e de uma forma de experimentar a filosofia
como momento inaugural do pensamento, como infância. Acreditamos que a escola
pode ser habitada por diferentes formas de produção de sentidos com e entre as
crianças.
Para nós, tem sido uma oportunidade singular experimentar uma infância que se
rebela a um tempo cronológico e se coloca em uma sucessão de movimentos que
irrompem sem compassos prévios ou adiantes, que se permite viver a experiência
infante tal como acontecimento, o intempestivo, portanto, o imprevisto, o extemporâneo
de Nietzsche, porque em descompasso com aquilo que é o atual, e que coloca sob
suspeita todos os valores consagrados e venerados até então, para afirmar a vida em
toda sua tragicidade pelo cultivo de si, o amor fati: “nada querer diferente, seja para
trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário,
menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o necessário – mas amá-lo”
(NIETZSCHE, 1995, p. 51).
Nesse sentido, pensamos numa infância que assume o eterno retorno, o “ciclo
absoluto e infinitamente repetido de todas as coisas” (idem, p. 64), para viver a
existência como devir, na destruição e criação contínuas, produzindo diferenças. Um
devir extemporâneo. Estamos propondo viver uma infância rebelde de tempos intensos
e potentes que possam combater as barbáries do presente e construir utopias de futuro.
Trata-se de uma dimensão política na educação pela infância.
Filosofia com Crianças e Experiência Sensível
Podemos afirmar que não fomos nós que saímos à procura da Filosofia com
Crianças, senão que ela nos encontrou e, como todo encontro, nos afetou, provocando
estados sutis e profundos de nossas relações sensíveis, anterior à própria enunciação do
que isso viria a significar posteriormente. Chegou até nós através do livro intitulado
“Acontecimento e Experiência no Trabalho Filosófico com Crianças” (2008), de
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Maximiliano Valerio López, também professor da mesma universidade em outro
campus.
Era no segundo semestre de 2010 e nós, uma professora de Psicologia da
Educação e outra de Filosofia da Educação, da mesma universidade pública, oriundas de
campos de conhecimento afins, iniciávamos uma aproximação de referenciais teóricos
comuns, entre os quais Nietzsche, Deleuze e Foucault. Além disso, nossas pesquisas
anteriores já apontavam para a necessidade de explorar as faculdades sensíveis como
forma de produção de sentidos para a vida. Sentíamos nessa época necessidade
premente também de propiciar algum diálogo interinstitucional - escola e universidade já que a escola pública onde hoje desenvolvemos nosso projeto já ocupava o mesmo
prédio onde funciona a universidade, cujo curso de graduação é voltado à formação de
professores.
Porém, em especial, o livro de López foi a força propulsora. Skliar comenta que
o gesto de abrir um livro é dar continuidade ao mundo. “Ler, então, terá a ver com um
tipo de salvação – pequena e nada ostentosa – de um mundo anterior. Não apenas
ressuscita os desesperançados vivos, senão que o faz a partir de palavras de ontem”
(SKLIAR, 2010, p. 19). Foi assim que as palavras do livro ficaram vivas, porque
dotadas de sentidos para nós.
Em uma das passagens, López designa com clareza e simplicidade uma
peculiaridade do trabalho filosófico com as crianças que é eminentemente criador e
problematizador. O que nos chamou a atenção e que parece muito presente em suas
reflexões é a enunciação de certo modo de se relacionar com a filosofia e de suas
possibilidades educativas, que não é algo dado, prescrito, normatizado, previamente
estabelecido.
Não é, estritamente falando, uma disciplina, porque as
disciplinas pertencem ao âmbito do instituído, enquanto ela
desenvolve seu trabalho predominantemente no plano do
instituinte, ou seja, em relação à criação de conceitos e à
colocação de problemas”. (LÓPEZ, 2008, p. 81).
Iniciamos assim em fevereiro de 2011 na escola referida anteriormente o projeto
de ensino e extensão “Filosofia com Crianças: uma experiência pelos sentidos numa
escola municipal de Angra dos Reis”, com o intuito de suscitar entre as crianças uma
experiência filosófica através da arte como criação de sentidos para si e para o mundo.
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A aceitação do projeto não se deu de forma tão rápida e simples, uma vez que foi
preciso passar pelos trâmites formais, através de algumas reuniões com a direção da
escola e aprovação da Secretaria da Educação do Município.
Recordamos, em especial, uma dessas reuniões onde a questão da “morte”
descrita no projeto foi alvo de indagação. Ao que respondemos colocando em
contraponto a questão da “vida”. Pudemos observar como ainda é fortemente enraizada
na escola a cultura do que deve e não deve ser dito, pensado e não pensado.
