Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana Aula 1

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Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 1
Todo leitor de Thomas Mann conhece esta passagem. Ela está no capítulo XXV de
Doutor Fausto e narra o momento em que o diabo procura o compositor Adrian
Leverkuhn para firmar com ele um pacto, mostrar-lhe o caminho da nova linguagem
musical. Conversa tensa, que em dado momento é suspensa pela contemplação de
uma impressionante metamorfose. Nela, o diabo apresenta uma de suas
especialidades, a arte de mudar de figura. Não, agora ele não se parecia mais com um
rufião ou um marginal. Na verdade:
“usava colarinho branco, gravata, e no nariz adunco, um par de óculos com
aros de chifre, atrás dos quais brilhavam olhos úmidos, sombrios, um tanto
avermelhados. A fisionomia aparentava uma mescla de dureza e suavidade: o
nariz duro, os lábios duros, porém suave o queixo, no qual havia uma covinha,
e a esta correspondia outra na face; lívida e arqueada a testa, e acima dela os
cabelos, com entradas bem definidas, porém densos, negros, lanosos, ao lado.
Em suma um intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre arte
e música, teórico e crítico, que, ele mesmo, faz tentativas no campo da
composição musical, na medida das suas capacidades”1.
Em suma um intelectual, mas um intelectual bem específico, desses que tem
nome conhecido. Um intelectual com quem a segunda metade do século XX conviveu
de maneira difícil devido à sua consciência crítica, seus livros, artigos em jornais e
entrevistas no rádio que jogavam uma sombra incômoda na efetividade: Theodor
Adorno. Adorno come diavolo, como disse um dia Jean-François Lyotard. Um diabo
que não levará Leverkuhn ao deserto para tentá-lo com poder e prazer. Os argumentos
diabólicos mudaram depois de certo tempo. Agora, sua tentação passa por discussões
sobre o “nível geral da técnica de Beethoven”, a função expressiva do acorde de
sétima diminuta no começo do opus 111 e de como “cada som traz em si o todo e
também toda a história”. Sim, agora o diabo parece ser a voz mais sensata para
aqueles que não suportam o estado atual da linguagem, que sabem como: “a situação
é demasiado crítica, para que a ausência de crítica esteja à sua altura”2.
Mas esta não era a primeira vez que as palavras de um filósofo apareciam na
boca deste que tem a força retórica de inverter o sentido de todas as palavras, de
embaralhar o sim e o não, de tirar o julgamento do solo seguro onde o certo ainda é o
certo e o errado ainda errado. Esta cena já se repetira anteriormente. O diabo e aquele
que procura se afastar das antigas teorias, que sonha em recuperar os frutos da vida, já
se encontraram antes. Naquele momento, e vai-se aí duzentos anos, ele não teve
problemas em se apresentar com sua alcunha de origem, a saber, “o espírito que
sempre nega”. O mesmo espírito que, se não tinha as feições de outro filósofo, tinha
certamente seu indefectível sotaque suábio. Antes de encarnar em Adorno, o diabo já
1
2
MANN, Thomas; Doutor Fausto, p. 335
Idem, p. 338
aparecera para Fausto, de Goethe, sob a forma de Hegel.É provavelmente pensando
nel que Mefistófoles dirá:
Eu sou o espírito que sempre nega
E com razão, tudo o que nasce
É digno de perecer (zugrunde geht)
Os escritores alemães, ou pelos menos alguns dos melhores deles, são à sua
maneira bastante aristotélicos. Pois de onde viria esta peculiar tendência de associar a
dialética nascente em seu território à uma atividade infernal, se em algum momento
eles não tivessem passado os olhos pela Metafísica, de Aristóteles? Desde Aristóteles,
aquele que acredita poder suspender o princípio de não-contradição só pode nos
convidar a viver em um mundo no qual julgamentos não são mais possíveis, no qual a
desorientação caótica reina. Dizer que a contradição não é o índice de uma
impossibilidade do pensamento determinar objetos, como quer o partido da dialética,
é abrir as portas para a dissolução completa, dissolver o mundo enquanto estrutura
capaz de responder à exigências elementares de ordem. A desconfiança da dialética
como a expressão do desejo cego e diabólico de dissolver mundos vem de longe.
Goethe e Thomas Mann sabiam disso.
Assim, não é de se estranhar que, a partir de certo momento, a última versão
da dialética, esta que conhecemos pela alcunha de dialética negativa, fosse acusada
como representante maior dos que estavam envolvidos nas sanhas niilistas da
dissolução completa. Reduzindo o pensamento ao “uso ad hoc da negação
determinada”, como dizia Habermas, a última versão histórica da dialética nunca
ofereceria um horizonte de reconciliação ao alcance da vista. Seus olhos úmidos,
sombrios, um tanto avermelhados, como disse Mann, só poderiam expressar o
niilismo desse “espírito que sempre nega” e que nos convida a ir ao inferno, nem que
seja a este inferno frio do Grande Hotel Abgrund. Pois, se o diabo é um desses
fenômenos que se diz de muitas maneiras, o inferno também se declina de forma
generosa. Ele pode ser, por exemplo, este lugar no qual a ruína parece eterna e
insuperável, no qual estamos condenados à cantar a cantinela triste da finitude, lugar
no qual as condições da praxis transformadora encontram-se, por isto, completamente
impossibilitadas, não restando outra coisa a não ser o pensamento que denuncia toda
solução como uma traição, toda imanência como um recuo. Um inferno que mais
parece o mundo invertido depressivo produzido por uma teologia negativa. Esta
pareceria ser a estação final da longa e complexa história da dialética no pensamento
ocidental.
