i JCS RelatoGui de Caso Pericardite constritiva em lac en e Arq Bras Cardiol volume 74, (nº 1), 2000 Pericardite Constritiva em Lactente José Carlos dos Santos Guitti Londrina, PR Pericardite constritiva inespecífica de rápida evolução em lactente de um ano e sete meses, com comprometimento miocárdico secundário. Após pericardiectomia total, a criança apresentou instabilidade hemodinâmica irreversível. A pericardite constritiva é rara na infância. Decorre de vários processos, sendo mais freqüentes os de etiologia infecciosa. A evolução natural da doença é marcada por deterioração progressiva da função miocárdica, com envolvimento das válvulas atrioventriculares. Quando o diagnóstico é precoce e o tratamento é instituído de imediato, a evolução é favorável na maioria dos casos. A pericardite constritiva em crianças, na maioria das vezes, constitui um desafio diagnóstico, pois, além de ser afecção rara e, portanto, pouco lembrada, o quadro clínico não é patognomônico e pode mimetizar outras doenças. A pericardite constritiva pode desenvolver-se a partir de processos infecciosos, colagenoses, uremia, neoplasias, radiação, traumatismos e doenças granulomatosas 1,2. Já foi descrita como complicação de cirurgia cardíaca e de infarto miocárdico 3, além de ser parte integrante da síndrome de nanismo mulibrey 4. A despeito das numerosas causas conhecidas, a pericardite constritiva mais freqüentemente ocorre sem doença prévia evidente 1. Mesmo quando o processo tem etiologia infecciosa, em cerca de 60% dos casos não é possível identificar o agente responsável 5. Admite-se a existência de duas formas da doença: a forma crônica (usualmente sem identificação do agente etiológico) e a outra, de instalação rápida, que se segue à pericardite aguda com derrame 6. A pericardite constritiva é pouco comum em crianças. Entre 235 pacientes com pericardite observados no Hospital for Sick Children (Toronto, Canadá) durante, aproximadamente, 30 anos, apenas dois evoluíram com espessamento pericárdico e constrição 7. Sua detecção em lactentes é ocorrência bastante rara. Grumach e cols. 3 descreveramna como complicação de doença granulomatosa crônica em paciente com apenas 17 meses de idade. Na revisão da literatura, efetuada por Vining 8, o paciente mais jovem tinha Universidade Estadual de Londrina Correspondência: José Carlos dos Santos Guitti - Rua Paranaguá, 934 - 86020-030 Londrina, PR Recebido para publicação em 1/4/99 Aceito em 12/5/99 dois anos. É possível que a baixa incidência seja devida, em parte, à não suspeição da doença. Por outro lado, o diagnóstico de derrame pericárdico agudo sem tamponamento pode passar despercebido, principalmente quando causado por vírus, não ocorrendo, portanto, o acompanhamento adequado do paciente. Mesmo os casos devidos tuberculose podem não ser diagnosticados, dado o caráter insidioso da moléstia e de suas complicações. No período de 1989 a 1998, na clínica pediátrica do Hospital Universitário de Londrina, foram diagnosticados apenas cinco casos de pericardite aguda não reumática, com manifestações clínicas suficientemente evidentes para permitir o diagnóstico. Todos apresentavam a doença como complicação de infecção pulmonar bacteriana ou de sepse, à exceção do caso que constitui o presente relato, no qual a etiologia não foi determinada, a despeito de intensa investigação laboratorial. Relato do caso Paciente com um ano e sete meses, feminina, branca. Quando tinha 14 meses de idade, apresentou derrame pericárdico, no curso de infecção de vias aéreas superiores, presumivelmente, de origem viral, dada a inespecificidade dos resultados laboratoriais. Passou bem por quatro meses, quando teve início desconforto respiratório progressivo, acompanhado de astenia, irritabilidade e abdome doloroso. Ao exame clínico apresentava-se com taquipnéia discreta, hepatomegalia não pulsátil, estase jugular e taquicardia. A segunda bulha tinha desdobramento variável e hiperfonese do componente pulmonar. Não foi possível detectar qualquer tipo de estalido ou atrito pericárdico. Roncos e estertores de intensidade discreta em ambos os pulm es. Ausência de edema e sem sinais de ascite. A radiografia de tórax evidenciava pequeno aumento da área cardíaca, s custas de cavidades direitas e sinais de estase em circulação pulmonar, com derrame intercisural. O traçado eletrocardiográfico mostrava apenas diminuição em amplitude de complexos QRS, alterações inespecíficas da repolarização ventricular e sinais de sobrecarga