Por outro lado, consideramos que seja uma grande conquista a obtenção da
autorização da escola para desenvolvermos esse projeto no horário ocupado pela
“grade” curricular, de modo que as professoras e turmas envolvidas deixam de “ensinar
e aprender” na forma instituída para viver uma experiência filosófica não convencional
e de caráter instituinte.
Atendendo à demanda oferecida, a nós foram indicadas duas turmas de 25 (vinte
e cinco) crianças de faixa etária de oito a dez anos de idade, do 3º ano do Ensino Básico.
A princípio realizamos um total de 20 (vinte) encontros com esses dois grupos de
crianças, separadamente, acompanhadas pelas professoras das turmas e alunos do curso
de Pedagogia, também bolsistas de licenciatura e iniciação científica. No segundo
semestre, acompanhamos as mesmas crianças, por compreender que o exercício
filosófico demanda tempo para provocar rupturas, abertura, não seguindo uma
progressão evolutiva, mas transformadora e duradoura em termos de apuração dos
sentidos e produção de novas formas de habitar o mundo.
Nos encontros utilizamos como dispositivos que desencadeiam a experiência
filosófica e sensível filmes, músicas, paisagens sonoras, pinturas, histórias, contos,
entre outros recursos, com a finalidade de despertar uma experiência do pensamento
como acontecimento que emerge das relações do encontro entre sujeito e os signos do
mundo, na perspectiva de sua autoformação.
“Paisagem Sonora” é a tradução do neologismo “soundscape”, criado pelo
músico e educador musical canadense Raymond Murray Schafer (2001) para se referir a
todo campo acústico, como uma música, um som natural ou artificialmente produzido
pela cultura. A partir da escuta sensível, a saber, apurada, vagarosa, aguçada, atenta,
disciplinada dos mais variados sons que a natureza e as culturas oferecerem, esperamos
que as crianças exercitem uma disposição ao vagar próprio da experiência filosófica,
tendo em vista a construção de suas próprias paisagens.
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Por isso, para nós a Filosofia com Crianças está intimamente relacionada a uma
experiência sensível, que significa
possibilitar essa percepção através do sensível que se insere
numa relação direta, imediata com a corporeidade de quem está
nela inserido. A questão está no fato de que, para o adulto, a
percepção de um objeto se dá de dentro para fora enquanto que a
percepção do sensível se dá numa relação de imediaticidade do
sujeito consigo mesmo, o que não tem sido muito estimulado em
nossos processos educacionais. (SILVA E MARTON, 2011, p.
5-6)
Nesse sentido, talvez estejamos realmente provocando entre as crianças um
processo de autoformação que, para nós, abriga duas definições distintas e
complementares. No primeiro sentido, está vinculada à própria natureza da Filosofia,
que é produzir formas e não se fechar em uma delas. Assim, a autoformação é, pois, a
capacidade infinita, inacabada de cada um de nós inventar suas próprias formas, sejam
elas de ser, estar no mundo, relacionar-se consigo e com os outros. O segundo sentido
da palavra autoformação resguarda outra noção a ela relacionada que se chama autoeco-organização, como entende Edgar Morin (1996). Possuímos uma capacidade de
auto-eco-organização,
pois
além
de
sermos
sistemas
auto-organizadores,
autoformadores, tratando internamente as informações de modo a regenerá-las e
reorganizá-las em novos padrões cognitivos, somos, ao mesmo tempo, sistemas abertos
dependentes do meio com o qual trocamos informações, reordenando-os em novas
organizações, em níveis mais complexos. Quanto mais expostos aos “ruídos”, ao novo,
inusitado, acontecimento, maiores possibilidades temos de produzir novas formas de
habitar o mundo, complexificando nossos padrões.
Deleuze define acontecimento como algo que se realiza independentemente do
que é essencial ou atributo de algo, ou seja, rompe com o “ser” imutável, fixo, e com
qualquer qualidade de algo numa proposição, isto é, os “seres de razão” e os “seres
corporais”. Sendo assim, o acontecimento é o real incorporal. O que é comum a todos
nós é o que somos (essencial) e nossos corpos (corporal), mas o que em nós muda,
modifica, que tem história e temporalidade é o acontecimento, a diferença.