Surgir e passar que não surge nem passa
Bem, se propus este curso é porque valia a pena perguntar sobre o que
aconteceria se tal leitura corrente estivesse radicalmente errada. Errada não apenas no
que diz respeito à dialética negativa de Adorno, mas principalmente no que diz
respeito à esta tradição dialética que inicia a partir de Hegel. Erro que não seria
simples incompreensão em relação a esses textos (como se diz) incompreensíveis de
filósofos como Hegel e Adorno, no qual as orações subordinadas parecem entrar em
compasso de vertigem. Erro que seria, na verdade, um desesperado modo de defesa
do senso comum contra essa forma de pensamento capaz de mostrar como:
A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e
constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim
é o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada
membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao
mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse
movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os
pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários,
quanto são negativos e evanescentes3.
Esse delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio, só pode
aparecer para um certo senso comum como palavreado de quem quer criar
movimentos que são, ao mesmo tempo, repousos translúcidos e simples, surgir e
passar que não surgem nem passam, evanescências que não são apenas
desaparecimentos mas, ao mesmo tempo, momentos positivos e necessários. No
coração desta dialética delirante encontra-se, na verdade, um desejo diabólico de
dissolver a segurança do mundo e, com ele, as figuras singulares do espírito e os
pensamento determinados.
Assim, alguém que quiser pensar de maneira dialética começará por se
perguntar se não é a partir de tal dissolução que se inicia a verdadeira filosofia, se a
filosofia, ao menos esta que a dialética defende, não seria exatamente o discurso
daqueles que não precisam de um mundo, ou seja, que não precisam disto que nos
permite nos orientar no pensamento a partir da imagem de uma totalidade metaestável que, se não está atualmente realizada, colocar-se-ia ao menos como horizonte
regulador da crítica. Talvez isto explique porque as paradas finais da dialética sempre
foram tão sumárias e econômicas. Todo leitor de Hegel já percebeu como as
discussões sobre o saber absoluto são não muito mais que uma dezena de páginas, de
que as discussões de Marx sobre a sociedade comunista não enchem mais do que
algumas frases e que os momentos de conciliação em Adorno quase nunca são
efetivamente postos. Na verdade, por mais que seus detratores não queiram ver, isto
se explica pelo fato da teleologia da dialética ser a própria imanência do movimento
que ela desvela. Movimento este que será a pulsação interna da experiência do
conceito.
Neste sentido, a dialética nunca poderia ser diagnosticada, como muitos os
fizeram, como a perpetuação da eterna melancolia dos que só veem possibilidades que
nunca se realizariam por completo, seja porque a efetividade social no capitalismo
impede toda reconciliação possível, seja porque os traumas históricos do século XX
exigem meditar infinitamente sobre a barbárie ou seja porque o pensamento assumiu
uma ontologia da inadequação. Há um equivoco fundamental de setores importantes
da filosofia contemporânea a respeito do que realmente significa a atividade negativa.
Pois, longe de ser uma figura moral da resignação diante do não realizado, longe de
ser o mantra de um culto teológico à impossibilidade, a negatividade é forma de não
esmagar a possibilidade no interior das figuras disponíveis das determinações
presentes ou, e este é o ponto talvez mais importante, no interior de qualquer presente
futuro que se coloque como promessa. Ou seja, a possibilidade não é apenas mera
possibilidade que aparece como ideal irrealizado. Ela é a latência do existente que nos
esclarece de onde a existência retira sua força para se mover. Neste sentido, a
negatividade dialética não é nem poderia ser expressão de alguma espécie de falta ou
privação, como vemos, por exemplo, na tradição da crítica deleuzeana à dialética
3
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito,
hegeliana. Ela é manifestação do excesso do processo do conceito em relação às
possibilidades das determinações postas.
Por isto, se tal latência do existente deve ser compreendida como negatividade
é porque ela pede a desintegração do que se sedimentou ou do que procura se
sedimentar como presença. Esta é uma ideia fundamental da dialética: começa-se
pensando contra representações naturais que se sedimentaram principalmente em uma
estética transcendental, em um conceito representativo de espaço e tempo, e não será
por acaso que daremos atenção especial, em nosso curso, às discussões sobre a
compreensão dialética do tempo.
A dialética e suas mistificações
Mas vocês poderiam logo se perguntar sobre o sentido de falar em “dialética”
desta forma, a saber, como se estivéssemos a analisar um processo semelhante de
pensamento em Hegel, em Adorno e também em Marx. No que podemos colocar uma
questão simples apenas em aparência, a saber, em que as “dialéticas” que conhecemos
no começo do século XIX, em meados do século XIX e em meados do século XX
participam de uma partilha tensa e produtiva de uma mesma experiência de
pensamento? Em que tais dialéticas se aproximam, qual o sentido em insistir em tais
proximidades? Por que não seria melhor selar o diagnóstico da descontinuidade e do
distanciamento? Lembremos, a este respeito, desta conhecida passagem do posfácio
da segunda edição de O Capital:
Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do
método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de
pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num
sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a
manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário o ideal não é mais
do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem (...) A
mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto
que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas
formas gerais de movimento (allgemeinen Bewegungsformen). Nele, ela se
encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne
racional dentro do invólucro místico. Em sua forma mistificada, a dialética
esteve em moda na Alemanha porque parecia glorificar o existente. Em sua
configuração racional, ela constitui um escândalo, um horror para a burguesia
e seus porta-vozes doutrinários, uma vez que, o entendimento positivo do
existente/permanente (Bestehenden), inclui, ao mesmo tempo, o entendimento
de sua negação, de sua necessária passagem (Untergangs). Além disso,
apreende toda forma desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo
o seu lado transitório; porque não se deixa intimidar por nada e é, por essência,
crítica e revolucionária4.