biatrial. O ecocardiograma detectou pequeno derrame pericárdico com espessamento do folheto parietal, sem calcificação; aumento de cavidades atriais e de ventrículo direito, com dilatação de veia cava inferior e de veias supra-hepáticas, com fluxo retrógrado; hipertensão em artéria pulmonar (45mmHg), insuficiência tricúspide e fluxo em válvulas atrioventriculares do tipo en47 Gui i JCS Pericardite constritiva em lactente chimento protodiastólico (figs. 1, 2, 3 e 4). O diagnóstico de pericardite constritiva foi comprovado por avaliação hemodinâmica. Os familiares opuseram-se à indicação de tratamento cirúrgico e a paciente só retornou oito meses depois, com insuficiência cardíaca e desnutrição acentuada. Dadas as condições clínicas precárias da paciente, foi indicada apenas pericardiectomia parcial, na tentativa de se obter algum grau de descompressão. Apresentou melhora apenas discreta da sintomatologia. Após outro longo intervalo de sete meses sem acompanhamento médico, a paciente foi reinternada. Nessa ocasião, já apresentava sinais clínicos de deterioração grave da função miocárdica. Após recuperação parcial da condição nutricional foi submetida a pericardiectomia radical, valvoplastia tricúspide e fechamento de comunicação interatrial tipo ostium secundum (achado operatório). Apresentou insuficiência renal e instabilidade hemodinâmica irreversível, com óbito no 26º dia. Laudo do exame anatomopatológico: pericardite crônica inespecífica. Discussão As manifestações clínicas na pericardite constritiva resultam principalmente de comprometimento do enchimento ventricular e de alterações da contratilidade miocárdica, embora a função sistólica também possa estar alterada em diversos graus. Estas alterações concorrem para depressão progressiva da função cardíaca. A produção experimental de pericardite constritiva pela fixação de envoltório plástico rígido sobre o coração só obtém sucesso quando ocorre compressão dos ventrículos. Quando ela se faz apenas sobre as cavidades atriais não dá origem aos mesmos fenômenos. Assim, a doença atua de modo semelhante às estenoses mitral e tricúspide. Como resultado observam-se alta pressão inicial de enchimento em ambos os ventrículos, pequeno volume de ejeção e baixo débito cardíaco 5. A sintomatologia tem progressão lenta e insidiosa, embora o dano miocárdico intenso e precoce observado em alguns casos possa acelerar o curso da doença. O quadro Fig. 1 - Ecocardiografia. Espessamento pericárdico (setas). 48 Arq Bras Cardiol volume 74, (nº 1), 2000 Fig. 2 - Ecocardiografia. Pequeno derrame e espessamento pericárdico (imagem à esquerda). Dilatação de cavidades atriais (imagem à direita). clínico geralmente se resume em congestão venosa sistêmica e pulmonar, não acompanhada de dispnéia proporcional ao grau de estase. Em cerca de 75% dos casos se encontra a tríade de Beck, que consiste em pouca evidência semiológica de disfunção cardíaca, aumento da pressão venosa e ascite desproporcional ao edema, que costuma ser discreto ou inaparente 9. A hepatomegalia é acentuada e não pulsátil. Este fato, aliado à hipoproteinemia que pode estar presente, mimetiza doença hepática crônica e, por vezes, desnutrição energético-protéica primária. A ocorrência de ascite, edema e hipoproteinemia faz levantar, em alguns casos, a hipótese diagnóstica de síndrome nefrótica. Cardiomegalia associada a sopro sistólico em focos mitral e tricúspide e aos demais sinais de restrição podem fazer supor a existência de cardiomiopatia restritiva 1. A hipoproteinemia ocorre como manifestação de enteropatia perdedora de proteínas e pode vir acompanhada de esteatorréia e sinais de desnutrição importante. Nesta circunstância, síndrome de mal absorção é levantada como primeira hipótese diagnóstica. A síndrome de nanismo mulibrey (muscle, liver, brain, eyes), além da constrição pericárdica e de baixa estatura, apresenta pigmentação amarela de retina, displasia óssea fibrosa e sela túrcica em forma de J 4. A multiplicidade de diagnósticos diferenciais explica por quê, em algumas ocasiões, a investigação clínica é demorada, permitindo livre curso evolutivo da doença, cuja confirmação se faz tardiamente. A radiografia de tórax, exame complementar usual, evidencia estase venosa pulmonar e área cardíaca normal ou pouco aumentada, na maioria dos casos. Derrame pleural discreto pode estar presente. Calcificação pericárdica é detectada em cerca de 50% dos casos 5,10. As características eletrocardiográficas restringem-se