“De tudo o que um sujeito pode viver, do corpo que lhe
pertence, dos corpos e objetos que se distinguem do seu, e do
estado de coisas ou do campo físico-matemático que os
determinam, ergue-se um vapor que não se assemelha a eles, e
que investe o campo de batalha, a batalha e o ferimento, como
componentes ou variações de um acontecimento puro, onde
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subsiste somente uma alusão ao que diz respeito aos nossos
estados”. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p.189)
Os pensadores com os conceitos acima aludidos nos apontam as possibilidades
inscritas em nossos corpos pela via do acontecimento, de modo que a diferença emerge
na variabilidade das formas, e em nossos padrões, pela via da reorganização conquistada
através das contínuas interações com o meio.
Entre a palavra, o gesto e a memória
“Ao chegarmos à sala de aula, algumas crianças vão ao nosso encontro e nos
abraçam. Um diz ter visto um de nós na igreja. A professora da turma pede para que
elas se sentem para iniciarmos o encontro. Após fazer um círculo com a turma, Silmara
os convida para ouvir um instrumento e diz que quem quiser pode fechar os olhos. Ela
então mexe o “pau de chuva”. Uma criança fala que o som parece com cachoeira,
outras dizem chuva, chocalho, pedra caindo, chuveiro. Todos ouvem atentamente os
barulhos produzidos pelo instrumento e demonstram vontade em manipular o objeto.
Silmara entrega o pau de chuva para Lucas. Dagmar fala da multiplicidade de sentidos
que os sons apresentam, e da possibilidade de imaginar coisas diferentes, onde cada
pessoa atribui um sentido próprio, não só para o som como para demais coisas. Lucas
diz que os números nunca acabam. Dagmar afirma que do mesmo modo que os
números são infinitos, também são as formas da nossa imaginação ver e ouvir as
coisas. Silmara diz que o instrumento se chama pau de chuva, mas que o som ouvido
não necessita ser o da chuva, pois como eles mesmos disseram, há diversos sons que ele
produz, e isso se modifica ao movimentá-lo de maneira diferente...”.
Tomamos esse recorte de um de nossos últimos encontros em que exercitamos a
escuta de uma paisagem sonora numa tentativa de capturar de nossa memória os tantos
sentidos que o exercício do trabalho de Filosofia com Crianças nos tem suscitado.
Se recorremos à palavra “memória” é porque entendemos que esta abarca uma
complexidade de possibilidades do sentir em nosso mundo emocional, mental e
espiritual.
O próprio conceito se desdobra em outros, posto que quando pensamos em
memória associamos à condição da consciência capaz de reter, retomar fatos já idos.
Mas, como já dito, a memória não se reduz a um simples aspecto de captura do passado.
Nesse sentido, o que buscamos em nossa memória são as recordações (cordis –
coração), aquilo que afetivamente podemos trazer do passado como uma experiência
sensível, algo vivido que possa ser retomado no presente, reconhecê-lo como
experiência única, original, algo que nos aconteceu.
Assim, através da recordação trazemos à consciência algo vivido sensivelmente
no passado, que possa nos revelar aspectos que até então não estavam tão claros no
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presente. É como se o passado nos desse uma chance de “viver” de novo aquilo que foi
vivido, porém produzindo diferenças de sentidos, como se a recordação nos
apresentasse a possibilidade de viver outra vez um mesmo acontecimento, mas
produzindo diferença na repetição.
No encontro referido, tivemos uma experiência análoga a da escuta musical, cuja
dinâmica se realizada entre o que repete e o que varia, definindo-se pelo ritmo interno e
contínuo da ação. Escutando, o ouvinte experimenta a alternância entre som e silêncio,
subidas e descidas, consonâncias e dissonâncias. O tempo da escuta não é cronológico,
porque não se mede pelo que vem antes e depois, mas pelo que vai surgindo de forma
difusa e insistente. Algo de novo sempre acontece com aquele que escuta, de modo que
diversificam suas sensações e os sentidos, assim como variam suas formas de produzilos. Sobre a mesma base, cada criança experimenta e sente de forma muito singular.
O próximo recorte refere-se a um dos nossos primeiros encontros no qual as
crianças se sentiram afetadas pelo devir presente na vida e em sua condição de humanos
que, de modo análogo a outros seres, passam por ciclos contínuos e recursivos de morte
e vida. Questões dessa natureza, de ordem filosófica, aconteceram àquelas crianças, mas
sem a necessidade de explicá-las, senão conduzi-las através da arte, da literatura, do
pensar, que está muitas vezes latente em nós, precisando apenas de um estímulo, um
signo, um sinal.
“Antes de iniciarmos a atividade do espelho, nos reunimos em círculo para
recordar a experiência do encontro anterior. Este momento acabou tendo a duração
das lembranças. Falas das crianças foram acontecendo nos levando a caminhos
imprevistos. Uma delas nos conta que criou uma lagarta, ela virou uma borboleta e que
acabou permitindo que ela fôsse embora. Outra criança conta que sua irmã achou um
beija-flor na rua. O bichinho estava doente. Mas, diz que cuidou e depois deixou o
beija-flor voltar a voar.