As colocações de Marx fornecem um topos clássico para o julgamento da
dialética hegeliana. No entanto, elas são mais ambíguas do que podem inicialmente
parecer. Primeiro porque, como gostaria de mostrar em nossas próximas aulas, a
descrição fornecida sobre a relação entre Ideia e efetividade em Hegel não é de todo
correta. Em Hegel, a Ideia não é, como Marx parece no limite nos fazer acreditar, uma
4
MARX, Karl; O Capital- volume I, São Paulo: Boitempo, p. 91
determinação transcendental que produz o processo efetivo, como quem subsume o
diverso da experiência sensível à generalidade de uma normatividade previamente
assegurada. O processo efetivo não é uma simples manifestação exterior da Ideia,
como se estivéssemos diante de uma totalidade como movimento sem acontecimento.
Leitura que encontrará, no século XX, um modelo paradigmático de interpretação na
crítica heideggeriana a Hegel. O mesmo Heidegger que dirá: “o progresso na marcha
histórica da história da formação da consciência não é impulsionado, em direção ao
ainda indeterminado, pela figura respectiva de cada momento da consciência, mas ele
é impulsionado pelo alvo já pro-posto”5. Em outra chave, mas com a mesma leitura,
Habermas, falará: “de um espírito que arrasta para dentro do sorvo da sua absoluta
auto-referência as diversas contradições atuais apenas para fazê-las perder o seu
caráter de realidade, para transformá-las no modus da transparência fantasmagórica de
um passado recordado – e para lhes tirar toda a seriedade” 6
No entanto, é possível mostrar como a Ideia em Hegel é, antes, uma
rememoração do processo efetivo, ou seja, sua relação à efetividade é
necessariamente retroativa, daí sua posteridade tão bem descrita quando Hegel afirma
que a filosofia opera como a coruja de Minerva. Pois a Ideia produz uma totalização
que não é mera recontagem, redescrição do que ocorreu, mas é construção
performativa do que, até então, não existia. De fato, a Ideia produz, mas integrando as
contingências que se desdobraram no campo da efetividade em uma construção
retroativa da necessidade. A filosofia hegeliana não é, por isto, um necessitarismo
spinozista para o qual a efetividade é a expressão imanente de uma substância que
aparece como: “totalidade infinita imóvel de coisas singulares em movimento”7. Ela o
seria se aceitássemos que a rememoração operada pela ideia nada acrescenta, ou seja,
que a passagem à existência, que a posição, nada acrescentaria à determinação
categorial8; como se da determinação à existência não houvesse processo.
Mas é fato que várias questões se derivam daí, Pois, sua posição de coruja de
Minerva não lhe daria necessariamente uma indelével função de “glorificar o
existente”, de “deificar aquilo que é”9? Como quem vai posteriormente aos campos de
batalha para servir-se de uma teoria do fato consumado a fim de justificar o curso
atual do mundo como expressão ontológica da necessidade. Devido à aceitação de
uma leitura desta natureza, vários comentadores como, por exemplo, Vittorio Hösle,
insistirão no que alguns chamarão de “passadismo” de Hegel. Passadismo que
mostraria como: “filosofia é recordação, olhar retrospectivo ao passado, não prolepse
e projeto do que há de vir, do que há de se tornar realidade, E, na medida em que o
que deve ser não está ainda realizado, não pode interessar à filosofia; ela apenas deve
compreender o que é e o que foi. A pergunta kantiana “Que devo fazer?” não tem,
assim, nenhum lugar dentro do sistema hegeliano. Uma resposta a ela poderia no
melhor dos casos rezar assim: “Reconheça o racional na realidade” 10. Ao que parece,
a crítica de Marx fez escola mesmo entre autores que dificilmente chamaríamos de
marxistas.
HEIDEGGER, Holzwege, p. 196
HABERMAS, Jürgen; O discurso filosófico da modernidade¸Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 60
7 BADIOU, Alain; L’être et l’évènement, Paris: Seuil, 1982, p. 135
8 Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de que cem táleres reais
não contém mais do que já está presente em cem táleres possíveis, ver FAUSTO, Ruy; Marx:
logique et politique, op cit.
9 ADORNO, Theodor; Dialética negativa, op. cit., p. 252
10 HÖSLE, Vittorio; O sistema de Hegel: O idealismo da subjetividade e o problema da
intersubjetividade, Belo Horizonte: Loyola, 2006, p. 468
5
6
Discutir a correção ou não de tal leitura nos exigirá entrarmos de maneira
sistemática em questão como a performatividade do conceito, a relação da dialética à
contingência e as relações de negação determinada entre conceito e objeto, o que
faremos em outras aulas. Por enquanto, há de se insistir como, mesmo fazendo tal
crítica, Marx se vê obrigado a reconhecer uma relação profunda de filiação e
transmissão. Ele dirá: devemos virar a dialética hegeliana de cabeça para baixo, mas
há de se reconhecer que as formas gerais do movimento responsáveis pela
compreensão correta da processualidade do existente já estão todas configuradas em
Hegel. Proposição aparentemente surpreendente pois como é possível separar a
estrutura lógica de um pensamento do movimento e da transformação, sua maneira de
apreender a gênese processual das formas e das normatividades que se querem
ontologicamente asseguradas, e sua impotência em funcionar de forma “crítica e
revolucionária”? Como retirar o cerne racional de seu invólucro místico, ou seja,
liberar a dialética da natureza apressada de suas sínteses, como se tal pressa não
estivesse, de certa forma, inscrita no interior da estrutura lógico-formal da dialética?