a baixa voltagem dos complexos QRS e alteraç es inespecíficas da repolarização ventricular. O supradesnivelamento do segmento ST, característico de pericardite aguda, não é observado. Alterações da onda P e arritmias, principalmente fibrilação atrial, só estão presentes quando o comprometimento miocárdico é importante 10. Gui i JCS Pericardite constritiva em lac en e Arq Bras Cardiol volume 74, (nº 1), 2000 Fig. 3 - Ecocardiografia. Dilatação acentuada de veia cava inferior. Fig. 4 - Ecocardiografia. Dilatação e fluxo bidirecional em veias supra-hepáticas. A ecocardiografia não permite a exata avaliação do grau de constrição. Na dependência do espessamento pericárdico existente, obtêm-se ecos de densidade correspondente. O septo interventricular apresenta movimento paradoxal e a movimentação da parede posterior livre do ventrículo esquerdo produz angulação brusca dos ecos captados entre a fase protodiastólica e o restante da diástole 10. A alteração mais característica que se obtém no estudo hemodinâmico também pode ser detectada pela ecocardiografia. Consiste em enchimento ventricular inicial rápido bruscamente interrompido por limitação da distensibilidade ventricular, o que produz aumento da pendente diastólica da válvula mitral, com E >> A 10. Ocasionalmente, a despeito de todos os meios de investigação disponíveis, o diagnóstico definitivo só pode ser feito por meio de toracotomia exploradora 1. Assim como nos casos de tamponamento cardíaco, é contra-indicado o uso de digital, diuréticos e vasodilatadores, porque a taquicardia, o aumento da pressão venosa e a vasoconstrição periférica são respostas hemodinâmicas compensatórias 11. O único tratamento a ser considerado é o cirúrgico, que deve ser realizado o mais precocemente possível. A pericardiectomia parcial pode estar indicada, como assinalaram Nataf e cols. 12 que recorreram a esse procedimento em 75 entre 84 pacientes, sendo que sete necessitaram pericardiectomia total posteriormente. A maioria dos autores recomenda pericardiectomia radical, incluindo a região de origem das grandes artérias. Na maioria dos casos há rápida resposta, caracterizada por elevação do débito cardíaco, diurese abundante e regressão dos sinais de con- gestão venosa. Conforme ressaltaram Gersony e Allan 1, a observação da recuperação dramática das condiç es gerais de uma criança cronicamente doente com pericardite constritiva até então insuspeita, é uma experiência altamente compensadora em medicina. Porém, quando o comprometimento miocárdico é severo, como observado no caso ora descrito, no pós-operatório imediato pode ocorrer inadaptação ventricular à descompressão, com conseqüente instabilidade hemodinâmica dificilmente reversível 5. A valvoplastia tricúspide ou mitral está indicada nos casos de regurgitação importante, porque sua regressão espontânea dá-se a longo prazo e em apenas 50% dos pacientes 13. O presente caso ilustra, de forma contundente, a necessidade de intervenção cirúrgica precoce, ainda no estágio inicial da doença. Infortunadamente, como bem assinalaram Allen e cols. 14, a condição sociocultural das camadas mais desprotegidas da população muitas vezes dificulta que se possa propiciar a elas os cuidados médico-hospitalares mais adequados. Nos casos de etiologia tuberculosa ou histoplasmática, é recomendável a utilização de quimioterápicos específicos, a serem iniciados na fase pré-operatória e continuados até a resolução completa da infecção. Agradecimentos Ao Dr. Paulo Sampaio Gutierrez e à Dra. Maria Irma Seixas Duarte, pela realização dos exames anatomopatológicos e imuno-histoquímicos, respectivamente. Referências 1. 2. Gersony WM, Allan MA. Infective endocarditis and diseases of the pericardium. Pediatr Clin North Am 1978; 25: 833-45. Grumach AS, Jacob CMA, Stolf NG, Maksoud JC, Carneiro-Sampaio MS. Pericardite constritiva como complicação de doença granulomatosa crônica na infância. Rev Hosp Clin FMUSP 1987; 42: 30-2. 3. 4. Cohen MV, Greenberg MA. Constrictive pericarditis: early and late complication of cardiac surgery. Am J Cardiol 1979; 43: 657-61. Voorhess ML, Husson GS, Blackman MS. Growth failure with pericardial constriction. The syndrome of mulibrey nanism. Am J Dis Child 1976; 130: 1146-8. 49 Gui i JCS Pericardite constritiva em lactente 5. 6. 7. 8. 9. 50 Cayler GG, Riley HD, Mc Henry MM. Constrictive pericarditis. In: Moss AJ, Adam FH. Heart Disease in Infants, Children and Adolescents. 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