Dagmar ressalta que as crianças têm falado de suas dificuldades em perder
pessoas, animais, coisas de que gostam. Outro garotinho conta que seu pai tinha vários
passarinhos. Depois, quebrou a gaiola e soltou quase todos, deixando apenas um.
Dagmar enfatiza que todos estamos a falar da liberdade, do afeto, da dificuldade de
fazer escolhas e de nos desapegar de algo ou alguém. Um deles fala em voz baixa para
Dagmar e ela traduz para a turma: “- Vocês ouviram? Ele falou algo muito importante.
Ele disse que plantou e cultivou uma melancia, ela foi crescendo, e no final ele colheu.
Ele comeu a melancia, mas replantou a semente e ela cresceu de novo”. Silmara
observa: “Olha só! Que nem a lagarta que se transformou numa borboleta, e a
melancia também!”.
Dagmar continua: “Gente, que coisa legal! Isso faz a gente pensar! É como
num ciclo! O que isso nos dá a pensar sobre a vida? A vida é parada ou está em
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movimento?”. Silmara: “A gente está em movimento?” Uma garotinha diz: “A gente
está!”. Mais adiante ela continua: “A gente é que nem a borboleta, que era uma
lagarta. A gente se transforma num adulto”. Dagmar: “Então, a vida está sempre em
transformação?”. Um deles conclui que o sapo também se transforma como a
borboleta. Dagmar então conta a história do amor entre um girino e uma lagarta que
em suas juras de amor prometem nunca mudar, mas o que ocorre de fato é que ambos
mudam. Todos param para ouvir.
Em um outro momento desse mesmo encontro, C. diz que ficou pensando
bastante. A. conta que pensou e que deseja ser minerador. Dagmar pergunta se
gostaram mais de dançar sozinhos ou acompanhados. Alguns disseram que gostaram
de ficar sozinhos. Dagmar observa: “Precisamos dos outros. Mas, às vezes, precisamos
ficar sozinhos”. Então, C. diz: “Eu, meu irmão, minha prima, duas amigas e dois
amigos do meu irmão fizemos uma casinha com tijolos que estavam sobrando. A gente
fez essa casinha e quando a gente quer pensar, vai lá”. A. conta que ele e o primo
fizeram um cantinho, uma cabana para pensar. P. fala de um laboratório. Aos poucos,
outras crianças foram se manifestando”.
Desdobramentos
No decurso da realização desse projeto pudemos depurar alguns conceitos, entre
os quais alguns já conhecidos, mas carentes de uma compreensão maior e de forma
contextualizada, já que articulados com uma experiência nova para nós, a Filosofia com
Crianças. Aos poucos esse e outros conceitos foram se tornando mais consistentes,
porque articulados entre si e com as experiências dos encontros. Essas articulações vêm
se desdobrando em novas formas de intervenção na forma de pesquisa, além de
sinalizarem para sua continuidade na forma de ensino e extensão junto à escola.
Temos percebido que a “Filosofia com Crianças” vem produzindo possibilidades
para desencadear processos internos a partir dos quais as crianças, com plasticidade,
sem fixidez e nem rigidez, exercitam sua liberdade de pensar, de pensar de outros
modos, tocando e se deixando tocar pelos signos do mundo, criando suas próprias
paisagens, reorganizando assim seus padrões de compreensão do mundo e da vida.
Vislumbramos identificar e aprofundar a especificidade dessa experiência
filosófica e de que modo pode instituir uma lógica diferenciada para pensarmos os
processos de ensino-aprendizagem na educação básica; se pode promover uma escuta
atenta e sensível das paisagens de cada criança, numa concepção alargada de escuta do
mundo, do lugar, do entorno do sujeito e de si mesmo, ancorada no estímulo das
faculdades sensíveis; e, mais amplamente, se a “Filosofia com Crianças” é capaz de
produzir uma experiência de pensamento que promova o acontecimento, a construção
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das paisagens próprias dos sujeitos envolvidos e a potencialização da complexidade na
direção do aprendizado da condição humana.
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Disponível em http://www.uff.br/revistaleph/pdf/art7.pdf. Acesso em 26 de fevereiro de
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SKLIAR, C. Escrever e Ler para Ressuscitar os Vivos: notas para pensar o gesto da
leitura (e da escrita). In: Devir-criança da Filosofia: infância da educação. Organização
de Walter Omar Kohan. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
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