Pois, se não se trata de criticá-lo no plano lógico, nem, por consequência, de criticá-lo
no plano ontológico, então como seria possível organizar uma auto-crítica da
dialética? Aparentemente, melhor seria criticar a dialética em sua integralidade, com
seus modelos de síntese, com sua maneira de pensar o movimento a partir de
contradições, com sua forma de encaminhar as diferenças a estruturas gerais de
oposição, tal qual várias correntes hegemônicas do pensamento filosófico do século
XX farão.
Ontologia em situação
Coloquemos uma hipótese fundamental de trabalho que orientará nosso curso.
Se é possível explorar linhas de continuidade entre dialética hegeliana, dialética
marxista e dialética negativa é porque a dialética hegeliana é a dialética necessária
para as possibilidades históricas da experiência no início do século XIX, assim como
a dialética marxista o é para o final do século XIX e a dialética adorniana o é para
meados do século XX. Como uma ontologia cujo sistema de posições e
pressuposições modifica-se a partir de configurações históricas determinadas, sem
com isto modificar sua compreensão estrutural da processualidade contínua do
existente, ou seja, como “ontologia em situação”, a dialética reorienta-se
periodicamente em um movimento que leva em conta as transformações de suas
situações históricas. O que não poderia ser diferente para um pensamento que mesmo
nunca aceitando distinções estritas entre ontológico e ôntico, nunca abriu mão da
potencialidade crítica da verdade em relação ao campo de experiências entificado pelo
senso comum. A crítica se mede a partir das configurações historicamente
determinadas de bloqueio.
Isto significa que devemos compreender melhor o que pode ser este conceito
vago de uma “ontologia em situação”. Pois a princípio, tal sintagma soa como a forma
mesma de um paradoxo. A ontologia como discurso do ser enquanto ser é modalidade
de reflexão filosófica caracterizada pela aparente estaticidade da definição nocional
de suas categorias, assim como de suas modalidades de força normativa. Podemos
dizer que a ontologia caracteriza-se por ser um discurso sobre aquilo que permite a
outros discursos definirem sua consistência lógica e, por consequência, sua validade.
Mas uma ontologia em situação seria aquela que deixaria evidente como situações
sócio-históricas engendram sistemas de ideias que se procuram passar por dotados de
necessidade atemporal. Neste sentido, ela seria apenas uma maneira de mostrar como
particularidades, impasses e tensões de dinâmicas em situação são, de certa forma,
sublimados em sistemas de ideias com aspirações universalizantes. A força normativa
de tais sistemas daria então lugar a uma reflexão crítica sobre a gênese material das
normas. Neste sentido, uma ontologia em situação seria, necessariamente, uma
reflexão crítica sobre a ontologia. Algo não muito longe do que faz Marx, em A
Ideologia alemã, quando afirma, por exemplo:
As ideias da classe dominante são as ideais dominantes de cada época, quer
dizer, a classe que exerce o poder objetal dominante na sociedade é, ao mesmo
tempo, seu poder espiritual dominante (...) As ideias dominantes não são outra
coisa a não ser a expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas
com ideias; portanto, as relações que fazem de uma determinada classe a
classe dominante, ou seja, as ideias de sua dominação11.
A denúncia é evidente: as ideias que compõem o espaço de um domínio no
qual nada pode aparece que não esteja anteriormente assegurado por condições
prévias e não-problematizadas são a “expressão ideal das relações materiais
dominantes concebidas como ideias”. No entanto, poderíamos compreender a noção
de “ontologia em situação” de outra forma, a saber, uma ontologia que seja o campo
de exposição do processo de crítica das categorias ontológicas produzidas por uma
situação sócio-histórica, como ser, essência, identidade, diferença, entre tantas outras.
Por isto que podemos dizer, por exemplo, sobre Hegel: “a lógica hegeliana é a ideia
metódica, que se fundamenta, da unidade entre crítica e apresentação da metafísica”12.
Ou seja, ela é ao mesmo tempo a apresentação de categorias da metafísica e a crítica
de sua insuficiência. Uma metafísica paradoxal que se realiza como crítica das
categorias metafísicas ou, ainda, como explicitação de significações em seu ponto de
esgotamento13.
Mas esta crítica que organiza as categorias ontológicas a partir de seu
esgotamento, de suas contradições internas, ou seja, de sua incapacidade em abarcar o
campo das experiências a respeito das quais ela se propunha abarcar, não nos leva
necessariamente a uma crítica geral da ontologia. Ela nos leva, paradoxalmente, a
uma certa ontologização da negatividade da crítica, isto no sentido de compreender o
movimento contínuo de dissolução da estabilidade formal do sistema de ideias próprio
a situações sócio-histórica determinadas como sendo a própria manifestação das
“formas gerais de movimento” a respeito das quais fala Marx e seu reconhecimento
de filiação a Hegel. Tal movimento é, de certa forma, ontologizado, o que dá à
ENGELS, Friedrich e MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007,
p. 71
12 THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein: die kritische Funktion der Hegelschen Logik, Frankfurt:
Surhkamp, 1994, p. 16
13 Lembremos, por exemplo, das colocações de Paulo Arantes a respeito da leitura sugerida por
Gérard Lebrun a respeito da dialética: “Numa palavra, erradicando-lhe todo e qualquer resíduo
afirmativo, Lebrun reduzia o hegelianismo ao que lhe parecia ser o essencial, a Dialética, e esta, a
uma espécie de revolução discursiva sem precedentes, uma ‘máquina de linguagem’
especializada em pulverizar as categorias petrificadas, as fixações arcaicas do pensamento dito
‘representativo’, encarnado pelo famigerado (depois do Idealismo Alemão) Entendimento.
Comprimidas por tal engrenagem, as significações correntes se punham a flutuar para finalmente
confessar que no fundo não eram nada mesmo, a não ser um ninho de contradições cujo
resultado se desmanchava no ar, Não havia doutrina portanto, nada a ensinar ou informar. A
Dialética, no final das contas, nada mais era do que uma maneira de falar” (ARANTES, Paulo;
Hegel: frente e verso)
11
dialética sua peculiar pulsação entre ceticismo desenfreado e compreensão de suas
dissoluções como processos racionalmente orientados não em direção a um telos
finalista, como muitas vezes se afirmou, mas, como gostaria de defender, em direção
a um modelo anti-predicativo de determinação. Ou seja, a positividade da dialética
nunca esteve ligado à orientações normativas teleologicamente asseguradas.
A este respeito, vale a pena lembrar como a etimologia de “predicar” é
bastante clara. Vinda do latin praedicare, que significa “proclamar, anunciar”, a
predicação é aquilo que pode ser proclamado, aquilo que se submete às condições
gerais de anunciação. Predicados de um sujeito são aquilo que ele, de direito, pode
anunciar de si no interior de um campo no qual a universalidade genérica da pessoa
saberia como ver e escutar o que lá se apresenta. No entanto, há aquilo que não se
proclama, há aquilo que faz a língua tremer, há aquilo que não se dá a ver para uma
pessoa. Expressão do que destitui tanto a gramática da proclamação, com seu espaço
pré-determinado de visibilidade, quanto o lugar do sujeito da enunciação, que
pretensamente saberia o que tem diante de si e como falar do que se dispõe diante de
si. Isto que faz a língua tremer e se chocar contra os limites de sua gramática é o
embrião de outra forma de existência. Neste sentido, tal horizonte anti-predicativo de
determinação não será capaz de se encarnar nas condições de determinação do que
pode ser proclamado. Veremos melhor o sentido desta discussões no interior do nosso
curso mas, por enquanto, gostaria de dizer que esta é minha maneira de trabalhar uma
importante elaboração de Ruy Fausto a respeito das determinações dialéticas.
Encontramo-la em afirmações como :
Uma das características da concepção dialética das significações – e, se
poderia dizer, em geral, da dialética – é a ideia de um espaço de significações
em que estão presentes zonas de sombras. Este espaço contém um halo escuro
, e não somente regiões claras, como supõem em geral as descrições não
dialéticas. Longe de representar o limite, em sentido negativo, das
significações, as zonas de sombras lhes são essenciais (...) Expresso à maneira
das filosofias não dialéticas de significação, esse halo obscuro poderia ser
pensado como contendo intenções não preenchidas. Para a dialética, trata-se
entretanto de intenções que não podem nem devem ser preenchidas. Há assim
um campo de intenções que deve se conservar como campo de intenções. O
preenchimento não ilumina as significações, mas as destrói14.
Uma zona de sombra que, como veremos, pode ser expressa sob a forma de
possíveis que não são postos na determinação do objeto, como “desatualização” do
objeto posto, como pura indeterminação, entre outras figuras.
Para finalizar, gostaria ainda de voltar ao conceito de “ontologia em situação”
a fim de insistir como a dialética é sensível à modificação histórica dos sistemas de
ideias, ou se quisermos, ao que aparece ao pensamento com “representação natural”.
Ela é sensível à maneira com que o “campo das experiências possíveis” modifica-se
historicamente a partir de um sistema de causalidades múltiplas. Mas isto significa,
principalmente, que ela também modifica sua forma de construir a “unidade entre
crítica e apresentação da metafísica”. O sistema de posições e pressuposições da
dialética, aquilo que ela deve apenas pressupor e aquilo que se ela se vê em condições
de anunciar deverá necessariamente se modificar de acordo com as condições
14
FAUSTO, Ruy; Marx – lógica e política, op. cit., pp. 149-150
históricas. Isto é o que devemos compreender, em última instância, como “ontologia
em situação”.
Estado e totalidade verdadeira
Podemos fornecer um exemplo sobre esta modificação do sistema de posições
e pressuposições da dialética a partir do problema da relação entre Estado e totalidade
em Hegel e Adorno. Sobre a teoria hegeliana do Estado, Adorno afirmará que Hegel
sabe muito bem como a sociedade civil é uma totalidade antagônica. Da mesma
forma, ele sabe que as contradições da sociedade civil não podem ser resolvidas
através de seu movimento próprio. Sabemos como, ao insistir que a distinção entre
sociedade civil e Estado é uma característica maior do mundo moderno, Hegel se
contrapõe a certas teorias liberais que compreendem o Estado apenas como a estrutura
institucional cuja função seria garantir e assegurar o bom funcionamento da sociedade
civil a partir de princípios de defesa dos indivíduos com seus interesses econômicos
particulares. Hegel não teria problemas em admitir que: “a sociedade civil é o
fundamento objetivo da emancipação dos cidadãos modernos e da subjetividade
moderna”15. Mas ele insistiria que, levando em conta apenas seu movimento próprio,
a sociedade civil, como expressão dos princípios do livre-mercado, tende
fundamentalmente à atomização social, à clivagem e à pauperização de largas
camadas da população. Lembremos deste famoso trecho dos Princípios da filosofia
do direito:
Quando a sociedade civil não se encontra impedida em sua eficácia, então em
si mesma ela realiza uma progressão de sua população e indústria. Através da
universalização das conexões entre os homens devido a suas necessidades e ao
crescimento dos meios de elaboração e transporte destinados a satisfazê-las,
cresce, de um lado, a acumulação de fortunas – porque se tira o maior proveito
desta dupla universalidade. Da mesma forma, do outro lado, cresce o
isolamento e a limitação do trabalho particular e, com isto, a dependência e a
extrema necessidade (Not) da classe (Klasse) ligada a este trabalho, a qual se
vincula a incapacidade ao sentimento e ao gozo de outras faculdades da
sociedade civil, em especial dos proveitos espirituais16.
O modo de inserção no universo do trabalho depende, segundo Hegel, de uma
relação entre capital e talentos que tenho e que sou capaz de desenvolver. Isto implica
não apenas entrada desigual no universo do trabalho, mas também tendência à
concentração da circulação de riquezas nas mãos dos que já dispõem de riquezas,
assim como o consequente aumento da fratura social e da desvalorização cada vez
maior do trabalho submetido à divisão do trabalho. Desta forma, na aurora do século
XIX, Hegel é um dos poucos filósofos a se mostrar claramente consciente tanto dos
problemas que organizarão o campo da questão social nas sociedades ocidentais a
partir de então quanto da real extensão destes problemas. Para ele, esta tendência de
aumento das desigualdades e da pauperização, tendência que o leva a afirmar que por
mais que a sociedade civil seja rica, ela nunca é suficientemente rica para eliminar a
pobreza, é um problema que exigiria o recurso a um conceito de Estado justo.
Adorno sabe disto. Tanto que afirmará:
KORTIAN, Garbis ; Subjectivity and civil society, In: PELCZUNSKI; The state and civil society :
studies in Hegel’s political philosophy, Cambridge University Press, 1984, p. 203
16
HEGEL, Filosofia do direito, par. 243
15
O livre jogo de forças da sociedade capitalista, cuja teoria econômica liberal
Hegel aceitara, não possui nenhum antídoto para o fato de a pobreza, do
“pauperismo”, segundo a terminologia de Hegel atualmente em desuso,
aumentar com a riqueza social; menos ainda poderia Hegel imaginar uma
elevação da produção que faria troça da afirmação de que a sociedade não
seria suficientemente rica em mercadorias. O Estado é solicitado
desesperadamente como uma instância para além desse jogo de forças17.
Tal recurso ao Estado como expressão do desespero mostra a verdadeira
potência crítica da dialética hegeliana. Adorno chega a dizer que o recurso hegeliano
ao Estado é um ato necessário de violência contra a própria dialética porque, de outra
forma, a sociedade se dissolveria em antagonismos insuperáveis. Ou seja, ele sabe o
que está em jogo na aposta hegeliana pelo Estado. Adorno só não está seguro de que
tal aposta poderá ser paga com a moeda que Hegel tem em mãos. Colabora para tal
desconfiança a compreensão adorniana da natureza da imbricação atual entre estado e
capitalismo. Imbricação na qual: “o intervencionismo econômico não é enxertado de
um modo estranho ao sistema, mas de modo imanente a ele, como a quintessência da
autodefesa do sistema capitalista”18. Na esteira das discussões de Friedrich Pollock a
respeito do “capitalismo de estado”, mas com um diagnóstico relativamente distinto,
Adorno acaba por apontar a mesma impossibilidade de pôr a possibilidade de um
Estado justo em nossa situação sócio-histórica. Sua articulação orgânica com as
dinâmicas monopolistas do capitalismo tardio lhe retiraria toda possibilidade de ser
um veículo de justiça social. Isto não implica, em absoluto, que a dialética negativa se
contentará em denunciar falsas totalidades lá onde a dialética hegeliana acreditava que
uma totalidade verdadeira poderia ser posta. Antes, ela criticará as figuras atualmente
postas da totalidade verdadeira, isto a fim de deixá-las em pressuposição devido à
situação sócio-histórica na qual o pensamento atualmente se move. A questão
importante será se perguntar onde estão os modelos de totalidade verdadeira, para
onde eles foram deslocados, já que não podem mais aparecer sob a forma do estado.
Isto significa modificar o sistema de posições e pressuposições da dialética.
Note-se ainda como, de acordo com o momento histórico, a dialética não teme
em usar o positivo ou o negativo. Ela é um pensamento que se desloca em um tempo
que não é apenas temporalidade inerte, mas historicidade que exige uma certa
plasticidade das estratégias do pensar. A dialética demonstra como toda enunciação
filosófica é sempre uma enunciação em situação. Uma enunciação filosófica não se
produz através da definição normativa do dever-ser, e ninguém mais do que Hegel
recusou tal ideia. Ela se produz através do reconhecimento do desconforto em relação
aos limites da situação na qual os sujeitos da enunciação se encontram. Por isto, ela
nasce como crítica, sem que precise começar por definir qual seria o horizonte
normativo que a legitima.
Dialética como auto-crítica da razão
Neste ponto, podemos fornecer uma definição operacional de dialética com a
qual trabalharemos neste curso. Ela vem de Adorno:
Dialética não significa nem um mero procedimento do Espírito, por meio do
qual ele se furta da obrigatoriedade do seu objeto – em Hegel ela produz
17
18
ADORNO, Tres estudos sobre Hegel,
ADORNO, Spätkapitalismus oder Industriegesellschaft?, pp. 363-364
literalmente o contrário, o confronto permanente do objeto com seu próprio
conceito – nem uma visão de mundo [Weltanschauung] em cujo esquema se
pudesse colocar à força a realidade. Do mesmo modo que a dialética não se
presta a uma definição isolada, ela também não fornece nenhuma. Ela é o
esforço imperturbável para conjugar a consciência crítica que a razão tem de si
mesma com a experiência crítica dos objetos19.
Nem método, nem visão de mundo. Desta forma, o filósofo de Frankfurt
procurava fornecer o último capítulo de um longo périplo no qual a dialética deixara
para trás sua acepção inicial de diálogo baseado na oposição de opiniões contrárias,
tão evidente na maiêutica socrática e que justificará sua presença no trivium medieval.
A este respeito, lembremos como “dialética” vem de “dialegesthai” que significa algo
como a arte da discussão por meio do diálogo e nos remete ao verbo “dialegein”, no
qual encontramos “legein”, a saber, “falar”/”juntar”, e o prefixo “dia”, que nos remete
a relação ou troca. “Legein” estará também na base de “logos”. Pensando no interior
deste horizonte, Platão definirá o praticante da dialética como: “este que sabe
interrogar e responder” 20 até alcançar o esclarecimento dos princípios gerais. A
dialética de Platão, tão claramente presente na maiêutica socrática é assim uma
espécie de ascese crítica em direção à intelecção do caráter gerador da Ideia.
Lembremos desta definição canônica de A República:
Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele
que a razão (logos) atinge pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não
princípios, mas hipóteses de fato, um espécie de degraus e de pontos de apoio,
para ir até aquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo,
atingindo o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí
decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado
sensível, mas passando das ideias uma às outras, e terminando em ideias21.
Através da dialética, o que é hipótese é destruído até alcançarmos a Ideia
como princípio que nos permite construir silogismos sem se servir em nada de
qualquer dado sensível. Algo que, como vimos, Marx tende a encontrar em Hegel ao
falar da Ideia como o demiurgo do processo efetivo. Notemos ainda que este diálogo
de ascese crítica tem, como característica diferencial, apelar aos pressupostos já
presentes nas proposições dos envolvidos (o que permitia à Sócrates, por exemplo,
mostrar que Ménon não sabia o que sabia). Daí porque: “no debate oratório,
semelhante a um processo, são terceiros que dirimem; na discussão dialética, pode-se
eximir-se de recorrer aos terceiros graças a um acordo sobre uma verdade revelada
aos interlocutores pela razão comum deles” 22 . Por ter como pressuposto a razão
comum, a dialética confunde-se neste momento com a própria definição essencial da
argumentação filosófica.
Por sua natureza de técnica de diálogo, baseada principalmente na explicitação
de paralogismos, contradições e na redução ao absurdo de teses adversárias (método
inicialmente utilizado, ao que tudo indica, por Zenão), o destino da dialética será mais
ADORNO, Três estudos sobre Hegel
PLATÃO, Crátilo, 390c
21 PLATÃO; A República, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 511 bc
22 PERELMAN, Chaim; Retóricas, São Paulo: Martins Fontes, p. 8
19
20
ligado à retórica do que propriamente à lógica 23 , mesmo que ela tenha sido: “o
primeiro termo técnico a ser usado para o assunto que hoje chamamos de lógica” 24. É
desta forma que ela entrará no trivium medieval, juntamente com a gramática e a
retórica.
O declínio da filosofia medieval parece levar junto consigo o prestígio da
dialética. Lembremos como Descartes, por exemplo, associa a dialética à retórica
para, em um mesmo movimento, separar os campos da filosofia e da retórica. A
dialética é, para Descartes, uma “arte da raciocinação” meramente formal, pois ligada
à análise das qualidades formais do discurso. Daí sua crítica contra os dialéticos que
creem governar a razão:
prescrevendo-lhe certas formas de raciocínio tão necessariamente
concludentes que a razão neles confiantes, embora de certa maneira dispense a
evidência e a atenção da própria inferência pode, todavia, em virtude da forma,
concluir por vezes algo de acertado. Efetivamente, observamos que a verdade
se subtrai muitas vezes a esses laços, enquanto aqueles que deles se servem
neles permanecem enredados25.
Esta desqualificação da dialética como raciocínio meramente formal, incapaz
de integrar o que é da ordem da contingência da empiria será uma das figuras
clássicas da crítica e chegará até Kant. Vem de Kant sua definição como “lógica da
aparência” que expressava as ilusões produzidas quando as ideias da razão procuram
se tomar por determinações objetivas da coisa em si, produzindo contradições
insuperáveis. Neste sentido, tal lógica da aparência não será apenas uma dialética
lógica que visa descobrir a falsa aparência na forma dos raciocínios. Ela será uma
dialética transcendental que visa denunciar a “aparência transcendental”. Uma
aparência diferente da aparência empírica própria, por exemplo, à ilusão de ótica, ou
da aparência lógica, que consiste na simples imitação da forma da razão e da
desatenção à regra lógica. Tal aparência transcendental se refere ao fato de nossa
razão ter:
“regras fundamentais e máximas relativas ao seu uso, que possuem por
completo o aspecto de princípios objetivos, pelo que sucede a necessidade
subjetiva de uma certa ligação dos nossos conceitos, em favor do
entendimento, passar por uma necessidade objetiva da determinação das coisas
em si26.
“Deste modo, a dialética, sob os seus diversos aspectos, prepara a lógica. Para se tornar,
verdadeiramente, uma arte, ela supõe um estado das articulações lógicas do discurso, das
relações de consecução ou de incompatibilidade entre as proposições; é preciso reconhecer e
analisar os diversos modos de argumentaão, saber distinguir entre os encadeamentos legítimos e
encadeamentos incorretos. Falta-lhe, no entanto, ainda duas coisas que a distinguem da lógica.
Primeiro e sobretudo, o seu saber lógico continua, em larga medida, em estado implícito. É uma
arte, uma técnica. Dá regras, mas sem chegar a estabelecer e a formular sistematicamente as leis
que as justificam. Além disso, o seu caráter agonístico tem como efeito, não apenas impdir-lhe o
acesso à independência científica, mas concentrar seu interesse na argumentação de caráter
erístico ou refutativo” (BLANCHË, Robert; História da lógica, Lisboa: Edições 70, p. 21)
24 KNEALE e KNEALE; The development of logic, Oxford University Press, 1962, p. 7
25 DESCARTES, René; Regras para a direção do espírito
26 KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, A 297
23
Enquanto faculdade dos princípios, a razão conhece o particular no universal
mediante conceitos que Kant chama de “ideias transcendentais”. Tais conceitos tem
“o aspecto de princípios objetivos”, o que acaba por nos induzir a pensar que eles tem
a normatividade suficiente para determinar objetivamente as coisas em si. No entanto,
os conceitos da razão nunca permitem o conhecimento imediato das coisas, apenas
um conhecimento por inferência a partir de premissas não imediatamente derivadas da
premissa maior. Por exemplo, “todos os homens são mortais” já tem relação analítica
com a proposição “alguns homens são mortais”, mas não “todos os sábios são
mortais”, já que o conceito de sábio não está posto. Sua articulação é possível através
daquilo que Kant chama de “inferências da razão” que visam unificar em princípios
gerais a diversidade das regras do entendimento. Tais princípios, dirá Kant:
Não prescrevem aos objetos nenhum lei e não contém o fundamento da
possibilidade de os conhecer e de os determinar como tais em geral; é
simplesmente, pelo contrário, uma lei subjetiva da economia no uso das
riquezas do nosso entendimento, a qual consiste em reduzir o uso geral dos
conceito do entendimento ao mínimo número possível27.
Assim, o conhecimento caminha do caráter condicionado do entendimento ao
caráter incondicionado da razão, na medida que este incondicionado contem um
fundamento da síntese do condicionado. Kant não faz, desta forma, uma negação
simples da Ideia em sua matriz platônica. Antes, lembra como seu caráter
transcendente pode funcionar como horizonte regulador, como no caso da liberdade
moral como Ideia da razão 28 . No entanto, a Ideia como totalidade absoluta dos
fenômenos é “apenas uma ideia, pois como não podemos nunca realizar numa
imagem algo semelhante, permanece um problema sem solução”29. Isto significa, é
possível ascender das condições ao incondicionado, mas não é possível descer do
incondicionado ao condicionado.
Tal totalidade pode dizer respeito ao sujeito, ao mundo (como série de
condições do fenômeno) ou a Deus (como condição de todos os objetos do
pensamento em geral). Ao tentar legislar sobre o entendimento, ultrapassando seu
caráter meramente regulador, tais Ideias só podem produzir paralogismos e
antinomias nas quais tese e antítese entram em conflito sem possibilidade de
resolução. Exemplos de tais antinomias são: O mundo tem um começo no tempo e é
limitado no espaço/O mundo não nem começo nem limites no espaço, é infinito tanto
no tempo quanto no espaço; Toda substância composta é constituída por partes
simples/Nenhuma coisa composta é constituída por partes simples; Há uma
causalidade pela liberdade/ Tudo ocorre em virtude das leis da natureza; Ao mundo
pertence um ser absolutamente necessário/Não há um ser absolutamente necessário
que seja a causa do mundo.
É neste contexto de desqualificação que Hegel recupera a dialética ao vincular
a experiência crítica dos objetos à consciência crítica que a razão tem de si mesma.
Mas tal consciência crítica da razão não está, como em Kant, vinculada a consciência
dos limites da legislação da razão. Trata-se, antes, de transformar a experiência crítica
Idem, A 306
“Pois qual seja o grau mais elevado em que a humanidade deverá parar e a grandeza do
intervalo que necessariamente separa a ideia da sua realização, é o que ninguém pode nem deve
determinar, precisamente porque se trata de liberdade e esta pode exceder todo o limite que se
queira atribuir” (KANT; idem, B 374)
29 Idem, A 328
27
28
dos objetos, ou seja, a consciência do descompasso entre a experiência e os modelos
de representação de objeto, em motor de crítica da razão. Essa experiência crítica dos
objetos não deve, por sua vez, nos levar a alguma forma de pensamento do imediato.
No fundo, vale para Adorno a definição canônica da dialética em Hegel: “espírito de
contradição organizado”30, regime de pensar que afirma só ser possível superar as
dicotomias produzidas pela razão ao reconhecê-las e levá-las ao extremo, ao invés de
fazer apelo a alguma forma de “empirismo feliz” ou de legislação sobre a
determinação dos limites intransponíveis da razão. Pois se trata de levar tal tensão até
o extremo da contradição, isto para que, neste extremo, o pensar aprenda a não reduzir
as contradições à condição de simples manifestação do que não pode ser pensado.
Neste sentido, “organizar a contradição” consiste, no fundo, em reconhecer o caráter
produtivo da contradição enquanto modo de experiência do mundo. Veremos no
decorrer de nosso curso o que isto pode significar.
30
Ver a este respeito ARANTES, Paulo; Ressentimento da dialética, São Paulo: Paz e Terra, 1996
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